TRATADO DE
CLÍNICA
PEDIÁTRICA
Tratado de Clínica Pediátrica
Iº Volume
JOÃO M. VIDEIRA AMARAL
Editor-Coordenador
Copyright © de 2008
João M Videira Amaral
Tratado de Clínica Pediatra
1ª Edição não comercial, patrocinada e distribuída pela ABBOTT, 2008
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Impressão e acabamento: IDG………………….???
Depósito Legal nº ……………….?????
Capa: …………………
Registo IGAC: NE-3076/08
ISBN 978-989-20-1277-3
Autores
(por ordenação de capítulos)
João M. Videira Amaral
Professor Catedrático Jubilado de Pediatria da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM/UNL). Médico-pediatra. Chefe de Serviço e Director ex-officio da Clínica Universitária
de Pediatria do Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa.
Isabel Peres
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
João Carlos Gomes-Pedro
Professor Catedrático de Pediatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa (FM/UL). Médico-pediatra. Chefe de
Serviço e Director do Departamento da Criança e da Família, e da
Clínica Universitária de Pediatria do Hospital de Santa Maria,
Lisboa.
Margarida Guimarães
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Maria do Carmo Vale
Mestre em Bioética pela FM/UL. Assistente Convidada de Clínica
Pediátrica da FCM/UNL. Médica-pediatra. Assistente Graduada de
Pediatria. Coordenadora da Unidade de Desenvolvimento (UD) do
HDE, Lisboa.
Mário Coelho
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do
HDE. Assistente Convidado da FCM/UNL (1995-1999). Director
Clínico do HDE (2000-2006).
Francisco Abecasis
Médico radiologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Radiologia (SR) do HDE.
Isabel Griff
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Virgínia Loureiro
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Vitória Matos
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Maria Helena Portela
Médica fisiatra. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Medicina
Física e Reabilitação (SMFR) do HDE (1998-2006).
Maria do Céu Soares Machado
Alta Comissária da Saúde. Professora Associada de Pediatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Médica-pediatra
neonatologista. Chefe de Serviço e Directora do Departamento da
Criança do Hospital Fernando Fonseca, Amadora (1996-2006).
Presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente.
Eugénia Soares
Médica radiologista. Chefe de Serviço de Radiologia no SR do HDE.
Luís Nunes
Professor Agregado de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra
geneticista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Genética (SG)
do HDE.
Leonor Bastos Gomes
Médica neurorradiologista.Chefe de Serviço de Neurorradiologia no SR
do HDE.
Teresa Kay
Médica geneticista. Assistente Graduada no SG do HDE. Assistente livre
de Pediatria da FCM/UNL.
Rosa Maria Barros
Médica patologista clínica. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de
Patologia Clínica (SPC) do HDE.
Raquel Carvalhas
Bióloga- geneticista. Assistente de Saúde no SG do HDE.
Antonieta Viveiros
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Antonieta Bento
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Isabel Daniel
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Maria de Jesus Feijoó
Médica pediatra-geneticista. Directora do Serviço de Genética Médica
do Hospital Egas Moniz ex-officio. Coordenadora do CERAC.
Maria de Lurdes Lopes
Médica pediatra-endocrinologista. Assistente Graduada de Endocrinologia Pediátrica no HDE. Doctorat pela Universidade de Genève,
Suíça. Assistente Convidada de Pediatria da FCM/UNL (1999-2006).
VI
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Rosa Pina
Médica pediatra-endocrinologista.Assistente Graduada de Endocrinologia Pediátrica no HDE. Assistente Convidada de Pediatria da
FCM/UNL (1995- 2006).
Ana Alegria
Médica interna de Pediatria do HDE.
João Estrada
Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria da UCIP
e UD do Desenvolvimento no HDE.
Mónica Pinto
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no HDE.
Isabel Portugal
Médica fisiatra. Assistente Graduada no SMFR de Medicina Física e
Reabilitação do HDE.
Maria José Gonçalves
Médica pedopsiquiatra. Chefe de Serviço e Directora do Departamento
de Pedopsiquiatria do HDE (2001-2007).
Margarida Marques
Médica-pedopsiquiatra. Assistente Graduada de Pedopsiquiatria no
HDE.
Deolinda Barata
Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria e
Coordenadora da UCIP do HDE. Membro do Núcleo de Apoio à
Família no HDE e do Instituto de Apoio à Criança.
Ana Leça
Médica pediatra .Assistente Graduada de Pediatria no HDE. Membro
do Núcleo de Apoio à Criança e Família no HDE. Consultora da
DGS.
Mário Cordeiro
Professor Auxiliar de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra.
António Marques
Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP
do HDE.
Margarida Santos
Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP
do HDE.
Luís Varandas
Médico pediatra. Professor Auxiliar de Pediatria da FCM/UNL e do
Instituto de Higiene e Medicina Tropical/UNL. Médico pediatra.
Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do HDE.
José Ramos
Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP
do HDE.
Isabel Fernandes
Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP
do HDE.
Hercília Guimarães
Professora Agregada de Pediatria da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto. Médica pediatra neonatologista. Chefe de
Serviço e Directora do Serviço de Neonatologia do Hospital de São
João (HSJ), Porto.
Maria do Carmo Silva Pinto
Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria e Coordenadora da
Unidade de Adolescentes no HDE.
Ignacio Villa Elizaga
Professor catedrático jubilado de Pediatria e Neonatologia da Faculdade
de Medicina da Universidade Autónoma de Madrid,Espanha.
Médico-pediatra neonatologista. Director ex-officio do Departamento de Pediatria e Centro de Investigação do Hospital Universitário
Gregorio Marañon de Madrid, Espanha.
Carla Rego
Médica pediatra. Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto(FMUP). Assistente Graduada de Pediatria
da Unidade de Gestão da Mulher e da Criança/Departamento
Universitário no Hospital de São João, Porto.
António Guerra
Médico pediatra. Professor Agregado de Pediatria da FMUP. Professorregente da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da UP.
Chefe de Serviço de Pediatria da Unidade de Gestão da Mulher e da
Criança/Departamento Universitário no Hospital de São João, Porto.
Aires Cleofas da Silva
Médico pediatra gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria/ Gastrenterologia ex-officio da Clínica Universitária de Pediatria e Departamento
da Criança e da Família do Hospital de Santa Maria, Lisboa.
J. Rosado Pinto
Professor Auxiliar Convidado da FCM/UNL ex-officio. Médico-pediatra
imunoalergologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de
Imunoalergologia (SIA) do HDE .Membro do Board da UEMS.
Ângela Gaspar
Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do
HDE.
Mário Morais de Almeida
Médico imunoalergologista. Assistente Graduado de Imunoalergologia
no SIA do HDE.
Graça Pires
Médica imunoalergologista. Assistente Eventual de Imunoalergologia
no SIA do HDE.
Cristina Santa Marta
Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do
HDE.
Autores
Paula Leiria Pinto
Mestre em Imunoalergologia pela FCM/UNL. Médica- imunoalergologista. Assistente de Pediatria da FCM/UNL. Assistente Graduada
de Imunoalergologia e Directora do SIA do HDE.
Sara Prates
Médica imunoalergologista. Assistente eventual de Imunoalergologia
no SIA do HDE.
Conceição Neves
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 1 do HDE.
António Bessa de Almeida
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do
HDE. Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL.
Júlia Gallhardo
Médica interna de Pediatria do HDE.
Ema Leal
Médica interna de Pediatria do HDE.
Carlos Ruah
Doutor em Medicina-ORL pela FCM/UNL. Médico oto-rino-laringologista.
Vital Calado
Médico oto-rino-laringologista. Chefe de Serviço e Director do serviço
de ORL do HDE ex-officio.
Maria Caçador
Médica oto-rino-laringologista. Serviço de ORL do Hospital Cuf, Lisboa.
Luísa Monteiro
Mestre em Medicina/ORL pela FM/UL. Médica- oto-rino-laringologista. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de ORL do HDE.
Julião Magalhães
Cirurgião pediatra. Chefe de Serviço de Cirurgia Pediátrica no HDE.
Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL ex-officio.
Laura Oliveira
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 2 do HDE.
Fátima Abreu
Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria na UP do HDE.
VII
Ana Margarida Reis
Médica interna de Imunoalergologia no SIA do HDE.
José Cavaco
Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na
UP do HDE.
Mafalda Paiva
Médica interna de Pediatria do HDE.
Ana Maia Pita
Médica interna de Pediatria do HDE.
António Teixeira
Médico-fisiatra. Assistente Graduado no SMFR do HDE.
António Pinto Soares
Médico dermatologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Dermatologia (SD) do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos.
Teresa Fiadeiro
Médica dermatologista. Assistente Graduada no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos ex-officio.
Maria João Paiva Lopes
Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Lisboa/Capuchos.
Ana Macedo Ferreira
Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Lisboa/Capuchos.
Ana Fidalgo
Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Lisboa/Capuchos.
Luísa Caldas Lopes
Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Lisboa/Capuchos.
Filipa Santos
Médica pediatra-gastrenterologista . Assistente de Pediatria na UGE do
HDE.
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pediatra gastrenterologista. Director do Serviço 1 e Director Clínico do HDE.
José Guimarães
Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço Universitário de
Pediatria do Hospital de São Francisco Xavier (HSFX), Lisboa.
José Cabral
Médico pediatra- gastrenterologista. Assistente Graduado de Pediatria.
Coordenador da UGE do HDE.
António Amador
Médico pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 2 do HDE.
Isabel Afonso
Médica pediatra. Assistente de Pediatria na UGE do HDE.
Joaquim Sequeira
Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na
Unidade de Pneumologia (UP) do HDE.
Rui Alves
Cirurgião pediatra. Assistente Graduado de Cirurgia Pediátrica no HDE.
Assistente Convidado de Pediatria da FCM/UNL.
VIII
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Sara Silva
Médica interna de Pediatria do HDE.
Raul Silva
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do
HDE. Assistente Convidado de Pediatria da FCM-UNL.
Inês Pó
Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente Graduada de Pediatria
na UGE do HDE.
Maria de Lurdes Torre
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Departamento da Criança
do HFF, Amadora/Sintra.
Isabel Gonçalves
Médica pediatra. Chefe de Serviço de Pediatria no Hospital Pediátrico
de, Coimbra.
Helena Flores
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 1 do HDE.
Mário Chagas
Médico pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Pediatria do
Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil
(IPOLFG).
Ana Teixeira
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço de Pediatria do
IPOLFG,Lisboa.
Duarte Salgado
Médico neurologista. Assistente Graduado de Neurologia no IPOLFG,
Lisboa.
Índice
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIX
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXI
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIII
Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXV
Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIX
10 Crianças e adolescentes com necessidades
especiais - aspectos gerais da habilitação e
reabilitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Maria Helena Portela
11 Continuidade de cuidados à criança e
adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Maria do Céu Soares Machado
I VOLUME
PARTE III Genética e Dismorfologia
69
12 Importância da Genética na Clínica
Pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
PARTE I Introdução à Clínica Pediátrica
1
1 A Criança em Portugal e no Mundo.
Demografia e Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
13 Doenças multifactoriais . . . . . . . . . . . . . . . 71
João M. Videira Amaral
2
3
Os superiores interesses da criança . . . . . 17
5
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
14 Hereditariedade mendeliana . . . . . . . . . . . 73
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
João Gomes-Pedro
15 Anomalias cromossómicas . . . . . . . . . . . . . 76
Ética, humanização
e cuidados paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
16 Diagnóstico pré-natal . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral
4
Luís Nunes
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Formação em Pediatria
na pós-graduação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
17 A consulta de Genética . . . . . . . . . . . . . . . . 85
João M. Videira Amaral
18 Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Investigação e clínica pediátrica . . . . . . . . 35
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Maria de Jesus Feijoó
João M. Videira Amaral
PARTE IV
PARTE II
6
Clínica Pediátrica Hospitalar
e Extra-Hospitalar
39
Clínica pediátrica hospitalar . . . . . . . . . . . 40
Mário Coelho
7
Aspectos metodológicos da abordagem
de casos clínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
9
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
20 Baixa estatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
Francisco Abecasis, Eugénia Soares e Leonor Bastos Gomes
Desenvolvimento
e Comportamento
119
21 Desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Aspectos do Serviço de Patologia Clínica
num hospital pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . 59
22 Desenvolvimento e intervenção . . . . . . . 123
João M. Videira Amaral
8
Crescimento Normal
e Patológico
103
19 Crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
A Imagiologia em Clínica Pediátrica . . . . 49
Rosa Maria Barros,Antonieta Viveiros,Antonieta Bento,
Isabel Daniel, Isabel Griff, Margarida Guimarães.Virgínia
Loureiro, Vitória Matos
PARTE V
Maria do Carmo Vale
Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale
23 Comportamento e temperamento . . . . . . 128
Maria do Carmo Vale
X
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
24 Deficiência mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
25 Perturbações da linguagem
e comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
26 Habilitação da criança com dificuldades
na comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
PARTE VIII Clínica da Adolescência
215
43 Adolescência, crescimento
e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216
Maria do Carmo Silva Pinto
44 Adolescência e comportamento:
abordagem clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
Maria do Carmo Silva Pinto
Isabel Portugal
27 Aprendizagem e insucesso escolar . . . . . 140
Maria do Carmo Vale
28 Perturbações do sono . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Maria do Carmo Vale e João M.Videira Amaral
29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono
(SAOS) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
Mário Coelho
30 Perturbações do espectro do autismo . . 154
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
31 Perturbações de hiperactividade
e défice de atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
PARTE IX
Aspectos da Relação entre
Medicina Pediátrica
e Medicina do Adulto
233
45 Doenças da idade pediátrica com
repercussão no adulto . . . . . . . . . . . . . . . . 234
João M. Videira Amaral
46 Hipertensão arterial em saúde infantil
e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244
João M. Videira Amaral
47 Doença aterosclerótica . . . . . . . . . . . . . . . 250
João M. Videira Amaral
Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale
PARTE VI Pedopsiquiatria
163
32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica . . . 164
Maria José Gonçalves
33 Perturbações da ansiedade . . . . . . . . . . . . 167
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
34 Depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
PARTE X Fluidos e Electrólitos
255
48 Equilíbrio hidroelectrolítico
e ácido-base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
49 Desidratação aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262
Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
50 Reidratação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264
Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
35 Psicoses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
36 Perturbações do comportamento . . . . . . 175
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
PARTE XI Nutrição
273
51 Nutrientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Ignacio Villa Elizaga
52 Alimentação com leite materno . . . . . . . 288
PARTE VII Ambiente, Risco e Morbilidade 179
37 A criança maltratada . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
Deolinda Barata e Ana Leça
38 Traumatismos, ferimentos e lesões
acidentais – o papel da prevenção . . . . . 188
Mário Cordeiro
39 Intoxicações agudas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
António Marques e Margarida Santos
40 Viagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Luís Varandas
41 Acidentes de submersão . . . . . . . . . . . . . . 207
José Ramos e Isabel Fernandes
42 Sindroma da morte súbita do lactente . . 210
Hercília Guimarães
João M. Videira Amaral
53 Leites e fórmulas infantis . . . . . . . . . . . . . 294
Carla Rego e António Guerra
54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos . 302
Aires Cleofas da Silva
55 Alimentação diversificada
no primeiro ano de vida . . . . . . . . . . . . . . 308
António Guerra
56 Alimentação após o primeiro ano de vida
incluindo as idades pré-escolar, escolar
e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317
Ignacio Villa Elizaga
57 Obesidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321
Carla Rego
Índice
58 Síndromas de má-nutrição
energético-proteica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328
Ignacio Villa Elizaga
59 Carências vitamínicas . . . . . . . . . . . . . . . . 334
João M. Videira Amaral
60 Regimes vegetarianos
e erros alimentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340
João M. Videira Amaral
61 Alterações do comportamento
alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
João M. Videira Amaral
PARTE XII Imunoalergologia
347
62 Doenças alérgicas na criança –
epidemiologia e prevenção . . . . . . . . . . . 348
J. Rosado Pinto
63 Aspectos do diagnóstico
da doença alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352
Ângela Gaspar
64 Asma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Mário Morais de Almeida
65 Rinite alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Graça Pires
66 Alergia de expressão cutânea . . . . . . . . . 376
Cristina Santa Marta
67 Alergia medicamentosa . . . . . . . . . . . . . . 383
Paula Leiria Pinto
68 Alergia alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388
Sara Prates
69 Imunodeficiências primárias . . . . . . . . . . 392
Conceição Neves
70 Síndroma de imunodeficiência
adquirida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 396
António Bessa Almeida, Júlia Galhardo e Ema Leal
XI
77 Otomastoidite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
Maria Caçador e Carlos Ruah
78 Patologia inflamatória aguda laríngea . . 421
Carlos Ruah
79 Avaliação audiológica . . . . . . . . . . . . . . . . 424
Luísa Monteiro
PARTE XIV Pneumologia
435
80 Anomalias da parede do tórax . . . . . . . . . 436
João M. Videira Amaral
81 Anomalias congénitas do sistema
respiratório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 438
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral
82 Pneumonia adquirida
na comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442
Laura Oliveira e Fátima Abreu
83 Derrame pleural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 450
Fátima Abreu
84 Pneumonia recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . 454
José Guimarães
85 Bronquiolite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459
António Amador e Joaquim Sequeira
86 Bronquiolite obliterante . . . . . . . . . . . . . . 466
José Guimarães
87 Bronquite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 469
João M. Videira Amaral
88 Bronquiectasias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 470
Ana Margarida Reis e José Cavaco
89 Síndromas de aspiração . . . . . . . . . . . . . . 474
João M. Videira Amaral
90 Hemossiderose pulmonar . . . . . . . . . . . . 476
Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida
91 Fibrose quística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 479
Ana Maia Pita e José Cavaco
92 Reabilitação respiratória . . . . . . . . . . . . . . 485
PARTE XIII Oto-rino-laringologia
403
71 Faringite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 404
Carlos Ruah
72 Amigdalite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 405
Carlos Ruah
73 Adenoidite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
Carlos Ruah
74 Rino- sinusite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
Vital Calado
75 Otite média aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
Vital Calado
76 Otite sero- mucosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416
Vital Calado
António Teixeira
PARTE XV Dermatologia
491
93 Introdução à Dermatologia pediátrica . . . 492
António Pinto Soares
94 Dermatite seborreica . . . . . . . . . . . . . . . . . 493
Teresa Fiadeiro
95 Dermatite atópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495
Maria João Paiva Lopes
96 Acne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 499
Ana Macedo Ferreira
97 Dermatite das fraldas . . . . . . . . . . . . . . . . 503
Teresa Fiadeiro
XII
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
98 Psoríase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 505
Ana Fidalgo
99 Pitiríase rosada (doença de Gibert) . . . . 508
Ana Fidalgo
100 Pediculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509
Luísa Caldas Lopes
101 Escabiose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 510
Luísa Caldas Lopes
121 Hipertensão portal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 581
Maria de Lurdes Torre
122 Insuficiência hepática aguda . . . . . . . . . . 584
Maria de Lurdes Torre
123 Transplantação hepática . . . . . . . . . . . . . . 587
Isabel Gonçalves
124 Pancreatite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 591
Helena Flores
102 Molusco contagioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . 512
Maria João Paiva Lopes
PARTE XVI
Gastrenterologia
e Hepatologia
515
103 Vómitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516
Mafalda Paiva e Filipa Santos
104 Refluxo gastroesofágico . . . . . . . . . . . . . . 519
Gonçalo Cordeiro Ferreira
105 Dor abdominal recorrente . . . . . . . . . . . . 524
José Cabral
106 Doença péptica e Helicobacter pylori . . . 529
José Cabral
107 Gastrenterite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 532
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral
108 Diarreia crónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537
Gonçalo Cordeiro Ferreira
109 Doença celíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 540
Gonçalo Cordeiro Ferreira
110 Giardíase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542
Gonçalo Cordeiro Ferreira
111 Diarreia crónica inespecífica . . . . . . . . . . 543
Gonçalo Cordeiro Ferreira
112 Doença inflamatória do intestino . . . . . . 544
PARTE XVII Oncologia
595
125 Introdução à Oncologia Pediátrica . . . . . 596
Mário Chagas
126 Tumores, ambiente e genética . . . . . . . . . 598
Mário Chagas
127 Aspectos básicos do diagnóstico
oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 601
Mário Chagas
128 Aspectos básicos do tratamento
oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 605
Mário Chagas e Ana Teixeira
129 Leucemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 610
Mário Chagas e Ana Teixeira
130 Linfomas não Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . 615
Mário Chagas e Ana Teixeira
131 Linfomas de Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . . 618
Mário Chagas e Ana Teixeira
132 Neuroblastoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 620
Mário Chagas e Ana Teixeira
133 Tumor de Wilms . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 622
Mário Chagas e Ana Teixeira
134 Tumores do sistema nervoso central . . . . 624
Mário Chagas e Duarte Salgado
Isabel Afonso
113 Obstipação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 547
Gonçalo Cordeiro Ferreira
II VOLUME
114 Doença de Hirschprung . . . . . . . . . . . . . . 553
Rui Alves
115 Síndroma do intestino curto . . . . . . . . . . 556
Sara Silva e Raul Silva
116 Hepatite vírica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563
Gonçalo Cordeiro Ferreira
117 Hepatite autoimune . . . . . . . . . . . . . . . . . . 570
Gonçalo Cordeiro Ferreira
118 Colestase do recém-nascido e lactente . . . 573
Inês Pó
119 Doença de Wilson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577
Isabel Afonso
120 Cirrose hepática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 579
Maria de Lurdes Torre
PARTE XVIII Hematologia
135 Hematopoiese
Ema Leal e A. Bessa Almeida
136 Síndromas hematológicas em idade
pediátrica
João M. Videira Amaral
137 Anemias. Generalidades
João M. Videira Amaral
138 Anemia ferropénica
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida
139 Anemia megaloblástica
João M. Videira Amaral
Índice
140 Anemias hemolíticas. Generalidades
Lígia Braga
141 Esferocitose hereditária
Lígia Braga
142 Anemias hemolíticas por defeitos
enzimáticos
Lígia Braga, Liza Aguiar, Faisana Amod
143 Anemias hemolíticas por defeitos
da hemoglobina
Lígia Braga, João M. Videira Amaral
144 Hemoglobinúria paroxística nocturna
João M. Videira Amaral
145 Anemias hemolíticas de causa extrínseca
João M. Videira Amaral
146 Policitémia
João M. Videira Amaral
147 Neutropénia
Ema Leal e A. Bessa Almeida
148 Trombocitopénia
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida
149 Anomalias funcionais das plaquetas
João M. Videira Amaral
150 Aplasia medular
João M. Videira Amaral
151 Hemofilias
162 Hipertensão arterial e doença renal
Margarida Abranches
163 Alterações tubulares renais
Isabel Castro
164 Infecção urinária
Arlete Neto
165 Anomalias congénitas do rim
João M. Videira Amaral
166 Refluxo vésico-ureteral
Rui Alves
167 Uropatia obstrutiva
Rui Alves
168 Diagnóstico pré-natal das uropatias
malformativas
Margarida Abranches e Judite Batista
169 Insuficiência renal aguda
Isabel Castro
170 Insuficiência renal crónica
Isabel Castro
171 Alterações da bexiga
Rui Alves
172 Alterações do pénis e uretra
Rui Alves
173 Alterações do conteúdo escrotal
Rui Alves e João M. Videira Amaral
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida
152 Doença de von Willebrand
João M. Videira Amaral
153 Hipercoagulabilidade e doença trombótica
João M. Videira Amaral
154 Coagulação intravascular disseminada
Deolinda Barata e Sofia Sarafana
155 Terapêutica transfusional
Deonilde Espírito Santo
PARTE XX Endocrinologia
174 Doenças da supra-renal .Generalidades
Maria de Lurdes Lopes
175 Hiperplasia congénita da supra-renal
Maria de Lurdes Lopes
176 Insuficiência supra-renal
Maria de Lurdes Lopes
177 Síndroma de Cushing
Maria de Lurdes Lopes
PARTE XIX Nefro - Urologia
156 Introdução à Nefro – Urologia
Judite Batista
157 Glomerulonefrite aguda
Ana Paula Serrão e Gisela Neto
158 Glomerulonefrite crónica
Ana Paula Serrão e Gisela Neto
159 Síndroma nefrótica idiopática
Judite Batista
160 Síndroma hemolítica urémica
Ana Paula Serrão
161 Trombose da veia renal
João M. Videira Amaral
178 Tumores do córtex supra-renal
Maria de Lurdes Lopes
179 Feocromocitoma
João M. Videira Amaral
180 Doenças da tiroideia
Catarina Limbert
181 Puberdade normal e patológica
Guilhermina Romão
182 Diabetes mellitus
Rosa Pina
183 Cetoacidose diabética
João Estrada e Maria do Carmo Vale
184 Hipoglicémia
João M. Videira Amaral
XIII
XIV
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
PARTE XXI Neurologia
185 Cefaleias
José Pedro Vieira
186 Ataxia
José Pedro Vieira
187 Epilepsia
Ana Isabel Dias
188 Acidentes vasculares cerebrais
Clara Abadesso e José Pedro Vieira
189 Paralisia cerebral
Eulália Calado
190 Defeitos do tubo neural
Eulália Calado
191 Habilitação para a marcha e ajudas técnicas
em crianças com spina bifida
Clara Loff
192 Discranias
João M. Videira Amaral
193 Alterações da migração neuronal e outras
anomalias do SNC
João M. Videira Amaral
194 Síndromas neurocutâneas
Elisabete Gonçalves, Rita Silva e Eulália Calado
195 Doenças neuromusculares
206 Coarctação da aorta
Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku
207 Estenose aórtica
António Fiarresga e Sashicanta Kaku
208 Síndroma de coração esquerdo hipoplásico
Sofia Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
209 Estenose pulmonar
Anabela Paixão, Marisa Peres e Sashicanta Kaku
210 Tetralogia de Fallot
Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
211 Transposição completa das grandes artérias
Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco
212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca
Anabela Paixão
213 Cardite reumática
António J. Macedo e Sashicanta Kaku
214 Endocardite infecciosa
Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
215 Miocardite
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
216 Pericardite
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
217 Cardiomiopatias
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Fernando Tapadinhas e José Pedro Vieira
196 Doenças neurodegenerativas
Carla Moço e Ana Moreira
197 Reabilitação neurológica
Aldina Alves
PARTE XXIII Reumatologia
218 Introdução à clínica das doenças
reumáticas juvenis
J. A. Melo Gomes
219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ)
PARTE XXII Cardiologia
198 Introdução à Cardiologia Pediátrica
Sashicanta Kaku
199 Cardiologia fetal
Graça Nogueira e António J. Macedo
200 Não doença e pseudodoença cardíaca
em idade pediátrica
Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku
201 Cardiopatias congénitas. Grupos
fisiopatológicos
Anabela Paixão e Sashicanta Kaku
202 Persistência do canal arterial
Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
203 Comunicação interauricular
Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku
204 Comunicação interventricular
Anabela Paixão, Ana Cristina Ferreira e Sashicanta Kaku
205 Defeitos do septo aurículo-ventricular
Mónica Rebelo e António J. Macedo
J. A. Melo Gomes
220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no
grupo das AIJ
Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes
221 Síndromas auto-inflamatórias juvenis
Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes
222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e
juvenil
Maria Manuela Costa
223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis
Margarida P. Ramos
224 Esclerodermias juvenis
Rui Figueiredo e J. A. Melo Gomes
225 Vasculites sistémicas
Margarida P. Ramos
226 Febre reumática
Maria Teresa Terreri
227 Dores de crescimento
J. A. Melo Gomes
Índice
PARTE XXIV Osteocondrodisplasias
228 Displasias esqueléticas e doenças afins.
Conceitos fundamentais
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
229 Osteogénese imperfeita
Ignacio Villa Elizaga
230 Dentinogénese imperfeita
Ignacio Villa Elizaga
231 Síndromas de Ehlers-Danlos
Ignacio Villa Elizaga
232 Síndroma de Alport
Ignacio Villa Elizaga
233 Epidermólise bolhosa
Ignacio Villa Elizaga
234 Síndroma de Marfan e aracnodactilia
congénita
Ignacio Villa Elizaga
235 Cutis laxa, pseudoxantoma elástico
e síndroma de Williams
Ignacio Villa Elizaga
PARTE XXVI Oftalmologia
247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica
João Goyri O’Neill
248 Exame oftalmológico na idade pediátrica
João Goyri O’Neill
249 Anomalias de refracção (ametropia)
João Goyri O’Neill
250 Estrabismo
Ana Xavier
251 Ambliopia
João Goyri O’Neill e J.L. Dória
252 Obstrução do aparelho lacrimal
João Goyri O’Neill e J.L. Dória
253 Glaucoma
Cristina Brito
254 Síndroma do “olho vermelho”
José Nepomuceno
255 Doenças da retina
Cristina Brito
256 Catarata
Cristina Brito e J. Mesquita
PARTE XXV Ortopedia
236 Introdução à Ortopedia Pediátrica
257 Traumatismos óculo-orbitários
J. Mesquita
J. de Salis Amaral
237 Osteomielite
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
238 Artrite séptica
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
239 Tumores ósseos
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
240 Desvios axiais dos membros
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
241 Patologia regional específica do membro
superior
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
242 Patologia regional específica do membro
inferior
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
243 Patologia regional específica do tronco
PARTE XXVII Estomatologia
258 Crescimento e desenvolvimento
maxilo-facial
Rosário Malheiro
259 Oclusão e aspectos da relação molar
e da relação incisiva
Rosário Malheiro
260 Traumatologia alvéolo-dentária
Rosário Malheiro
261 Cárie dentária
Rosário Malheiro
262 Principais síndromas alvéolo-dentárias
Rosário Malheiro
263 Infecções odontogénicas
Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
244 Patologia traumática
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
245 Reabilitação de anomalias
congénitas da mão
Maria José Costa
246 Reabilitação de anomalias dos membros
inferiores
M. Madalena de Quinhones Levy
XV
III VOLUME
PARTE XXVIII
Urgências e emergências.
Tópicos seleccionados
264 Serviços de Urgência e Emergência.
Aspectos organizativos
João M. Videira Amaral
XVI
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
265 Reanimação cárdio-respiratória
Margarida Santos e António Marques
266 Estado de mal epiléptico
Rosalina Valente e Gabriela Pereira
267 Coma
Rosalina Valente e Gabriela Pereira
268 Choque
Lurdes Ventura e Deolinda Barata
269 Sépsis
Lurdes Ventura e Deolinda barata
270 Hipertermia maligna
Isabel Fernandes e Sérgio Lamy
271 Traumatismos cranioencefálicos
Sérgio Lamy e Isabel Fernandes
272 Queimaduras
Rui Alves e Maria José Costa
273 Mordeduras e picadas
João M. Videira Amaral
287 Brucelose
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
288 Meningite bacteriana pós-neonatal
Ana Leça
289 Infecções da pele e dos tecidos moles
Leonor Carvalho e Ana Leça
290 Celulite da órbita
Ana Leça e Leonor Carvalho
291 Riquetsioses
(excluindo febre escaronodular e febre Q)
Ana Leça e Mónica Baptista
292 Febre escaronodular
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
293 Febre Q
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
294 Leptospirose
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
295 Doença de Lyme
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
PARTE XXIX Infecciologia
274 Sistematização das doenças
infecciosas e parasitárias
João M. Videira Amaral
275 Doenças infecciosas exantemáticas – uma
visão global
Luís Varandas e Andreia Teixeira
276 Imunizações
Ana Leça e João M. Videira Amaral
277 Princípios gerais da terapêutica
antimicrobiana
A. Bessa Almeida e Ana Rute Ferreira
278 Febre sem foco de infecção detectável
Ana Leça e Cristina Henriques
279 Infecções pneumocócicas
Maria João Brito
280 Escarlatina
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
296 Febre recorrente
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
297 Infecções por Parvovírus B19
Conceição Neves
298 Infecções por Vírus varicela – zóster
Ana Leça
299 Infecções por Enterovírus
Ana Leça
300 Mononucleose infecciosa
Ana Leça e Raquel Ferreira
301 Meningoencefalites víricas
João Baldaia, Dora Gomes e Rute Neves
302 Parasitoses. Abordagem global
Luís Varandas
303 Calazar
João M. Videira Amaral
304 Malária
Luís Varandas
281 Tuberculose
Ana Leça
282 Infecçções por Haemophilus influenzae
Maria João Brito
283 Doença meningocócica
João M. Videira Amaral
284 Infecções por Salmonella
João M. Videira Amaral
285 Doença da arranhadela do gato
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
286 Tosse convulsa
Ana Leça e João Farela Neves
PARTE XXX Cirurgia
305 Sistematização dos tópicos seleccionados
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral
306 Anomalias crânio-faciais
João M. Videira Amaral
307 Fístulas e quistos da cabeça e pescoço
Julião Magalhães
308 Hérnia diafragmática congénita
Julião Magalhães, Rui Alves e João M Videira Amaral
Índice
309 Hérnia diafragmática congénita como
modelo em investigação: implicações
clínicas
Jorge Correia-Pinto, Maria João Baptista e Cristina
Nogueira-Silva
310 Eventração diafragmática
João M Videira Amaral
311 Atrésia do esófago
Rui Alves e João M Videira Amaral
312 Onfalocele
Rui Alves
313 Gastrosquise e outros defeitos da parede
abdominal
Rui Alves
314 Hérnias
Julião Magalhães
315 Síndromas de oclusão do tubo digestivo
Julião Magalhães
316 Estenose hipertrófica do piloro
Julião Magalhães
317 Anomalias ano-rectais
Rui Alves
XVII
*Recém-nascido de alto risco
329 Reanimação do recém-nascido
no bloco de partos
Filomena Pinto, Isabel Santos, Teresa Costa e A. Marques
Valido
330 Alterações do crescimento fetal
Luís Pereira-da-Silva
331 Recém-nascidos de gestação múltipla
Daniel Virella e Ana Dias Alves
332 Embriofetopatia diabética
M.R.G Carrapato, S. Tavares, C. Prior e T. Caldeira
333 Problemas clínicos do recém-nascido
pré-termo
Graça Henriques, Fernando Chaves e João M. Videira Amaral
334 Recém-nascido de mãe toxicodependente
João M. Videira Amaral
335 Dor no recém-nascido
João M. Videira Amaral
336 Cuidados paliativos ao recém-nascido
João M. Videira Amaral
337 Transporte do recém-nascido
João M. Videira Amaral
318 Hemorragias do tubo digestivo
João M. Videira Amaral
319 Divertículo de Meckel
Julião Magalhães
320 Apendicite aguda
Julião Magalhães
321 Enterocolite necrosante
Rui Alves e João M. Videira Amaral
322 Aspectos da Ginecologia Pediátrica
Rui Alves
323 Idades recomendadas para intervenção
cirúrgica
Julião Magalhães
PARTE XXXI Perinatologia e Neonatologia
*Feto e recém-nascido
324 Aspectos da Medicina Perinatal
Ricardo Jorge Fonseca
325 Introdução à Neonatologia
João M. Videira Amaral
326 Adaptação fetal à vida extra-uterina
João M. Videira Amaral
327 Exame clínico do recém-nascido
João M. Videira Amaral
328 Cuidados ao recém-nascido aparentemente
saudável
Cláudia Santos, Helena Carreiro e Maria do Céu Machado
*Problemas hidroelectrolíticos e metabólicos
338 Balanço hidroelectrolítico no recém-nascido
João M. Videira Amaral
339 Alterações do metabolismo do cálcio,
fósforo e magnésio
Maria João Laje, Cristina Henriques e João M. Videira
Amaral
340 Alterações do metabolismo da glucose
Maria João Laje, Cristina Henriques e João M. Videira
Amaral
341 Insuficiência renal aguda no recém-nascido
João M. Videira Amaral
*Alimentação e nutrição do recém-nascido de
alto risco
342 Alimentação entérica do recém-nascido
pré-termo
João M. Videira Amaral
343 Nutrição parentérica do recém-nascido
Luís Pereira-da-Silva
344 Doença metabólica óssea do recém-nascido
pré-termo
João M. Videira Amaral
XVIII
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
*Problemas respiratórios do recém-nascido
345 Problemas respiratórios. Generalidades
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João
M.Videira Amaral
346 Doença das membranas hialinas
Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido
364 Convulsões
Leonor Duarte e João M. Videira Amaral
365 Encefalopatia hipóxico-isquémica
Leonor Duarte
366 Encefalopatia hipóxico-isquémica
Leonor Duarte
347 Taquipneia transitória
Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido
348 Síndroma de aspiração meconial
Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido
349 Síndromas de ar ectópico
Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido
350 Hemorragia pulmonar
João M.Videira Amaral
351 Hipertensão pulmonar persistente
João M.Videira Amaral
352 Assistência ventilatória no recém-nascido
J. Nona e A. Marques Valido
353 Displasia broncopulmonar e outras formas
de doença pulmonar crónica
Marta Nogueira e A. Marques Valido
PARTE XXXII
Doenças hereditárias
do metabolismo
367 Importância das doenças hereditárias do
metabolismo.Rastreios
João M.Videira Amaral
368 Defeitos do metabolismo dos aminoácidos
(fenilcetonúria, tirosinémia tipo I ,
homocistinúria e defeitos do ciclo da ureia)
João M.Videira Amaral
369 Defeitos do metabolismo dos hidratos de
carbono (incluindo metabolismo
intermediário associado a acidose láctica,
glicogenoses, defeitos do metabolismo da
galactose, frutose, pentose e glicoproteínas)
João M.Videira Amaral
*Problemas hematológicos e afins
354 Anemia neonatal
Ana Nunes
355 Policitémia e hiperviscosidade
Ana Nunes e Maria dos Anjos Bispo
356 Trombocitopénia
António Vieira Macedo
357 Trombocitopénia
António Vieira Macedo
358 Icterícia neonatal
João M.Videira Amaral
370 Mucopolissacaridoses
João M.Videira Amaral
371 Defeitos do metabolismo dos lípidos
(incluindo beta-oxidação dos ácidos gordos
mitocondriais,ácidos gordos de cadeia
muito longa, transporte das lipoproteínas,
lipidoses e mucolipidoses)
João M.Videira Amaral
372 Defeitos do metabolismo da purina
e pirimidina
João M.Videira Amaral
373 Progéria
*Infecção do feto e recém-nascido
359 Aspectos gerais da infecção
no recém-nascido
João M.Videira Amaral
374 Porfírias
João M.Videira Amaral
Maria Teresa Neto
360 Infecções congénitas
Maria Teresa Neto
361 Infecção bacteriana de origem materna
Maria Teresa Neto
362 Infecção com origem hospitalar e na
comunidade
Maria Teresa Neto
*Problemas neurológicos e traumáticos
363 Traumatismo de parto
Lincoln Justo Silva
Índice remissivo, quadros e tabelas no fim do
3º volume
Prefácio
Há muito que se sentia em Portugal a falta de um Tratado de Clínica Pediátrica. Há
anos, quando escrevi o prefácio do livro de JM Palminha & E Carrilho sobre Semiologia
Pediátrica, sublinhei esta falta tendo aconselhado a publicação, a seguir, dum Tratado de
Clínica Pediátrica. Infelizmente, a doença e a morte do Prof. JM Palminha impediram
esta concretização.
Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa. Após cerca
de três anos de preparação, vai ser publicado o primeiro de três volumes dum Tratado
de Clínica Pediátrica Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca todos os
pontos da Pediatria, alguns vistos à luz dos últimos estudos.
Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos
maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil. A maioria dos autores integra colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o Prof. João Amaral
formou uma esplêndida equipa.
Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos de Pediatria, mas também aos
médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos países de língua portuguesa, especialmente Angola, Moçambique, e até Brasil. Neste último país
irmão, embora haja muitos livros de Pediatria, nenhum que eu conheça abrange tanta
matéria e tão bem explicada como este.
Afirmei atrás que coordenar uma obra desta envergadura constitui um trabalho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do João Amaral, a sua persistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa indicada. Além deste
imenso trabalho, o Prof. João Amaral ainda intervém como autor de numerosos capítulos do livro.
Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso
agradecer ao João Amaral o seu esforço. Mas quem está verdadeiramente de parabéns
são as Crianças do nosso País. Muito e muito obrigado.
Nuno Cordeiro Ferreira
Apresentação
“O conhecimento é como uma esfera –
quanto maior, mais contacto com o desconhecido”
Pascal
O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas
ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus
alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
/UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Familiar realizando estágios no Hospital
de Dona Estefânia, em Lisboa onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o entendimento
da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de informação
científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como mais-valia a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes doutras instituições com quem mais
convive ou a quem esteja mais ligado.
É, pois, de admitir que tal informação (supostamente mais personalizada) podendo
servir de suporte à prática clínica durante os estágios no âmbito da pré- e pós graduação,
e no desempenho profissional, suscite o confronto com outra informação congénere
internacional ou nacional, incluindo a veiculada pela net , alargando horizontes.
Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido, resultou o título. O mesmo está dividido em 3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes,
integrando na totalidade 374 Capítulos ocupando cerca de 2600 páginas. Houve a
intenção de apresentar os tópicos fundamentais da clínica pediátrica hospitalar e extrahospitalar, de complexidade e frequência diversos, de forma simples e de modo prático(clássico), estruturando-os, por razões didácticas, em alíneas tais como, definições,
importância do problema, aspectos epidemiológicos, etiopatogénese, manifestações
clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognóstico.
Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá
nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a atitudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada capítulo
ou parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião.
A obra é o resultado dum esforço colectivo e dedicado de uma plêiade de cerca de
180 Autores convidados, Colegas e Amigos de reconhecida competência a quem foi distribuída a grande série de tópicos de acordo com as respectivas áreas de interesse e de
experiência. Como particularidade, há a referir que nalguns dos capítulos os Autores
(com a anuência e o aplauso do editor-coordenador), chamaram a si para colaborar, em
subalternidade, internos de Pediatria, como forma pró-activa de premiar méritos
demonstrados e de estimular a investigação e a publicação.
De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer
repetições, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor,
esforçou-se por uniformizar o estilo linguístico e actualizar textos.
Desejo expressar aqui o testemunho do meu enorme reconhecimento a todos os
Colegas e Amigos que aceitaram colaborar com grande empenho, neste projecto. Bem
hajam pelo inestimável e imprescindível contributo. Ao longo de mais de três anos, sacrificando momentos de lazer e de convívio familiar, saliento o prazer do convívio em
múltiplos encontros, imprescindíveis para a prossecução da tarefa.
Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores,
espero vivamente que o que foi escrito em espírito de missão por todos os Autores seja
de utilidade, em prol da saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em
geral, aos destinatários: alunos e estagiários universitários, internos de Pediatria e de
Medicina Familiar, Pediatras, Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da
Saúde.
João Manuel Videira Amaral
DEDICATÓRIA E MEMÓRIA
Dedico este livro a todas as Crianças de Portugal que são o nosso futuro. Considero incluídos os meus nove Netos: Lourenço – 8 anos; Constança – 7 anos; Gonçalo – 7 anos; Francisco
– 5 anos; Mafalda – 4 anos; Carlota – 3 anos; Sebastião – 2 anos; João Manuel – 20 meses e
Madalena – 1 mês.
E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei por inerência
horas de convívio.
Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico e que
me incutiu, desde o 1º ano da faculdade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo
tendo como base o estudo perseverante para a actualização permanente.
Agradecimentos
Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o
Prefácio desta obra.
Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo contributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início:
Prof. Doutor António Guerra
Dr. António Pinto Soares
Dr. António Valido
Dr. Carlos Vasconcelos
Prof. Doutor Carlos Ruah
Drª. Deolinda Barata
Drª. Eulália Calado
Drª. Felisberta Barrocas
Dr. Francisco Abecasis
Prof. Dr. Gonçalo Cordeiro Ferreira
Drª. Guilhermina Romão
Drª. Helena Portela
Profª Doutora Hercília Guimarães
Prof. Doutor Ignacio Villa Elizaga
Prof. Doutor João Gomes-Pedro
Prof. Doutor João Goyri O´Neill
Dr. José António Melo Gomes
Prof. Doutor José de Salis Amaral
Prof. Dr. José Guimarães
Dr. José Mesquita
Prof. Dr. José Rosado Pinto
Drª Judite Batista
Dr. Julião Magalhães
Profª Doutora Lígia Braga
Prof. Doutor Luís Nunes
Prof. Doutor Manuel Abecasis
Prof. Doutor MRG Carrapato
Drª. Maria dos Anjos Bispo
Profª Doutora Maria do Céu Machado
Drª Maria do Carmo Silva Pinto
Mestre Drª Maria do Carmo Vale
Drª Maria José Gonçalves
Dr. Mário Chagas
Drª Micaela Serelha
Dr. Vital Calado
Drª. Rosa Maria Barros
Drª. Rosário Malheiro
Prof. Doutor Sashicanta Kaku
Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo
Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo o trabalho minucioso e dedicado de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE.
Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem
autorizado a reprodução de tabelas e quadros.
Ao Prof. Doutor Renato Procianoy, meu Amigo e interlocutor junto da Sociedade
Brasileira de Pediatria, pela permissão em reproduzir alguns quadros e figuras.
À Direcção da ABBOTT Laboratórios e particularmente ao Sr. Pedro Moreira, como seu
representante, pelo apoio em espírito de grande cordialidade desde a primeira hora,
traduzindo-se no patrocínio que viabilizou a concretização do livro, cuja primeira edição é
de distribuição exclusiva pela referida empresa.
À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo
eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e
Pedro Alves.
Glossário
Na eventualidade de o texto consultado integrar expressões e termos aprofundados em capítulos
ulteriores, é divulgado este glossário para facilitar a compreensão do leitor.
Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada)
do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 2022 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida.
Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior;
sinónmo de zumbido.
Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos
Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal incorporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados em
algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas.
Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo.
Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para a
nutrição.
Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de
angulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do
joelho.
Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação.
Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determinada
articulação.
Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade.
Bezoar > Concreção calculosa da via digestiva. Reserva-se este nome
também para corpo estranho no estômago.
Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé
Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irredutível de um ou mais dedos.
Cavo(ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta(muito afastada do plano horizontal),geralmente com ante-pé plantar em flexão.
Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária
e bilateral.
Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos
oleosa e menos oclusiva.
Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
emoliente e mais oclusiva.
Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos.
Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos.
Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos.
Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos.
Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição
entram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a
perda transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com
acção oclusiva(impedem que a água se evapore).
Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em
que pode predominar um ou outro(óleo em água → O/A; ou água
em óleo → A/O).
Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o
pé
Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nascido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a
amostra de população no momento do seu nascimento.
Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do
último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias completos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º
dia).
Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina:
remoção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos
pequenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o
objectivo de estreitamento da entrada vaginal.
Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta
Lactente > Sinónimo de bébé
Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa.
Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade,
mas boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos
Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto
entre duas superfícies articulares
Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou dentro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa
relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as
causas acidentais ou incidentais.
Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes
da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da
mãe, o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos
de contracção voluntária (nado-morto).
Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes
neonatais podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e
tardias.
Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia
zero) deve ser registada em minutos completos ou horas completas
de vida. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28
dias completos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias.
Mutilação genital feminina > Manobras cruentas de ressecção de
órgãos genitais externos por razões sociais (clitoridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lábios, e infibulação).
Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do
XXVI
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um
produto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do
cordão umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um
nascimento ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo.
Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos
alimentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e
o meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos
sob todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no organismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com a alimentação, produção e distribuição dos géneros
alimentares, etc..
Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer
transformação digestiva.
Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corrigir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de membro, ou a deficiência de uma função.
Osteotomia > Secção cirúrgica do osso.
Pasta > Forma de emulsão(pomada) onde se suspendeu pó para
absorver exsudado.
Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de aplicar
e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes iguais
de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina
Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao
fim da adolescência
Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudável e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio
no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva,
nacional ou internacional, a Pediatria torna-se social.
Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termina após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em:
precoce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e
tardio (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672 horas completas).
A criança neste período é designada recém-nascido.
PIB > Soma do valor da contribuição de todos os produtores nacionais,
acrescido de todos os impostos (subtraindo subsídios) que não são
incluídos na avaliação da produção.
PIB per capita > É o PIB dividido pela população em metade do ano.
Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de
dedos supranumerários nas mãos ou nos pés.
Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
emoliente e mais oclusiva.
Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com propriedades
higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de magnésio),
argila, amido, caolino, óxido de zinco.
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um
membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afectada.
Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 semanas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional.
Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional
compreendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias
(259 a 293 dias).
Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional
igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais).
Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na
prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimento intra-uterino) - Criança nascida com peso inferior ao percentil 10
nas curvas de crescimento intra-uterino de Lubchenco independentemente da idade gestacional.
Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional (AIG)
> Criança nascida com peso compreendido entre o percentil 10 e o
percentil 90 nas curvas de crescimento intra-uterino de Lubchenco,
independentemente da idade gestacional.
Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) >
Criança nascida com peso superior ao percentil 90 nas curvas de
crescimento intra-uterino de Lubchenco, independentemente da
idade gestacional.
Recém-nascido de baixo peso de nascimento (RNBP) > Criança nascida com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independentemente da idade gestacional.
Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento(RNMBP) >
Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos)
independentemente da idade gestacional.
Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com
imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP
(extremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000
gramas(999 ou menos) independentemente da idade gestacional.
Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos
os produtores nacionais acrescido de todos os impostos (menos
subsídios) que não são incluídos na avaliação da produção, a
que são acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de
assalariados e rendas de propriedades) provenientes de fontes
externas.
Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social e não apenas ausência de doença
Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente
um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar
um movimento voluntário do lado oposto, observada em certas
paralisias unilaterais.
Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou
mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial
(membranosa), muscular ou óssea
Suspensão > Mistura de líquidos e pós,em geral não miscíveis; têm
base aquosa ou alcoólica e espalham-se facilmente; por ex. talco de
Veneza, glicerina neutra e água destilada.
Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fazendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por
“pain”.
Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15
anos ou mais que sabem ler e escrever.
Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pessoas.
Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000
pessoas.
Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro
ano de vida por cada 1.000 nado vivos.
Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de
óbitos entre o nascimento e a data em que são completados os 5
anos de idade por mil(1.000) nado-vivos.
Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres
devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos
de crianças nascidas vivas.
Glossário
Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
———————————————————— x 1000
Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela
relação:
Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672
horas) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso).
Esta taxa é subdividida em:
a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos ( ou 168
horas completas) /1.000 nado-vivos;
b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos(168 horas) e até 28 dias
completos(672 horas) /1.000 nado-vivos;
Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta)
podem considerar RN com peso de nascimento igual ou superior a
1.000 gramas ou 500 gramas, quer no numerador, quer no denominador;
b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade
gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspondem a 1.000 gramas;
Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos)
> Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
+ óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
————————————————————————— x 1000
Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é
calculada segundo a fórmula:
Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas +
óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
————————————————————————— x 1000
Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nadovivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Nº de nado-mortos com >= 500 gramas +
óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
———————————————————————— x 1000
Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta
taxa é calculada segundo a fórmula:
Nº de nado-mortos com >= 500 gramas +
óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
———————————————————————— x 1000
Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de
nascimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais(nado-mortos +
nado-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período
Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por
mulher, se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse
filhos em cada etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada
grupo etário.
XXVII
Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade
recrutadas para tarefas próprias para adultos.
Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora
Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro
Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos
assistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional
de saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal
considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas.
BIBLIOGRAFIA
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Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007
Committee on Fetus and Newborn.American Academy of Pediatrics.
Pediatrics 2004;114: 1362-1364
Direcção Geral da Saúde. Orientações Técnicas-2. Vigilância Pré-natal e
Revisão do Puerpério. Lisboa: DGS, 2005
Esteves JA, Baptista
AP, Guerra-Rodrigo F, Gomes MAM.
Dermatologia.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992
Fanaroff AA, Martin RJ. Neonatal-Perinatal Medicine- Diseases of the
Fetus and Infant. St. Louis: Mosby, 2002
Garnier M, Delamare V. Dictionnaire des Termes Techniques de
Médecine. Paris :Maloine, 2004
Kurjak A. Textbook of Perinatal Medicine. London: Parthenon
Publishing, 1998
Manuila L, Manuila A, Lewalle P, Nicoulin M. Dicionário Médico.
Lisboa: Climepsi Editores, 2008
OMS. Situação Mundial da Infância 2008. Geneve: UNICEF, 2008
Pinheiro LA, Pinheiro AE. A pele da criança. A cosmética será um mito?
Acta Pediatr Port 2007; 38: 200- 208
Polin R, Fox WW. Fetal and Neonatal Physiology.
Philadelphia: Saunders, 1998
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGrawHill, 2002
Taeusch HW, Ballard RA. Avery´s Diseases of the Newborn.
Philadelphia: Saunders, 1998
Abreviaturas
A
AA – aminoácidos
AAG- anticorpos antigliadina
AAP – American Academy of Pediatrics (Academia Americana de
Pediatria)
AAS – ácido acetil-salicílico (Aspirina®)
ABO – grupos sanguíneos ABO (AB zero)
Ác- ácido ou ácidos
ACE – angiotensin converting enzyme ou enzima de conversão da
angiotensina
ACF – anemia de células falciformes
ACG – angiocardiograma
ACJ – artrite crónica juvenil
ACo – acetilcolina
AcoE – acetilcolinesterase
ACOG – American College of Obstetricians and Gynecologists (Colégio
Americano de Obstetras e Ginecologistas)
ACTH – corticotrofina ou hormona corticotrópica hipofisária-adrenocorticotropic hormone
AD – aurícula direita
ADE – acção dinâmica específica
ADH – antidiuretic hormone (ou HDA-hormona antidiurética)
ADN – ácido desoxirribonucleico
ADP – adenosine diphosphate (ou adenosinadifosfato)
AE – alimentação entérica (ou enteral)
AFP – alfa-fetoproreína
Ag – antigénio; símbolo químico de prata
A/G – relação albumina-globulina
AGL – ácido gordo livre
AGNE – ácido gordo não esterificado ou PUFA (Poly unsaturated fatty
acid)
AGS – adrenogenital syndrome; SAG-síndroma adrenogenital
AHAI – anemia hemolítica autoimune
AIA – acidente isquémico arterial
AIDS – acquired immunodeficiency syndrome; ou SIDA-síndroma de imunodeficiência adquirida
AIE – asma induzida pelo esforço
AIG – peso do RN adequado para a idade gestacional
AIJ – artrite idiopática juvenil
AINE – anti-inflamatórios não esteróides
ALT – alanina aminotransferase/transaminase glutâmico-oxalacética-TGO
ALTE- apparent life threatening event (episódio associado a risco de vida)
AME – atrofia muscular espinhal
AMP – adenosina-5-monofosfato (monophosphate)
AMPc – AMP cíclico
AN – anorexia nervosa
ANA – anticorpos antinucleares (anti nuclear antibodies)
ANCA – anticorpos anticitoplasma do neutrófilo
ANDAI – Associação Nacional de Doentes com Artrite Infantil e Juvenil
ANP – atrial natriuretic peptide ou PNA
A-P – ântero-posterior
AR – artrite reumatóide
ARA – arachidonic acid ou ácido araquidónico
ARC – AIDS related complex (complexo relacionado com SIDA)
ARJ – artrite reumatóide juvenil
ARM – angiorressonância magnética
ARN – ácido ribonucleico
ARNm – ARN mensageiro
ARNs – ARN solúvel ou de transferência
ARP – actividade da renina plasmática
As – símbolo químico do arsénio
AST – aspartato aminotransferase/transaminase glutâmico-pirúvica
ASCA – anticorpos anti Saccharomyces cervisae
AT- antitrombina
ATM – articulação temporomandibular
ATP – adenosina trifosfato (Adenosine Tri Phosphate)
ATPase – Na+/K+ - bomba de sódio
Au – símbolo químico do ouro
AUS – azoto ureico no sangue (vidé BUN)
AV – nódulo auriculoventricular
A-V – diferença arteriovenosa
AVC – acidente vascular cerebral
AVP – arginina-vasopressina
AZT – azidotimidina (zidovudina segundo denominação internacional)
B
BT – bilirrubina total (B ou BRB)
B1 – primeiro ruído do coração (=S1)
Ba – bário
BAV – bloqueio auriuloventricular
BCC – bloqueante dos canais do cálcio
BCG – bacilo Calmette-Guérin
BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine)
BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB)
BHE – barreira hematencefálica
Bi – bismuto
BIPAP – bilevel positive airway pressure
BK – bacilo de Koch
BN – bulimia nervosa
BO – bronquiolite obliterante
BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia)
BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação)
BPE – baixo peso extremo (<1000 gramas)
BPM ou bpm – batimentos por minuto
XXX
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Br – bromo
BR – biópsia renal
BRB – bilirrubina
BRD – bloqueio do ramo direito
BRE – bloqueio do ramo esquerdo
BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme
bovina/doença das vacas “loucas”
BSP – bromossulftaleína
BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue
C
C – Celsius, carbono
Ca – cálcio, carcinoma
CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio
CAD – cetoacidose diabética
Cal – kcal(quilocaloria)
Cal – caloria
CAMP – adenosinamonofosfato cíclico
CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante
córtico- suprarrenal diferente da ACTH)
CAV – canal atrioventricular comum
cc- centímetro cúbico (ou cm3)
CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH)
Cd – cádmio
CDC – Centers of Disease Control
CDG – carbohydrate deficient glycoprotein
CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico
CEC- circulação extracorporal
CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas
CFRD – cystic fibrosis related diabetes
CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator
CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH)
CH – concentração de hemoglobina
CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease,
atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a anomalias do SNC, ear anomalies)
CHC – carcinoma hepatocelular
CI – capacidade inspiratória
CIA – comunicação interauricular
CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-inflamatória induzida pelo frio
CIAV – comunicação interauriculoventricular
CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos
(OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada
CIM – concentração inibitória mínima
CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome
CIV – comunicação interventricular
CK – creatinaquinase/creatinacinase
CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar
Cl – símbolo do cloro
cl – centilitro
CM – concentração máxima ou cm – centímetro
CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no
cromossoma 6 com genes que codificam antigénios (glicoproteínas
de superfície) de histocompatibilidade
CMO – corticosterona metil oxidase
CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões citomegálicas; ou corpos multivesiculares (surfactante)
CO – monóxido de carbono
CO 2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico
Co – cobalto
CoA – coenzima A
Cox – cicloxigenase
CPAP – continuous positive airway pressure ou pressão positiva contínua
no final da expiração ou pressão de distensão contínua
CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase)
CPK-MB – idem –isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK
CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
CPT – capacidade pulmonar total
Cr – crómio
CR – cicatriz renal
CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud, compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias
CRF – capacidade residual funcional; ou corticotropin releasing factor (factor libertador da corticotrofina)
CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da corticotrofina)
CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis
CRP – C Reactive Protein ou PCR
17-CS – 17 cetosteróide
CSP – cuidados de saúde primários
CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma
Cu – cobre
CUM – cistouretrografia miccional
CV – capacidade vital,campo visual, coluna vertebral
CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças Transmissíveis
D
D – dalton, densidade
D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por
ex. D8)
DA – dermatite atópica
DAG – diacilglicerol
DAR – dor abdominal recorrente
DB – decibel ou Doença de Behçet
DBP – displasia broncopulmonar
DC – débito cardíaco
DCE – doença crónica do enxerto
DD – diagnóstico diferencial
DDT – dicloro-difenil-tricloroetano
DEXA – dual X ray absorptiometry
DGS – Direcção Geral da Saúde
DH – doença de Hirschsprung
DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico
DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO
DHEA – di-hidro-epi-andosterona
DHEAS – sulfato de di-hidro-epi-andosterona
DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh
DHRN – doença hemolítica do recém- nascido
DHT – di-hidro-testosterona
DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas
DI – dentinogénese imperfeita
DID – diabetes insulinodependente
DII – doença intestinal inflamatória
DIT – diiodotirosina
Abreviaturas
DIU – dispositivo intrauterino
DK – doença de Kawasaki
DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease
DMG – diabetes mellitus gestacional
DM2 – diabetes mellitus do tipo 2
DMJ – dermatomiosite juvenil
DMG – diabetes mellitus gestacional
DMO – doença metabólica óssea
DMSA – ácido dimercapto-succínico
DNA – ou ADN- ácido desoxirribonucleico
DNM – doença neuromuscular
DOCA – acetato de desoxicorticosterona
DOPA – di-hidroxi-fenilalanina
DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal
DPC – doença pulmonar crónica
2,3- DPG – 2,3 difosfoglicerato
DPN – diagnóstico pré-natal
DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica
DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
III, IV
DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico
DST – doença sexualmente transmissível
DT (vacina) – antidifteria e antitétano
DTN – defeito do tubo neural
DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis
DTPA – dietileno-tetra-pentacético
DV – dador vivo
DVP – derivação ventriculoperitoneal
E
EAEC – enteroaggregative E. coli
EACA – ácido épsilon-aminocapróico
EB – epidermólise bolhosa
EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de)
EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr
ECG – electrocardiograma
ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan)
ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com membrana através de circulação extracorporal
ECN – enterocolite necrosante
EcoCG – ecocardiograma
EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato
EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC
EEG – electroencefalograma
EEI – esfíncter esofágico inferior
EH – esferocitose hereditária
EHEC – enterohemorrhagic E. Coli
EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica
EIC – espaço intracelular, contendo LIC
EID – espaço intercostal direito
EIE – espaço intercostal esquerdo
EIEC – enteroinvasive E. Coli
ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay
EMG – electromiografia/electromiograma
EN – eritema nodoso
EOG – electro-oculograma
EPEC – enteropathogenic E. Coli
EPI – enfisema pulmonar intersticial
XXXI
EPO – eritropoietina
ERG – electrorretinograma
ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and
Nutrition
ET – exsanguinotransfusão
ETEC – enterotoxigenic E. Coli
ETP – exsanguinotransfusão parcial
EUA – Estados Unidos da América do Norte
EV – endovenoso (e.v. ou intravenoso – IV)
F
FA – fosfatase alcalina
FAO – Food and Agricultural Organization
FC – frequência cardíaca
FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar
auto-inflamatória
FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
FDA – Food and Drug Administration
Fe – Ferro
FeNa – fracção excretada de Na (sódio) urinário
FeNO – fracção expirada de NO
FEV – forced expired volume
FFA – free fatty acids ou ácidos gordos livres
FGR – filtração glomerular renal ou GFR
FhO2 – fracção ou concentração de oxigénio na hipofaringe
FiO2 – fracção ou concentração de oxigénio no ar inspirado
FIV – fertilização in vitro
FM – feto morto
FMF – febre mediterrânica familiar
FO – fundo do olho
FQ – fibrose quística (mucoviscidose)
FR – frequência respiratória ou factor reumatóide
FSF – factor XIII de coagulação (fibrin stabilizing factor)
FSH – gonadotrofina A, hormona foliculostimulante (follicle-stimulating
hormone)
FSH-RH – idem hormona libertadora de FSH… releasing hormone
FTE – fístula tráqueo-esofágica
FvW – factor de von Willebrand
G
g – grama
GABA – ácido gama-amino-butírico
Gal – galactose
GBM – glomerular basement membrane
GEA – gastrenterite aguda
GFR – glomerular filtration rate
GGT – gama glutamil transferase
GH – growth hormone (hormona do crescimento)
GHRF – growth hormone releasing factor ou factor de libertação da GH
GH-RIH – growth hormone release inhibiting hormone ou somatostatina ou
hormona inibidora da libertação da hormona de crescimento
GI – gastrintestinal
GIG – RN grande para a idade gestacional
GINA – global initiative for asthma
GMP – guanosina-monofosfato
GMPc – guanosina-monofosfato cíclico
GM-CSF – granulocyte macrophage colony stimulating factor
GNA – glomerulonefrite aguda
XXXII
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
GnRH – gonadotropin releasing hormone ou hormona libertadora das
gonadotrofinas
GOT – glutamato-oxalacetato-transaminase ou ALT
G-6PD – glucose 6 fosfato desidrogenase
GPT – glutamato-piruvato-transaminase ou AST
GRISI – Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil
Gy – unidade de radiação usada em radioterapia (1 Gy <> 100 rads)
H
h – hora
H – hidrogénio
HA – hemaglutinação ou hepatite A
HAD – hormona antidiurética (arginina-vasopressina)
HAI – hepatite autoimune
HAP – hospital de apoio perinatal
HAPD – hospital de apoio perinatal diferenciado
Hb ou Hgb – hemoglobina
HB – hepatite B
HbGM - ou HGM – hemoglobina globular média
HBIG – imunoglobulina específica para o vírus da HB
HbO2 – oxiemoglobina
HBsAg – antigénio de superfície do vírus da hepatite B
HC – hidrato de carbono
HCG – gonadotrofina coriónica humana (human chorionic gonadotropin)
HCl – ácido clorídrico (anteriormente Cl H)
HCS – somatotrofina coriónica humana
HDC – hérnia diafragmática congénita
HDE – Hospital de Dona Estefânia
HDL – high density lipoprotein ou lipoproteína de alta densidade
He – hélio
HELLP syndrome – Hemolysis, Elevated Liver Enzymes,Low Platelets ou
síndroma com hemólise,enzimas hepáticas elevadas e plaquetas
baixas
HFF – Hospital Fernando Fonseca
Hg – mercúrio
HIC – hipertensão intracraniana
HIDS – hyper IgD syndrome ou síndroma hiper IgD
HIV – hemorragia intraventricular ou human immunodeficiency virus
HLA – human leucocyte antigen ou antigénio de histocompatibilidade
HMGCoA – Hidroxi-metil-glutaril-coenzima A
Hp – Helicobacter pylori
HPC – Hospital Pediátrico de Coimbra
HPP – hipertensão pulmonar persistente
HPT – hormona paratiroideia (ou paratormona- PTH)
HPV – vírus do papiloma humano
HSD – hidroxi-esteróide desidrogenase
HSJ – Hospital de São João
HSM – Hospital de Santa Maria
HSV – herpes simplex vírus ou vírus herpes simples
Ht – o mesmo que Hct
HT – hormonas tiroideias
HTA – hipertensão arterial
Htc ou Ht – hematócrito
HV – hepatite vírica
HVA – ácido homovanílico
HVD – hipertrofia ventricular direita
HVE – hipertrofia ventricular esquerda
Hz – Hertz
I
I – símbolo químico do iodo
ICC – insuficiência cardíaca congestiva
ICSH – interstitial-cell stimulating hormone ou gonadotrofina B, hormona
estimulante das células intersticiais
IDP – imunodeficiência primária
IECA – inibidor da enzima de conversão da angiotensina
IF – interfalângicas
IFA – immunofluorescent antibody ou anticorpo imunofluorescente
IFD – interfalângica distal
IFN – interferão
IFP – interfalângica proximal
IFR – índice de falência renal (ou de insuficiência renal)
Ig – imunoglobulina
IL – interleucina
IGF – insulin-like growth factor ou IGF /factor de crescimento semelhante
à insulina
IGFBF – insulin-like growth factor binding protein (proteína de ligação)
ILAR – International League Against Rheumatism
ILGF – insulin-like growth factor ou IGF /factor de crescimento semelhante à insulina
im/ IM – intramuscular
IMC – índice de massa corporal
IMV – ventilação “mandatória”/obrigatória intermitente
INE – Instituto Nacional de Estatística
IO – idade óssea
IOTF – International Obesity Task Force
IP – índice ponderal no RN: razão peso(gramas) /comprimento (cm)3 x
100
IPLV – intolerância às proteínas do leite de vaca
IPPV ou IPPB – intermitent positive pressure ventilation/breathing ou ventilação com pressão positiva intermitente
IRA – insuficiência renal aguda
IRC – insuficiência renal crónica
ISAAC – International Study of Asthma and Allergies in Chidhood
IU – infecção urinária
iv/IV – intravenoso (ou endovenoso)
IVD – insuficiência ventricular direita
IVE – insuficiência ventricular esquerda
IVG – interrupção voluntária da gravidez
J
J – Joule
K
K – símbolo de potássio, ou Kelvin
Kcal – quilocaloria
Kg – quilograma
Km – quilómetro
kPa – capa pascal (medida de pressão); (kPa x 7.5 = mmHg)
KR – quiloroentgen
kV – quilovolt
kW – quilowatt
L
l – litro
L – nível de vértebra lombar (L3=3ª vértebra), ou litro
LA – leucemia aguda ou líquido amniótico
Abreviaturas
Lactente – no sentido restrito, a criança alimentada com leite ou que
“recebe” leite; no sentido lato, criança pequena em geral até ao 1 ano
Lactante – pessoa (em geral a mãe) que amamenta ou “dá” o leite natural
LAF – lymphocyte activating factor ou factor de activação linfocitária
LCPUFA – long chain polyunsaturated fatty acid ou ácido gordo poli-insaturado de longa cadeia
LCR – líquido céfalorraquidiano
LDH – lácticodesidrogenase
LDL – low density lipoproteins
LEC – líquido extracelular contido no EEC
LES – lúpus eritematoso sistémico
LH – luteinizing hormone ou hormona luteinizante ou gonadotrofina B
Li – lítio
LIC – líquido intracelular contido no EIC
LIG – RN leve para a idade gestacional
LIP – lymphocytic interstitial pneumonia ou pneumonia intersticial linfocitária (PIL)
Lis – lisina
LLC – leucemia linfóide crónica
LM – lesões mínimas
LMA – leucemia mielóide aguda
LP – líquido pleural
LPF – líquido pulmonar fetal
LPR – Lipid Research Program
LPV – leucomalácia periventricular
LSD – dietilamida do ácido lisérgico
LTH – luteotropic hormone ou prolactina
M
M – molar
M1 a M7 – tipos morfológicos da classificação das LMA
MAG3 – mercaptoacetil triglicina
MALT – mucosa associate lymphoid tissue
MAP – mean airway pressure (ou Paw) ou pressão média na via aérea
MAPA – monitorização ambulatória da pressão arterial
MAR – manometria ano-rectal
MAS – síndroma de activação macrofágica
MBP – muito baixo peso(<1500 gramas)
MCF – metacarpo-falângica
MCH – mean corpuscular hemoglobin ou hemoglobina globular média
MCHC – mean corpuscular hemoglobin concentration ou concentração de
hemoglobina globular média
mcg(ug) – micrograma
MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio
ME – meningoencefalite
MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke
like episodes
mEq/L – milequivalente por litro
MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers
Met Hb – metemoglobina
MFR – Medicina Física e Reabilitação
Mg – símbolo químico do magnésio
mg – miligrama
MHC ou CMH – (ver atrás)
MHz – mega hertz
min – minuto
ml – mililitro
XXXIII
MM – mielomeningocelo
MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido de
mmc – milímetro cúbito ou mm3 (= μL)
Mn – símbolo químico do manganês
MNI – mononucleose infecciosa
Mo – símbolo químico do molibdénio
mol – mole
mmol – milimole
mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L)
mR – mili-roentgen
mrad – mili-rad
MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography
mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm)
MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou
melanotropina
MTF – metatarso-falângica
MTX – metotrexato
MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt
MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt
MWS – Muckle-Wells syndrome
N
Na – sódio
NAD,NADH – nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou
reduzido)
NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and
Nutrition
NB – note bem
NCI – National Cancer Institute
NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante)
ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg)
NHCS – National Center for Health Statistics
NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Program
(Programa Individualizado de Avaliação do Desenvolvimento do RN)
NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde
NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia
nm – namómetro
NO – óxido nítrico
NP – nutrição parentérica (ou parenteral)
NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva)
NR – nefropatia do refluxo
NS – não significativo
NV – nado vivo
O
O – oxigénio
OD – olho direito
OE – olho esquerdo
OEA – oto-emissões acústicas
OGE – órgãos genitais externos
OGI – órgãos genitais internos
OI – osteogénese imperfeita
OMA – otite média aguda
OMS – Organização Mundial de Saúde
ONSA – Observatório Nacional da Saúde
ORL – Otorrinolaringologia
ORS – oral rehydration solute, ou SRO
OSM – otite seromucosa
XXXIV
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
P
P – fósforo ou Pressão ou peso
p – pressão
P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2
Pa – Pascal
PA – pressão arterial ou pancreatite aguda
PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico
PAF – platelet activating factor ou factor de activação plaquetária
PAH – ácido para-amino-hipúrico
PAM – pressão arterial média
PAN – poliaterite nodosa
PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders
Associated with Streptococcal infections
Pa O2 – pressão parcial arterial de O2
PA O2 – pressão alveolar de O2
PAO- pressão arterial ocular
PAP – proteína associada à pancreatite
PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite gangrenosa,
e acne
PAR – pressão arterial retiniana
PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico
PASP – proteína específica do pâncreas
Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP)
Pb – chumbo
PB – prega bicipital
PBI – protein binding iodine ou iodo ligado às proteínas
PC – paralisia cerebral /doença motora cerebral
PCA – persistência do canal arterial
PCE – poliartrite crónica evolutiva
PCI – paralisia cerebral infantil
PCP – poliartrite crónica primária ou pneumocistose pulmonar
PCR – proteína C reactiva ou polymerase chain reaction (reacção em
cadeia da polimerase)
PDA – persistência do ductus arteriosus ou canal arterial (PCA)
PDAY – pathobiological determinants of atherosclerosis in youth
PDE – phosphodiesterase ou fosfodiesterase
PDF – produtos de degradação do fibrinogénio
PDGF – platelet derived growth factor, ou factor de crescimento derivado
das plaquetas
PDHC – pyruvate dehydrogenase complex
PEATC – potenciais evocados auditivos do tronco cerebral
PEG – polietilenoglicol
PEEP, PEP – pressão expiratória positiva ou positive end expiratory pressure
PET – positron emission tomography ou tomografia por emissão de
positrões
PFAPA – síndroma englobando febre periódica, aftas, faringite e adenopatias
PG – prostaglandina ou fosfatidil glicerol (phosphatidyl glycerol)
pg – picograma
pH – logaritmo decimal do inverso da concentração hidrogeniónica em
hidrogeniões- grama por litro
Phe – fenilalanina
PHS – púrpura de Henoch Schonlein
PI – perda insensível de água
PIG – RN pequeno para a idade gestacional (na prática, sinónimo de
LIG)
PIF – prolactin inhibiting factor ou factor inibidor da prolactina
PL – punção lombar
PM – polimiosite juvenil
PMI – protecção materno-infantil
Pn – peso de nascimento
PNA – péptido natriurético auricular (ou ANP)
PNB – Produto Nacional Bruto
PNET – peripheral primitive neuroectodermal tumors (tumores neuroectodérmicos primitivos periféricos)
po – per os ou por via oral
PO2 – pressão parcial de CO2 (anidrido carbónico) no sangue
PO2 – pressão parcial de O2 (oxigénio) no sangue
PPB – prova de provocação brônquica
PPC – puberdade precoce central
PPF – puberdade precoce periférica
PPI – pressão positiva intermitente ou IPPV ou IPPB ou inibidor da
bomba de protões (pump proton inhibitor) ou prova de provocação
inalatória
ppm – partes por milhão
PPN – prova de provocação nasal
PPO – prova de provocação oral
PR – poliartrite reumatóide
PRH – prolactin releasing hormone
PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization
PRIST – paper radio immune sorbent test
PSE – prega subescapular
PSI – prega supra-ilíaca
PSP – phenol sulpha phtalein ou fenolsulfaftaleína
PT – prega tricipital
PTA – plasma thromboplastin antecedent ou factor XI de coagulação
PTC – plasma thromboplastin component ou factor IX de coagulação
PTH – paratormona ou hormona paratiroideia (HPT)
PTI – púrpura trombocitopénica idiopática
Q
q b p – quanto baste para
QG – quociente geral
QI – quociente de inteligência
QR – quociente respiratório
QRS – complexo QRS
R
R – roentgen
RA – reserva alcalina
RAA – reumatismo articular agudo ou sistema renina –angiotensinaaldosterona
RANU – rastreio auditivo neonatal universal
RAST – rádio allergo sorbent test ou doseamento sérico radioimunológico
das IgE específicas de antigénios
RDS – respiratory distress syndrome ou síndroma de dificuldade respiratória /SDR
REM – rapid eye movements ou fase de movimentos rápidos dos olhos
durante o sono(sono paradoxal, sonho)
RER – retículo endoplásmico rugoso
RF – releasing factor ou factor libertador
RFC – reacção de fixação do complemento
RFI – renal failure índex ou IFR
RGE – refluxo gastroesofágico
RH – releasing hormone ou hormona libertadora
Abreviaturas
Rh – Rhesus
RIA – radio-immunoassay
RMN – ressonância magnética nuclear
RMS – rabdomiossarcoma (sarcoma das partes moles mais frequente na
criança)
RN – recém-nascido
RNA – ribonucleic acid ou ácido ribonucleico
RNBP – recém-nascido de baixo peso
RNBPE – recém-nascido de baixo peso extremo
RNMBP – recém-nascido de muito baixo peso
RNMD – recém-nascido de mãe diabética
RNMTD – recém-nascido de mãe toxicodependente
ROT – reflexo osteotendinoso
RRAI – reflexo recto-anal inibidor
Rrp – reabilitação respiratória pediátrica
RT-PCR – reverse transcription polymerase chain reaction
RVP – resistência vascular pulmonar
RVU – refluxo vésico-ureteral
S
S – som cardíaco (por ex. S1 ou 1º som cardíaco) ou semana
Sa ou Sat – saturação
SA – síndroma de Alport
SALT – skin associated lymphoid tissue ou tecido linfóide da pele
SAN – síndroma de abstinência neonatal
SAOS – síndroma da apneia obstrutiva do sono
SaO2 ou SatO2 – saturação da hemoglobina em oxigénio
SAPHO – síndroma englobando sinovite,acne, pustulose, hiperostose e
osteíte
SB – spina bifida
SC ou sc – subcutâneo
SDR – síndroma de dificuldade respiratória
Se – símbolo químico do selénio
SED – síndroma de Ehlers-Danlos
SEDA – síndroma de eczema dermatite atópica
SF – soro fisiológico ou soluto salino (NaCl a 0,9%)
SGOT – transaminase glutâmico – oxalacética
SGPT – transaminase glutâmico-pirúvica
SHU – síndroma hemolítica urémica
SIADH – síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética
SIC – síndroma do intestino curto
SIDA – síndroma de imunodeficiência adquirida
SIR – síndroma de insuficiência respiratória
SLEDAI – systemic lupus erythematous disease activity index
SLICC – Systemic Lupus International Collaborating Clinics
SM – síndroma de Marfan
SMSL – síndroma da morte súbita do lactente
SN – síndroma nefrótica
SNA – sistema nervosos autónomo
SNC – sistema nervoso central
SNG – sonda nasogástrica
SNN – Secção de Neonatologia
SNS – Sistema / Serviço Nacional de Saúde
SNV – sistema nervoso vegetativo
SPCA – serum prothrombin conversion accelerator ou pró-convertina
SPP – Sociedade Portuguesa de Pediatria
SR – supra -renal
SRAA – sistema renina-angiotensina-aldosterona
XXXV
SRE – sistema retículo-endotelial
SRH – somatopropin releasing hormone ou hormona libertadora da somatotropina
SRIF – somatotropin release inhibiting factor ou somatostatina (factor
inibidor da libertação da somatotropina
SRO – solução de reidratação oral, ou ORS
STH – somatotropic hormone ou somatotropina ou hormona somatotrópica, ou hormona do crescimento ou GH
Sv – Sviert
SWM – síndroma de Wilson-Mikity
T
T3 – triiodotironina
T4 – tetraiodotironina (tiroxina)
TA – tensão(ou pressão) arterial
TAB – (vacina) anti-tifóide –paratifóide A e B
TAC – tomografia axial computadorizada ou TC
TASO – título de anti-estreptolisinas O
TB, TBC – tuberculose
TBG – tyroxine binding globulin ou globulina que fixa a tiroxina
TC – tomografia computadorizada, sinónimo de TAC
TCAD – TC de alta definição
TCE – traumatismo cranioencefálico
TCM – triglicéridos de cadeia média
TCL – triglicéridos de cadeia longa
TC/PET – sigla em inglês de TC com emissão de positrões
TeTAB – (vacina) antitetânica-tifóide-paratifóide
TFG – taxa de filtração glomerular ou simplesmente FGR/GFR
TG – triglicéridos
TGA – thromboplastin generation accelerator ou acelerador da formação
da tromboplastina
TGO – transaminase glutâmico-oxalacética (GOT ou ALT)
TGP – Transaminase glutâmico-pirúvica (GPT ou AST)
TGT – transglutaminase tecidual
TH – transplantação hepática (ou transplante)
TIR – tripsina imunorreactiva
TIT – teste de imobilização de treponemas
TMI – taxa de mortalidade infantil
TMM5 – taxa de mortalidade em menores de 5 anos
TMO – transplante de medula óssea
TMPN – taxa de mortalidade perinatal
TMP-SMZ – trimetoprim-sulfametoxazol ou cotrimoxazol
TMRA – taxa média de redução anual
TN – translucência da nuca
TNF – tumor necrosis factor ou factor de necrose tumoral
TORCHES – sigla de infecções pré-natais (toxoplasmose, outras,rubéola, citomegalovírus, herpes simples, Epstein-Barr. sífilis,etc.)
Torr – abreviatura de medida de pressão (Torricelli); 1Torr = 1 mmHg
TP- tempo de protrombina
TPI- teste de Nelson (Treponema pallidum immobilization test) ou teste de
imobilização treponémica
TPN – trifosfopiridinanucleótido
TPNH – trifosfopiridinanucleótido reduzido
Tracking – estabilidade ou tendência para manutenção de determinada
situação ou parâmetro ao longo do tempo
TRAPS – TNF receptor associated periodic syndrome
TRBAb – thyrotropin receptor blocking antibody
TRF – thyrotropin releasing factor (factor libertador de tirotrofina)
XXXVI
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
TRH – thyrotropin releasing hormone (hormona libertadora da tirotrofina)
TRSAb – thyrotropin receptor stimulating antibody
TSA – teste de sensibilidade aos antibióticos
TSH – thyroid stimulating hormone (hormona tirostimulante)
TVR – trombose da veia renal
TXR – transplante renal
U
U – urânio, unidade
UB – unidades Bodansky
UCF – unidade coordenadora funcional
UCI – unidade de cuidados intensivos
UCIN – UCI neonatais
UDP – uridina-di-fosfato
UDPG – uridina-di-fosfo-glicose
UDPGT – uridina-di-fosfo-glucoronil-transferase
UFF – urticária familiar pelo frio
UI – unidade internacional
UIV – urografia intravenosa ou de eliminação
UM – uropatia malformativa
UNICEF – Agência das Nações Unidas para a Infância e Família
USF – Unidade de Saúde Familiar
UTP – uridina-tri-fosfato
UV – ultra-violetas (radiações)
UVP – Unidade de Vigilância Pediátrica
V
V – volt, velocidade, ventilação, valência
VATS – vídeo assisted thoracoscopic surgery
VC – velocidade de crescimento
VCA – viral capsid antigen
VCI – veia cava inferior
VCS – veia cava superior
VCT – valor calórico total (propiciado pelos vários nutrientes em %)
VD – ventrículo direito
VDRL – reacção de aglutinação da sífilis (Venereal Diseases Research
Laboratories)
VE – ventrículo esquerdo
VEB – vírus de Epstein Barr
VEMS – volume expiratório máximo por segundo
VG – volume globular
VGM – volume globular médio
VH – vírus da hepatite (A,B,C,D,E,G)
VIH – vírus da imunodeficiênca humana
VIP – polipéptido vasoactivo intestinal (vasoactive intestinal polypeptide)
VLDL – lipoproteínas de muito baixa densidade (very low density lipoproteins)
VM – ventilação máxima (ou ventilação mecânica)
VMA – ácido vanil mandélico (vanyl mandelic acid)
VO – via oral (o mesmo que po)
VRE – volume de reserva expiratória
VRI – volume de reserva inspiratória
VS ou VSG – velocidade de sedimentação (globular)
VSR – vírus sincicial respiratório (ou VRS)
VTEC – verotoxin-producing E. coli
VUP – válvulas da uretra posterior
VVZ – vírus da varicela-zoster
W
W – watt
WB – western immunoblot test
WHO – World Health Organization ou OMS (Organização Mundial da
Saúde)
WISC – Wechsler Intelligence Scale
WPW – síndroma de Wolff-Parkinson-White
X
X – cromossoma X
Y – cromossoma Y
Z
Zn – zinco
Símbolos
> : maior que
< : menor que
~ : próximo, semelhante ou cerca de
<> : correspondente a
PARTE I
Introdução à Clínica Pediátrica
2
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
1
A CRIANÇA EM PORTUGAL
E NO MUNDO. DEMOGRAFIA
E SAÚDE
João M. Videira Amaral
Factos históricos
Os problemas relacionados com a criança somente
começaram a suscitar o interesse real por parte dos
físicos ou antigos médicos a partir de meados do
século XVIII. A criança era considerada uma
miniatura do adulto e a doença era interpretada
como fazendo parte dum processo de regeneração
moral sendo a elevada mortalidade um acontecimento esperado. Após o nascimento, a sobrevivência ficava a cargo da selecção natural e apenas a
alimentação fazia parte dos cuidados a ministrar.
Recuando à Antiguidade, cabe referir que na
Roma antiga foi elaborada uma disposição legal
assinada por Rómulo que concedia ao pai da
criança o poder de abandonar os filhos nascidos
com defeitos congénitos. Portanto, nessa época, o
infanticídio era considerado legítimo.
Do séc. XV chegaram-nos pinturas da escola
francesa que testemunham a atitude de abandono
em locais diversos ou de lançamento ao rio de
crianças acabadas de nascer, quer com peso deficiente e consideradas inviáveis, quer com diversos
problemas incuráveis.
Na transição do século XVIII para o século XIX
a Medicina englobava essencialmente dois grandes ramos: um, dedicado à realização de partos e
ao recém- nascido (Obstetrícia), e outro à Medicina Geral que se ocupava da criança, do adolescente e do adulto.
No final do século XIX a Medicina da Criança
(ou Pediatria, do grego pais, paidos, criança e
iatreia, tratamento) já se encontrava relativamente
individualizada da Medicina Geral, mantendo-se,
no entanto, durante as primeiras décadas do século XX, a tradição de o recém- nascido continuar a
ser seguido pelo médico que tinha realizado o
parto.
No século XIX, coincidindo com a Revolução
Industrial e o fenómeno da emancipação da Mulher, por toda a Europa começou a esboçar-se uma
preocupação com os problemas sociais e a higiene
pública, relacionando-se a pobreza com a doença.
Em 1875 foi publicada a Lei Roussel com o objectivo de proteger as crianças dando-lhes assistência
separadamente dos adultos. Multiplicaram-se os
estabelecimentos para o acolhimento de crianças
abandonadas – os hospícios ou asilos de crianças
– aos quais se sucederam as instituições para
prestação de cuidados na doença ou verdadeiros
hospitais.
Em 1802 em Paris foi inaugurado o que foi
considerado o primeiro hospital para crianças – o
Hopital des Enfants Malades.
Na Europa e América do Norte, outros hospitais de crianças foram inaugurados, tais como: em
1834 em Berlim o Charité, e em São Petersburgo o
Nicolas, em 1852 em Londres o Great Ormond
Street, em 1854 em Nova Iorque o Child’s Hospital
and Nursery, em 1855 em Filadélfia o Children’s
Hospital e, em 1875 em Toronto o Hôpital Pédiatrique.
Portugal foi um país que se colocou na vanguarda dos que se preocupavam com a assistência
hospitalar de crianças. Assim, em 1877 foi inaugurado em Lisboa o Hospital de Dona Estefânia e,
em 1881, no Porto, o Hospital de Crianças Maria
Pia.
No final do século XIX a Pediatria, decorrente
da Medicina Geral, passara sucessivamente pelas
fases históricas designadas classicamente por anátomo-clínica, funcional ou fisiopatológica e etiopatogénica ou microbiológica, e confrontava-se
com uma elevada mortalidade, explicada sobretudo por infecções e problemas nutricionais.
Assistência à Criança
Até ao início do século XX, a figura central na
assistência era o médico omnisciente com um papel crucial de amigo e conselheiro, tocando a um
só tempo, todos os instrumentos, na arte de curar;
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
na transição para o séc. XX esboçavam-se dois
ramos da Medicina: a Medicina Geral e a Cirurgia
geral, esta última abrangendo os partos.
A necessidade de especialização médica, dado
o universo de conhecimentos armazenados pela
ciência contemporânea, somente começou a criar
força em Portugal na primeira metade do século
XX; com efeito, a partir da década de 30, certo
número de médicos passou a dedicar-se às crianças incluindo recém-nascidos. Isto ocorreu de
modo progressivo e paralelamente à criação, nos
grandes centros, de serviços hospitalares de pediatria incipientes, correspondendo à separação
progressiva das áreas para assistência às crianças
das dos adultos. Os primeiros especialistas de
Pediatria reconhecidos pela Ordem dos Médicos
surgiram em 1944.
O ensino pioneiro da Pediatria
nas Universidades portuguesas
Nas Universidades portuguesas o ensino das disciplinas de “Gravidez e Partos” e de “Medicina da
Criança” passou a ser independente do da Medicina
e da Cirurgia a partir de 1898. Na Escola MédicoCirúrgica de Lisboa o primeiro regente da disciplina de “Gravidez e Partos” foi Alfredo da Costa.
A disciplina de “Medicina da Criança” foi criada
pela Reforma de 1911, tendo como primeiro regente
Jaime Salazar de Sousa (Avô), considerado o criador
da Pediatria portuguesa e, particularmente, da
Pediatria Cirúrgica, no Hospital Dona Estefânia.
Na Escola Médico-Cirúrgica do Porto o primeiro professor de Pediatria, a partir de 1917, foi
A. Dias de Almeida Jr. que já se dedicava às crianças desde 1894. Em Coimbra o ensino da Pediatria
começou em 1917 com Morais Sarmento.
Sociedade Portuguesa de Pediatria
Entre os eventos que influenciaram o desenvolvimento da Pediatria em Portugal a partir do final
da década de 30 do século XX contam-se,em 1938,
o início de publicação regular de uma revista
dedicada à pediatria e aos pediatras e, em 1948, a
fundação duma associação científica de pediatras
que foi designada por Sociedade Portuguesa de
Pediatria (SPP), mantida até aos nosssos dias.
A referida revista, órgão oficial da SPP foi de-
3
nominada Revista Portuguesa de Pediatria e
Puericultura sendo seu fundador Carlos Salazar
de Sousa. Mantendo-se ininterrupta tal publicação
desde o seu início, mudou de nome duas vezes:
em 1980 para Revista Portuguesa de Pediatria e,
mais recentemente, em 1993, para Acta Pediátrica
Portuguesa com o subtítulo de “revista da criança
e do adolescente”.
A criação da SPP, forum privilegiado para troca
de experiências e de convívio científicos entre os
pediatras, marca um momento alto na evolução
da Pediatria no nosso país. Da sua primeira direcção (1948-1950) fizeram parte os pediatras mais
representativos desta área da medicina na época:
Almeida Garrett, do Porto (presidente) assessorado por Lúcio de Almeida (Coimbra), Manuel
Cordeiro Ferreira, Castro Freire, Carlos Salazar de
Sousa e Abel da Cunha (Lisboa).
Considerando os objectivos da SPP, cabe referir essencialmente: a promoção e difusão dos progressos da Pediatria nas vertentes assistencial, pedagógica e de investigação; o intercâmbio científico com associações congéneres internacionais e
países de expressão portuguesa; intervenção junto
dos poderes públicos e da sociedade civil na perspectiva de resolução dos problemas relacionados
com a criança e o adolescente.
Âmbito da Pediatria
Na actualidade, a Pediatria deve ser entendida
como medicina integral dum período do ser
humano compreendido entre a concepção e o final
da adolescência.
De acordo com esta concepção abrangente, a
pediatria compreende toda uma problemática de
saúde de um período da existência humana que se
inicia mesmo antes da decisão de procriar; efectivamente estão hoje provadas as repercussões das
doenças do embrião e do feto e recém-nascido na
criança e no adulto.
No aspecto conceptual, esta área da medicina
não deverá ser, pois, entendida numa perspectiva
exclusivamente biológica, nem limitar-se à abordagem de episódios bem delimitados do ser humano (uma pessoa) em crescimento e desenvolvimento, caracterizado por vulnerabilidades de
diversa ordem.
Embora para a compreensão dos processos pa-
4
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tológicos haja necessidade de descer até às minúcias da biologia molecular, no sentido mais rigoroso do âmbito da Pediatria, esta abrange toda
uma resenha de vida em determinado período,
pressupondo interacção com o meio físico, biológico, social (a família, a sociedade, o estado, os
seus pares).
Na medida em que é assumida tal compreensão da Pediatria torna-se difícil delimitar com
rigor as suas fronteiras, não devendo ser entendida como uma especialidade.
O exercício da clínica da criança e do adolescente implica, pois, para além da competência técnica e profissional, o domínio de conhecimentos,
atitudes e aptidões em campos que extravasam
largamente o âmbito exclusivamente biomédico.
Com efeito, na actualidade, para responder
cabalmente aos desafios que a profissão lhe
impõe, o médico assistente da criança e adolescente (pediatra ou não) deve ter uma preparação
humanista, com domínio de matérias relacionadas
com Pedagogia, Direito, Ética, Psicologia, Sociologia, Filosofia, Antropologia, entre outras, e
com aptidões e atitudes que o capacitem para o
exercício da defesa dos direitos das referidas pessoas com a indispensável cooperação da família e
da comunidade. É, pois, indispensável que o médico em causa saiba actuar contra as ameaças de
diversa ordem a que, na actualidade, crianças e
adolescentes, estão sujeitos, tais como a poluição,
a violência no ambiente urbano e rodoviário, o
sedentarismo, os erros alimentares, a toxicodependência etc., e compreenda a necessidade de
intervenção de todo o sistema envolvente.
Por outro lado, torna-se necessário que o referido médico e os serviços de saúde reconheçam
que os pais são os primeiros responsáveis pela
saúde dos seus filhos tornando-se fundamental
assegurar uma verdadeira e eficaz colaboração
entre os primeiros e os profissionais de saúde.
Aliás, diversos estudos têm demonstrado que os
pais e família resolvem a grande maioria dos
problemas dos seus filhos sem procurar os serviços médicos; torna-se, por isso, fundamental
que os pais possam ter acesso, através dos meios
convencionais de comunicação (livros, folhetos,
revistas, internet) a informação para os ajudar a
tomar decisões esclarecidas quanto à atitude correcta a ter quando o filho adoece.
Em suma, o médico devotado à criança e ao adolescente deverá ter um conjunto de atributos que
definem o que se chama “profissionalismo”: honestidade e integridade, espírito de responsabilidade,
respeito pelos outros (a essência do humanismo),
empatia, espírito de colaboração, capacidade de
comunicação, a noção correcta dos limites da sua
competência, a sensibilidade para a actualização e
aperfeiçoamento profissional, e o espírito de altruismo e de advocacia em prol da criança.
O objectivo último é privilegiar o bem- estar da
criança ou adolescente como pessoas, valorizando
as suas potencialidades e minimizando os efeitos
das condições adversas da vida.
Efectivamente, está provado que experiências
emocionalmente gratificantes induzem uma projecção optimista, enquanto as frustrações amortecem e embotam todo o potencial humano de desenvolvimento.
O conceito global de Saúde
De acordo com o conceito clássico da Organização
Mundial de Saúde (OMS) datado de 1946, entende-se por saúde o estado completo de bem – estar físico, mental e social e não apenas a ausência de
doença ou enfermidade.
A saúde depende, pois, de um estado de equilíbrio activo e dinâmico entre o ser humano em
qualquer fase de crescimento e desenvolvimento e
o seu meio. Numa perspectiva didáctica, podem
ser considerados diversos factores com interferência em tal equilíbrio:
– factores físicos; relativamente a outras espécies animais o ser humano está provido de recursos mais escassos sob o ponto de vista físico: corre
menos, trepa menos, adapta-se mais deficientemente às condições adversas de temperatura e de
humidade, por exemplo. As viaturas motorizadas,
constituindo “corpos estranhos” nos meios urbanos ou rurais e utilizando formas de energia com
características de velocidade e aceleração para as
quais o seu organismo não está preparado, podem
conduzir a morbilidade que pode ser exemplificada pelas consequências dos acidentes de viação.
Outros exemplos perturbadores do equilíbrio
com repercussões de grau diverso na saúde são o
deficiente ordenamento urbano, as deficientes
condições de habitação e da rede viária.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
– factores biológicos; os micróbios convivendo com o ser humano fazem parte dum ecossistema. Uma das consequências do desequilíbrio no
meio comum ao homem e aos micróbios origina as
doenças infecciosas, sabendo-se que a transmissão
daqueles se pode fazer, não só directamente de
pessoa a pessoa, como através de componentes do
meio como a água, alimentos, vectores, etc.. Hoje
em dia, com a facilidade de transportes por via
aérea, tal transmissão pode fazer-se com grande
rapidez.
– factores sociais; ao longo dos séculos o ser
humano, organizado em comunidades com características diversas, deu corpo a um sistema organizativo social e económico complexo caracterizado por produção e troca de bens entre as mesmas
(por exemplo produção e distribuição de energia,
de água, etc.) na procura de qualidade de vida e
aumento de sobrevivência. Daqui se pode inferir
as consequências, para o estado de saúde, que
poderão resultar da falência de tal sistema.
– factores culturais; o ser humano é um ser
que herdou cultura dos seus antepassados utilizando os instrumentos próprios da sua civilização, partilhando os bens colectivos da sociedade
onde está inserido. Ora, o estado de saúde depende da utilização adequada dos recursos como
nutrientes, água e ar; poderá haver perturbação
neste equilíbrio se os recursos forem inadequados
(por excesso ou por carência) ou se o estado educacional da população não permitir uma utilização racional e equilibrada daqueles. As doenças
relacionadas com carências de alimentos (por
exemplo subnutrição) ou com excessos (obesidade, diabetes, dependência de drogas, hipertensão,
aterosclerose, alcoolismo, etc.) traduzem, na
maior parte das vezes, comportamentos desviantes relacionados, quer com aspectos culturais,
quer com disfunções dos mecanismos organizativos e educacionais
No sentido clássico, Saúde Pública é o conjunto
de actividades organizadas pela colectividade para
manter, proteger e melhorar a saúde do povo ou
das comunidades e grupos de população no meio
em que vivem (criação das condições ao ajustamento ecológico: indivíduos – meio ambiente).
Habitualmente considera-se que o conceito de
Saúde Pública é mais limitado do que o de Saúde,
não abrangendo a medicina clínica individual
5
nem as ciências médicas ditas básicas. Saúde na
Comunidade é um termo que também se usa
nesta acepção. No moderno conceito de Saúde
Pública, a noção de ambiente tem um sentido mais
lato abrangendo as suas componentes social, física, biológica, assim como aspectos como a cultura
e a economia envolventes, e o próprio Estado.
Reconhecimento dos Direitos
da Criança
A partir do início do século XX, o mundo passou a
reconhecer cada vez mais a importância do ser
humano em crescimento e desenvolvimento o
que, ao longo de décadas, tem sido traduzido por
um conjunto de eventos, iniciativas e documentos
que se encontram sintetizados cronologicamente
no Quadro 1.
Relativamente ao documento “Saúde para
Todos no Ano 2000” cabe referir as suas grandes
linhas de orientação correspondendo a outros tantos compromissos dos Estados Membros: – igualdade de acesso à saúde; – promoção da sáude e
prevenção da doença; – participação activa da
comunidade; – cooperação de todos os responsáveis da saúde promovendo políticas no sentido
de reduzir os riscos provenientes do ambiente físico, económico e social; – sistema de saúde privilegiando os cuidados de saúde primários; – cooperação internacional com vista à resolução de problemas que não têm fronteiras como a poluição e
a comercialização de produtos nocivos.
Sistema de Saúde Português
Portugal conheceu nos últimos 30 anos um significativo processo de mudança. Houve mudança
não só política, como económica e social e de
opções internacionais com a integração na União
Europeia, passando de uma estrutura social de
subdesenvolvido para país desenvolvido.
A testemunhar tal mudança, o relatório da
Organização Mundial de saúde (OMS) colocou
Portugal em 10º lugar no “ranking” mundial dos
melhores sistemas de saúde (2006).
Pode afirmar-se que os progressos realizados
em Portugal, repercutindo- se no campo da Saúde
em geral, e no da Saúde Infantil e Juvenil em especial, tiveram como base o desenvolvimento dos
6
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Reconhecimento dos Direitos da Criança
1919 – Na sequência da degradação social e económica
no período pós-Iª Guerra Mundial, por iniciativa
de uma inglesa Eglantyne Jebb, foi criada a Union
for Child Welfare.
1924 – A Liga das Nações adopta a Declaração de
Genebra sobre Direitos da Criança elaborada pela
Union for Child Wefare: essencialmente, direito aos
recursos para o desenvolvimento material, moral
e espiritual; direito à educação, protecção contra a
exploração.
1948 – No âmbito da Assembleia Geral da ONU, foi
aprovada a Declaração dos Direitos Humanos em
cujo artigo 25º é referido especificamente o “direito da criança a cuidados e assistência especiais”.
1978 – Na Conferência Internacional de Alma –Ata é
recomendado que, como parte da cobertura total
das populações por meio de cuidados primários
de saúde, se conceda prioridade máxima às necessidades especiais de grupos vulneráveis incluindo
grávidas e crianças.
1979 – A ONU consagrou este ano como “Ano
Internacional da Criança”.
1980 – A Assembleia Geral da ONU aprovou por unanimidade a “Convenção sobre os direitos da
Criança”.
1984 – Documento-Programa da OMS “ Saúde para
Todos no ano 2000”
1990 – Na “ Cimeira Mundial pela Criança” em Nova
Iorque os líderes de 71 países assinaram a “Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, Protecção e
o Desenvolvimento da criança”.
1994 – No Ano Internacional da Família foi reafirmado o
papel primordial das famílias nos programas de
apoio e protecção das crianças.
1999 – Foi adoptada a Convenção para a Proibição e
Eliminação do Trabalho Infantil (Convenção 182
da Organização Internacional do Trabalho).
2000 – A Declaração do Milénio da ONU definindo
Objectivos do Desenvolvimento até 2015 incluindo
metas específicas como a redução da taxa global de
mortalidade de menores de 5 anos em dois terços, a
redução a 50% das pessoas que passam fome, interromper e começar a reverter a disseminação do
vírus da imunodeficiência humana(VIH), educação
primária universal, plano de luta contra o envolvimento de crianças em conflitos armados, venda de
crianças, prostituição e pornografia infantis.
2002 – Assembleia Geral da ONU com a participação de
centenas de crianças como membros de delegações e o compromisso de líderes mundiais na
construção de um “mundo para as crianças”; foi
reafirmado o papel da família na responsabilidade primária pela protecção, educação e pelo
desenvolvimento da criança.
2004 – Estratégia global sobre regime alimentar, actividade física e saúde definida pela OMS, com implicações na criança e adolescente
2007 – O relatório “Situação Mundial da Infância 2007” refere que a igualdade de género e o bem estar da
criança são indissociáveis: quando a mulher tem
maior poder para viver de maneira plena e produtiva, as crianças prosperam.
cuidados primários definidos como “cuidados
essenciais baseados em métodos de trabalho e tecnologias de natureza prática, cientificamente
credíveis e socialmente aceitáveis, universalmente
acessíveis na comunidade aos indivíduos e famílias, com a sua total participação e a um custo
comportável para as comunidades e para os países à medida que eles se desenvolvem num espírito de autonomia.”
Com efeito, em 1979 foi criado o Serviço
Nacional de Saúde (SNS) integrando diversos
níveis de cuidados de acesso universal, incluindo
os relacionados com a promoção da saúde, a vigilância e a prevenção da doença.
A Lei de Bases da Saúde em 1990 definiu novas
linhas de actuação, nomeadamente o conceito de
sistema de saúde englobando o SNS e todas as
entidades públicas desenvolvendo actividades de
promoção, de prevenção e de tratamento, bem
como entidades privadas e os profissionais liberais que estabeleceram acordos com o SNS para a
realização de todas ou de algumas daquelas
actividades.
Em 1993 foi aprovado o estatuto do SNS passando a englobar cinco Administrações Regionais
de Saúde (ARS) às quais foi conferida a máxima
autonomia e competência para coordenar a actividade de todos os serviços de saúde, incluindo,
pela primeira vez, os hospitais.
Concretizando, o conceito de SNS engloba
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
diversos níveis de cuidados (os chamados cuidados primários, os cuidados hospitalares e os cuidados continuados) exigindo, para o respectivo
funcionamento, recursos humanos e materiais.
Cuidados de Saúde Primários (CSP)
Os centros de saúde ou estruturas vocacionadas
para a prestação dos cuidados primários, de acordo com a filosofia da tutela, deveriam constituirse em “grupos personalizados” formando, juntamente com os hospitais em determinada área
definida, as chamadas “unidades locais de saúde”
com gestão única.
Em 2008 a oferta de cuidados de saúde primários (CSP) pelo SNS em Portugal Continental é
assegurada por 378 centros de saúde com 1930
extensões. Em 2006 teve início a reforma e reconfiguração dos CSP, tendo-se verificado a abertura das
chamadas unidades de saúde familiar (USF) com o
objectivo de melhor articulação com outras valências da saúde e mais fácil acesso dos utilizadores.
Cuidados Hospitalares Pediátricos
/Hospitais Estatais
Em 2008 a rede hospitalar do SNS do continente
integrava 94 hospitais organizados em 20 centros
hospitalares, incluindo 83 hospitais especializados
com assistência pediátrica), 10 hospitais centrais
especializados com serviços pediátricos, e 3 hospitais centrais especializados pediátricos. A partir de
2006 o arranque da telemedicina nalgumas instituições tem contribuído para a melhoria da articulação institucional.
Em 2008 a Comissão Nacional da Saúde da
Criança e do Adolescente (CNSCA) divulgou a
chamada Carta Hospitalar de Pediatria que
definiu os requisitos mínimos para os serviços que
prestam cuidados a crianças e jovens; neste documento são definidos 2 tipos de Serviços de
Pediatria: Geral e Especializada (SPG e SPE). No
mesmo documento foram estabelecidos os
seguintes princípios: 1) SPG para 60.000 indíviduos até 18 anos e 1 SPE para 300.000. 2) Nos SPG,
quadro de 7 pediatras com < 55 anos (ou 14 pediatras se existir maternidade). 3) SPE com Urgência
de Cirurgia Pediátrica. 4) Desenvolvimento de
unidades de internamento de curta duração.
7
Cuidados Continuados
Em 2003 foi aprovada a Rede de Cuidados Continuados constituída por todas as entidades públicas, sociais e privadas (incluindo as Misericórdias)
com a finalidade de promoção de bem estar e conforto aos cidadãos (incluindo crianças) portadores
de doenças crónicas ou de situações de limitação
funcional em articulação com os cuidados de saúde primários e hospitalares.
Trata-se duma valência lançada em 2006 ainda
em fase de desenvolvimento que será abordada
em capítulo especial.
Recursos Humanos e Financeiros
Em 2007, de acordo com o Instituto Nacional de
Estatística (INE), para a população de 10.617.575
habitantes (correspondendo, a população de
idade inferior a 18 anos, a 2.116.869 habitantes) os
custos na área da saúde corresponderam a 9,3%
do produto interno bruto(PIB).
Em 2006 o peso das verbas absorvidas pelo
serviço nacional de saúde (SNS), enquanto parte
integrante do sistema de saúde, representou cerca
de 13% da despesa efectiva do Estado e 6,1% do
PIB. Tal despesa aumentou cerca de 25% desde
1995 (ano em que representava 4,9% do PIB)
sendo tal aumento, em percentagem do PIB, o
maior entre todos os países da OCDE. Em termos
comparativos cabe referir que países como a
Espanha, Irlanda e Reino Unido gastaram menores percentagens do PIB com a despesa pública da
saúde do que Portugal (respectivamente valores
de 5,2%, 4,5% e 6%).
A população portuguesa era então servida por
cerca de 174963 profissionais da saúde (correspondendo a 3,4% da população empregada).
Em 2007 encontravam-se inscritos nas respectivas Ordens 38488 médicos (sendo 66% especialistas – incluindo esta percentagem 1372 pediatras e
40 pedopsiquiatras), 3700 dentistas, 8400 farmacêuticos e 39300 enfermeiros. Os hospitais absorvem 72% dos médicos do SNS.
Relativamente à idade dos médicos importa
salientar as seguintes percentagens: 17% de idade
inferior a 35 anos e 11,4% de idade superior a 65
anos.
Para o cumprimento das actividades relaciona-
8
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
das com os CSP, o SNS contava no mesmo ano
com 6976 médicos, 6850 enfermeiros e 875 técnicos
de diagnóstico e terapêutica. As mulheres dominam nas profissões mais importantes do sistema
(51,3% nos médicos e 82,2% nos enfermeiros)
Considerando a globalidade de pediatras,
71,6% (ou 983) exercem funções na rede do SNS.
De registar o número escasso de pediatras (< 50)
considerados remanescentes, com quadro a extinguir nos centros de saúde, o que está de acordo
com actual política de saúde que considera a
assistência à criança e adolescente nos cuidados
primários a cargo do médico de família-clínico
geral.
A taxa de cobertura em saúde infantil a nível
nacional ronda os 90% sendo que 85% das respectivas consultas são efectuadas nos CSP.
No respeitante à relação médico/habitante
(salvaguardando assimetrias regionais relacionadas com maior concentração populacional e de
médicos no litoral) existiam, em 2005, as seguintes
ratios: 1 médico/300 habitantes verificando-se
assimetrias: Coimbra – 1/197; Bragança – 1/793.
Em 2007 verificava-se défice de médicos família:
404 (excepção para a zona centro).
Problemas organizativos
Diversos estudos recentes têm evidenciado alguns
problemas ou pontos fracos do sistema, com repercussão na prestação de cuidados à criança e adolescente:
• listas de espera, quer nos centros de saúde,
quer nos hospitais;
• excessiva procura dos serviços de urgência
dos hospitais centrais por oferta insuficiente
de consultas nos hospitais e centros de saúde;
• deficiente articulação entre os vários níveis
de cuidados;
• assimetrias regionais qunto à distribuição de
pediatras, concentrados sobretudo nos grandes centros de Lisboa, Porto e outras grandes
cidades do litoral em contraste com a desertificação do interior;
• défice de pediatras para a organização dos
serviços de urgência pediátrica de Lisboa e
Porto;
• elevada prevalência de pediatras com idade
superior a 50 anos;
• défice de profissionais de enfermagem condicionando o recurso à “importação” de elementos estrangeiros;
• escassa relevância dada à investigação ligada
aos cuidados de saúde nas diversas vertentes.
Numa tentativa de minorar as dificuldades
resultantes do excessivo afluxo de doentes pediátricos aos serviços de urgência nas grandes cidades, a
tutela determinou, no ano 2000, uma nova metodologia de acesso aos serviços de urgência hospitalar, considerando que o acesso ao Serviço Nacional
de Saúde se processava através do centro de saúde.
Para atingir tal objectivo foi criado um serviço
de atendimento/consultadoria permanente por
via telefónica 24 horas/dia (em 1998 em Lisboa e
Coimbra e, mais tarde para todo o país) com o
nome de Saúde 24-Pediatria dirigido ao grupo
etário 0-14 anos, segundo um modelo aplicado
nos Estados Unidos a cargo de profissionais com
formação específica.
Os resultados de tal estratégia que contempla
também a comunicação do centro de atendimento
com a estrutura hospitalar para a qual o doente
poderá ser encaminhado, foram positivos apenas
nos dois primeiros anos de funcionamento o que
pode ser explicável pelo facto de aquela não ter
sido acompanhada doutras medidas complementares de sustentabilidade.
Em 2007 teve início um programa de reestruturação dos serviços de urgência hospitalares encerrando alguns com o objectivo de concentração
de recursos humanos e materiais noutros hospitais de determinada região tendo em vista a melhoria dos cuidados. Esta medida que contempla a
garantia do sistema de transporte tem sido contestada em zonas do interior, desertificadas e de mais
difícil acesso.
O exemplo da reorganização
perinatal
Com a década de 80, coincidindo com uma fase de
sensibilização dos órgãos do poder para a necessidade de reformas na saúde materno-infantil e de
melhoria dos indicadores de saúde perinatal, iniciou- se uma fase de diferenciação da Pediatria em
Portugal. Desde então até à actualidade registaram-se progressos notórios no panorama assistencial, quer no âmbito dos cuidados primários (in-
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
cluindo a assistência à grávida), quer no âmbito
dos cuidados hospitalares (distritais e centrais).
Avançou-se na reorganização da assistência à grávida e recém-nascido, na modernização e reequipamento das instituições, e numa mais efectiva
cooperação entre obstetras, pediatras e outros profissionais da área biomédica.
Pode afirmar-se que este período representa a
conclusão dos passos fundamentais do modelo
clássico sequencial de assistência perinatal clássico
iniciado com os progressos dos cuidados pré-natais
e da assistência ao parto em condições de segurança (pessoal treinado e equipamento adequado) e
que culminou com o arranque das unidades de cuidados intensivos neonatais e do sistema de transporte do recém-nascido, da regionalização, e dos
centros de diagnóstico pré-natal.
Diversos grupos de trabalho e comissões nacionais tiveram um papel crucial, apontando estratégias indispensáveis para tornar efectivos conceitos
anteriormente delineados, tendo sido e tomadas
medidas consideradas corajosas e inovadoras.
Salientam- se as grandes linhas de actuação: a)
encerramento das maternidades com número de
partos inferior a 1500/ano, sendo que em 2007 o
processo é retomado com a decisão de encerramento de mais blocos de partos; b) definição das estruturas nucleares de assistência materno-neonatal
reclassificando os hospitais, em dois grandes grupos: hospitais de apoio perinatal (HAP) correspondendo, em geral, aos hospitais distritais, integrando
unidades de cuidados intermédios, com competência para prestar cuidados a grávidas e recém-nascidos saudáveis e de médio risco; hospitais de apoio
perinatal diferenciado (HAPD) correspondendo, em
geral, aos hospitais centrais, com competência para
prestar cuidados a recém-nascidos e grávidas de alto
risco, integrando unidades de cuidados intermédios
e intensivos; c) a criação das estruturas funcionais
designadas por unidades coordenadoras funcionais
(UCF) constituídas por profissionais de diversas
instituições duma região, garantindo correcta articulação entre os cuidados primários e cuidados hospitalares; d) a necessidade de formação de pediatras
com competência em Neonatologia; e) chamada de
atenção para a enorme importância do conceito de
transporte in utero, reiterando o que anteriormente
fora estabelecido, mas seguramente não eficazmente
concretizado.
9
No âmbito deste plano foram redefinidos em
pormenor, quer o equipamento técnico necessário,
quer o número de pediatras, obstetras,anestesistas,outros especialistas e enfermeiros, considerados indispensáveis para o funcionamento dos
HAP e HAPD.
Saúde Infantil e Juvenil no Mundo
O estado de saúde duma população pode ser
avaliado por certos índices (dados estatísticos relacionados com a mortalidade, morbilidade, condições de vida e de salubridade do ambiente, entre
outros). Seguidamente faz-se referência sucinta a
alguns dados de mortalidade e morbilidade no
âmbito da idade pediátrica traduzindo o panorama dos países em desenvolvimento, dos países
industrializados, e de Portugal (que, segundo estatísticas internacionais, faz parte dos 38 países industrializados e desenvolvidos do mundo).
Países em desenvolvimento
No início da década de 80 a mortalidade no período neonatal (primeiras 4 semanas) representava
cerca de 45% da mortalidade no primeiro ano de
vida em todas as regiões excepto em África onde
a proporção inferior (26%) era explicada pelo elevado número de óbitos pós-neonatais resultantes
da malária.
No mesmo período, considerando as seis
regiões definidas pela OMS, no que respeita à
mortalidade no grupo etário 0-5 anos, salienta-se
que 42% dos óbitos ocorreram em África e 29 % no
sueste asiático.
Entretanto, na década de 90, eram divulgados
alguns resultados considerados animadores quanto a indicadores de saúde testemunhando concretização de algumas metas (que pareciam inatingíveis na década de 70) em zonas do globo de
recursos muito precários: a) diminuição significativa da incidência de seis doenças com elevadas
taxas de mortalidade nalguns países mais pobres
(mais de 8 milhões de mortes anuais) – sarampo,
pneumonia, gastrenterite, tétano, tosse convulsa,
subnutrição; b) melhorias quanto à gravidade de
sequelas no que respeita a doenças como poliomielite, carência em iodo, oncocercose, tracoma, xeroftalmia, como consequência de acções
10
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
específicas desenvolvidas (políticas de acessibilidade universal e equitativa aos serviços de saúde,
acesso universal à educação, maior disponibilidade de alimentos, formação de profissionais de
saúde, e apoio de carácter técnico ou organizativo
por parte de países de maiores recursos).
Em 1994, através da Comissão de Vigilância
Epidemiológica da Rússia, foi chamada a atenção
dos gestores da saúde para o papel da estabilidade político-económica em diversas regiões e
países como garantia de êxito das medidas a levar
a cabo para a melhoria do panorama da saúde em
geral, e da saúde infantil em especial: o exemplo
vem precisamente da Rússia, país em que, com a
degradação económica, se verificou declínio da
esperança de vida na população, a par do aumento da incidência de doenças infecciosas (respectivamente 290% e 180% em 1993 e 1994).
Em 2001 a Organização Mundial de Saúde
(OMS) criou o Child Health Epidemiology Reference
Group (CHERG) para a obtenção de dados sobre
mortalidade infantil em todo o mundo.
De acordo com os estudos realizados por aquele grupo de estudo apurou-se que nos anos de 2005
e 2006 morreram em todo o mundo cerca de 11 milhões de crianças com idade inferior a 5 anos correspondendo a grande maioria de tais óbitos (73%)
a seis causas principais: problemas respiratórios
(19%), diarreia (18%), malária (8%), infecção sistémica do recém-nascido (10%), parto prematuro
(10%), complicações do parto (8%). Salienta-se que
a infecção sistémica e a pneumonia explicaram 26%
de todos os óbitos no grupo etário pediátrico.
Considerando a relação entre grupos nosológicos e mortalidade nas crianças de idade inferior a
5 anos, foram apurados os seguintes valores percentuais: má- nutrição- 53%, diarreia- 61%, pneumonia -52%, sarampo- 45%.
Apesar do reconhecimento dos direitos das
crianças e de todas as recomendações dos organismos internacionais, designadamente da ONU, o
relatório “Situação Mundial da Infância referente a 2005” mostra claramente que, para cerca
de 50% dos dois biliões de crianças e jovens que
vivem no mundo, com especial relevância para os
dos países pobres em desenvolvimento, o panorama da sáude é total e brutalmente diferente do ideal que
se pretende atingir parafraseando Kofi Annan,
Secretário Geral das Nações Unidas.
Eis alguns dados expressivos dos países em
desenvolvimento divulgados no referido relatório:
• os gastos militares nos países em desenvolvimento consomem cerca de 140 biliões
de dólares por ano, recursos suficientes para
acabar, em dez anos, com a pobreza absoluta
em todo o planeta e satisfazer as suas necessidades básicas de alimentação, água, saúde
e educação;
• cerca de 121 milhões de crianças, na imensa
maioria vivendo nos países africanos ao sul
do Saará, não frequentam a escola sendo-lhes negado o seu direito à educação em
contradição com o compromisso dos governantes ao assinarem a Convenção sobre os
Direitos da Criança;
• diariamente cerca de 30 mil crianças morrem
devido a doenças evitáveis, o que se traduz
em 11 milhões de mortes infantis por ano;
• mais de meio milhão de mães morre anualmente por complicações surgidas durante a
gravidez e parto;
• mais de 2 milhões de crianças de idade inferior a 15 anos estão infectadas com o vírus da
imunodeficiência humana (VIH) fazendo
prever número superior a 18 milhões de
crianças órfãs como consequência da síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
persistindo para além de 2015;
• a malária continuará a ser uma das principais causas de morte infantil, pois a disponibilidade e a utilização de mosquiteiros e
medicamentos são limitadas por razões comportamentais e financeiras;
• a prática da mutilação genital feminina
ainda é levada a cabo em cerca de 2/3 das
crianças em países africanos desenvolvendose actualmente uma campanha liderada pela
UNICEF e o patrocínio e exemplo do governo de Burquina Fasso onde uma importante
campanha de educação pública suportada
por legislação conseguiu reduzir a respectiva
incidência em 32%;
• nas áreas rurais mais de 1 bilião de pessoas,
(um quinto da humanidade) ainda carece de
alimentação adequada, saneamento básico
mínimo, água potável, níveis elementares da
educação e de serviços básicos de saúde;
• mais de 250 mil crianças continuam a morrer
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
em cada semana por diarreia e desnutrição
evitáveis, não beneficiando duma medida de
baixo custo, o soluto de reidratação oral da
OMS;
• o sarampo, a tosse convulsa e o tétano, doenças susceptíveis de prevenção com vacinas
de baixo custo, ainda matam diariamente 8
mil crianças.
No cômputo geral da mortalidade no grupo
etário pediátrico nas seis regiões da OMS, a síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA), a
infecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência
humana) e a tuberculose constituem hoje os principais problemas globais da saúde.
Como pontos positivos do panorama da saúde
mundial de acordo com o relatório UNICEF 2008
cabe particularizar: o exemplo da China onde se
está a operar a Segunda Revolução – a da Saúde,
com diminuição da TMM5 de 47% desde 1990; e o
doutros países (Butão, Bolívia, Nepal, Laos) com
diminuição de 50%.
Países industrializados
Nos países industrializados de economia evoluída, com uma problemática da saúde completamente diversa, foi também possível na década de
90 obter progressos assinaláveis face ao desenvolvimento da biologia molecular, da tecnologia
biomédica, das neurociências, da cirurgia de
transplantação, do intensivismo médico-cirúrgico
e do projecto do genoma humano.
Tais progressos podem ser testemunhados
pela análise de alguns indicadores referidos
adiante, a propósito da comparação do panorama
português com o doutros países.
No entanto, nestes países, a par do desenvolvimento em áreas de ponta da medicina, tem emergido dramaticamente outro tipo de problemas,
muitos deles em focos degradados das grandes cidades como sejam: a disfunção familiar, a gravidez
na adolescência, a delinquência juvenil, o problema
das “crianças de rua” , a toxicodependência, a infecção pelo VIH, a violência e o estresse.Tais problemas, criando novas morbilidades, obrigam a programas integrados de intervenção social.
Duas situações merecem uma referência especial: a obesidade e as situações de pobreza nos
países ricos;
11
• a obesidade corresponde a uma situação da
mais elevada prevalência nos países da
abundância, aparecendo, no entanto, já nos
países em desenvolvimento como a Índia;
trata-se, efectivamente da grande epidemia
do séc XXI (a abordar no capítulo 57) conduzindo a uma redução da esperança de
vida pela co-morbilidade associada; em termos de patologia assiste-se a uma ambivalência insólita pois noutras partes do globo
muitas crianças, adolescentes e adultos morrem de fome;
• quanto às situações de pobreza nos países
ricos, este problema foi recentemente objecto
de um documento da UNICEF levado a cabo
pelo Innocenti Research Centre no âmbito dos
países da OCDE nos quais se inclui Portugal;
nele se refere que, entre os referidos países
com maior taxa de pobreza se incluem os
Estados Unidos da América do Norte e o
México(20%); quanto aos de menor taxa,
simultaneamente menos populosos, são
mencionados a Dinamarca e a Finlândia,
com menos de 3%, juntamente com a Suécia
e a Noruega, com cerca de 5%. Portugal juntamente com o Reino Unido, Itália, Irlanda e
Nova Zelândia surgem com taxas consideradas altas: 15 – 17%.
Saúde Infantil e Juvenil em Portugal
Como indicadores de desenvolvimento dum país
são habitualmente considerados, entre outros, a
esperança média de vida da população, a capitação do produto nacional bruto (PNB), o poderio
militar, a taxa de mortalidade infantil (TMI) e a
taxa de mortalidade de menores de 5 anos
(TMM5).
Para avaliar o bem-estar da criança considerase actualmente que a TMM5 constitui o critério
mais adequado, pois ele traduz, com maior confiabilidade, as condições de desenvolvimento social
e económico, o grau de educação para a saúde da
família e cidadãos em geral, a disponibilidade de
serviços de saúde materno-infantil incluindo os
de assistência pré-natal, a disponibilidade de
saneamento básico e a segurança do meio ambiente em que a criança vive.
Por outro lado, a TMM5 é menos influenciada
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
1975
38,9
1980
24,3
1981
21,8
1982
19,8
1983
19,3
1984
16,7
1985
17,1
1986
15,9
1987
14,2
1988
13,0
35
1989
12,1
30
1990
10,9
25
1991
10,8
1992
9,2
20
1993
8,6
15
1994
7,9
10
1995
7,4
1996
6,8
1997
6,4
1998
5,9
1999
5,5
2000
5,4
2001
4,9
2002
5,0
2003
4,1
/1000 NV
45
40
5
2003
2001
1999
1997
1995
1991
1993
1989
1985
1987
1983
1981
1975
0
DGS/DSIA
Fonte: Direcção Geral da Saúde
FIG. 1
Mortalidade Infantil em Portugal.
15,1
1989
14,5
1990
12,4
1991
12,1
1992
10,8
1993
10,1
1994
9,2
1995
9,0
1996
8,4
1997
7,2
1998
6,7
1999
6,3
2000
6,1
2001
5,5
2002
5,9
2003
5,1
35
30
25
20
15
10
5
0
2003
16,6
1988
2001
1987
/100000 (NV+FM)
1999
18,2
1997
19,8
1986
1993
19,2
1985
1995
21,1
1984
1991
22,1
1983
1987
22,8
1982
1989
23,9
1981
1985
31,9
1980
1983
1975
1981
pela falácia dos valores traduzidos pela noção
aritmética de “média” do que o PNB per capita.
Com efeito, para dar um exemplo, a escala natural
não permite que a probabilidade de uma criança
rica sobreviver seja mil vezes maior do que a duma
criança pobre, ainda que a escala feita pelo homem
lhe permita ter um rendimento mil vezes maior; ou
seja, é muito pouco provável que uma TMM5
nacional seja afectada por uma minoria rica.
A velocidade com que se avança na redução da
TMM5 pode ser determinada pela respectiva taxa
média de redução anual (TMRA) devendo ser
realçado que uma diminuição de, por exemplo
dez pontos de uma TMM5 elevada tem significado diferente de uma mesma diminuição de dez
pontos a partir de uma TMM5 mais baixa (uma
diminuição na TMM5 de 10 pontos entre 100 e 90,
representa uma redução de 10%,enquanto a
mesma redução de 10 pontos, entre 20 e 10, representa uma redução de 50%).
Cabe referir, a propósito, que a não verificação
de uma relação fixa entre a TMRA e a taxa de
crescimento anual do PNB leva a concluir que há
necessidade de reajustamentos nas políticas de
saúde e nas prioridades tendo em vista o progresso económico e o progresso social.
Escasseando em Portugal as estatísticas nacionais de morbilidade sistematizada, a taxa de
mortalidade infantil é ainda o indicador mais utilizado para reflectir a saúde infantil A mortalidade
infantil é analisada, geralmente, em função de
duas componentes: a mortalidade neonatal, que
se refere aos óbitos de crianças com menos de 28
dias de vida, e a mortalidade pós-neonatal, relativa aos óbitos com idade compreendida entre 28
dias e um ano (consultar glossário).
A mortalidade neonatal encontra-se associada
a anomalias congénitas e a complicações da gravidez e do parto. A mortalidade pós- neonatal está
associada às condições de vida, a deficiências sanitárias e a acidentes diversos.
O chamado “ponto de civilização”(conceito
relacionado com progresso), ou seja o ano a partir
do qual a mortalidade pós-neonatal passou a ter
uma taxa inferior à da mortalidade neonatal, foi
atingido em Portugal em 1974, muitos anos depois
de outros países como o Reino Unido, a Alemanha
e a França. Até então, efectivamente, tinha-se registado algum progresso no respeitante à mortali-
1975
12
DGS/DSIA
Fonte: Direcção Geral da Saúde
FIG. 2
Mortalidade Perinatal (28 e mais semanas) em Portugal.
dade pós-neonatal, continuando estáveis as taxas
de mortalidade neonatal e fetal tardia (NV + FM).
As figuras 1 e 2 resumem respectivamente a
evolução dos seguintes indicadores:
– mortalidade infantil (com taxa de 77,5/1000
em 1960, baixando progressivamente para
7,9/1000 em 1994 e para 3,3/1000 em 2006);
– mortalidade perinatal – considerando o limite de 28 e mais semanas – reduzindo-se de
31,9/1000 em 1975 para 12,4/1000 em 1990 e para
5,1/1000 em 2003.
Quanto à natalidade (decrescente desde 1960
com 213895 nado vivos) há a registar os seguintes
dados: em 1980, com 158352 nado vivos; em 1990
com 108845 nado vivos; em 2003 com 112589 nado
vivos; e em 2007 com 102.492 correspondendo à
natalidade mais baixa desde 1960.
Relativamente à proporção de partos sem
assistência, também a evolução é muito significati-
13
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
/1000 NV
45
40
Finland
35
QUADRO 2 – Taxa de mortalidade de menores
de 5 anos referido a determinado
ano (TMM5)
(nº de óbitos entre a data de nascimento e
precisamente os 5 anos de idade por 1000
nado-vivos no referido ano)
France
30
Greece
Italy
25
Luxembourg
Portugal
20
Spain
Switzerland
15
TMM5 (em 2007)*
3
4
5
5
8
United Kingdom
10
EU members
5
2003
1999
2001
1997
1993
1995
1991
1989
1987
1983
1985
1981
1979
1977
1975
0
WHO/Europe, 2005
Fonte: Direcção Geral da Saúde
FIG. 3
Suécia
Noruega
Portugal
Dinamarca
Estados Unidos
Mortalidade Infantil na Europa.
/1000 NV
30
25
Finland
France
20
Greece
Italy
Luxembourg
15
Portugal
Spain
Switzerland
10
United Kingdom
EU members
5
2003
1999
2001
1995
1997
1991
1993
1989
1987
1985
1981
1983
1979
1977
0
1975
va: 61% no ano de 1950, 0,4% no ano de 2000 e 0,2%
em 2006.
Em 2004 a mortalidade infantil foi comparticipada em 68% por óbitos neonatais, e em 32% por
óbitos pós-neonatais
No âmbito da União Europeia (EU), como se
pode verificar na Figura 3, Portugal registava
em 1985 a mais elevada mortalidade infantil
(17,8/1000) relativamente aos países restantes.
Nesse ano, a média europeia situava-se nos 9,5
óbitos até ao 1 ano de idade por mil nado vivos.
De salientar que em 2004 em Portugal registou
a 5ª melhor posição quanto a taxas de mortalidade
infantil e de mortalidade perinatal .
No referente à TMM5, em 2007, Portugal ocupava o 3º lugar exaequo com outros 11 países, entre
194 (Quadro 2).
De assinalar que o nosso país, (1985 – 2001),
entre todos os estados membros da EU, registou a
maior variação na descida da mortalidade infantil,
neonatal e perinatal (redução de 71,9%) em confronto com as médias respectivas da EU (menos
51,6%).
No que se refere às taxas de mortalidade infantil no nosso país, é importante salientar grandes
variações regionais: em 2003 as taxas oscilaram
entre 2,9/1000 e 7,9/1000.
A evolução das taxas de mortalidade infantil e
perinatal em vários países da EU no período compreendido entre 1975 e 2003 pode ser observada
nas Figuras 3 e 4.
O Quadro 3 dizendo respeito aos óbitos por
grupos etários e às respectivas causas (ano de
2003) sugere as seguintes considerações: a) as qua-
WHO/Europe, 2005
Fonte: Direcção Geral da Saúde
FIG. 4
Mortalidade Perinatal na Europa.
tro causas mais frequentes de mortalidade dos
0-19 anos foram, por ordem decrescente, problemas perinatais, causas externas e acidentes de
transporte, as anomalias congénitas e os tumores
sólidos; b) no primeiro ano de vida as anomalias
congénitas e os problemas do período perinatal
representaram mais de 50% dos óbitos respectivos; c) os acidentes de transporte e as causas
externas foram mais frequentes entre os 15 e 19
anos; d) elevada dimensão numérica do item
doenças não classificadas traduzindo insuficiência
de informação clínica nos certificados de óbito
relacionável com baixo índice de realização de
autópsias em Portugal em comparação com outros países; e) a relação entre o número de óbitos
no 1º ano de vida e o número de óbitos dos 0-19
anos foi 475/1336 ou 35,5%; f) a relação entre o
* Entre os 24 países do mundo, com melhores taxas, o valor mais baixo, de 3 é
representado pela Suécia, e os mais elevados respectivamente de 284 e 260,
pela Serra Leoa e por Angola.
14
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Mortalidade por causas e idades
(Ano de 2003) Portugal
Causas
0–<1
D. Infec. Intest.
1
Infec. Meningoc.
8
Septicemia
4
D. S. T.
1
Infec. VIH
Meningite
2
Outras D.I.P.
Pneumonia
7
D. Pulm. Crónica
2
Outras D. Resp.
3
Tumor sólido
2
Leucemia
1
Anemia
1
D. Fígado
2
Diabetes mellitus
D. Ment. Comport. D. Cérebr. Vascul.
4
D. Card. Reum. Crón.D. Isquém. Card.
Outras D. Card.
7
D. Perinatais
238
Anomal. Congén. 117
Ac. Transporte
5
Causas Externas
19
Quedas
Afogamento
D. Não Classificadas 51
Totais
475
1–4
1
3
2
3
1
6
1
2
2
5
2
1
4
1
21
15
38
3
7
35
153
5–9 10–14 15–19 Total
2
1
1
13
2
8
1
2
2
2
1
1
7
1
1
2
5
2
3
4
22
1
1
2
7
1
2
8
10
15
20
49
5
2
1
14
1
1
3
2
1
1
1
1
1
3
9
19
1
1
1
2
4
3
3
10
27
1
240
11
5
7
161
21
32
108
181
43
44
169
313
3
2
5
13
6
3
10
26
24
35
60
205
133 155
420 1336
Abreviaturas: Intest-intestinal; Infec.-infecção; Meningococ-meningocócica; DST-doenças
sexualmente transmissíveis; VIH-vírus da imunodeficiência humana; DIP-doenças infecciosas e parasitárias; Resp-respiratória; Cérebr-vascul-cérebro-vascular; Card-cardíaca;
Anomal.-anomalias; Ac.-acidentes; d-doenças. (Idades em anos). D. Ment. Comport.-doenças
mentais e comportamentais.
Fonte: INE/Direcção Geral da Saúde, 2003
número de óbitos dos 0-19 anos e o número de
óbitos em todas as idades foi 1336/109148 ou 1,2%
(dados do Instituto Nacional de Estatística/INE).
A título comparativo, o Quadro 4 descreve as
quatro principais causas de mortalidade infantil
nos Estados Unidos em 2002, sobressaindo o
papel das anomalias congénitas e dos problemas
perinatais. A comprovação da síndroma de morte
súbita infantil como causa importante relaciona-se
com a taxa elevada de autópsias realizadas neste
país, em contraste com o panorama de Portugal.
QUADRO 4 – Taxa de mortalidade infantil nos
Estados Unidos da América, 2002
(7/1000 em 4021726 nado-vivos)
Valor percentual das quatro principais causas
– Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20%
– Problemas relacionados com baixo peso
de nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17%
– Síndroma de morte súbita infantil . . . . . . . . . . . . . . 8%
– Problemas relacionados com patologia materna,
da gravidez e parto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10%
Fonte: American Academy of Pediatrics. Annual Summary of Vital Statistics: 2004.
Pediatrics 2006; 117: 168- 183
QUADRO 5 – Mortalidade por principais causas
(1-19 anos) EUA
Causas
n’
Lesões acidentais
10.892
Homicídio
2.512
Tumores malignos
2.118
Suicídio
1.712
Anomalias congénitas
1.098
Cardiopatias
812
Gripe e pneumonia
362
Doença respiratória crónica
224
Infecções sistémicas
218
Doenças cerebrovasculares
186
Outras afecções não descritas
%
43,2
10,0
8,4
6,8
4,4
3,2
1,4
0,9
0,9
0,7
Taxa/100000
dos 1-19
13,4
3,1
2,6
2,1
1,4
1,0
0,4
0,3
0,3
0,2
Fonte: American Academy of Pediatrics .Annual Summary of Vital Statistics: 2004.
Pediatrics 2006; 117: 168- 183 (EUA: Estados Unidos da América do Norte)
Para comparação com o panorama nacional de
causas de morte entre os 1 e os 19 anos, transcreve-se o Quadro 5 que consta das Estatísticas de Saúde
do ano de 2002 dos EUA; salienta-se o papel das
lesões acidentais, dos tumores e das anomalias
congénitas.
São referidos seguidamente alguns indicadores
de mortalidade, morbilidade, desenvolvimento, e
taxas de imunização, comparando dados de Portugal com os doutros países. (Quadros 6, 7 e 8).
Dados de morbilidade
Em Portugal a análise de dados sistematizados nacionais sobre morbilidade depara com algumas limitações, estando disponíveis apenas dados parce-
15
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde
QUADRO 6 – Indicadores Básicos (ano de 2006)
País
Portugal
Noruega
Austrália
Áustria
Brasil
Canadá
Egipto
USA
França
Grécia
Costa Rica
Eslovénia
Espanha
TMM5
TMI
5
4
6
5
34
6
36
8
5
5
10
4
5
3,3
3
5
3,5
32
5
26
7
4
4
8
4
3,5
População
(milhares)
10579
4533
20731
8316
183913
31958
72642
305410
60257
10976
4173
1967
43646
Nascimentos
(Milhares/ano)
105
56
255
71
3728
338
1890
4234
763
113
80
17
468
Fonte: UNICEF, 2008
USD: dólares dos Estados Unidos
lares sobre problemas específicos publicados por
grupos de investigadores institucionais em revistas
científicas, ou obtidos através da consulta das publicações do Instituto Nacional de Estatística (INE),
do Observatório Nacional da Saúde (ONSA), do
Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças
Transmissíveis (CVEDT) e do Centro de Estudos e
Registo de Anomalias Congénitas (CERAC) ligaQUADRO 7 – Percentagem de crianças
vacinadas ao 1 ano de idade (%)
(ano de 2006)
País
Portugal
Noruega
Austrália
Áustria
Brasil
Canadá
Egipto
USA
França
Grécia
Costa Rica
Eslovénia
Espanha
BCG DTP
89
99
–
90
–
92
–
84
99
99
91
88
98
98
–
96
85
97
88
88
87
88
98
92
–
98
HB= Hepatite B
Hib= Hemophilus influenzae b
PNB /USD Esperança de vida
(per capita)
(anos)
18170
78
43350
80
21650
81
26720
80
3090
72
36170
80
1350
70
44400
78
34770
80
26610
79
4980
79
18810
78
27570
81
Pólio Sarampo
96
96
90
84
92
93
84
79
99
99
95
–
98
98
91
93
97
86
87
88
88
89
93
94
98
97
HB
95
–
95
83
99
–
98
92
29
88
86
–
83
Hib
93
94
94
83
99
94
94
94
87
88
89
97
98
Fonte: UNICEF, 2008
dos ao Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo
Jorge, ou dos Médicos-Sentinela.
No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) funciona desde 2001 um departamento intitulado Unidade de Vigilância Pediátrica
(UVP) – fazendo parte da “International Network of
Pediatric Surveillance Units”, actualmente em parceria com o ONSA. Os seus objectivos são proQUADRO 8 – Taxa de prevalência de infecção
por VIH (ano de 2006)
Estimativa de nº em milhares
País
15-49 A 0-49 A 0-14 A Mulheres: 15-49 A
Portugal
0,4
22
–
4,3
Noruega
0,1
2,1
–
<0,5
Austrália
0,1
14
–
1
Áustria
0,3
10
–
2,2
Brasil
0,7
660
25
190
Canadá
0,3
56
–
13
Egipto
<0,1
12
–
1,6
USA
0,6
50
–
240
França
0,4
120
–
32
Grécia
0,2
9,1
–
1,8
Costa Rica 0,6
12
–
4
Eslovénia <0,1
<0,5
–
–
Espanha
0,7
140
–
27
A= idade em anos
Fonte: UNICEF, 2008
16
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mover, facilitar e desenvolver o estudo de doenças
raras ou pouco frequentes, importantes para a
Pediatria e Saúde Infantil. Os dados são obtidos
através dum sistema de notificação mensal mediante envio de cartões para preenchimento de
retorno sistemático pelos sócios da SPP e médicos
exercendo funções em instituições prestando
cuidados à criança e adolescente.
Até Janeiro de 2008 foram ou estão a ser investigadas as seguintes doenças: Diabetes mellitus
antes dos 5 anos, Síndroma hemolítica urémica,
Doença de Kawasaki, Infecção por Streptococcus B
até aos 2 meses de vida, Encefalomielite /Mielite,
Infecção congénita por citomegalovírus (CMV),
Herpes zoster e Varicela com hospitalização,
Lesões traumáticas provocadas por andarilhos,
Paralisia cerebral aos 5 anos de idade e Infecção
congénita por Toxoplasma gondii.
De acordo com estatísticas da UNICEF o Quadro 8 refere-se a taxa de prevalência de infecção pelo
VIH no ano de 2006; Portugal está entre os países da
Europa mais afectado pela infecção VIH/SIDA,
sendo considerado de elevada vulnerabilidade ao
aumento da incidência.
Ainda relativamente aos casos de infecção por
VIH/SIDA, no período entre 1/1/1983 e 31/12/2005
(22 anos), o CVEDT recebeu notificação de 12702
casos (entre os 0 e > 65 anos) correspondendo 259
casos à idade pediátrica com a seguinte distribuição
por grupos etários:
• 0-11 meses . . . 43 (0,3%)
• 1-4 anos . . . . . 26 (0,2%)
• 5-9 anos . . . . . 19 (0,1%)
• 10-14 anos . . . 19 (0,1%)
• 15-19 anos . . . 152 (1,2%)
Relativamente ao tipo de transmissão, refira-se
que, no mesmo período, em 76 casos foi comprovada a transmissão vertical mãe/filho).
Com base nas estatísticas do INE e da Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente, são referidas seguidamente diversas formas de
morbilidade em idade pediátrica, representativas
da situação actual no nosso país; algumas destas
situações serão retomadas noutros capítulos.
– Acidentes rodoviários: rácio de 1 óbito/3
doentes crónicos com sequelas
– Lesões traumáticas por actos de violência
(2002-2004): 479 crianças (0-14 anos) hospita-
lizadas em instituições do Serviço Nacional
de Saúde
– Síndroma de hiperactividade: ~50 mil casos
(97% em idade pediátrica)
– Situações de risco social (incluindo casos de
maus tratos) : cerca de 3000 crianças hospitalizadas no ano de 2003, aumentando cerca
de 20% em 2004
– Situações de violação dos direitos das crianças
(trabalho infantil): Portugal e os EUA, considerados países moderados em relação aos que
mais atentados perpetram: China e Nepal
– Antes da integração dos novos países que passaram a integrar a Europa dos 27, Portugal era
o país da EU com maior incidência de sífilis
congénita.
Em suma, pode afirmar-se que para a melhoria
dos indicadores de saúde infantil e juvenil em
Portugal (salientando-se que a mortalidade infantil baixou cerca de 75% entre 1980 e 1998, sendo
actualmente, como a perinatal, a 3ª melhor da
União Europeia) contribuiram, esssencialmente,
os progressos no nível educacional da população,
o desenvolvimento da rede de cuidados primários, a melhoria da assistência ao parto e dos cuidados perinatais, o plano nacional de vacinação
(com taxas de cobertura que são superiores a 98 %
conduzindo a diminuição drástica das doenças
infecciosas nos primeiros dois anos de vida), a
organizção da assistência perinatal, e o desenvolvimento do intensivismo neonatal e pediátrico
incluindo o respectivo transporte.
No cômputo geral das causas de mortalidade em
idade pediátrica sobressaem actualmente, os problemas perinatais (nas primeiras idades), os tumores, os
acidentes e as situações relacionadas com actos violentos (na segunda infância e adolescência).
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A criança passou pela História quase até ao séc. XX
sem nunca ter visto ser reconhecida a sua natureza
e as suas necessidades irredutíveis, designadamente a de ter direito a direitos fundamentais.
A conquista de uma certa visibilidade para a
infância, foi uma penosa caminhada da existência
humana.
A história do destino humano é, uma história
de interesses que não, de facto, os da Criança.
No séc. II A. C. a primeira infância mereceu de
Varrão (escritor latino) uma classificação especial
na hierarquização das sucessivas idades do ser
humano.
Nunca houve vocábulo latino para designar o
bebé e a designação de lactente (alumnus) – focalizada, tão só, na propriedade de ser alimentado –
determinou até há cerca de 40 anos a nomenclatura científica em vigor.
Já na nossa década de 70 em concurso de
provas públicas da carreira hospitalar fui «aconselhado» por membros de um júri de provas
públicas a não usar a designação de bebé porque só
era «cientificamente» tida como correcta a referida
nomenclatura de lactente.
O termo mais antigo, usado para designar a
criança, foi de «puer» significando indistintamente
quer a cria animal quer a cria humana.
A língua latina consagrou, durante muito
tempo, o termo «infans» significando, etimologicamente, aquele que não fala.
Tanto a designação central de «puer» como a
designação complementar de «infirmitas» (imaturidade moral e intelectual) acentuavam o estatuto deficitário da criança entendida, designadamente, como escrava na ordem social.
18
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Pais Monteiro refere, a este propósito, a associação que S. Paulo faz da criança na sua epístola
aos Gálatas: «Enquanto o herdeiro é menor, se bem que
seja o senhor de tudo, em nada se diferencia de um
escravo».
A civilização grega que tanto inspirou e inspira, ainda, a cultura da dita civilização ocidental
ignorou, quase por completo, a criança.
Sempre numa perspectiva reducionista, ao
tratar da infância, Galeno tentou a conciliação
entre o corpo e o espírito, porém sempre numa
representação etimológica do mal que proviria
quer do «interior natural», quer do contexto exterior que hoje identificamos à circunstância ou
envolvimento de cada criança.
A teologia cristã, nomeadamente em todo o
Antigo Testamento, estigmatiza a criança identificando-a inequivocamente ao mal.
O Novo Testamento explica muito do mal que
a criança integra em função do pecado materno
projectado à concepção. Em termos educacionais o
pecado original determina todo o mal que a
criança necessariamente vai vivenciar.
Santo Agostinho congrega, a este propósito o
pensamento de então referido à criança – «se a
deixássemos fazer o que lhe apetece, não há crime que
não a víssemos cometer».
Na História da Humanidade o interesse pela
criança radicou-se, tão só, na simbologia do mal.
A criança foi, século a século, sem grandes variações conceptuais, esse símbolo do mal, da imperfeição, do pecado original, da culpa materna, do
lugar do erro, tal como definido na filosofia cartesiana.
O eventual «amor» pela criança na era romana
concentrava-se no interesse que os filhos representavam como potencial força militar necessária
à máquina da guerra.
Apesar da representação da criança presente
nos sarcófagos dos Séc. III e IV, revelada na vida
familiar porventura valorizadora da criança, não
há qualquer prova, designadamente através da
arte, de amor dos pais pelos filhos, representado
esse amor como sentimento de empatia, ternura,
respeito ou tão só, interesse providenciado face à
criança. Badinter sintetiza sumariamente o sentimento social face à criança – «erro ou pecado, a
infância é um mal».
A morte de um filho é sentida como um aci-
dente banal que nem merece a presença dos pais
no respectivo enterro. Montaigne, mais tarde e a
este propósito, confessava assim o seu sentir –
«perdi dois ou três filhos na ama, não sem pesar mas
sem drama».
Toda a Idade Média ignora a criança e é desse
testemunho a sua ausência ou porventura, a sua
representação, na arte. O culto da Virgem Maria,
porém, representando, então, Nossa Senhora e o
Menino, projecta, sobretudo, a imagem triunfante
da mulher criadora em oposição a Eva, a pecadora. As crianças na proximidade da díade divina
reforçam o significado do culto já projectado na
criança.
Até fins da Idade Média, as crianças vestiam
como os adultos, sendo, portanto, manifesta a
ausência do estatuto infantil que hoje identificamos, entre outras expressões, com o vestuário
infantil. Ainda em termos de Arte, poderá ser
importante a dúvida sobre o significado da representação do putto (criança nua na pintura italiana
do séc. XVI), tão bem simbolizada por Ticiano,
num retábulo pintado em 1526. O gosto do putto
terá representado um dos primeiros sinais de
interesse pela criança que a Arte prodigaliza na
sua missão de sempre antecipar, na esfera do sensível, o que só mais tarde o social ou político se
encarrega de representar?
A cultura religiosa passou, todavia, a configurar, aparentemente, algum do respeito pela infância
identificado com a figura do Menino Jesus cujo
modelo os artistas do séc. XVI iam buscar a crianças diferentes, designadamente com trissomia 21
ou outras situações que hoje identificamos como
síndromas malformativas. Objectos que o Menino
manipula, designadamente colheres, são, inequivocamente, alguns sinais de interesse pelo comportamento infantil. Porventura inexplicado é o posicionamento da criança ao colo da Virgem Maria.
O designado instinto maternal faz posicionar a
criança do lado esquerdo do colo da mãe e é essa
a forma de colo que mães ou raparigas já púberes
favorecem ao invés de homens ou raparigas prépúberes quando solicitados a colocarem um bebé
ao seu colo.
Do séc. X ao séc. XVII, apesar da manutenção
de uma mortalidade infantil elevadíssima, a convicção da imortalidade da alma da criança passou
a ser uma verdade cada vez mais sedimentada,
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança
influenciada que foi por uma cristianização progressiva dos costumes.
O grande debate teológico da Idade Média, na
revisitação de Aristóteles, dizia respeito ao momento em que o feto seria insuflado pelo espírito
de Deus, recebendo então uma alma. Até ao sec.
XV o Menino é predominantemente posicionado
no colo direito da Virgem.
O gótico tardio consolida, então, a figura do
Menino Jesus do lado esquerdo do colo, configurando, porventura, o instinto materno como
marca indelével desse sentimento maternal mais
puro representado por uma Virgem Maria cada
vez mais envolvida com o seu Menino.
A representação de um eventual interesse pela
criança trazido pela Arte terá preanunciado uma
viragem na história dos sentimentos face à criança. Velasquez retrata a criança filha da nobreza
enquanto Goya é mais retratista da infância proletária.
A arte da Renascença traz-nos, como novidade, as crianças (putti) na sua plena vitalidade
encarnando, porventura, a felicidade na sua identificação com o Paraíso.
É notório o contraste desta representação artística face aos quadros medievais de Brughel em
que a criança é um epifenómeno das festas exteriores, posicionada num canto das telas, brincando
no chão isolada do contexto social.
A negligência face à criança na coerência do
que temos expressado, faz parte da História da
Humanidade. A expressão mais constante desta
negligência foi o abandono.
De Mause citado por Reis Monteiro escreveu
que «a forma de abandono mais extrema e mais antiga
é a venda directa de crianças». Esta venda era legal
no império babilónico e era, igualmente, uma constante em muitas culturas da Antiguidade.
Expressão extrema do abandono era o infanticídio, representado pelo deixar as crianças à
mercê da natureza e dos predadores, nos caminhos do mundo. Porventura uma expressão
menos drástica do abandono foi representada pela
roda em que a criança era entregue, anonimamente, a instituições ditas de caridade ou de
assistência.
Outra forma de abandono que ocupou durante
mais tempo a história foi representado pela entrega de crianças a amas. Fala-se de amas na Bíblia,
19
no código de Hamurabi, nos papiros egípcios, na
literatura grega e romana, na tradição burguesa da
Europa renascentista. No séc. XVII a procura era
excedentária face à oferta. Mal nasciam, as crianças eram levadas para amas, muitas vezes localizadas longe das residências familiares.
Mais de 10% das crianças emigradas em
função de uma oferta mercenária, morria pelo
caminho. De uma forma mais discreta, o abandono com infanticídio continuava, porém, a ser a
regra.
Não era socialmente dignificada, na aristocracia, a evidência do amor maternal e daí a razoabilidade da tese de que era o clima cultural que
ofuscava o instinto em oposição ao conceito de
Badinter de não ser o amor materno, ele próprio,
um instinto humano.
O abandono infantil, sobretudo nas classes
sociais mais elevadas era expresso, também, pela
entrega das crianças a governantas, a preceptoras
e a colégios internos.
O processo de emancipação da mulher nos séc.
XVII e XVIII inspirava, de facto, muitos dos comportamentos familiares impondo o interesse dos
progenitores a qualquer interesse da criança ainda
sem direitos, sem privilégios, sem amor.
No séc. XVII, a infância não suscitava, ainda,
nenhum interesse particular e poderá ter sido
causa parcial desta evidência a alta mortalidade
infantil que fazia poupar sentimentos vinculadores dentro da família.
Com Rousseau opera-se uma revolução do
modelo. Ele afirmava: «É preciso deixar amadurecer
a infância dentro de cada criança». É assim que, no
séc. XVIII passaram as famílias a dar largas à sua
euforia sentimental passando as alegrias e as virtudes familiares a invadir a Arte e a Literatura. Da
realidade social passou-se à realidade sentimental
passando a arte a representar o idílico da família
em todo o seu esplendor.
Rousseau influencia, de facto, decisivamente,
muita da cultura parental, representada nas
relações sociais. Da mãe deslavada de amor à
«mãe-pelicano» há todo um caminho que, progressivamente, faz nascer o reino da «criança-rainha»
conforme expressão de Badinter. O nascimento da
Puericultura em 1866 com Caron representa o início do caminho para a escola de virtudes em que
são decisivos o médico e a professora.
20
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Surgem então na Europa e especialmente em
França os dispensários de saúde infantil centrados
na confiança entre os profissionais e a mãe. Nesses
dispensários e nos consultórios eram afixados
quadros relatando a atenção pública e privada
devotada à díade mãe-bebé. De qualquer modo,
não era ainda consistente a mudança, em pleno
séc. XIX. No popular «livre de famille» em França,
a criança era cruel e egoísta e «só era anjo quando
estava a dormir».
Por outro lado, a criança passa a ser alvo de
outro interesse por parte dos artistas do Realismo
e do Naturalismo nas Artes Plásticas do séc. XIX.
A iconografia da Sagrada Família, até então dominante, desaparece no início do séc. XIX.
Aumentam, entretanto, e a ritmo crescente, as
encomendas de quadros de representação das
famílias burguesas.
Chegamos aos primórdios do séc. XX irrompendo, então, as primeiras expressões do denominado interesse pela criança. Esta nova modernidade inspira os artistas do simbolismo, designadamente António Carneiro, que intitula uma
sua tela temática de «A vida – Esperança, Amor,
Saudade». A criança surge valorizada em si
mesma, nomeadamente através do direito a um
novo significado do seu bem-estar.
É extraordinária a mudança de conceito
expresso, por exemplo, no pensamento, direi
pediátrico, de Winnicott – «a criança está de boa
saúde quando pode brincar ao pé da sua mãe ou
de um adulto que valorize a sua criatividade». Em
termos sociológicos, poder-se-á dizer que é a partir do séc. XIX e, consolidadamente, a partir do
séc. XX, que os poderes públicos passam a considerar alguns dos interesses das crianças, principalmente reportados às suas necessidades especiais, garantidas quando da evidência de qualquer
vulnerabilidade e desamparo.
Como escreveu Reis Monteiro, «a descoberta da
criança, vítima da família e da sociedade, tornou-a
objecto de protecção pública e privada». É curioso,
porém, constatar que, na segunda metade do séc.
XIX, surgem, pela primeira vez, Sociedades
Protectoras da Infância, porém depois de criadas
as Sociedades Protectoras dos Animais. A expressão «Direitos da Criança» encontra-se, pela primeira vez, num artigo publicado em 1852 nos
EUA intitulado «The Rights of the children».
Provavelmente, em 1872 é utilizada pela
primeira vez a designação «Pediatria» mas é em
1900 que Ellen Kay, citada por Monteiro escreve «O
Século da Criança» onde a autora proclama, porventura também pela primeira vez, que «as
crianças têm deveres e direitos tão firmemente estabelecidos como os dos seus pais». Na coerência desta evolução fantástica é adoptada em 1924 pela Assembleia
da Sociedade das Nações, a Declaração dos Direitos
da Criança elaborada por Eglantine Jebb que cinco
anos antes (em 1919) tinha, por sua vez, fundado o
movimento internacional «Save the Children», criador de símbolos (entre os quais gravatas promotoras do interesse pelas crianças).
Em 1948 é proclamada a Declaração Universal
dos Direitos do Homem onde se assume que a
Maternidade e a Infância têm direito a uma ajuda
e a uma assistência especiais (Artº. 25º. 2). A
UNICEF, designação que sucede à de ICEF, nasce
a 6 de Outubro de 1953 mas é a 20 de Novembro
de 1959 que, definitivamente, á aprovada, por
unanimidade, (por 78 Estados-Membros da ONU)
a Declaração dos Direitos da Criança. A Declaração proclama dez Princípios Fundamentais que
consagram o que se poderá entender como os
interesses Superiores da Criança designadamente
face à sua protecção e desenvolvimento.
Pela primeira vez a impressão «Interesse superior da Criança» aparece num texto internacional
tão significativo como é a Declaração. No seu
Princípio 2 pode ler-se. «A Criança deve beneficiar de
uma protecção especial… Na adopção de leis com esse
fim, o interesse superior da Criança deve ser o factor
determinante».
Mas é a 20 de Novembro de 1987 que a Assembleia Geral das Nações Unidas adapta e aprova a Convenção dos Direitos da Criança que, direi,
é uma efectiva proclamação dos Interesses Superiores da Criança que fazem parte do seu texto em
muitos dos seus 54 artigos, definitivamente consagrados em 1989. Como uma autêntica revolução,
toda uma literatura científica irrompe numa valorização incessante das competências infantis.
Na mesma data da publicação da Convenção,
publicámos com a Fundação Gulbenkian uma
expressão significativa da evidência científica de
então: «Biopsychology of early parent-infant communication». Tal como em relação a todas as Declarações, Convenções ou Proclamações, surgem
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança
críticas tendo essencialmente como alvo o exagerado «pedocentrismo» que situava a criança como
um objecto jurídico.
A este propósito Reis Monteiro comenta ser a
criança uma criança, não podendo tudo ser
Direito tal como o Direito não pode ser tudo. De
qualquer modo, o Direito de Família tornou-se
progressivamente pedocêntrico e, a este propósito, reza assim um texto publicado pelo Conselho
da Europa em 1989:
«As responsabilidades parentais são o conjunto dos
poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar
moral e material da criança, nomeadamente cuidando
da personalidade da criança, mantendo relações pessoais com ela, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos
seus bens.»
A interpretação dos vários Estados confere à
Convenção a extensão das suas prioridades. A
Santa Sé, por exemplo, interpreta os Artigos da
Convenção de modo a salvaguardar os direitos
primários e inalienáveis dos pais.
O poder parental era, assim, reportado ao
interesse superior da criança tal como expresso no
Código Napoleónico que integra pela primeira
vez a expressão «interesse da criança» como
norma jurídica aplicável. O interesse superior passou a ser afirmação usada no Direito Internacional a partir de múltiplas menções dos estatutos
jurídicos internos de muitos países.
No Princípio 7 da Convenção é proclamado
que «o interesse superior da criança deve ser o
guia daqueles que têm a responsabilidade pela
sua educação e orientação; esta responsabilidade
cabe, prioritariamente, aos pais». O interesse
superior da criança passou a ser uma «consideração primordial» que fez transcender os próprios
direitos parentais e, porventura, até os valores culturais de cada sociedade em função do primado
da protecção e do desenvolvimento da criança.
O interesse superior da criança terá sido,
assim, uma consagração ética que coloca a criança
não como objecto mas como sujeito de Direito.
Jacqueline Rubellin-Devichi entende que as
soluções para a criança nunca são só jurídicas sem
prejuízo do valor do direito que assegura os direitos de cidadania à criança desde o seu nascimento. Para Martin Stettler não existe uma definição
para o «interesse da criança». Trata-se de uma
21
noção com impacte afectivo e emocional que «convém deixar à apreciação dos pais ou à autoridade competente quando não há acordo» sendo este um pressuposto básico para a mediação.
Na Reunião de Lisboa de 1988, os Ministros da
Justiça tinham já adoptado uma Resolução tratando da sequência dos direitos da criança no
domínio do direito privado.
Neste sentido, a Convenção dos Direitos da
Criança deverá ser entendida como uma Nova
Carta da Revolução dos Direitos do Homem projectando na Criança a consagração fundamental
da Declaração dos Direitos do Homem. A
Convenção dos Direitos da Criança é a grande
proclamação ética centrada na Criança.
A nova cultura que deverá inspirar as nossas
sociedades e os nossos estados terá de ser construída nesta abordagem de uma ética centrada na
criança que, por sua vez, determinará todos as
outras disposições legais e políticas, do Ambiente
à Educação, da Saúde à Justiça, da Segurança
Social à Intervenção Familiar.
A criança não será mais, assim, o ser dependente, o menor cívico, o sujeito de vulnerabilidade. Os governos dispõem, hoje, através da
Convenção de uma Carta de Princípios que os
obriga a privilegiar a Criança no seu existir pleno
prevenindo as provações, as negligências, a violência. A garantia de oportunidades de afecto, de
vínculos, de harmonia familiar, de concentração
de interesses decorre da vivência do que é o interesse superior da criança a mobilizar políticas e
regulamentações sociais.
O Direito não poderá ser uma regulamentação
dos direitos sobre a criança mas outrossim, uma
afirmação dos direitos à Criança. Toda a circunstância da criança, designadamente a familiar, tem
de ser inspirada por este Direito à criança que
pressupõe o primado da sua dignidade e o interesse superior de a respeitar. A projecção deste interesse em todas as expressões das Ciências
Humanas está contida num dos componentes do
Preâmbulo da Convenção – … «a criança para o
desenvolvimento harmonioso da sua personalidade,
deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão…».
Foi em todo este contexto que um conjunto
extremamente significativo de universitários e
investigadores consagrados elaboraram em Lisboa,
22
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em 1995, a Declaração de Lisboa de que cito, tão só,
a primeira conclusão:
«As famílias devem ser ajudadas a reconhecer que
constituem a fonte primária de amor e apoio e que são
também responsáveis pela criação das forças interiores
de que a criança necessita para se tornar resiliente face
ao stress».
Porém, quando todos os ideólogos falam dos
novos direitos da criança, é preciso assimilar que
existem equívocos que ficaram por resolver. O
direito da criança em ter pai e mãe confronta-se
com a frustração deste «interesse superior» por
via de uma disfunção familiar cada vez mais
prevalente. Mais claramente ainda, a menção
interesse superior significará que o interesse da
criança deverá prevalecer sobre os interesses dos
adultos ou da sociedade e sobre os interesses
económicos e culturais.
Será, ainda, interesse superior da criança, tal
como afirma Almiro Simões Rodrigues, o «direito
ao desenvolvimento», isto é, o interesse da criança
tem de ser entendido em função da dinâmica do
seu desenvolvimento, ao longo do ciclo de vida da
sua infância e da sua juventude. As referências da
Convenção à «capacidade» e ao «discernimento»,
terão de ser entendidas na perspectiva que a
filosofia dos «Touchpoints» consagra e que julgo
ser paradigmática e indispensável para o cumprimento das novas disposições legais.
A Nova Lei de Protecção a Menores de 1999, na
leitura de Maria Amélia Jardim, integra, inequivocamente, os valores do «interesse superior da
criança» no respeito inalienável dos significados e
das fases de toda a dinâmica do desenvolvimento infantil e juvenil. Estamos longe, porém, desta
Revolução Ética a inspirar todas as intervenções
decorrentes desta prioridade do Direito que
reconhece, declaradamente, o interesse superior
da criança.
Reconheço esta distância quase infinita no que
respeita às práticas da nossa Saúde e da nossa
Educação. Se a Sociedade actual, na nossa cultura,
reconhecesse que a prioridade social era a criança
tendo em conta os seus interesses superiores e se
neste contexto estivesse garantido o pressuposto de
que o interesse superior da criança é o de ser
respeitada e amada, fundamentalmente dentro da
sua família, então todo o pensamento político inspirador da actividade dos governos seria o de via-
bilizar uma cultura familiocêntrica com inequívocos
investimentos na construção familiar e na relação
vinculadora desde os primeiros tempos de vida.
Ao nível dos direitos, o advogado mediador
quando do divórcio, representará os pais nessa
mediação mas o seu exercício terá que estar centrado no superior interesse da criança e é essa
advocacia que tem de prevalecer. Não chegam os
padrinhos dos ritos de passagem de que é paradigma o baptismo, nem os educadores das
creches e dos jardins de infância que cabem por
destino a cada criança para fazer vingar um apoio
tutorial complementar ou, às vezes, supletivo da
intervenção familiar.
É preciso criar condições para que haja paixão
na espera por cada nascer, na descoberta do
“quem é quem” logo que cada bebé nasce, no
apoio dinâmico à explosão de cada temperamento
projectado no modo de comer, de dormir ou de
brincar. Usamos hoje, ainda, a expressão “bem-estar” porventura para designar que nos referimos aos interesses superiores da criança que, de
facto, se expressam nesse bem-estar.
A linguagem jurídica abstracta que refere o
interesse superior da criança não se esclarece,
todavia, com a nossa mera menção de bem-estar.
O «interesse superior da criança» é, hoje, um conceito que apela à interdisciplinidade e representará este facto a grande esperança de progresso
para o que resta deste século. Foi numa dimensão
pluridisciplinar que fizemos (Conselho TécnicoCientífico da Casa Pia de Lisboa) «Um Projecto de
Esperança» confrontados com a pedofilia –
extremo de agressão que pode ser feita à criança,
pressuposta a revisitação de toda uma história de
desrespeito pela criança.
Para que haja coerência do nosso pensar à
nossa prática é preciso que a organização social e
política centre os seus investimentos na criança,
sobretudo quando ela é bebé.
A Saúde, a Educação, o Ambiente e a Justiça
têm de estar unidos através de uma só estratégia
em função da Criança. O interesse superior da
criança não se compadece com a imagem de receptor de direito, de cuidados ou de protecção; os
interesses da criança exigem que consideremos que
ela «contribui para a formação tanto da própria infância
como da sociedade» e, por isso, as suas opiniões terão
de ser sempre ouvidas e consideradas.
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança
Só a título de exemplo e na coerência deste primado, teríamos que ver garantida nos Cuidados
Primários a consulta pré-natal de contexto pediátrico, teríamos de ver favorecida, ao nascer, uma
intervenção personalizada junto de cada pai e de
cada mãe consolidada com a oportunidade de uma
descoberta individualizada do bebé no favorecimento dos seus instintos tão ferido de riscos nas
nossas Maternidades, teríamos de investir em mais
tempo de guarda materna, no favorecimento de
melhores horários para os pais nos primeiros dois
anos de vida do bebé, teríamos de ter mais e melhores Serviços de Educação para os primeiros tempos de vida da criança, teríamos de garantir mais
jardins e parques para as nossas crianças, teríamos
de favorecer apoios fiscais, subsídios de habitação,
de aleitamento, apoios à aquisição de fraldas e de
brinquedos, mas sobretudo, teríamos de investir
mais na formação profissional para que cada acto
de consulta ou de intervenção educacional seja o
fervilhar de uma paixão continuadamente dilatada
pela magia de cada bebé em cada novo dia de uma
vida preenchida de paz, em cada família.
A partir da década de 70, numa era inequivocamente “bebológica”, a contribuição da Pediatria
para fazer vingar os interesses superiores do bebé
tem sido uma constante.
Em 1984, a investigação que corporizou o
nosso Doutoramento foi baseada no estudo sobre
a influência do contacto precoce mãe-bebé no
comportamento da díade. As influências antropológicas marcaram um posicionamento de maior
proximidade na relação mãe-filho.
A nossa estadia em África (Guiné) representou
um tempo ganho marcado pela aquisição de uma
nova cultura centrada na dignidade do respeito e
da tolerância. Fizémos, nestas últimas três décadas, o «Nascer e Depois», fizémos o «Olá Bebé»,
fizémos o «Bebé XXI», fizemos o «Stress e Violência» e fizémos o «Mais Criança». Acreditamos hoje,
sobretudo, que é preciso coerência para podermos
corresponder aos superiores interesses da criança.
Vinte anos depois, todavia, a Convenção dos
Direitos da Criança ainda não chegou à Cultura
do nosso tempo social e moral. No respeito pelo
superior interesse da criança (artº. 3º.), o direito à
participação (artº. 12º.) tem de fazer garantir que
têm sempre de ser devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança.
23
Assim, o interesse superior da criança não
pode ser, tão só, uma sentença que a Convenção
dos Direitos da Criança proporcionou, como receita, aos tribunais. O interesse superior da criança é
uma declaração do Amor pela Criança e é este
conceito que deverá inspirar o mundo e os
cidadãos deste mundo.
Precisamos, mais do que nunca, de uma revolução de praxis para que os interesses superiores
da criança não se inquinem com a rotina, com as
abstracções e com as sentenças.
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Winnicott DW. The Infant and Family Development. London:
Tavistock Publications Limited, 1978
24
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
3
ÉTICA, HUMANIZAÇÃO
E CUIDADOS PALIATIVOS
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral
Conceitos de Moral, Ética e Bioética
A Ética é um ramo da Filosofia; a palavra “ética”
deriva do grego a partir de dois homónimos:
“êthos” que significa disposição moral, e “éthos”
que significa costume. Surge, assim, pela primeira
vez, a ideia de moral associada a norma e costume.
Moral tem origem na palavra latina “mos” que
significa costume, princípio. Ou seja Ética e Moral,
com diferentes etimologias, têm um significado
sobreponível dizendo respeito às regras de conduta do Homem.
O termo Bioética foi introduzido pelos americanos significando a ética ligada às ciências da
vida.
Nesta perspectiva, a ética procura o bem-estar
das pessoas através da melhor conduta profissional e da melhor decisão a tomar. A mesma implica,
pois, escolhas e, na maior parte dos casos, as
decisões (ditas éticas) resultam da necessidade de
reequacionar e re-hierarquizar valores morais,
religiosos, culturais e sociais.
Transpondo o conceito e atitude para a práxis
médica, um problema ético surge quando, perante
determinados factos, a decisão correcta é difícil
implicando escolhas entre valores e verdades universalmente aceites, visando a resposta mais justa
ou pelo menos, a menos injusta. Estando a Ética
subjacente à Filosofia, a mesma não pode ser
ensinada, no sentido da transmissão de saberes
que reflectem conhecimentos recebidos e “outorgam” o elo de ligação destes últimos aos valores e
opções considerados correctos. Trata-se, pois, de
um método, um caminho para o pensamento, uma
forma de olhar e argumentar na perspectiva de
encontrar respostas e soluções para os dilemas que
enfrenta. A Ética Médica é baseada num conjunto
de princípios fundamentais os quais derivam não
só da tradição hipocrática, como também do
reconhecimento dos direitos humanos.
Destacam-se os seguintes: respeito pela vida; o
respeito pela pessoa e sua autonomia; o princípio
da não maleficência e da beneficência; o princípio
da justiça.
O Respeito pela vida e a autonomia
da pessoa
O respeito pela vida do doente passa pela definição e compreensão do que se entende pela vida
humana, pelos seus limites, isto é, quando começa
e quando termina.
Para muitos, o início da vida corresponde ao
momento da concepção, enquanto para outros ao
momento da nidação e, para outros ainda, ao
nascimento.
Do ponto de vista filosófico um ser humano é
ou passa a ser uma pessoa quando, para além da
vida biológica, existe uma vida psíquica, emocional, cognitiva e espiritual que lhe permite conduzir
a própria vida de forma autónoma e responsável.
Análoga indefinição existe quanto ao conceito de
morte, o qual não é de consenso universal, sobretudo para as pessoas sem formação ou cultura
médica. A este respeito, cabe referir que a decisão
médica de desconectar um indivíduo do ventilador, em princípio, não levanta problemas éticos,
uma vez que o conceito de morte cerebral é unanimemente reconhecido e está bem estabelecido em
normas nacionais e internacionais.
O respeito pela pessoa, deve partir da prévia
definição de pessoa. Quando nos referimos ao
doente como pessoa há que considerar a sua
autonomia, isto é, a sua vontade e capacidade de
auto – determinação.
Assim, o respeito pela pessoa do doente passa
pela obtenção do seu consentimento prévio para
a realização de diversos procedimentos ou
intervenções médico – cirúrgicas. Ou seja, está em
causa o chamado princípio da autonomia, ao
mesmo subjacente o chamado “consentimento
informado ou consentimento esclarecido” (mais
que informar, é preciso garantir que tenha havido
recepção da mensagem com esclarecimentos).
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos
Este tópico será abordado de modo especial
adiante.
Nesta perspectiva a decisão médica deve ser
partilhada com o doente (e seus familiares), sobretudo quando esta decisão pode ter consequências
para a vida do próprio.
Em Pediatria nem sempre tal é possível;
tratando-se de um adolescente existe autonomia,
desde que esteja consciente e capaz de se auto –
determinar. Cabe referir, contudo, que em determinadas situações a revelação da verdade de um
prognóstico reservado pode ser contraproducente
e até prejudicial para o tratamento.
No caso de adolescente não autónomo (por
exemplo, em coma vegetativo, persistente ou
temporário), e nos restantes grupos etários pediátricos, a decisão terá de ser tomada em colaboração
com os familiares.
Poderão mesmo surgir situações delicadas
quando, por exemplo familiares de doentes em
estado crítico recusam tratamentos considerados
vitais pelo médico (caso das Testemunhas de Jeová).
Recentemente o princípio da autonomia tem
sido considerado um elemento perturbador na
relação médico – doente: para o primeiro porque
introduz um interlocutor activo ao questionar normas relativas ao diagnóstico e decisão terapêutica
tradicionalmente deixados ao critério médico; para
o doente, porque a inerente fragilidade e susceptibilidade biopsíquica geram desequilíbrio na
referida relação clínica, dificultando o seu protagonismo no processo de tomada de decisão.
Os princípios da beneficência
e de não maleficência
Estes princípios têm a sua origem no código de
ética hipocrática e nos princípios da moral cristã.
De referir, aliás, que certos autores chamam a
atenção para o facto de o princípio da não maleficência ter precedência sobre o da beneficência
porque, antes de beneficiar, há que não prejudicar.
Para alguns especialistas nesta área, tais princípios
constituem a essência da ética profissional médica.
A dificuldade da sua aplicação reside em
conhecer o que é considerado benéfico para um
determinado doente, pois este poderá ter uma
concepção não coincidente com a do médico.
A administração de uma transfusão de sangue
25
a um doente pode ser considerada pelo médico
como um acto bom, mas pelo doente, Testemunha
de Jeová, um acto perverso.
Nos doentes em fase terminal, em especial do
foro oncológico, será melhor optar por tratamento
analgésico e paliativo, mesmo que não se prolongue a vida do doente, ou dever-se-á prolongar esta
à custa de maiores sofrimentos?
Analisemos outro exemplo: se o médico praticar determinado acto com a intenção de beneficiar
o doente, a sua atitude é eticamente irrepreensível,
mesmo que desse acto resulte um efeito colateral
indesejável. O importante é que a intenção do
médico seja boa e a natureza intrínseca do acto seja
também boa ou, pelo menos, neutra. Assim, se o
médico administrar um analgésico narcótico a um
doente oncológico em grande sofrimento e em fase
terminal da doença, pratica um acto moralmente
correcto, mesmo que essa atitude terapêutica possa
abreviar a sua vida por algumas horas ou dias,
dado que a sua intenção era aliviar o sofrimento.
Outra questão diz respeito à distinção entre meios
ordinários e extraordinários de tratamento a qual não
deve ser assumida em termos absolutos, mas sim
equacionada em termos do doente, da doença e dos
resultados esperados. Ou seja, não existem meios de
tratamento que, à partida, se possam considerar como
ordinários e extraordinários.
Segundo o princípio da proporcionalidade dos
meios, considera-se um tratamento como extraordinário quando ele representa para o doente uma
grande desproporção entre os benefícios esperados
e os encargos (custos) para o próprio (ou sua família).
A hemodiálise, as transplantações, etc. podem
constituir meios ordinários para certos doentes ou
em certas doenças, e extraordinários, noutros.
A metodologia das decisões conhecidas pela
sigla DNR (Do Not Resuscitate) tem a ver, precisamente, com a não aplicação de meios de ressuscitação em doentes nos quais os critérios
médicos e científicos permitem prever, com razoável segurança, que o benefício decorrente da
aplicação desses meios terapêuticos será ínfimo
para os doentes em causa.
O princípio da justiça
Trata-se do princípio que encerra em si mais
dilemas para o médico.
26
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Quando os recursos são escassos o princípio de
justiça tem, sobretudo, o sentido de justiça distributiva, isto é, de fazer com que o maior número
possível de indivíduos necessitados possam beneficiar desses recursos. Desperdiçar os escassos
recursos existentes com doentes que deles não
necessitam constituirá uma injustiça para os que
deles podem beneficiar.
Decorre desta lógica que o princípio da justiça
tem, na sua aplicação para os médicos, um sentido
utilitarista, ou seja, de que deverão beneficiar dos
poucos recursos existentes os doentes que maiores
benefícios possam colher.
Neste campo da decisão existem muitas armadilhas para quem não se encontra previamente
alertado. Por exemplo, na ausência de ventilador
disponível, qual a decisão perante um jovem que
chega à unidade de cuidados intensivos, com um
traumatismo craniano, boas perspectivas de evoluir
favoravelmente, e em que simultaneamente existe
outro acometido por acidente vascular cerebral, de
prognósico mau ligado ao ventilador?
Deverá ser desligado o doente com prognóstico
mais reservado quanto à vida e função para ceder
o ventilador ao doente com prognóstico mais
optimista?
Este e outros exemplos podem ser comparados
às situações, hoje históricas, chamadas de triagem
de guerra, nas quais os cirurgiões preferiam tratar
prioritariamente os moderadamente feridos, em
relação aos muito graves ou ligeiros. Também
durante a II Guerra Mundial, quando a penicilina
era ainda muito escassa, dava-se preferência à sua
utilização em soldados com doenças transmitidas
sexualmente (pois ficando rapidamente curados
poderiam voltar ao campo de batalha) em relação
a outras situações infecciosas.
Assim, os recursos deverão ser atribuídos aos
doentes que mais benefícios possam vir a colher,
tornando-se claro que a escassez de recursos impõe
uma rotatividade no acesso à sua utilização, para
que os benefícios dos mesmos possam ser aplicados
ao maior número de doentes deles necessitados.
Neste contexto e aplicando o princípio da
justiça às unidades de cuidados intensivos, deverão ser bem definidos os critérios de admissão e
de alta dos doentes assistidos, de modo a ser
possível aplicar os respectivos recursos ao maior
número possível de doentes.
Os princípios e a prática clínica
O consentimento informado, alicerçado no princípio da autonomia, define-se como a livre aceitação e autorização pelo doente de intervenção
médica ou participação em programa de investigação, após adequada explicação pelo médico da
natureza daquelas, relação custos/benefícios e
alternativas. Apresenta duas vertentes fundamentais: a legal e a relacional.
A vertente legal é a regra social de consentimento em instituições que devem obter legalmente consentimento válido para doentes e
pessoas, previamente à realização de procedimentos terapêuticos ou de programas de investigação.
No entanto, isoladamente, não legitima a decisão
ou actuação terapêutica e só corporiza integralmente a decisão do doente quando devidamente
associada à vertente relacional que a fundamenta
e complementa.
A vertente relacional diz respeito à expressão
das preferências e opções do doente. Tal expressão
viabiliza escolhas racionais e partilha da decisão,
bem como contínua permuta interactiva e negocial
reforçando, modificando ou anulando o consentimento inicial.
Esta interacção sedimentadora da aliança terapêutica médico/doente rendibiliza, por sua vez, o
trabalho do médico porque o doente estará mais
apto a colaborar, terá expectativas mais realistas e
estará mais preparado para eventuais complicações.
O consentimento informado tem sido geralmente considerado um dever parental, apesar de
questionável e moralmente desajustado relativamente ao doente pediátrico competente.
Dado que a autonomia é baseada na capacidade de o doente compreender as consequências
e alternativas possíveis à sua escolha e que muitas
crianças em idade escolar e adolescentes já possuem essa capacidade, esse facto pode gerar conflitos, atendendo ao direito legal de supervisão
parental em matéria de saúde.
O número de adolescentes que necessitam de
cuidados hospitalares tem progressivamente
aumentado, tendo sido publicados poucos estudos
que foquem problemas éticos durante a hospitalização neste grupo etário, sendo que alguns dos
dilemas éticos surgidos na população adolescente
não se enquadram adequadamente nas orien-
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos
tações existentes referentes a crianças e adultos.
Exemplificando, com um caso clínico: uma
adolescente de 16 anos portadora de fibrose
quística, com história anterior de 2 transplantes
cardiopulmonares, entra pela terceira vez consecutiva em fase de rejeição aguda e é internada
numa unidade de cuidados intensivos pediátricos. Apesar da terapêutica adequada, a situação clínica deteriora-se e é necessário decidir
ou não pela ventilação mecânica. Ouvindo a
família, o pediatra está de acordo em não ventilar, atendendo ao mau prognóstico, mas adia a
decisão final até à realização de conferência entre
a doente e o médico assistente. Lúcida, ciente da
irreversibilidade da sua situação clínica, convicta
da ineficácia de medidas terapêuticas invasivas
adicionais, recusa a ventilação, sendo a decisão
integralmente respeitada.
Este caso clínico é um exemplo do exercício de
autonomia, aparentemente isento de paternalismo. A visão global do diagnóstico, situação
clínica e evolução da criança, aliada ao sentido
ético do exercício da medicina, permitiu à equipa
clínica autonomizar a doente e simultaneamente
ter a atitude responsável e profissional de a poupar
a um prolongamento inútil de vida.
Assim, o exercício da autonomia não implica
crueldade no confronto com a realidade de vida e
de morte ao permitir que o doente se pronuncie e
eventualmente decida, quando tem condições
para tal, sobre questões que influenciam de forma
decisiva a vivência do seu corpo na doença.
O pediatra ou outro médico ao dialogar em
paridade com uma adolescente que, por doença
grave e prolongada, admite as hipóteses de vida
ou de morte que se lhe deparam, deve demonstrar
capacidade de diálogo e humildade. Deve também
revelar respeito pelo princípio da beneficência ao
reconhecer o sofrimento físico, psicológico e
espiritual de crianças e adolescentes os quais têm
direito a protecção e alívio da dor. É este o fundamento dos cuidados paliativos.
Importa, no entanto, sublinhar que a autonomia não é um princípio que retira à criança ou
adolescente resiliência, fragilizando-a e tornandoa indefesa face à doença e à morte. Muito pelo
contrário, pode constituir um factor de crescimento de interioridade e intimidade daqueles,
reconhecendo-lhes direitos e capacidade de pro-
27
tecção contra a imensidão de normas, regras,
teorias e tecnologias de que a medicina dispõe
actualmente.
Ou seja, o exercício da autonomia contém de
uma maneira ou de outra, quiçá de forma complementar, os princípios da beneficência e da não
maleficência.
De referir que a informação dada ao doente pelo
médico deve pautar-se pela preocupação de comunicação através de linguagem simples, fluida, isenta
de termos técnicos, adequada e acessível, que
consiga transmitir a verdade àquele, devidamente
enquadrada por empatia e solicitude que o médico
deve disponibilizar de modo personalizado.
Contudo, a preocupação do total esclarecimento relativamente à doença não deve sobreporse à compaixão face ao doente doseando-a (ou até,
por vezes, omitindo-a e adaptando-a à idade,
perfil e momento psicológico). Isto é, cada doente
tem direito à verdade que pode suportar.
A legislação em Portugal
Em Portugal a legislação portuguesa confere o
direito à autodeterminação em saúde aos adolescentes menores de 18 anos, mediante a portaria nº
52/85 que permite o acesso às consultas de
planeamento familiar a todos os jovens em idade
fértil, bem como o artigo 141º da lei nº 6/84 DR-Iª
série nº 109- 11/5/1988 que reconhece o direito ao
consentimento de interrupção voluntária de gravidez em jovens dos 16 aos 18 anos, desde que nas
situações contempladas na lei.
Por sua vez a autonomia da criança é
reconhecida no Código Penal – decreto-lei nº
48/95 de 15/3/1995 ao " Reconhecer no domínio
dos bens jurídicos livremente disponíveis, como
causa de exclusão de ilicitude, o consentimento
prestado por quem tiver mais de 14 anos e
possuir o discernimento necessário para avaliar
o seu sentido e alcance no momento em que o
presta".
Também o Código Deontológico da Ordem dos
Médicos refere que "No caso de crianças ou
incapazes, o médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo
com as capacidades de discernimento que lhes
reconhece, actuando sempre em consciência na
defesa dos interesses do doente”.
28
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Consentimento informado
e esclarecido
Sublinhando a importância do triângulo relacional
“criança, pais e médico” é reconhecido o direito ao
consentimento informado e confidencialidade em
adolescentes maiores de 14 anos relativamente à
contracepção oral, ao tratamento de doenças
sexualmente transmissíveis e ainda nos casos de
comportamento aditivo (alcoolismo, ou toxicodependência), sem necessidade de consentimento
parental.
Em caso de terapêutica com baixo risco de
mortalidade e morbilidade (tratamento da acne, por
exemplo) poderá também ser dispensado o consentimento parental. Pelo contrário, nos casos em que a
terapêutica envolva considerável risco (intervenções
cirúrgicas ou terapêutica do foro oncológico com
citostáticos) é exigido o consentimento informado e
esclarecido do doente, caso este se situe no grupo
etário superior aos 18 anos, ou o consentimento
parental no caso do adolescente menor de 18 anos,
não legalmente emancipado.
Exemplificando, é também necessário permissão informada em caso de:
• Imunizações.
• Exames diagnósticos invasivos (cateterismo
cardíaco, broncoscopia).
• Terapêutica prolongada com anticonvulsantes para controlo da epilepsia.
• Correcção cirúrgica de anomalias esqueléticas.
• Remoção cirúrgica de massa tumoral suspeita.
• Punção lombar (mesmo em situações de
emergência).
O assentimento da criança e permissão informada e esclarecida dos pais será aconselhável em
situações como:
• Punção venosa numa criança depois dos 10
anos.
• Exames complementares diagnósticos nos
casos de dor abdominal recorrente numa
criança depois dos 10 anos.
• Medicação psicotrópica para controlar a
perturbação da atenção grave.
Ou seja, em medicina da criança e do adolescente o assentimento reconhece e assume o doente
como pessoa com capacidade de ser integrada
num processo decisional e pressupõe:
• Ajudar o doente a compreender a sua doença.
• Transmitir-lhe a normal expectativa dos
exames e tratamentos a realizar.
• Atender à compreensão do doente face à sua
doença.
A dissensão ou persistente recusa ao assentimento deve ser respeitada sempre que a intervenção proposta não seja essencial ao bem-estar da
pessoa ou possa ser adiada sem risco.
Em investigação é vinculativa, mesmo que os
pais tenham autorizado.
Recentemente o grupo de trabalho em ética da
Confederation of European Specialists in Paediatrics
(CESP) publicou as linhas de actuação e recomendações do Consentimento Informado/Assentimento em Pediatria e em investigação biomédica
envolvendo populações pediátricas.
O documento é norteado por uma preocupação
de preservar a dignidade da criança e adolescente
nas suas dimensões física, psicológica e intelectual,
salvaguardar os seus interesses, protegê-los de
riscos, assegurar e respeitar a sua privacidade
/confidencialidade e reforçar o seu direito à expressão e cumprimento dos seus desejos e preferências sempre que possível, numa perspectiva
realista.
Humanização dos cuidados
Em 1945, pela primeira vez Spitz descreveu a “síndroma do hospitalismo”. As manifestações clínicas de tal situação, relacionadas com o ambiente
hospitalar de separação da mãe e família da
criança, o próprio trauma e agressão emocional da
doença implicando muitas vezes intervenções diagnósticas e terapêuticas, traduzem-se por carência
afectiva, regressão do desenvolvimento psicomotor e afectivo, e estados depressivos.
Foi precisamente na transição da década de 7080 que passou a desenvolver- se em Portugal uma
“cultura” – originária dos Estados Unidos da
América do Norte - de encarar a criança, mais ligada à família e ao seu meio, mesmo quando no hospital, tornando este meio mais acolhedor, compreensivo, humano. Em Portugal cabe destacar o
pioneirismo na aplicação sistemática de certas
práticas do Instituto Português de Oncologia e do
Hospital Pediátrico de Coimbra.
Assim, contribui para a “humanização” todo o
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos
profissional de saúde que recusa a rotina reduzida
ao tecnicismo, que vê no doente uma pessoa inteira
com emoções, angústias ou desesperos que se estendem às famílias.
A partir de então em quase todas as maternidades passou a vigorar, de modo progressivo, a
prática de contacto precoce mãe-filho, já na sala de
partos, onde o recém-nascido deveria ser colocado
ao peito para estimular a secreção láctea e o vínculo.
Ao sistema de alojamento conjunto mãe-filho
recém-nascido nas enfermarias de puérperas foi
dada cada vez dada maior importância, o que tem
conduzido à tendência para considerar obsoleto e
anti-natural o conceito de berçário nas maternidades (recém-nascidos saudáveis em enfermaria
separada da mãe).
Apar doutras medidas relacionadas com a qualidade do atendimento nas diversas instituições, passou igualmente a ser cada vez mais habitual a mãe
acompanhar o seu filho durante a hospitalização em
qualquer grupo etário “abrindo-se as portas das
unidades de internamento ou de ambulatório às
famílias segundo certas regras que passaram a estar
incluídas nos manuais de qualidade e consagradas
por legislação, de que se destaca a Carta de Direitos
das Crianças Hospitalizadas descrita adiante.
Quer a Secção de Pediatria Social da Sociedade
Portuguesa de Pediatria (SPP), criada em 1979,
quer o Instituto de Apoio à Criança (IAC), fundado em 1983, têm tido ao longo dos anos um papel
pedagógico altamente relevante, veiculando, designadamente, os conceitos da humanização e de assistência centrada na família, constituindo-se como grupos de pressão junto das autoridades governamentais no sentido de as práticas de humanização passarem a ter suporte legal, o que tem vindo a acontecer ao longo dos anos.
Cuidados paliativos
A partir de 1960, sob os auspícios da OMS, passou
a ser comum o termo de cuidados paliativos como
um novo paradigma de assistência total e activa ao
doente e família por equipa multidisciplinar quando se verifica uma de três situações:
– doença incurável (não previsível resposta a
qualquer terapêutica);
– doença avançada (prognóstico muito reser-
29
vado e sobrevivência previsível inferior a 6
meses);
– doença progressiva (sintomatologia rapidamente evolutiva com consequente sofrimento
do doente e família).
Tal tipo de cuidados permite suprimir ou
atenuar sintomas sem actuar directamente na
doença que os provoca, dando também apoio à
família para lidar com a doença, na tentativa de
melhorar a qualidade de vida do doente na sua
relação com a mesma sem que tal signifique
abandono.
Constitui dever ético da equipa assistencial
junto da família chamar a atenção de modo humanizado para certos princípios e realidades que
poderão contribuir para a compreensão de atitudes (diversas da distanásia ou encarniçamento
terapêutico, e da eutanásia ou morte provocada
sem sofrimento):
– evolução vida – morte como processo natural
e inevitável;
– não adiamento nem aceleração da morte
– alívio da dor e doutros sintomas numa
relação fraterna;
– valorização da dignidade e da qualidade de
vida da pessoa;
– informação de modo individualizado, gradual
e adaptado à cultura, religião e circunstâncias
psico-afectivas da “unidade” doente -família, a
cargo da equipa que presta cuidados.
Embora em instituições de saúde prestando
assistência a adultos existam unidades de cuidados paliativos com equipa própria, separadas doutras enfermarias e unidades, na idade pediátrica
tal assistência é propiciada em geral em enfermarias convencionais, embora em área reservada e
com o recato e isolamento que a situação impõe.
Tais situações surgem com maior frequência em
unidades de cuidados intensivos neonatais e
pediátricas e em serviços de oncologia pediátrica.
Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas
(Aprovada pela Confederação Europeia
dos Sindicatos Nacionais e Associações
de Profissionais de Pediatria, 1996)
1. As crianças somente serão admitidas no
hospital se os cuidados de que necessitam não pu-
30
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
derem ser igualmente administrados no domicílio
ou em regime ambulatório.
2. As crianças hospitalizadas têm o direito de
ter os seus pais permanentemente com elas, desde
que isso seja para maior benefício da criança.
Assim, devem ser oferecidos alojamento a todos os
pais e estes devem ser auxiliados e encorajados a
permanecer junto delas. De modo a comparticipar
na assistência dos seus filhos, os pais devem ser
informados acerca da rotina da enfermaria e
encorajada a sua participação activa.
3. As crianças ou os seus pais têm o direito a
uma informação apropriada à sua idade e
compreensão.
4. As crianças e os pais têm o direito a uma
informada participação em todas as decisões que
envolvem a sua assistência. Todas as crianças
devem ser protegidas de tratamentos médicos
desnecessários, devendo tomar-se medidas no
sentido de minorar o seu sofrimento físico e
emocional.
5. As crianças devem ser tratadas com tacto e
compreensão, e a sua privacidade sempre respeitada.
6. As crianças devem ser assistidas por uma
equipa adequadamente treinada e plenamente
consciente das necessidades físicas e emocionais
de cada grupo etário.
7. As crianças têm o direito de usar as suas
próprias roupas e ter os seus pertences pessoais.
8. As crianças devem ser assistidas conjuntamente com outras crianças do mesmo grupo etário.
9. As crianças devem ter um ambiente guarnecido e apetrechado de modo a satisfazer as suas
necessidades e que esteja de acordo com as normas
conhecidas de vigilância e segurança.
10. As crianças devem ter total oportunidade
para brincar, para diversão e educação adequadas
à sua idade e condição.
BIBLIOGRAFIA
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Pediatrics 2000; 106: 351-357
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Archer L, Biscaia J, Osswald W. Bioética. Lisboa/São Paulo:
Editorial Verbo, 1999
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Respect for Autonomy. New York: Oxford University
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Bergsma J, Thomasma DC. Autonomy and Clinical Medicine:
a History of the Autonomy Principle. Dordrecht:Kluwer
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Almedina, 1995
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Videira-Amaral JM. Neonatologia no Mundo e em Portugal.
Factos Históricos. Lisboa: Angelini, 2004
CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação
4
FORMAÇÃO EM PEDIATRIA
NA PÓS-GRADUAÇÃO
João M. Videira Amaral
Os primórdios do ensino
pós-graduado da Pediatria
Após a reforma de 1911, a par do ensino pré-graduado da Pediatria, passou a processar- se o treino
clínico de médicos já formados, interessados na
medicina da criança. Desde então, em Lisboa, o
Hospital Dona Estefânia, ao tempo devotado também à assistência de adultos, passou a constituir
em Portugal a escola pioneira de pós-graduação
com Jaime Salazar de Sousa (Avô) e Leite Lage, inicialmente e, após a década de 40, com Manuel
Cordeiro Ferreira e Silva Nunes.
No velho Hospital de Santa Marta, sucedendo
a Jaime Salazar de Sousa, Castro Freire criou até à
transferência do serviço para Santa Maria em 1954,
outro centro de pós- graduação em Pediatria.
Em 1936, em Coimbra, cabe destacar Lúcio de
Almeida que criou nos velhos Hospitais da Universidade um Centro de preparação de médicos
pediatras; ao primeiro sucedeu Santos Bessa.
No Porto, na década de 30, Almeida Garrett no
Hospital de Santo António iniciou um ciclo de pósgraduação, mais tarde transferido para o Hospital
de S. João; nesta cidade, no Hospital de Maria Pia
também passou a a realizar-se o treino clínico de
médicos interessados em medicina da criança.
Programa de formação do Internato
Complementar de Pediatria
Até 1996 a formação básica propiciada aos internos
de Pediatria, futuros pediatras, não estava estruturada nem regulamentada, condicionando oportunidades heterogéneas de treino clínico para aquisição de competências básicas em função do grau
31
de investimento de cada instituição nesta área do
ensino; de referir que o candidato a pediatra praticava sempre numa única instituição hospitalar.
O actual “Programa de Formação do Internato
Complementar de Pediatria”, que constitui um
marco importante da história da educação médica
em Portugal, entrou em vigor em 1 de Janeiro de
1997. Com o mesmo passaram a ser definidos especificamente, quer objectivos pedagógicos em
termos de conhecimentos e competências, quer
critérios de avaliação e períodos de formação em
diversas valências. Neste modelo a maior inovação
consistiu na descentralização do estágio, passando o médico em formação(interno do internato
complementar) a rodar por diversas instituições,
para além de hospitais centrais, hospitais distritais
e centros de saúde.
Ciclos de estudos especiais
Os chamados ciclos de estudos especiais definidos
por legislação em 1982 constituem uma modalidade de treino pós-graduado, após exame final do
internato complementar de pediatria, para obtenção de competências em determinadas áreas específicas, mediante estágios práticos e um programa de formação específica em hospitais centrais.
Existe um processo de candidatura.
Estágios do internato geral e do internato
complementar de medicina familiar/clínica
geral em pediatria
De acordo com a actual legislação (em fase de remodelação) os médicos englobados nos referidos internatos realizam estágios em serviços de pediatria.
A Pediatria Geral
e as Especialidades Pediátricas
Como resultado da expansão progressiva dos conhecimentos no campo da Pediatria (cujo âmbito foi
abordado anteriormente) têm desta emergido as
chamadas especialidades pediátricas que correspondem a modos diferenciados de assistência médica no referido período evolutivo aplicados a aparelhos e sistemas (critério anátomo- fisiológico) ou a
certas fases do desenvolvimento: perinatal/neonatal, escolar, adolescência (critério cronológico).
Tais especialidades pediátricas que envolvem,
designadamente, a aquisição de competências para
32
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
a realização de técnicas e procedimentos, começaram a surgir na década de 50 nos Estados Unidos da
América do Norte (EUA) com programas de formação elaborados pela Academia Americana de
Pediatria (AAP). Esta tendência teve mais tarde o
seu seguimento na Europa com diversos modelos
funcionais e de oficialização obedecendo a critérios
definidos pelas Comissões Europeias, os designados European Boards, ligados à Union Européenne des
Médecins Spécialistes – UEMS.
Em obediência à nomenclatura habitualmente
adoptada pela Ordem dos Médicos e pelos organismos da União Europeia (Confédération Européenne des Spécialistes de Pédiatrie – CESP) e UEMS
que consideram a Pediatria uma especialidade, as
respectivas modalidades diferenciadas, contribuindo para uma melhor qualidade no serviço à
prestar à comunidade, são, de facto, consideradas
subespecialidades pediátricas.
O desenvolvimento das subespecialidades
pediátricas
Quer na América, quer na Europa, e designadamente em Portugal, têm sido gerados consensos
(não em todas as áreas especializadas) segundo os
quais as subespecialidades pediátricas deverão constituir um ramo derivado da Pediatria e não das
subespecialidades afins da Medicina Interna ou da
Cirurgia Geral. Reconhecendo que tal imperativo
não assume a mesma relevância em todas as especialidades, a lógica conceptual seria que as subespecialidades pediátricas fossem desempenhadas,
de raiz, por pediatras que adquiririam competência
em determinada área específica. É evidente que numa fase de arranque, tal nem sempre aconteceu- era
imperioso começar! – sendo bastantes os exemplos
de contributos importantes de subespecialistas anteriormente ligados a áreas da medicina e cirurgia
de adultos que transitaram para a área correspondente das subespecialidades pediátricas.
No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) foram criadas, até 2008 Secções especializadas, referentes a diversas valências pediátricas (Pneumologia, Neonatologia, Cardiologia,
Gastrenterologia, Pediatria Social, Educação
Pediátrica, Hematologia / Oncologia, Cuidados
Intensivos, Infecciologia, Endocrinologia, Nefrologia, Desenvolvimento, Alergologia, Reumatologia) com estatutos próprios, congregando os sócios
com especial interesse na respectiva área. Tais
secções ou mini-sociedades têm contribuído para
fomentar a investigação e melhorar o intercâmbio
entre instituições nacionais e estrangeiras.
Em Portugal, até ao final da década de 80, estavam reconhecidas pela Ordem dos Médicos as
subespecialidades de Pediatria Cirúrgica, de
Pedopsiquiatria e de Cardiologia Pediátrica. As
mesmas passaram a ter internato próprio, o que
traduz reconhecimento pelo Ministério da Saúde.
No início de 2003 foram reconhecidas pela
Ordem dos Médicos 5 novas subespecialidades
pediátricas: Neonatologia, Nefrologia, Gastrenterologia, Oncologia e Cuidados Intensivos, estando em estudo, em 2008, os respectivos programas de formação e a criação de outras.
Necessidade de equilíbrio entre a pediatria
geral e as subespecialidades
A formação de novos subespecialistas deverá
processar- se em função das necessidades do país
acautelando a subalternização dos pediatras generalistas. Haverá, pois, que evitar o “esvaziamento”
da pediatria geral evitando erros cometidos no âmbito da medicina geral de adultos relacionados
com a formação de subespecialistas sem uma formação básica indispensável ou tronco comum de
medicina interna.
Quer nos hospitais centrais, quer nos hospitais
distritais, haverá que preparar solidamente pediatras
gerais competentes, que possam assumir com toda a
legitimidade as tarefas de médico global ou médicoassistente da criança, e aptos para uma triagem correcta para o pediatra subespecialista. Tal conceito deverá ser transmitido aos estudantes universitários.
Efectivamente, embora os hospitais centrais englobando áreas diferenciadas, sejam considerados
por definição especializados, para a garantia duma
pediatria de prestígio – e, por consequência, para a
garantia dum melhor serviço à comunidade- entendemos que os mesmos deverão incorporar,
igualmente, a valência de pediatria geral, integrando pediatras internistas com competências
para a abordagem dos casos mais complicados.
A relação entre a Pediatria Geral
e a Medicina Familiar
Há cerca de 15 anos, sob os auspícios da Sociedade
CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação
Portuguesa de Pediatria, foi elaborado um documento de análise e de recomendações, elaborado
por um grupo de trabalho coordenado por
Fernanda Sampayo intitulado “ O problema da assistência à criança pelos clínicos gerais”.
Tendo sido considerado nesse documento, pela
maioria dos seus membros, que em condições
ideais, a meta desejável seria a “generalização da
assistência médica ao grupo etário pediátrico por
pediatras” , a realidade actual, no entanto, não permite atingir tal desiderato, quer pela escassez de
pediatras, quer pela própria legislação portuguesa que considera ser o médico de família/clínico
geral o responsável pela saúde infantil no âmbito
dos cuidados primários /centros de saúde.
Cabe referir, no entanto, que em tempos surgiu
(apenas na legislação) a figura do chamado “pediatra comunitário” para o exercício de funções no âmbito dos cuidados primários de saúde, mas em estreita ligação com as estruturas hospitalares em cujas equipas estava previsto poder integrar-se.
Esta questão do desempenho profissional de
pediatras nos cuidados de saúde primários foi em
2005- 2006 foi revisitada, quer pela Comissão
Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente,
quer pela Sociedade Portuguesa de Pediatria, defendendo o papel do pediatra (hospitalar) como
consultor nos centros de saúde na área de influência respectiva, e não como substituto do médico de
família, pressupondo uma correcta articulação entre as respectivas instituições.
Como é fácil depreender, a relação profissional
entre pediatras gerais e médicos de família, e entre pediatras gerais e pediatras subespecialistas,
tem implicações na formação que é propiciada a
“cada grupo profissional”, na medida em que se
torna desejável um articulação funcional harmoniosa de programas formativos; efectivamente,
uma melhor formação conduzirá seguramente a
um melhor serviço aos cidadãos.
Competências clínicas do foro
da Pediatria Geral
Não se podendo nem se devendo estabelecer barreiras muito estanques, e abstraindo os grandes
tópicos considerados nucleares e específicos da
medicina da criança e do adolescente, será pertinente discriminar as situações que deverão ser
33
consideradas no âmbito da pediatria geral e não
no das subespecialidades pediátricas.
Este critério, por sua vez, poderá servir de base
ao planeamento formativo das competências dos internos do internato complementar (da especialidade)
de medicina familiar / clínica geral, tendo sempre em
perspectiva a correcta e harmoniosa articulação assistencial. Como se deve depreender, haverá que ter
em conta, sempre, o bom senso na aplicação de tal estratégia, necessariamente versátil.
Problemas das vias respiratórias:
Otite média aguda, otite média com efusão
crónica, défice auditivo de condução relacionado
com efusão, hipertrofia amigdalina, hipertrofia das
adenódes, apneia obstrutiva em períodos breves,
rinite vasomotora, rinite alérgica sazonal, rinofaringites frequentes, pneumonia, bronquiolite.
Problemas do foro cardiovascular:
Sopros inocentes, situações de hipertensão
moderada em adolescentes obesos, obesidade na
adolescência.
Problemas do foro gastrintestinal:
Regurgitação e vómitos do lactente, refluxo
gastro- esofágico, obstipação, encoprese, diarreia,
dor abdominal, infestações intestinais.
Problemas do foro genito-urinário:
Enurese diurna e nocturna, infecções recorrentes do tracto urinário no sexo feminino, refluxo
vesico-ureteral(graus 1,2,3), micro-hematúria, proteinúria postural, testículos retrácteis.
Problemas do foro hematológico:
Anemia ferropénica, trombocitopénia transitória idiopática.
Problemas do foro endocrinológico:
Obesidade e baixa estatura constitucional.
Problemas músculo-esqueléticos:
Torcicolo, entorse, escoliose ligeira, pés planos,
joelhos varo e valgo.
Problemas do foro dermatológico:
Dermatite atópica, dermatite das fraldas, dermatite seborreica, acne, urticária, tinha, escabiose,
34
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
verrugas, queimaduras ligeiras, picadas e mordeduras, impetigo, hemangioma, púrpura de
Henoch-Schonlein.
Documento de análise da Sociedade Portuguesa de
Pediatria. Rev Port Pediatr 1990; 21: 496-497
Sampayo F, Coelho-Rosa FC, Cordeiro-Ferreira G, AzevedoCoutinho JA, Fontoura M, Lobo-Antunes N. O problema
Problemas do foro neurológico:
Cefaleia, enxaqueca, convulsões febris simples,
convulsões típicas do tipo grande mal, convulsões
do tipo pequeno mal, atraso mental, défice de
atenção acompanhado de hiperactividade, dislexia, tiques menores.
das especialidades pediátricas. Documento de análise da
Sociedade Portuguesa de Pediatria. Rev Port Pediatr 1990;
21: 498-499
Videira-Amaral JM. A pediatria geral e as sub-especialidades
pediátricas – análise de algumas questões
Iª parte – Acta Pediatr Port 2003; 34: 309-313
IIª parte – Acta Pediatr Port 2003 ; 34; 377-379
Problemas do foro comportamental:
As chamadas “cólicas” do lactente, os chamados “espasmos do soluço”, perturbações do sono,
fobia escolar, depressão ligeira.
Problemas do foro alérgico:
Reacções alimentares adversas e a maioria das
situações de asma não complicada.
Problemas do foro neonatológico
Recém- nascido saudável estacionado com a
mãe na maternidade, recém-nascido saudável
após a alta da maternidade, rastreio de sinais de
risco.
Na verdade, os subespecialistas deverão reservar a sua disponibilidade para os problemas cada
vez mais complexos relacionados, por exemplo,
com uma cada vez maior sobrevivência de recém-nascidos de muito baixo peso, com as situações de
doença crónica de maior gravidade que obrigam a
estadias médias cada vez de maior duração e com
a necessidade de realização de técnicas e procedimentos envolvendo apoio multidisciplinar.
BIBLIOGRAFIA
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(entrevista). Tempo Medicina 2005; 17 Outubro: 4
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Adolescente. O pediatra consultor no centro de saúde. Acta
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documento de análise sobre os problemas da pediatria em
Portugal. Lisboa: Edição da Sociedade Portuguesa de
Pediatria, 1981
Sampayo F, Flora C, Neves I, Lemos L, Nascimento MC. O
problema da assistência á criança pelos clínicos gerais.
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Arch Dis Child 1998: 78: 484-487
CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica
5
INVESTIGAÇÃO
E CLÍNICA PEDIÁTRICA
João M. Videira Amaral
O conceito de investigação em Saúde
Investigação científica no sentido lato pode definir-se como o processo racional que procura comprender e desvendar o mundo, contribuindo para
ampliar os nossos conhecimentos.
Valerá a pena, para a compreensão do âmbito
de tal conceito, citar Magendie e um dos seus discípulos, Claude Bernard, enquadrando as respectivas citações no tempo em que viveram, o séc XIX.
O primeiro afirmou: “Quando investigo, só tenho
olhos e ouvidos:não tenho cérebro”… e o segundo: “O
importante é mudar as ideias à medida que a ciência progride”.
Das atribuições gerais das instituições de saúde
e, designadamente dos hospitais ligados ou não
às universidades, em função do grau de diferenciação fazem parte, para além da valência prioritária
do serviço assistencial à comunidade, as do ensino e da investigação .
Como corolário, caberá dizer que o desenvolvimento devidamente estruturado da vertente
de investigação numa instituição de saúde, traz
seus dividendos a curto, médio e longo prazo pelo impacte muito positivo daquela na assistência e
na qualidade de serviços a prestar à comunidade.
De facto, na sua essência, investigar, consiste em
verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver
problemas“ procurando soluções face a questões
que são previamente formuladas, na previsão de
mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pessoas sãs ou doentes.
Neste contexto, será de admitir o interesse em
as referidas instituições de saúde criarem, manterem e desenvolverem elos fortes de ligação com
35
outras instituições de saúde e com centros ou institutos de investigação de créditos formados.
Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se
condições de parceria e sinergias tendo em conta,
por um lado, o potencial da “ base de dados clínicos ou de material humano de doentes ” das instituições de saúde e, por outro, as potencialidades
dos institutos universitários ou laboratórios de investigação experimental relacionados com as ciências básicas (biostatística, epidemiologia, etc.).
O impacte da investigação na clínica
Analisado o âmbito da investigação clínica, pode
deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal
vertente, como resultado de parcerias, facilita o intercâmbio científico com instituições congéneres
nacionais e internacionais aplicando diversas estratégias; estas passam necessariamente pela criação de “redes de investigação” viabilizando,
nomeadamente a concretização de estudos cooperativos e prospectivos, divulgação e partilha de resultados em eventos científicos, e em publicações
nacionais e internacionais.
Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo
duma nova geração de médicos e de investigadores com interesse pela saúde infantil, e a descoberta de vocações para as diversas vertentes da
investigação, no pressuposto de as medidas a levar
a cabo serem acompanhadas de incentivos e de estratégias de acompanhamento dos mesmos pela
instituição de que dependem.
Diversos argumentos justificam o interesse da
investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis
alguns: a) a investigação clínica é um processo de
resolução de problemas com uma aplicação em
vista (por exemplo estudo da melhor relação custo-efectividade de determinada terapêutica ou de
determinado exame complementar de diagnóstico); b) a investigação clínica contribui para a formação do espírito crítico com implicações na prática clínica; c) a investigação clínica promove o
treino na recolha e valorização das informações
conducentes à decisão clínica; d) a investigação
clínica promove o desenvolvimento do espírito de
sistematização do conhecimento.
Torna-se evidente que as questões cruciais que
decorrem destas noções são justamente a definição
dos problemas a investigar (a resolver) implican-
36
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do cooperação entre clínicos e gestores institucionais, motivando estes últimos para tal questão.
O panorama actual da investigação
no país
Dados do Observatoire des Sciences et des Technologies em Paris, comparando as contribuições científicas relativas a diferentes países europeus concluem que a União Europeia contribui com cerca
de 30% da produção científica no mundo. Para esta parcela, Portugal contribuia até 1990 com 0,1%
em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Espanha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%).
Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas
a um terço da produção científica irlandesa e 1/10
da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-se para 1/5, mas deve-se ter em conta que a população é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as
Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia,
Engenharias, entre outras) produziram 55 573 publicações.
De acordo com dados do INE (2008) registaram-se
progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e
2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às
ciência básicas biomédicas versus medicina clínica em geral, e pediatria em especial, no referido
período (8 anos) a produção científica cresceu
91,5%.
Os artigos e outros escritos dos portugueses, referidos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram,
pela primeira vez, o país à frente da Irlanda.
Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega
alguns centros de investigação de excelência reconhecidos internacionalmente, embora com nítido predomínio na área das ciências básicas.
Alguns atribuem este panorama à ausência de
uma cultura para investigar, quer nas universidades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, seguramente, a falta de incentivos em termos de progressão de carreira hospitalar – profissional, quer
para os médicos diferenciados que ascendem na
carreira, quer para os jovens médicos na pós-graduação para obtenção do título de pediatra.
Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a
desvalorização das actividades de investigação
nos concursos da carreira hospitalar (para consultor ou para chefe de serviço) em que a publicação
de estudos é muito fracamente cotada.
E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de
extinção?
Outros factores têm sido apontados: falta de
tempo devido à pressão das funções assistenciais,falta de meios logísticos de apoio, falta de
plano cooperativo para a resolução dos problemas
assistenciais, indefinição de objectivos das Administrações hospitalares na vertente de investigação, havendo apenas preocupação com os
objectivos quanto à prestação de cuidados mensuráveis, défice de formação desde o curso universitário, etc..
Surge, assim, certa desmotivação por se admitir –de acordo com o espírito da legislação – que
“investigar não é importante para o esempenho
profissional”.
O contexto actual é, pois, o de perda de oportunidades por quem é subalterno, tem interesse,
mas não tem incentivos nem condições para ser estimulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a importância do fomento de tal “cultura para a investigação” por parte de quem é orientador de formação de médicos em fase de pós-graduação.
Goldstein e Brown(investigadores galardoados
com prémio Nobel em 1997) traduziram este
panorama de dificuldade ou de desmotivação para
a investigação apelidando-o de “síndroma”PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease
Syndrome”.
Embora o programa de formação do internato
complementar de pediatria contemple (modestamente) uma valência de formação em investigação, o resultado final será muito precário, na medida em que a valência não é obrigatória. Para reverter a situação, torna- se fundamental estimular
os jovens internos, – eles são o nosso futuro – criando uma valência obrigatória (de três meses no mínimo) durante o internato, e fomentando a participação daqueles em actividades concretas em centros idóneos de investigação.
Infelizmente, no quadro das administrações de
instituições específicas, hospitalares ou não, não
está previsto que os responsáveis pelos serviços integrem nos respectivos planos de actividades um
programa anual de investigação, nem está previsto, pela legislação actual, qualquer financiamento
para esta valência.
Cabe salientar, no entanto, os sinais positivos
de mudança dos últimos anos quanto a incentivos
CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica
para a investigação clínica, quer por iniciativa da
Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções,
quer por iniciativa das Universidades e do
Ministério da Saúde (bolsas de estudo para centros
internacionais, prémios, etc.).
No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da
medicina familiar, aos orientadores de formação e
directores cabe grande responsabilidade na génese
da mudança e no estímulo dos internos no sentido
de aproveitamento de oportunidades para candidaturas a bolsas para projectos de investigação, designadamente sob os auspícios de fundações com esta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.).
Modelos estratégicos para incentivar
a investigação
Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para incentivar a investigação no âmbito das instituições de
saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filosofia assente em determinadas linhas estruturais:
1) a investigação aplicada é cada vez mais biomédica envolvendo, para além dos médicos,
outros profissionais/investigadores como biólogos,
farmacêuticos,bioquímicos, biofísicos, geneticistas,
especialistas em epidemiologia e biostatística,
matemáticos, etc.;
2) a investigação biomédica deve ser centrada
na interdisciplinaridade entre as chamadas disciplinas básicas e disciplinas clínicas, designações
que hoje se podem considerar ultrapassadas pois
a” interpenetração mútua” é cada vez maior;
3) a investigação clínica somente se torna
rendível em termos de aquisição de “dimensão ou
massa crítica” se forem criados grupos inter-instituições e um sistema funcional de “rede” interligada;
4) para além do aspecto quantitativo que
decorre da associação de pequenos grupos interinstitucionais, é necessário que entre os mesmos
existam afinidades,lealdade, capacidade de integração e projectos bem delineados;
5) necessidade de apoio oficial e de mobilização de fundos monetários nacionais e no estrangeiro para garantir o funcionamento do “sistema”;
6) ao nível de cada instituição ou grupo de
instituições haverá que criar “centros” funcionais
a regulamentar (com médicos/investigadores),
37
com um coordenador responsável, que garantam
a logística de promoção,dinamização e coordenação das actividades de investigação e o compromisso de “ligação à rede” de outros centros nacionais e internacionais.
Para a concretização dos princípios atrás referidos, ao nível das instituições de saúde é necessário
o compromisso da tutela e de determinados organismos para a adopção de determinadas medidas:
1) informatização dos serviços clínicos com
criação de “base de dados”;
2) possibilidade de consultadoria estatística e
de “software”;
3) criação de prémios e de bolsas para jovens
investigadores;
4) maior valorização das actividades de investigação na avaliação curricular dos concursos ou
contratações;
5) maior envolvimento das sociedades científicas, nomeadamente na organização de redes, na
mobilização de fundos e na definição de prioridades;
6) maior envolvimento das universidades, das
administrações hospitalares, e das direcções dos
serviços hospitalares na formação em investigação
e no apoio à investigação clínica estabelecendo
parcerias com as empresas da indústria farmacêutica segundo princípios éticos.
7) necessidade de maior parcela do Produto
Interno Bruto (PIB) devotado à investigação;
8) necessidade de sistema de avaliação externa
das actividades por peritos de idoneidade comprovada, nacionais e internacionais.
Seria injusto não reconhecer o papel que a
Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Ordem dos
Médicos têm tido na formação em investigação e na
criação de bolsas e prémios para os médicos e médicos pediatras interessados em progredir na investigação. A maior vulnerabilidade recai, de facto nas
próprias instituições de saúde, verificando-se défice
de sensibilização para tal problemática: são definidos, em geral, objectivos em termos de resultados
assistencias sem estabelecer objectivos no âmbito da
investigação. A mudança é, pois, necessária.
BIBLIOGRAFIA
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PARTE II
Clínica Pediátrica Hospitalar
e Extra-Hospitalar
40
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
INTRODUÇÃO À PARTE II
Nesta parte são focados aspectos relacionados com
a clínica pediátrica hospitalar tendo como base a
experiência e certas valências dum hospital pediátrico central especializado com ensino universitário
englobando serviço de perinatologia/maternidade:
o Hospital de Dona Estefânia em Lisboa. De facto,
este modelo de prestação de cuidados à comunidade tipifica o âmbito da Pediatria já referido em
capítulo anterior, permitindo, por outro lado, compreender o enquadramento dos tópicos a abordar
neste livro. Chama-se, entretanto, a atenção para as
três missões primordiais de um hospital central: assistência, ensino e investigação.
Uma vez que a filosofia actual de prestação de
cuidados hospitalares prevê tempo de estadia reduzido ao mínimo indispensável, tal implica uma
cooperação multiprofissional estreita com os hospitais de nível menos diferenciado de cuidados,
com os centros de saúde (cuidados primários) e
com uma rede de cuidados continuados.
João M Videira Amaral
6
CLÍNICA PEDIÁTRICA
HOSPITALAR
Mário Coelho
As particularidades da idade
pediátrica
As crianças não são adultos pequenos a quem se
administram pequenas doses de medicamentos;
são, pelo contrário, seres em constante evolução,
com características peculiares. Com efeito:
a) a sua fisiologia difere da dos adultos e altera-se à medida que crescem e se desenvolvem, o que
implica maior vulnerabilidade na doença e face ao
estresse;
b) as mesmas podem ser afectadas por um espectro de doenças diferente do dos adultos, com
especial realce para as doenças congénitas e hereditárias;
c) a sua capacidade de compreensão relativamente ao corpo, à doença e à morte é diversa da
dos adultos, evoluindo ao longo do tempo;
d) utilizam os serviços de saúde geralmente
acompanhados pela mãe ou outro adulto responsável que tem as suas próprias necessidades e direitos, como o de ser informado e tomar parte em
decisões; destas circunstâncias decorre um estatuto legal diverso do do adulto;
e) são fortemente influenciadas pelo ambiente
ou sistema envolvente em que crescem e se desenvolvem (família, escola, grupos de amigos e a
comunidade em geral);
f) sendo afectadas pelas doenças que também
surgem na idade adulta(por exemplo mucoviscidose, drepanocitose), adultos e crianças não constituem populações comparáveis, pois em idade
pediátrica existe risco mais elevado de mortalidade.
Em sintonia com o conceito global de Pediatria,
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar
a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por
todos os órgãos de soberania portugueses (1990),
considera “Criança” “todo o ser humano até aos
18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste
conceito sendo reconhecida como uma fase da vida com necessidades e características específicas.
Considerou-se arbitrariamente o fim da adolescência aquele limite de idade por razões de ordem organizativa assistencial.
Dado que cada vez mais adolescentes atingem
a idade adulta com patologias até há pouco quase
desconhecidas da prática da medicina do adulto,
nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos
é usada como limite para o atendimento nas instituições pediátricas.
Com efeito, o processo de transição de um adolescente com doença crónica grave para os hospitais ou serviços de adultos é difícil, por vezes
dramático, pela perda de acesso aos cuidados tradicionalmente mais personalizados nos serviços
ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes estão muitas vezes ainda dependentes da família e
do perfil assistencial anterior.
O ambiente pediátrico necessário
Dois modelos de prestação de cuidados pediátricos hospitalares do nível mais diferenciado se confrontam: 1) o modelo de hospital geral (prestando
cuidados a todos os grupos etários) integrando
serviço de pediatria; 2) o modelo de hospital
pediátrico autónomo embora integrado numa
área com outras instituições ligadas à prestação de
cuidados ou campus sanitário.
As experiências vividas na infância e juventude
têm um impacte crucial na vida de cada indivíduo;
por isso, os contactos com os serviços de saúde em
tal período da vida influenciam significativamente
as atitudes futuras do mesmo em relação a esses
serviços.
Não dependendo a saúde apenas da prestação
de cuidados, mas também do ambiente social,
biofísico e ecológico, e estando estabelecido que
os estímulos lúdicos, afectivos e emocionais são
factores determinantes no processo terapêutico,
assume a maior importância a criação do chamado ambiente pediátrico. Aliás, a criação de tal ambiente está implícita na Declaração dos Direitos da
Criança Hospitalizada.
41
Assim, ao tipo convencional de cuidados humanizados de qualidade a cargo de profissionais
especialmente preparados, o ambiente pediátrico
associa: equipamentos e metodologias adaptados
à condição e estádios de desenvolvimento da criança e maturidade do adolescente (por exemplo,
móveis, equipamento lúdico, música, participação
de artistas/palhaços, espaços apropriados com envolvência segura e integralmente reservados aos
jovens utilizadores, como ludotecas, etc.).
Estas especificidades são cruciais para a garantia da excelência da prática pediátrica hospitalar
centrada na criança e na família. Estando mais intrinsecamente ligadas à própria natureza dos hospitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais
fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos
serviços de pediatria de hospitais gerais (idealmente separados dos serviços de adultos).
O ambiente pediátrico pressupõe garantia
prévia de qualidade assistencial; tratando-se de
instituições com cuidados de alta diferenciação,
quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço
de pediatria integrado em hospital geral, torna-se
fundamental que sejam propiciadas todas as valências compatíveis com tal nível de cuidados.
O Hospital de Dona Estefânia –
Aspectos históricos, organizativos
e demográficos
O Hospital de Dona Estefânia (HDE) foi sede da
primeira escola pediátrica no nosso país e o
primeiro hospital construído de raiz em Portugal
pela mão do arquitecto britânico Humbert (como
foi referido, inaugurado em 1877 com a placa identificativa da Pedra de Armas Reais de Dom Pedro
e Dona Estefânia – HRE). Em 1969, com a integração da Maternidade Magalhães Coutinho, concretizou-se a sua transformação em hospital
materno-infantil médico-cirúrgico, vocação que
tem assumido na sua plenitude. Na década de 80
nele teve início o intensivismo neonatal e pediátrico, e em 1992 recebeu o antigo Serviço de Saúde
Mental Infantil de Lisboa, integrando hoje o novo
Departamento de Pedopsiquiatria.
Na sequência do forte impulso reformista iniciado nos anos 60 acompanhado de obras de remodelação arquitectónica e de ampliação, surgiu
um primeiro ciclo de diferenciação com a criação
42
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
das unidades de hematologia, de endrocrinologia,
de gastrenterologia, de pneumologia, e de nefrologia. No âmbito da cirurgia pediátrica outras áreas
subespecializadas também foram surgindo, tais
como a cirurgia neonatal, nefro-urologia, ortopedia, patologia clínica, fisiatria, imagiologia, etc..
É já no contexto de um segundo ciclo de inovação ao longo da última década que se inscreve a
criação e consolidação de outras áreas devotadas
à criança e adolescente, salientando-se as seguintes: otorinolaringologia, oftalmologia; estomatologia; neurocirurgia; cirurgia oncológica; cirurgia endoscópica; cirurgia em ambulatório; implantes cocleares; reumatologia, ortotraumatologia; o isolamento de alta infecciosidade (unidade de referência pediátrica no sul do país); imunoalergologia;
função respiratória desde o período de recémnascido; ventilação crónica domiciliária; rastreio
auditivo universal ao RN; doenças metabólicas;
medicina do viajante, etc..
Tem um corpo de cerca de 1500 funcionários
dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros,
250 são médicos distribuídos por 20 especialidades
médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferenciam em subespecialidades e competências. A pediatria médica constitui o maior contingente com
cerca de 75 especialistas dos quais 25% estão dedicados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com
equipas independentes.
Trata-se de um hospital de média dimensão com
uma lotação de 235 camas das quais 200 são exclusivamente pediátricas, e as restantes para a área da
mulher (medicina materno-fetal e ginecológica).
Os recursos assistenciais do hospital estão afectos a departamentos, serviços, unidades funcionais e núcleos técnicos dirigidos respectivamente
por directores, coordenadores responsáveis (corpo médico). Prestando o HDE o nível mais elevado de cuidados à comunidade, a vertente de assistência está implicitamente ligada às vertentes de
ensino pré e pós-graduado, e de investigação.
Trata-se dum modelo transversal de cuidados em
obediência a uma filosofia de abordagem multidisciplinar e multiprofissional coordenada, centrada
nas necessidades e expectativas do doente/família e
na garantia de continuidade dos cuidados prestados
a cada criança e adolescente.
No âmbito da humanização cabe salientar um
conjunto de actividades específicas muitas delas
desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais como: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à
Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário,
humanização dos espaços através de pinturas de
parede em todo o hospital (programa internacional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a
famílias de crianças deslocadas com doença crónica e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac
Donald – a primeira em Portugal), a integração e
socialização de crianças doentes particularmente
carenciadas (Parceria com a Fundação Gil), a valorização dos tempos lúdicos na vida da criança internada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no
Hospital”, Programas “Música no Hospital”,
Programa lúdico mensal “A hora do conto” do
Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância,
Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comunidade (sítio na Internet), o apoio humano e espiritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso),
a atenção às expectativas e necessidades especiais
das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e
à suas necessidades de comunicação (Gabinete de
Comunicação), campos de férias para crianças diabéticas e asmáticas, etc..
Quanto à valência da formação salienta-se: o
Ensino Universitário da Pediatria (5.° e 6.° anos)
em ligação à Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em
parceria com o Hospital São Francisco Xavier englobando o Centro Universitário com biblioteca
própria e o Centro de Simulação de Técnicas em
Pediatria-CSTP; o Centro de Formação pós-graduada multiprofissional (designadamente cursos
anuais para internos sob a égide da Direcção do
Internato Médico); a Biblioteca do HDE englobando Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico
(acervo de milhares imagens fotográficas de patologia assistida no HDE as quais são classificadas
e organizadas permitindo a sua utilização no ensino pré e pós-graduado); o Gabinete de Telemedicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endoscópica; Programa de intercâmbio de estudantes de
medicina estrangeiros, etc..
No que se refere à investigação salienta-se o
Núcleo de Investigação ligado à FCM/UNL; a publicação (acompanhada de evento científico anual)
do chamado Anuário do HDE contemplando todos
os estudos realizados no HDE com atribuição de
prémios segundo regulamento; área de investi-
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar
43
QUADRO 1 – Aspectos demográficos
HDE 2004/2006
N.° de hospitalizações
~11.500
N.° de episódios
(serviços de urgência médico-cirúrgica)
~95.000
N.° de sessões de hospital de dia
~4.000/10.000 actos
N.° de consultas externas
(c/ 50 áreas diferenciadas)
~12.500
N.° de intervenções de grande cirurgia
~4.750
(25% de ambulatório)
FIG. 1
Hospital com Acreditação Internacional / HQS.
gação opcional aberta a estudantes de medicina da
FCM/UNL e outras universidades, etc..
A área de governação clínica (clinical governance) segue uma orientação baseada em determinados vectores tais como: a melhor evidência científica disponível para o desenvolvimento de políticas de intervenção e recomendações de boas práticas sob forma de Normas de Orientação Clínica; a
realização de auditorias clínicas sistemáticas por
pares; e a avaliação e redução do risco profissional
e dos doentes.
O Arquivo Clínico é centralizado, dispondo de
uma zona específica de alta segurança para processos que a requeiram; com a informatização de todos os serviços do HDE está em desenvolvimento
o Processo Clínico Informatizado.
O HDE desenvolve um Programa de Melhoria
Contínua de Qualidade organizacional cuja avaliação externa lhe conferiu a acreditação internacional (Fig. 1) de qualidade global (Health Quality
Service/Instituto da Qualidade em Saúde).
A instituição privilegia formas actuantes de
convivência com a comunidade, designadamente
a unidade coordenadora funcional, os centros de
saúde, serviços de segurança social, autarquias locais, instituições académicas, escolas de formação
profissional, instituições particulares de solidariedade social, associações de doentes, entidades nacionais e internacionais de interesse público, mecenas e instituições beneméritas privadas. A
qualidade das parcerias estabelecidas com este último sector conferiu ao Hospital o prémio
“Hospital do Futuro – 2005”.
N.° de partos
N.° de visitas domiciliárias
(englobando terapêutica)
Demora média
Taxa de ocupação média
Postos de internamento pediátrico
2.200(3)
500
5, 6 dias
71,6%(2)
200(1)
Notas: (1) Dentro dos limites do nível óptimo de economia no funcionamento
de um hospital segundo o Observatório de Sistemas de Saúde da Europa; (2)
semelhança à taxa de ocupação média dos hospitais de agudos da OCDE – 74%;
(3) limites ideais de partos para uma instituição = 1.500 a 3.500/ano.
O Quadro 1 resume alguns aspectos demográficos (valores médios referentes a 3 anos: 2004 –
2006)
A clínica pediátrica hospitalar no futuro
Se, de acordo com a Organização das Nações
Unidas (ONU), os sistemas de saúde e as instituições que prestam cuidados à criança e adolescente
forem centrados no “melhor interesse” destes cidadãos, os países e os profissionais devem preparar-se para os desafios que se esperam no futuro em
diversas vertentes:
Demográfica
Haverá que encarar as consequências das alterações
demográficas tendo em conta a redução continuada da natalidade e fecundidade,a idade mais tardia
da mulher no primeiro parto e as novas formas de
organização familiar; aumentarão as tensões para a
adopção de políticas migratórias mais liberais com
risco de alargamento de bolsas de exclusão e de
degradação das respectivas condições de saúde.
Técnico-profissional
A prática clínica respeitará cada vez mais as recomendações emanadas de comissões de peritos e
de sociedades científicas; crescerá a exigência social
e institucional sobre a qualidade e diferenciação dos
44
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
profissionais. A certificação regular das competências profissionais e a presença assídua de advogados na relação médico-doente e instituição-doente
serão provavelmente realidades muito próximas.
Formativa
Será em breve realidade o ensino com recurso aos
simuladores médico-cirúrgicos e à endonavegação
virtual; a especialização será apenas uma parte do
processo de formação e a educação médica contínua ganhará decisiva importância nos processos
de manutenção e actualização das competências;
os especialistas generalistas, como por exemplo os
pediatras, incluirão cada vez mais competências
tecnológicas na sua formação e desempenho.
sidade e diferenciação dos profissionais que participam nos cuidados à criança; o financiamento
hospitalar estará em progressiva correspondência
com a produção de actos facturáveis; e aumentará
a pressão de aliciamento das entidades privadas
sobre os técnicos formados nos serviços públicos.
Inovação tecnológica
Num contexto de contínua explosão tecnológica
será dada especial atenção às áreas de grande potencial e rápido desenvolvimento como a investigação genómica, a neuropsicobiologia e a biologia
molecular; transplantações e terapêutica com
linhas celulares estaminais; surgirão novos veículos
terapêuticos a nível celular; crescerão exponencialmente os meios de diagnóstico e intervenção pela
imagem; estarão disponíveis novas técnicas anestésicas e equipamentos de ventilação inteligentes;
continuarão os problemas de resistência aos antimicrobianos e de infecção nosocomial; a prevenção das doenças pediátricas com repercussão no
adulto e a pediatria preditiva constituirão áreas de
forte investigação e desenvolvimento; a robótica
tenderá a revolucionar as metodologias de treino
técnico e autoformação; a globalização da informação científica, a comunicação em telemedicina e
teleconsulta irão trazer novos desafios ao nível da
segurança de dados informáticos dos doentes e da
deontologia médica; e o nível de aceitação dos riscos
iatrogénicos e o avanço nos suportes de vida levarão a novos dilemas éticos e de responsabilidade
médica e institucional.
Filosofia e estrutura dos hospitais
O hospital irá integrar-se em redes e ele próprio
funcionará com redes baseadas nas suas especialidades; a maior proporção de doentes crónicos
levará à necessidade de substituir encontros técnicos com especialistas durante episódios de doença
por programas de relacionamento consistentes e
duradouros; ampliação das áreas de hospital de
dia, ambulatório e cirurgia do ambulatório; a par
da redução das áreas de internamento os novos
hospitais não serão como os grandes edifícios dos
anos 60-70 e irão adoptar dimensões geríveis e
rendíveis com arquitecturas seguras, em especial
para doentes com limitações de mobilidade; as
áreas de medicina materno-fetal e obstétricas serão
programadas para uma carga anual ideal entre
1500 e 3000 partos; cada vez mais os equilíbrios entre volume do edifíco, a facilidade de acesso, a relação com a cidade em que se implanta o hospital
e o conhecimento das necessidades das crianças
condicionarão a concepção arquitectónica; a importância de um ambiente adequado à criança;
sendo a habitual atmosfera familiar (“homelike”) e
a privacidade factores terapêuticos importantes, os
arquitectos e engenheiros hospitalares tomá-los-ão
em conta nos novos projectos de construção e reabilitação dos hospitais pediátricos; crescerá o conceito de “hospital verde” tirando o máximo partido das fontes energéticas naturais; será concretizada uma significativa redução do uso de papel e uma menor produção de resíduos com importantes repercussões sobre as formas de registo
clínico, o acesso a dados do doente e a informação
médica em geral.
Sistema de saúde
Haverá maior desenvolvimento das redes nacionais e internacionais de referenciação de
doentes; desenvolver-se-á o transporte pediátrico
e a rede de trauma; generalizar-se-á o uso de sistemas e índices de monitorização clínica para comparação de centros diferenciados; crescerá a diver-
Prestação de cuidados e governação clínica
O internamento será quase residual e apenas para
os casos muito complexos; será impulsionada a
figura do médico ou enfermeiro gestor do doente
crónico; a informatização dos dados clínicos e a
prescrição por computador serão regra; a efectivação de programas específicos de transição dos
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar
adolescentes para unidades de adultos será inevitável; o controlo da qualidade passará da apreciação entre pares para a análise de resultados.
45
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Mateus-Marques J. Médicos e Hospitais. Tempos e Andamentos. Pensar e repensar a pediatria. Lisboa: Gradiva.
Exigência institucional e expectativas
da comunidade
O padrão de qualidade a adoptar será fortemente
influenciado pela interpretação da utilidade dos
cuidados prestados às famílias que acedem ao hospital; com o desenvolvimento dos sistemas de qualidade organizativa e de prevenção de riscos, a
meta de excelência clínica será a prioridade entre
os objectivos da prestação de cuidados numa perspectiva de forte regulação económica e financeira,
e de influência crescente dos operadores privados.
2001; 206-222
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Coelho M e Colaboradores. Urgências Pediátricas e Casuística
Nota final: Na fase de conclusão desta obra (2008) está
em curso um projecto de reestruturação da rede hospitalar de grande Lisboa que inclui a “transferência do
Hospital Dona Estefânia” (no que se refere essencialmente a recursos humanos e funcionalidade) para um novo grande hospital a construir até 2012 – O Hospital de
Todos os Santos. Espera-se, pois, que a individualidade
da Pediatria e o espírito e ambiente pediátricos criados no
HDE, salientados neste capítulo, se mantenham.
do Hospital de Dona Estefânia Lisboa: Edição BIAL. Prémio
João M Videira Amaral (Editor)
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TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
7
ASPECTOS METODOLÓGICOS
DA ABORDAGEM DE CASOS
CLÍNICOS
João M. Videira Amaral
«The proper exercise of the five senses is often far more
valuable in diagnosis than a handful of laboratory reports and radiographs»
L Norrlin,1960
Importância do problema
Numa perspectiva prática, como introdução à
abordagem dos casos clínicos, será pertinente veicular algumas ideias-chave relacionadas com a
Semiologia, classicamente definida como o estudo
dos métodos de colheita dos sintomas e sinais de
doença, de lesão de órgão ou de perturbação de
função.
Aquela integra duas partes: 1) a Semiotécnica
ou técnica da pesquisa dos sintomas e sinais (considerada a «arte» de abordar o doente ou pessoa);
e 2) a Clínica Propedêutica, (a ciência da introdução à observação clínica, ao raciocínio crítico e
à síntese) através da qual se integram os elementos obtidos pela Semiotécnica para se chegar ao
diagnóstico e deduzir o prognóstico.
O processo de integração dos dados colhidos
deve fazer-se numa sequência lógica, por fases, em
crescendo; 1) anamnese; 2) exame objectivo; 3) síntese dos dados colhidos pela anamnese e pelo exame objectivo, com formulação justificada de
hipóteses de diagnóstico, ponderando sempre devidamente os dados que as favorecem, assim como os dados que as contrariam; 4) solicitação de
exames complementares indispensáveis segundo
uma escala de prioridades e sempre em concordância com as hipóteses formuladas, para as con-
firmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) actuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais
a prestar; 7) prognóstico.
Embora, segundo o conceito expresso, todas as
fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão
ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que,
dado o peso da anamnese e do exame objectivo é
dispensada a realização de exames complementares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e
outras, pelo contrário, em que o diagnóstico definitivo somente poderá ser estabelecido post-mortem ou com exames inacessíveis ao clínico em determinado contexto.
O objectivo deste capítulo é analisar e discutir
sucintamente algumas tendências manifestadas
pelos estudantes de medicina e médicos em formação pós-graduada (internos) durante os estágios de prática clínica, as quais, contrariando os
princípios atrás expostos, poderão ser consideradas erros metodológicos na abordagem dos casos clínicos com eventuais repercussões negativas
na qualidade assistencial
Exemplos
I) Em relação à metodologia da abordagem dos casos clínicos na área de internamento (ou ambulatório) tem-se comprovado que nem sempre é
aplicado o esquema sequencial «em crescendo»
atrás referido. Com efeito, no âmbito da apresentação dos casos, verifica-se muitas vezes a tendência para não explicitar, de modo fundamentado, as
hipóteses de diagnóstico e ou lista de problemas
nos registos clínicos, sendo frequente, ao ser descrito o caso (oralmente ou por escrito) a “passagem” da anamnese e do exame objectivo para a
solicitação dum conjunto de exames complementares, por vezes com uma lista excessiva, sem
prioridades, e desajustada ao caso real.
Quantas vezes, somente após a verificação de
dados muito notórios colhidos pelo exame objectivo (por exemplo, icterícia, dispneia ou palidez
acentuadas) se vai aprofundar a anamnese?
Quantas vezes se solicita uma ecografia abdominal ou outro exame complementar sem prévia e
minuciosa palpação do abdómen e sem justificar o
pedido? Quantas vezes se procede a pedidos de
exames sem definir uma estratégia de prioridades,
envolvendo riscos vários e “agressividade” (por
CAPÍTULO 7 Aspectos metodológicos da abordagem de casos clínicos
exemplo exames radiológicos excessivos, ou
ausência de programação visando reduzir ao mínimo o número de colheitas de sangue e outros produtos biológicos) com possíveis repercussões no
tempo médio de internamento e no número de
consultas?
lI) Outro exemplo diz respeito à criança em estado crítico internada em unidade de cuidados intensivos, submetida a terapia complexa e assistida
por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância,
como se depreende, a criança terá que ser manuseada com extrema cautela, pois a mesma está «submersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados
fornecidos pelos diversos tipos de monitorização
biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes casos, é minimizar certos passos fundamentais do
exame objectivo, sem tirar partido de certas regras
da semiologia clássica aplicável aos casos especiais
dos doentes em cuidados intensivos.
III) É também frequente assistir-se ao início do
relato formal do caso começando pelo fim (por
exemplo, descrição dos resultados analíticos, imagiológicos, ou dos dados fornecidos pelos monitores), antes de se dar a conhecer os eventos clínicos das últimas horas assim como os dados
fornecidos pela observação convencional exequível com instrumentos clássicos que, mesmo neste
contexto, continuam a ter o seu papel. A este
propósito valerá a pena citar uma autoridade em
intensivismo, Swyer, afirmando que a monitorização humana em unidades de cuidados especiais e
intensivos é tão importante como as monitorizações biofísica e bioquímica.
Análise crítica
Tendo como base o conceito actual da Pediatria,
não como especialidade, mas como Medicina integral de uma época da vida que se inicia com a fecundação e se conclui com o fim da adolescência,
Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda
da unidade da pediatria com a multiplicação das
especialidades pediátricas (áreas específicas cujo
desempenho implica a aplicação de determinadas
técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, segundo o autor, a chamada síndroma do super especialista, traduzida pela tendência de transferir a
prática de tecnicismo exagerado para o período de
formação básica do clínico geral ou pediatra geral,
47
o que constitui uma perversão do respectivo processo educativo.
A este propósito, Charney afirmou que, se não
proporcionarmos aos internos em formação as
oportunidades para a concretização de determinados objectivos (os quais podem ser sintetizados no
saber, no saber estar, no saber fazer com justificação, no saber comunicar e no saber investigar),
e não promovermos o desenvolvimento de qualidades essenciais de perspicácia, de rigor e de sentido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, podendo os respectivos formadores ser culpados de
negligência educativa.
A elaboração da história clínica em moldes clássicos, quer na versão de relatório escrito, quer na
de exposição oral, constitui uma modalidade ímpar de treino clínico, sendo fundamental para o desempenho profissional futuro, pois permite a abordagem global de cada caso – problema; por outro
lado, dá resposta a grande número de objectivos
educativos no âmbito da formação do interno.
As tendências manifestadas por vezes pelos internos através dos exemplos relatados, correspondendo a aparentes desvios da metodologia clássica de abordagem de casos clínicos são decorrentes
duma experiência pessoal e institucional, não devendo ser consideradas, por isso, representativas,
do panorama nacional.
Poderão ser apontadas várias explicações para
as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de
informação proporcionada em tempo real, leva à
tentação de o clínico subvalorizar a semiologia
clássica, condicionando menor investimento na
metodologia do «crescendo» atrás referida. Falase hoje, inclusivamente, numa cultura da tecnologia pela tecnologia, para utilizar a terminologia de
KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta
da cultura.
Mesmo que se invoque o enorme potencial dos
exames complementares como meio de prevenir a
chamada má-prática clínica por omissão de determinadas atitudes no acto médico, neste campo os
formadores têm uma grande responsabilidade no
sentido de educarem os seus estagiários a raciocinar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prioridades quanto aos exames complementares a solicitar, sempre em obediência à anamnese, ao exame objectivo e às hipóteses de diagnóstico formu-
48
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Competência clínica e pressupostos
Competência clínica
Colheita da história clínica
Exame físico/observação
Diagnóstico
Actuação/tratamento
Prognóstico
Pressupostos/Condições indispensáveis
Formação básica/ Aquisição de conhecimentos
Treino/ Aquisição de aptidões
Lógica indutiva / Raciocínio hipotético-dedutivo
Aquisição de atitudes
Experiência
ladas, numa atitude permanente de humanização.
Aliás, esta noção de necessidade de procedimento
metódico e correcto, com uma boa relação custoeficácia, está implícita numa frase de Oski, traduzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o
espírito crítico que caracterizavam este mestre:
«Refore ordering a test, decide what you will do if it is
positive or negative. If both answers are the same, don't
do the test».
Outras explicações estarão relacionadas com a
deficiente preparação durante o período de ensino
pré-graduado e com a abolição da clássica prova
clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na
versão de desempenho «ao vivo» com exposição
oral perante o júri) da maioria dos concursos da
carreira hospitalar. Tais provas constituiam, de facto, um forte estímulo, quer para os formadores,
quer para os estagiários, e permitiam, por outro lado, uma selecção mais rigorosa de competências e
de vocações.
Estratégia
Entre várias estratégias de abordagem e registo de
dados de casos clínicos, cabe salientar uma modalidade baseada na orientação por problemas, conhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado.
S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocorrências, eventos);
O = objectivo (registo de dados objectivos comprovados através do exame físico ou de exames
complementares realizados com justificação);
A = avaliação (registo dos dados disponíveis
com interpretação – por ex. esplenomegália
porquê?; anemia porquê?, sopro cardíaco porquê?
diarreia porquê? rectorragias porquê?)
P = plano (registo do plano de actuação incluindo neste conceito não só a terapêutica e esquema nutricional, como os cuidados a prestar em
geral, e eventuais novos exames complementares),
sempre em função dos dados disponíveis, da lista
de problemas e da actualização do diagnóstico.
Esta estratégia, de acordo com a nossa experiência, tem diversas vantagens: obedece ao princípio do “crescendo” atrás referido, contribui para a
prática do raciocínio clínico, cria hábitos de registo mais rigorosos facilitando o processo de comunicação e as tarefas do interno, quer nas apresentações em reuniões de discussão de casos, quer na
visita clínica.
A prática destes gestos no dia-a-dia sob a orientação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de
competência clínica, em obediência aos princípios
fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrática, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1.
Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembrome; faço e compreendo».
Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou
ambulatório, junto dos internos, se investir na abordagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a contribuir para a formação de médicos competentes,
o que se traduzirá num serviço a prestar à comunidade de melhor qualidade e mais humanizado.
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A Imagiologia constitui hoje uma matéria vastíssima assumindo um papel progressivamente crescente na avaliação diagnóstica, compreensão,
tratamento e seguimento das doenças da idade
pediátrica.
O explosivo desenvolvimento tecnológico dos
últimos 30 anos, com reflexo na variedade das técnicas de imagem hoje postas à disposição do imagiologista, tem determinado que este especialista
esteja cada vez mais envolvido na selecção e adequada sequência dos exames a realizar.
As vantagens e limites desses estudos, e também o seu custo, devem ser criteriosamente ponderados face às situações em avaliação, tendo sempre como pano de fundo o grupo etário em apreço
que impõe redobrada atenção no reconhecido
efeito nocivo da radiação X, no eventual risco da
sedação e da anestesia, na possível alergia aos produtos de contraste iodados, sem esquecer a possibilidade de trauma físico e psicológico.
Para rendibilizar vantagens e diminuir riscos, o
exame imagiológico deverá estar orientado para o
problema clínico específico da criança em estudo;
e, para essa selecção, a anamenese, o exame físico,
os dados laboratoriais e as considerações diagnósticas assumem um interesse frequentemente decisivo, pelo que a discussão partilhada entre o clínico e o imagiologista constitui factor indispensável
para assegurar melhor qualidade nos cuidados de
saúde em Clínica Pediátrica. De referir que a utilização de equipamentos topo de gama é também
determinante para o rigor do citado exame.
50
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Embora os estudos radiológicos clássicos ainda hoje sejam os de maior utilização em Pediatria
(mais de 70% dos exames), decidiu-se neste capítulo abordar aspectos essenciais das técnicas de
imagem mais modernas em utilização corrente na
investigação imagiológica: (a ecografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética) relacionados com as suas aplicações preferenciais em diferentes órgãos e sistemas e com as respectivas virtualidades e limitações.
Ecografia
A ecografia merece um lugar de destaque num
serviço de imagiologia pediátrica. Constitui técnica de primeira linha em muitas situações e frequentemente a única a empregar face ao seu valor
informativo.
Tornou-se um método de diagnóstico por imagem particularmente atractivo por não utilizar radiação ionizante, não ter efeitos biológicos comprovados, ter um preço acessível, captar imagens
em tempo real, multiplanares, não necessitar de
grande colaboração por parte do examinado e proporcionar uma excelente resolução de imagem na
criança, devido à pequena quantidade de gordura
corporal e à sua parede de espessura reduzida. O
exame deve ser rápido, em ambiente calmo e
agradável, proporcionando a melhor colaboração.
Os avanços tecnológicos dos novos equipamentos de ecografia permitem, cada vez mais,
maior número de aplicações incluindo apoio imagiológico em tempo real para a realização de
biópsias, aspiração e drenagem de colecções. No
entanto, estruturas como o ar, o osso, o metal, perturbam a propagação da onda acústica e impossibilitam a avaliação de órgãos subjacentes limitando a avaliação ecográfica em determinadas áreas
como no crânio, em certos territórios do pescoço e
no tórax.
Indicam-se as principais patologias para cujo
diagnóstico a ecografia contribui:
• Na cabeça, o exame transfontanelar no
recém-nascido (RN) pré-termo tem como
principais indicações a detecção de hemorragia intracerebral e seu estudo evolutivo; a
ecografia transfontanelar permite também o
estudo inicial de anomalias congénitas e
hidrocefalia.
• A ecografia permite uma avaliação anatómica da medula no lactente até aos três meses
de idade, antes de os arcos vertebrais completarem a ossificação. A principal indicação
para a realização deste exame é a suspeita de
disrafismo oculto.
• No pescoço, a ecografia é utilizada para estudo morfológico da tiroideia, das glândulas
salivares, timo, para diagnóstico de certas
massas cervicais, tais como quisto do canal
do tiroglosso, anomalias dos arcos branquiais, torcicolo congénito, adenopatias e linfangioma quístico.
• No tórax, o estudo cardíaco constitui a principal indicação ecográfica, sendo, neste
domínio, da competência da cardiologia. A
ecografia constitui também um importante
método imagiológico coadjuvante da radiografia do tórax na avaliação de lesões do
parênquima pulmonar (consolidações, atelectasias, abcessos, áreas de necrose e liquefacção), da pleura (derrames, tumores), do
mediastino (massas, posicionamento de
cateteres), parede torácica e diafragma (hérnias, eventração, parésia).
• No abdómen a ecografia é primeiro exame
imagiológico a realizar no estudo morfológico do fígado, sistema hepatobiliar, pâncreas
e baço. Detecta anomalias congénitas e
FIG. 1
Estenose hipertrófica do piloro. Ecografia evidenciando canal
pilórico alongado e aumento de espessura da parede
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica
51
FIG. 2
Invaginação intestinal ileo-cólica. Corte transversal ecográfico.
adquiridas como sejam as inflamátorias/infecciosas, infiltrativas e tumorais.
• No estudo do aparelho digestivo tem particular interesse no diagnóstico de estenose
hipertrófica do piloro (Fig. 1), (dispensando
outros métodos de diagnóstico), na invaginação intestinal (Fig. 2) permitindo seguir a
desinvaginação, quer por clister hidrostático,
quer por método pneumático; esta particularidade poupa a criança a radiação desnecessária induzida pelos métodos convencionais. Actualmente é um exame de referência na suspeita de apendicite, na má rotação
intestinal, na enterocolite necrosante, na duplicação entérica, espessamentos e infiltrações da parede intestinal, anomalias anorectais, quistos abdominais, tumores abdominais incluindo adenomegálias, e nos traumatismos abdominais.
• No aparelho urinário: demonstração de
anomalias do tracto superior (agenesia renal,
anomalias de posição, bifidez, duplicidade),
nas anomalias do tracto inferior, do uréter
distal (megauréter primário, uréter ectópico,
ureterocele), da bexiga (anomalias do úraco,
duplicação da bexiga, divertículos), da cloaca, da uretra (válvulas da uretra posterior).
Em estudos pré-natais tem indicação para
avaliar anomalias detectadas (dilatação piélica,
hidronefrose (Fig. 3), megauréter, rim multiquístico). Na infecção urinária comprovada: para detecção de anomalias morfológicas do aparelho urinário, litíase, lesões directas do parênquima renal,
nefronia lobar, abcessos. A ecografia renal é ainda
informativa nas seguintes situações: doenças quís-
FIG. 3
Hidronefrose. Corte sagital ecográfico pré-natal.
ticas dos rins, nos tumores renais, com especial
destaque se existir suspeita do tumor de Wilms,
traumatismos, e hipertensão arterial.
• As glândulas supra-renais são bem visíveis
no RN, tornando-se de difícil caracterização
por ecografia a partir de um mês de idade. A
ecografia pode demonstrar sinais de hemorragia, abcessos, quistos e tumores sólidos como o neuroblastoma.
• No aparelho genital feminino, a ecografia
permite caracterizar a morfologia do útero e
dos ovários, detectar anomalias congénitas,
alterações do desenvolvimento (em particular relacionadas com a puberdade), patologia
tumoral, infecciosa, isquémica (torção do
ovário).
• Nos orgãos genitais masculinos, a ecografia
é o método de escolha para examinar o
escroto e os testículos, alterações congénitas,
escroto agudo, tumores testiculares e extra
testiculares.
• No sistema músculo-esquelético a ecografia é
indicada para detectar displasia da anca, sendo
considerada o exame de primeira linha antes
da ossificação dos núcleos epifisários femorais.
No serviço de urgência é frequentemente requerida para o diagnóstico de sinovite transitória da anca e lesões traumáticas dos tecidos
moles. A ecografia também contribui para o
diagnóstico de patologia inflamatória/infecciosa e tumoral dos tecidos moles.
52
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Ecografia Doppler
A ecografia Doppler (eco-doppler) actualmente
não deve ser dissociada da ecografia, pois o estudo doppler pode acrescentar em todas as áreas estudadas e apontadas anteriormente mais dados
semiológicos, designadamente possibilitando de
forma rápida informar se existe vascularização e
caracterizá-la. Sendo a patologia vascular periférica menos frequente que no adulto, o eco-doppler
é mais requisitado na suspeita de complicações de
cateterismos.
No RN o eco-doppler é solicitado no estudo
transfontanelar para avaliar a vascularização cerebral arterial e venosa, verificar se determinada estrutura corresponde a vaso, e para apreciar o efeito
da hidrocefalia na circulação cerebral. É requerido
principalmente: na pesquisa de trombo após
cateterismo dos vasos umbilicais, devido à elevada incidência de trombo aórtico nestes doentes; e
na suspeita de trombose da veia renal em crianças
com problemas perinatais graves apresentando
massa abdominal, hematúria e hipertensão arterial
transitória.
Nos exames programados, tem um papel indiscutível na avaliação dos transplantes renal e
hepático. Nas crianças com hepatopatia crónica
possibilita a detecção de hipertensão portal,
demonstra alterações do calibre e do fluxo de veias
esplâncnicas, a presença de circulação venosa colateral (shunts espontâneos porta-sistémicos,
salientando-se as varizes esofágicas).
Este exame constitui ainda um bom indicador
da permeabilidade dos vasos renais arteriais e
venosos e da vascularização do parênquima renal.
Entre outras situações, permite identificar sinais
de necrose tubular aguda, pielonefrite aguda e
obstrução aguda do uréter.
Na patologia tumoral, o exame por ecodoppler pode realçar a hipervascularização de determinados tumores como o hemangioendotelioma hepático. De referir, no entanto, que não permite o diagnóstico diferencial entre tumor benigno
ou maligno. Por outro lado, permite avaliar o
estádio evolutivo de alguns tumores ao demonstrar a invasão vascular; é o caso do tumor de Wilms
que pode originar trombose da veia renal e da veia
cava inferior.
No serviço de urgência o eco-doppler tem apli-
cações importantes na avaliação do traumatismo
abdominal fechado, no abdómen agudo, na
pielonefrite aguda e no escroto agudo (diagnóstico diferencial entre torção testicular e orquiepididimite).
Tomografia computadorizada
A tomografia computadorizada (TC) utiliza radiação X; a mesma veio modificar a investigação imagiológica em múltiplas situações patológicas em
Pediatria, independentemente da menor aplicação
e desenvolvimento em relação ao verificado no estudo do adulto, tendo em conta aspectos específicos do grupo etário em estudo: menor quantidade
de gordura, estruturas anatómicas mais finas e dificuldades de mobilização, necessidade frequente
de administração endovenosa de contraste e de
sedação/anestesia.
Contudo, a reconhecida resolução espacial, o
pormenor anatómico e capacidade de avaliação
tecidual proporcionadas pelos cortes seccionais da
TC, a utilização de cortes de espessuras de 1-2 mm
(alta resolução), a possibilidade de se proceder a
reconstruções bi e tridimensionais, tornaram-na
uma técnica de imagem muito importante e, por
vezes, indispensável para aplicação em patologia
neurológica, na doença neoplásica, na criança politraumatizada, e para visualização de estruturas
aéreas, ósseas e vasculares, apenas para citar alguns exemplos. Em casos seleccionados a TC pode
também orientar a realização de biópsias ou drenagens.
Os últimos avanços em TC, nomeadamente no
final da década de 90 com aquisição volumétrica
na utilização helicoidal (espiral) e, nos anos mais
recentes, através do emprego da tecnologia de
multidetectores, embora à custa de maior dose de
radiação, vieram encurtar de forma significativa o
tempo de aquisição das imagens, diminuindo o
número de sedações/anestesias.
Por outro lado, aumentaram a capacidade de
detecção de pequenas lesões, melhoraram a apreciação nos estudos após administração de contraste endovenoso e permitiram reconstruções bi e
tridimensionais de grande qualidade, aspectos
com particular interesse em patologia das vias
aéreas, óssea, vascular, e em endoscopia virtual.
• No estudo do pescoço tem sobretudo inter-
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica
A
53
B
FIG. 4
Teratoma quístico maduro do mediastino. Radiografia do Tórax (A) e TC após contraste (B).
esse na distinção de lesão supurada ou não
supurada, na avaliação morfológica de massas, quer para definir ponto de partida, quer
para avaliar a extensão e repercussão das
mesmas sobre estruturas adjacentes.
• No tórax a TC é o método de imagem preferencial para lesões ocupantes do espaço no
mediastino, ou de anomalias ou alargamentos mediastínicos suspeitos na radiografia do
tórax (Fig. 4).
Em relação ao parênquima pulmonar tem particular indicação na doença metastática, na definição anatómica de lesões complexas, eventualmente congénitas com ou sem vascularização
normal, na caracterização da doença pulmonar difusa e das vias aéreas centrais e periféricas, assim
como na investigação de lesões focais, em particular para esclarecer a relação de um nódulo ou massa com a pleura e diafragma.
Quer em relação ao mediastino, quer ao parênquima, a TC está indicada na avaliação do doente
politraumatizado estável com lesão torácica.
Cabe referir ainda que se trata dum método
auxiliar importante na distinção entre processo
pleural e parenquimatoso em localização periférica, e para investigar lesões da parede torácica.
• Na patologia do fígado e vias biliares são particularmente úteis os estudos com adminis-
tração endovenosa de contraste e com aquisição rápida dos cortes, na distinção entre parênquima hepático normal e anormal; assim, permite detectar e caracterizar tumores primitivos, metástases e abcessos. Tem indicação na
doença vascular e em patologia traumática.
Revela-se ainda auxiliar importante na avaliação pré e pós-transplante hepático e na investigação de dilatações das vias biliares.
• No estudo do baço e do pâncreas, as lesões de
etiologia infecciosa, tumoral e traumática
constituem as principais indicações para o
emprego da TC, permitindo detectar pequenos nódulos e anomalias vasculares nos
estudos contrastados com aquisição rápida
dos cortes.
• No tubo digestivo a TC está reservada, sobretudo, para apreciação de processos com
envolvimento extraluminal da parede, no
compromisso traumático, esclarecimento de
alterações suspeitas com outras técnicas de
imagem, no seguimento de lesões tumorais e
na avaliação de extensão e complicações da
doença inflamatória intestinal.
• A TC contribui para a caracterização do envolvimento peritoneal na ascite, nos abcessos
ou na doença neoplásica predominantemente secundária.
54
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 6
Deformação de Sprengel à direita. Reconstrução tridimensional.
Vista posterior.
FIG. 5
Tumor de Wilms do rim direito. TC após contraste endovenoso.
• No rim as principais indicações para a realização de estudos por TC são a determinação
com maior rigor do ponto de partida e caracterização morfológica das massas detectadas
em estudo ecográfico prévio e, também, a
avaliação de extensão do traumatismo renal.
Assume particular relevo para determinar os estádios evolutivos do tumor de Wilms (Fig. 5) e, designadamente os limites da lesão, com ou sem invasão capsular, a relação da massa com órgãos adjacentes e estruturas vasculares, a apreciação do rim
contralateral e eventual envolvimento ganglionar.
Tem ainda indicação na doença do parênquima
renal de natureza inflamatória/infecciosa, na
uropatia obstrutiva e em anomalias congénitas e
vasculares.
• Na investigação imagiológica retroperitoneal
tem papel importante na avaliação evolutiva do
neuroblastoma, com implicações importantes
no planeamento terapêutico. A TC tem igualmente indicação para avaliar o compromisso
adenopático retroperitoneal, quer em relação a
patologia tumoral loco-regional, linfoma ou
neoplasias com outra localização primária,
quer em relação a anomalias vasculares ou alteração dos tecidos moles retroperitoneais.
• Na cavidade pélvica a TC tem particular interesse na avaliação dos estádios evolutivos
de doença maligna com ponto de partida
ginecológico e na caracterização de massas
complexas.
• No sistema músculo-esquelético saliente-se a
aplicação da TC em problemas ortopédicos
seleccionados, nas anomalias congénitas ou
de desenvolvimento ósseo (Fig. 6) de que são
exemplo a displasia das ancas sobretudo
aquelas com reduções instáveis, na ante e
retroversão do colo do fémur e nas sinostoses
társicas. É igualmente importante em patologia traumática, no estudo de fracturas em
áreas anatómicas complexas e na avaliação
de complicações pós-traumáticas, nomeadamente de natureza infecciosa. Desempenha
finalmente papel de relevo na apreciação da
doença neoplásica óssea e das partes moles.
• No diagnóstico neurorradiológico com o advento da ressonância magnética tem-se vindo
a verificar um crescente declínio do papel da
tomografia computadorizada, fundamentalmente na avaliação do sistema nervoso central. No entanto, a TAC continua a ser a técnica de eleição de abordagem neurorradiológica
em situações de urgência/emergência.
Sem se pretender ser exaustivo ou estabelecer
algoritmos de decisão clínico-imagiológica, é relativamente consensual que a TC continua a ser o
exame de primeira intenção na investigação imagiológica nas seguintes circunstâncias:
• Traumatismo crânio-encefálico acidental
• Traumatismo crânio-encefálico no contexto
de criança sujeita a maus tratos para detecção,
para além de lesões intracranianas, de fracturas múltiplas da calote e/ou base do crânio.
• Traumatismo vértebro-medular determinando o segmento do ráquis a ser estudado. De
salientar a enorme limitação da TC no diagnóstico e avaliação da extensão da contusão
medular ainda que com componente hemor-
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica
rágico, bem como dos hematomas extra-axiais (epidural e subdural).
• Traumatismo facial e/ou da órbita bem como
do osso temporal.
• Na suspeita de corpo estranho intra-orbitário.
• Na criança com sinais e sintomas de disfunção aguda encefálica, em particular se
coexistir alteração do estado de consciência.
• Na suspeita clínica de hemorragia subaracnoideia ou de hematoma cerebral.
• Na avaliação de hidrocefalia com antecedentes de derivação.
• Na avaliação das cavidades naso-sinusais,
nomeadamente na sinusopatia inflamatória
aguda recorrente ou crónica persistente, para
detecção de alterações estruturais esqueléticas ou outras que expliquem o quadro patológico, assim como para detecção de consequentes lesões secundárias. Igualmente,
nas complicações da sinusite aguda e na
avaliação das consequências da extensão do
processo infeccioso à face, à órbita e ao endocrânio.
• Na suspeita clínica de atrésia uni ou bilateral
dos coanos.
• No estudo do osso temporal na suspeita clínica de anomalia de desenvolvimento, de
colesteatoma congénito ou adquirido, ou de
lesão tumoral (com excepção da lesão retrococlear), nos processos inflamatórios re c o r rentes e avaliação pós-cirurgia, e ainda nas
complicações por extensão endocraniana ou
loco-regional incluindo região cervical em casos de otite média / otomastoidite aguda.
• Na suspeita clínica de retinoblastoma em que
a presença de calcificação em lesão intra-ocular numa criança com menos de 3 anos de
idade confirma o diagnóstico.
• Na avaliação crânio-facial, fundamentalmente órbita e base do crânio, na displasia
óssea, e na osteopetrose.
• Nas anomalias congénitas crânio-faciais, da
charneira crânio-vertebral e do ráquis.
Em clínica pediátrica e perante um quadro
fortemente sugestivo de lesão encefálica vascular,
tumoral ou infecciosa há quem defenda, como exame prioritário a efectuar, a ressonância magnética
pelo seu maior rigor diagnóstico e topográfico.
55
Num contexto clínico pouco consistente de organicidade, aceita-se que a TC seja o primeiro estudo neurorradiológico a realizar.
Actualmente a TC é, cada vez mais, encarada
como exame complementar da ressonância magnética no estudo da lesão tumoral ou infecciosa do
crânio e coluna vertebral indiciada por outras técnicas diagnósticas, tais como a radiologia convencional ou a cintigrafia. A excepção é o osteoma
osteóide.
A TC não é, seguramente, o exame a efectuar
na suspeita de lesão medular ou de anomalia malformativa da medula e/ou da cauda, não sendo
também o estudo elegível do eixo hipotálamohipofisário, da doença neurodegenerativa ou
metabólica, nem da suspeita de trombose venosa
a não ser que se realize angio-TC.
Ainda a salientar a supremacia da TC em relação à RM no diagnóstico da calcificação encefálica.
Em clínica pediátrica haverá que relembrar a
pertinência da dose cumulativa de radiação ionizante decorrente de estudos comparativos e/ou
evolutivos, e a importância de se estabelecerem
protocolos utilizando-se alternativamente as técnicas imagiológicas disponíveis.
No recém-nascido a TC é um exame que, se
possível, se deve evitar.
Ressonância magnética
A introdução clínica das técnicas de ressonância
magnética (RM) representou novo e importante
avanço qualitativo no diagnóstico pela imagem,
obtida cada vez com maior acuidade. Hoje em dia,
na clínica pediátrica a RM é indiscutivelmente a
técnica imagiológica de excelência com maior potencialidade diagnóstica na avaliação crânio-encefálica e vértebro-medular em particular. Nos outros compartimentos anatómicos a sua aplicabilidade não está tão difundida.
O funcionamento de um equipamento de RM
e a formação da imagem são processos altamente
complexos. Pode explicar se sumariamente que a
informação (sinal) necessária para a construção da
imagem se obtém pela interacção de campos magnéticos com o campo magnético intrínseco dos átomos de hidrogénio que se encontram largamente
distribuídos no corpo humano.
56
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Não cabendo nos objectivos deste livro uma
descrição dos fundamentos tecnológicos da RM, os
quais estão acessíveis na bibliografia inclusa, para
compreensão do leitor descreve-se o significado
dalguns termos:
T1 – Tempo de relaxação longitudinal
T2 – Tempo de relaxação transversal
DP – Nº de protões de hidrogénio num tecido
ADC – Apparent Diffusion Coeficient ou Coeficiente de difusão aparente.
As imagens podem ser ponderadas em T1, densidade protónica (DP) e T2. As ponderações DP e
T2 têm maior acuidade na detecção da alteração
tecidual, e o T1 maior rigor anátomo-morfológico.
A RM tem como principal vantagem neste
grupo etário a não utilização de radiação ionizante,
embora sejam conhecidos efeitos biológicos condicionados pelo potente campo magnético estático e
pela radiofrequência; até à data não se demonstrou
que tivessem significativa relevância clínica. A
referida técnica apresenta, como atributos de supremacia em relação às outras tecnologias: a sua óptima resolução de contraste e resolução espacial que
possibilita uma excelente diferenciação dos tecidos,
nomeadamente na identificação da anormalidade
tecidual; o seu rigor na localização anatómica e na
relação topográfica lesional, consequência da
aquisição de imagens em diferentes planos ortogonais; e a ausência de regiões anatómicas “cegas”.
De destacar as suas enormes potencialidades
traduzidas, nomeadamente, pela possibilidade de
estudos dinâmicos, de aquisição volumétrica com
reconstrução tridimensional, de angio-RM arterial
e venosa, de avaliação quantitativa do fluxo do
líquor, de espectroscopia, de estudos de perfusão
e de urografia.
A sua informação diagnóstica é somente inferior à TC na avaliação das seguintes situações:
anomalias do crânio, da face incluindo órbita, e do
ráquis; na lesão predominatemente osteocondensante do osso ou respeitante essencialmente à cortical óssea; na lesão esquelética com fractura; na
avaliação do canal auditivo externo e ouvido médio; na avaliação pré-cirúrgica para cirurgia endoscópica naso-sinusal; no diagnóstico diferencial
entre calcificação tecidual e depósitos de outras
substâncias paramagnéticas tais como hemossiderina ou ferritina; e no diagnóstico, no período agudo, da hemorragia subaracnoideia.
Como desvantagens há a salientar, entre outras: o estudo é prolongado, o que obriga a sedação
profunda ou anestesia na criança não colaborante,
ou com claustrofobia (explicável pelo tipo de aparelhagem); não poder ser realizada em doentes
portadores de estimuladores eléctricos ou de bombas infusoras, com próteses ou implantes metálicos, com “clips” vasculares ou outro material com
conteúdo ferromagnético; ou ainda em doentes com
certos tipos de adesivos para administração cutânea
de terapêutica, podendo induzir queimaduras.
Uma vez que as consequências de não se respeitarem as regras de segurança são sempre graves, podendo inclusivamente conduzir à morte,
deve ter-se sempre presente a noção de possíveis
contra-indicações optando, em caso de dúvida,
por outra técnica de imagem.
A difusão associada ao mapa de ADC permite
diagnosticar as situações em que ocorre restrição
da mobilidade da molécula de água como seja no
edema citotóxico da lesão vascular isquémica aguda, no abcesso cerebral, e nalgumas doenças
metabólicas que cursam com edema da mielina.
Há indicação para administração endovenosa de
produto de contraste paramagnético na lesão tumoral, infecciosa e para-infecciosa, nalgumas
doenças neurodegenerativas como na doença de
Alexander, na adrenoleucodistrofia e na esclerose
múltipla; e igualmente sempre que se coloquem
dúvidas de diagnóstico diferencial.
No recém-nascido com quadro de encefalopatia aguda é um exame de segunda intenção, geralmente quando os achados ecográficos são discrepantes com a clínica ou suscitam dúvidas diagnósticas. Ainda neste grupo etário discute-se actualmente a aplicabilidade da RM (utilizando as
técnicas de difusão incluindo o mapa de ADC e a
sua quantificação, a espectroscopia e as habituais
ponderações T1 eT2) no diagnóstico na fase hiperaguda da encefalopatia hipóxico-isquémica, da
lesão vascular isquémica e da leucomalácia periventricular, em particular na ausência da lesão
cavitada.
De salientar que na suspeita de lesão intraraquidiana a RM é o único exame não invasivo
com maior sensibilidade diagnóstica; de destacar
ainda a elevada especificidade da RM no diagnóstico do hematoma subagudo e na trombose venosa
aguda e subaguda.
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica
A
57
B
FIG. 7
Anomalia congénita da veia de Galeno. (A)Angio-RM, axial. “Fístulas” artério-venosas na parede anterior da veia prosencefálica
marcadamente dilatada, tendo como principais pedículos arteriais nutritivos as artérias pericalosas e corodeias. (B)Angio-RM
venosa, para-sagital. Proeminente dilatação da tórcula, dos seios laterais e da veia prosencefálica (veia embrionária). Marcada
hipoplasia do seio longitudinal superior.
A RM está indicada como estudo complementar da TC, ou como primeira abordagem imagiológica, na criança com manifestações clínicas
sugestivas de:
• Doença vascular isquémica ou hemorrágica
de etiologia arterial ou venosa, chamando-se
a atenção para a importância da angio-RM
(Fig. 7) como primeira abordagem não invasiva dos vasos cervicais e endocranianos.
• Tumor intracraniano.
• Encefalite.
• Infecção bacteriana ou fúngica (granuloma;
cerebrite ou abcesso; ventriculite; empiema
sub ou epidural).
• Encefalomielite aguda disseminada.
• Anomalia malformativa encefálica.
• Facomatoses.
• Hipomielinização, atraso de mielinização.
• Esclerose múltipla (Fig. 8).
• Doença metabólica ou neurodegenerativa.
• Disfunção do eixo hipótalamo-hipofisário.
• Complicação de meningite.
• Hidrocefalia.
• Lesão expansiva intra-orbitária e estudo das
vias ópticas.
• Complicação endocraniana da otite média /
otomastoidite e da sinusite.
• Lesão medular traumática, infecciosa ou tumoral.
• Disrafismo incluindo estudo da medula, cauda equina e charneira crânio-vertebral.
• Tumor vertebral ou paravertebral.
• Espondilodiscite (Fig. 9).
De destacar ainda a importância da RM nas
seguintes situações:
• Estudo evolutivo da lesão tumoral para
avaliação de eficácia terapêutica, na detecção
precoce de recidiva e na deteção de metástases ao longo do neuro-eixo, como por
exemplo no meduloblastoma.
• Avaliação pós-cirúrgica da anomalia malformativa.
• Avaliação das lesões sequelares de traumatismo crânio-encefálico ou vértebro-medular,
de hipóxia-isquémia neonatal, de prematuridade, de lesão vascular ou infecciosa.
• Criança com infecção por VIH (vírus da
imunodeficiência humana) com sinais focais
ou deterioração cognitiva.
• Diagnóstico etiológico da epilepsia.
58
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A
B
FIG. 8
Imagens de RM na Esclerose Múltipla. A) DP axial. Múltiplas lesões redondas e ovóides com hipersinal localizadas na substância
branca profunda e subcortical. B) T2 para-sagital. Múltiplas lesões redondas ou ovóides localizadas na substância branca profunda
e subcortical com expressão infra e supratentorial.
FIG. 9
Imagem de RM na Espondilodiscite . FSE T2 sagital. Marcada
redução da altura do espaço inter- somático D12/L1 traduzindo destruição discal associada a erosão dos planaltos vertebrais. Lesão hiper-intensa envolvendo focalmente ambos os
corpos vertebrais e o disco intervertebral em relação com
colecção abcedada. Pequeno abcesso pré-vertebral.
Por fim, refere-se particular interesse da RM
nas seguintes situações:
• Investigação de massas cervicais com suspeita de extensão intra-raquidiana.
• Patologia cardíaca congénita e vascular torácica.
• Massas mediastínicas.
• Sequestro pulmonar.
• Patologia infecciosa e tumoral da parede
torácica.
• Algumas anomalias de desenvolvimento do
tubo digestivo (atrésia ano-rectal).
• Neoplasias abdominais e retroperitoneais.
• Avaliação hepática prévia ao transplante ou
a shunts vasculares.
• Anomalias vasculares abdominais.
• Anomalias congénitas pélvicas, nomeadamente em alterações ginecológicas suspeitas
através de avaliação ecográfica.
• Tumores pélvicos com a finalidade de detectar invasão dos tecidos moles, alterações medulares e extensão de massas pré-sagradas.
• Lesão infecciosa e tumoral, sobretudo óssea
e das partes moles.
• Lesões isquémicas do osso.
• Traumatismo articular (com lesão ligamen-
CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico
tar, capsular e da fise).
• Patologia músculo-esquelética.
Sublinha-se a supremacia do método na avaliação comparada com a TC em processos patológicos nomeadamente tumorais, quando a administração de contraste iodado está contra-indicada.
BIBLIOGRAFIA
Barkovich, AJ. Pediatric Neuroimaging. Philadelphia:
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9
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Um Serviço de Patologia Clínica (SPC) tem por objectivo principal apoiar os serviços clínicos de modo a possibilitar, mediante exames complementares laboratoriais, o diagnóstico e o tratamento dos doentes assistidos.
Idealmente deve estar disponível 24 horas por
dia, proporcionando informação correcta e em
tempo real.
Nesta perspectiva, o SPC do HDE engloba
essencialmente as seguintes actividades:
a) Colheita de produtos biológicos;
b) Execução dos exames analíticos diversos incluindo farmacocinética e farmacodinâmica das
drogas terapêuticas, técnicas de biologia molecular
para o diagnóstico de doenças infecciosas, etc.;
c) Relatório e validação dos resultados obtidos;
d) Diálogo com os clínicos na selecção do tipo
de exames analíticos mais indicados de acordo
com as hipóteses de diagnóstico do doente, proporcionando apoio na interpretação dos resultados;
e) Apoio às comissões técnicas, designadamente comissão de controlo de infecção hospitalar
através de estudos epidemiológicos;
g) Ensino pré e pós – graduado, e investigação.
O SPC constitui uma área de fronteira interpretativa com a actividade assistencial prestada ao nível dos serviços de urgência, de ambulatório e de
60
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
internamento. O mesmo tem, pois, uma missão
particular pelo facto de o seu modo de funcionamento poder influenciar a evolução de inúmeras
situações clínicas em função da rapidez e qualidade dos resultados; tal influência, para além
doutros factores, poderá traduzir-se, por exemplo,
na estadia média e tempo de permanência dos
doentes nas diversas áreas assistenciais, proporcionando melhor desempenho dos restantes
serviços, com consequências médicas, económicas,
individuais e sociais.
Para o obtenção de bons resultados torna-se,
pois, fundamental que exista uma capacidade de
actuação de elevado nível técnico, de actualização
de equipamentos e de métodos, assim como pessoal diferenciado.
Organograma
Para a prossecução dos objectivos, o SPC, com uma
direcção clínica integrando médicos patologistas
clínicos e diversos técnicos diferenciados , auxiliares e pessoal auxiliar, compreende as seguintes
Secções subdivididas em Áreas de Diferenciação:
1) Secção de Hematologia (Imunofenotipagem,
Hemostase,Biologia Molecular);
2) Secção de Química Clínica (Endocrinologia,
Oncologia,Marcadores Ósseos, Diagnóstico prénatal,Infertilidade, Biologia Molecular);
3) Secção de Microbiologia (Parasitologia,
Micologia, Virologia,Biologia Molecular);
4) Secção de Imunologia (Imunoalergologia,
Imunoquímica, Doenças Autoimunes, Serologia
de Infecções Víricas e Bacterianas, Biologia Molecular.
Colheita de produtos biológicos
Num hospital pediátrico/HAPD são prestados
cuidados a uma população de doentes, desde
recém-nascidos de muito baixo peso (inferior a
1500 gramas), a crianças em todos os estádios de
desenvolvimento incluindo adolescentes, a adultos jovens (na área de obstetrícia e ginecologia).
Num laboratório que dá apoio a esta população, é da maior importância a colheita correcta
das amostras, a selecção de equipamentos e de
métodos que requerem pequenos volumes de
amostra (micrométodos).
Torna-se ainda fundamental que o clínico
tenha conhecimento dos valores de referência
adoptados por grupo etário e sexo, os quais são
fornecidos pelo mesmo SPC e constam de anexo ao
último volume do livro. Os equipamentos modernos permitem utilizar pequenos volumes de
amostra, aspecto de grande importância num laboratório pediátrico. Por exemplo, no recém-nascido (RN) o hematócrito pode ter o valor de 60% ou
superior, o que condiciona volume de soro ou plasma obtido por vezes ínfino em relação ao volume
de sangue colhido. Nesta perspectiva, no RN de
muito baixo peso deve ser feito um plano de
análises requeridas para evitar colheita excessiva
de sangue.
Transporte das amostras
Como regra geral há que ter em conta que todas as
amostras devem ser transportadas ao laboratório
imediatamente após a colheita. É de grande importância para alguns parâmetros (como o pH e os
gases no sangue e amónia) que os respectivos tubos com sangue sejam transportados em recipiente
com gelo.
A existência de normas de actuação no SPC, incluindo o desenho de fluxos de trabalho em colaboração com os clínicos, possibilita a melhoria
da qualidade com menos custos.
Normas de higiene e protecção
Sendo este livro devotado à clínica pediátrica e
uma vez que está previsto o estágio de estudantes
e de clínicos no laboratório, optou-se por seleccionar algumas normas de higiene e protecção
adoptadas no SPC do HDE, as quais têm a ver com
o “saber estar” no ambiente de laboratório.
Higiene pessoal
Em todas as zonas de trabalho onde se verifique
risco de contaminação por agentes biológicos:
• Deve praticar-se a mais rigorosa higiene no trabalho (prioridade para a lavagem das mãos).
• Não deve ser permitido comer, beber ou fumar.
• Devem estar devidamente cobertas e protegidas
as feridas ou outras lesões cutâneas.
• Deve evitar-se tocar com as mãos nos olhos, nariz ou boca, enquanto se trabalha.
CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico
Cuidados na recolha, manipulação
e tratamento de produtos biológicos
• Devem estar definidos os processos para a recolha, manipulação e tratamento de amostras de
origem humana e animal.
• Não deve ser permitida a pipetagem à boca, substituindo-a por processos automáticos ou manuais.
• Os procedimentos técnicos devem ser executados de modo a evitar a formação de aerossóis ou
gotículas. Sempre que seja possível a formação
de aerossóis, devem ser usados meios de protecção ocular e respiratória, ou trabalhar as
amostras em câmara de segurança.
• Deve evitar-se flamejar as ansas. Utilizar, de
preferência, ansas de uso único ou micro-incineradores.
• O material lascado ou partido deve ser eliminado com segurança.
• Os frascos e ampolas de vidro devem ser manipulados com cuidado para não derramar o seu
conteúdo e/ou não provocar aerossóis. Utilizar,
de preferência, tubos e frascos com tampa roscada.
• O uso de agulhas deve ser evitado, quando possível.
• As agulhas não devem ser recapsuladas.
• As agulhas devem ser colocadas em contentores
para corto-perfurantes, sem ultrapassar 3/4 da
capacidade dos mesmos.
Atitudes em caso de acidente
• As picadas ou cortes ocorridos durante o trabalho devem ser imediatamente tratados. Devem
ser deixados sangrar (mas não chupar!) e lavados com água corrente, sem serem esfregados.
• Se as mucosas dos olhos, nariz ou boca forem
atingidas por salpicos, devem ser muito bem
lavadas com água corrente. Deve existir um espelho por cima do lavatório para facilitar o “auto-tratamento” dos salpicos.
• Em caso de perfuração ou ruptura das luvas, estas devem ser removidas; em seguida deve
lavar-se as mãos antes de calçar nova luvas.
• Qualquer acidente ou incidente que possa ter
provocado a disseminação de um agente biológico susceptível de causar uma infecção e/ou
doença no homem, deve ser imediatamente comunicado ao responsável pela segurança. Deve
ser dado conhecimento do facto a todos os tra-
61
balhadores, assim como das medidas tomadas
ou a tomar a fim de solucionar a situação.
Equipamento protector
Estão incluídos nesta categoria as batas, os aventais impermeáveis, as luvas, os óculos e as máscaras.
• É obrigatório o uso de bata para uso exclusivo
nas áreas de trabalho; por isso, a mesma não
deve ser usada em locais fora do laboratório (secretárias, biblioteca, cantinas, salas de convívio,
etc.).
• A bata deve fechar atrás, e deve ter mangas compridas e punhos apertados.
• O vestuário de protecção não deve ser arrumado no mesmo cacifo que o vestuário pessoal.
• Deve haver cabides para pendurar as batas “em
uso”, situados perto da saída da sala de trabalho.
• Todo o vestuário utilizado no laboratório deve
ser enviado para a lavandaria como roupa contaminada.
• O vestuário protector existente deve ser suficiente para assegurar a mudança regular (pelo
menos duas vezes por semana ou diariamente e,
ainda, para uso de visitantes ocasionais).
• Deve haver número suficiente de protectores
para os olhos (preferencialmente na forma de visor).
• Todo o vestuário contaminado por agentes biológicos no decurso do trabalho deve ser mudado imediatamente e descontaminado por métodos apropriados antes de ser enviado para a lavandaria.
Descontaminação e limpeza
• O plano geral de limpeza para todo o laboratório
deve ser compatível com o horário de laboração
do mesmo, e feito de acordo com a coordenadora do serviço.
• Os pavimentos, as bancadas e outras superfícies
de trabalho devem ser limpos no fim do dia.
• Devem ser limpos periodicamente os tectos e as
paredes, assim como as janelas e fontes de luz artificial, de acordo com o programa anual de
limpeza.
• Qualquer área de contaminação acidental com
sangue ou líquidos orgânicos, culturas bacteriológicas, etc., deve ser coberta com toalhetes de
papel ou tecido, e sobre eles verter hipoclorito de
62
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
sódio a 1%, deixando actuar durante 30 minutos.
Após este tempo, limpar as superfícies sujas.
• O material de uso único deve ser colocado em
contentores apropriados, hermeticamente fechados, para ser eliminado; ou, se tal não for possível, deve ser descontaminado previamente.
• O material para reutilização deve ser descontaminado por autoclavagem.
BIBLIOGRAFIA
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
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CRIANÇAS E ADOLESCENTES
COM NECESSIDADES ESPECIAIS
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HABILITAÇÃO E REABILITAÇÃO
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York:
Maria Helena Portela
McGraw-Hill, 2002
Sonnenwirth AC, Jarrett L. Gradwohl´s Clinical Laboratory
Methods and Diagnosis. St. Louis: Mosby, 2005
Wallach J. Interpretation of
Pediatric Tests- A Handbook
Importância do problema
Synopsis of Pediatric, Fetal, and Obstetric Laboratory
Medicine. Boston/Toronto: Little, Brown and Company,
2003
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital
Medicine, Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
A reabilitação pediátrica é uma valência da especialidade de medicina física e de reabilitação (MFR)
ou fisiatria, sendo delimitada no seu universo pelo
grupo etário do doente compreendido entre o
nascimento até ao final da adolescência. Preocupase igualmente com a saúde da grávida designadamente no que respeita à preparação para o parto, o
que está de acordo, numa perspectiva transdisciplinar, com a definição de pediatria, atrás explanada: medicina integral dum grupo atário compreendido entre a concepção e o fim da adolescência.
A reabilitação da criança com deficiência e incapacidade, tarefa complexa congregando uma
série de conhecimentos e de meios, desafia a capacidade duma equipa em intervir num ser em
processo de desenvolvimento e maturação.
Assenta, por um lado, na definição dos conceitos
básicos de deficiência, incapacidade e invalidez
que englobamos no campo das menos valias e das
necessidades especiais, e nos conhecimentos actuais do que se entende por desenvolvimento, desenvolvimento psicomotor, sequência da maturação cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar
adiante.
A organização interna dum serviço de reabilitação varia de acordo com os objectivos propostos
e os métodos utilizados para os alcançar. No
Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de
Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais
funcionalmente em três áreas de atendimento de
encontro à prevalência das patologias das crianças
que a ele recorrem, áreas não estanques antes complementares: de reabilitação neurológica, ortotraumatológica e respiratória. Como serviço integrado e concorrendo para a dinâmica hospitalar,
está presente em todos os seus núcleos e consultas
multidisciplinares, como são exemplo os de spina
bífida e de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente todos os doentes assistidos nos respectivos serviços de pediatria médica e de cirurgia
pediátrica, nas unidades de queimados, de cuidados intensivos pediátricos e neonatais (UCIP e
UCIN) e no serviço de ginecologia e obstetrícia.
Conceitos de deficiência,
incapacidade e invalidez
O modelo médico clássico baseia a sua concepção
no fluxograma delineado da seguinte forma: etiologia – patologia – sintomatologia. Procura
racionalmente intervir na primeira fase e, quando
não o consegue, nas fases seguintes.
A este modelo a acrescenta, de forma complementar, o conceito de menos valias integrando, tal
como se referiu, as noções de deficiência, incapacidade e invalidez definidos pela Organização
Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua intervenção como especialidade.
Considera-se pessoa com deficiência aquela que,
por motivo de perda ou anomalia, congénita ou
adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de
provocar diminuição de capacidade, pode estar em
condições de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais tendo em conta a
idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes.
Incapacidade, consequência de deficiência, é a
diminuição ou ausência de expressão de qualquer
actividade nos limites considerados normais para
o ser humano.
Invalidez, consequência das anteriores, traduz
a impossibilidade de realização duma tarefa normal, com prejuízo laboral ou social e limitando a
integração plena da pessoa doente.
Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina
bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda funcional (deficiência) traduzida na diminuição de
força muscular, nas alterações sensitivas dos mem-
63
bros inferiores e nas alterações esfincterianas.
Existe incapacidade de marcha autónoma, necessitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas
e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária
necessitando de algaliação intermitente e dispositivos colectores de urina. Manifesta a invalidez
(desvantagem) por não poder participar em todas
as actividades próprias para o seu grupo etário
(poderá participar em algumas delas com algum
tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de
apoios educativos especiais e a longo prazo, na previsível relativa invalidez profissional; e poderá vir
a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou
do local de trabalho para o desempenho de actividades laborais tendo em vista a auto-suficiência.
Desenvolvimento, desenvolvimento
psicomotor, habilitação e reabilitação
O desenvolvimento pode ser definido como o
processo maturativo das estruturas e das funções
da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento
das suas capacidades. Obedece a uma determinada sequência, com padrões de evolução variáveis e
individuais. É, portanto, o resultado duma interacção adaptativa em relação ao meio ambiente e
influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e
extrínsecos (ambienciais). (consultar Parte V).
Considera-se haver um atraso de desenvolvimento quando a criança não realiza as tarefas que
lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas
escalas de neurodesenvolvimento. Quando o atraso de desenvolvimento é primário, isto é, a criança
não atingiu os padrões do desenvolvimento normais para a idade, a intervenção, mais do que uma
reabilitação, traduz-se numa habilitação fornecendo à criança os meios e as ajudas técnicas
necessárias à aquisição da função, isto é mediante
a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o
atraso de desenvolvimento é secundário, provocado por doença ou noxa de que resultou paragem
ou regressão dos padrões de desenvolvimento da
criança, a intervenção terapêutica corresponderá,
então, a reabilitação.
Abordagem da criança com
deficiência e incapacidade
A abordagem da reabilitação da criança com defi-
64
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ciência e incapacidade é feita duma forma estruturada com o objectivo de obter o diagnóstico etiológico (doença), diagnóstico funcional (deficiência,
incapacidade e invalidez) e caracterização da matriz relacional (afectividade, socialização e escolarização).
No âmbito da história clínica a anamnese será
colhida à criança ou seus acompanhantes. É fundamental uma minúcia relativamente a antecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história
sócio-familiar . Nos AP ressaltam a história pregressa da gravidez, do parto, do período neonatal,
do desenvolvimento psicomotor e de doenças anteriores. Nos AF salientam-se a existência de consanguinidade, de doenças com carácter heredofamiliar e de situações de deficiência e/ou incapacidade.
Na colheita da anamnese sócio-familiar dimensiona-se toda a envolvência da criança permitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar,
como funciona, como nele se reflecte a deficiência
da criança e a capacidade em prestar a assistência,
e o apoio de que esta vai necessitar.
Na perspectiva do diagnóstico funcional deve
inquirir-se sobre: independência e dependência da
criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira
pessoa necessita para realização das actividades de
relação ou de vida diária como: comunicação, alimentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir,
descanso nocturno, transferências e mobilidade. É
importante saber quem habitualmente presta essa
ajuda e disponibilidade (elemento chave).
Na realização do exame objectivo a reabilitação partilha com as demais áreas médicas os
princípios do exame físico geral com o registo sistemático e comparado dos índices antropométricos: peso, comprimento e perímetro cefálico para
além da observação somática. O exame neurológico avalia de forma sistematizada os padrões de
vigília, lucidez, comunicação, colaboração, traduzidas pelo interesse e interacção da criança com o
meio, as motilidades global e fina, a força muscular (exame muscular duma forma analítica ou
global), a coordenação, o tono muscular, os reflexos osteotendinosos e outros, pesquisa das sensibilidades, pares cranianos e presença de movimentos anormais. Especial importância deve ser
prestada à avaliação sensorial. Devem ser pesquisadas anomalias da visão, audição e função de
integração das sensibilidades (agnosias). No caso
de dúvida será pedida a colaboração das respectivas especialidades para caracterização qualitativa
e quantitativa das anomalias. Quando presentes,
as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias,
a deficiência, e necessitar de correcção adequada.
Quando associadas a outras deficiências (sindromáticas), a sua não correcção pode prejudicar
o sucesso do tratamento. Especial atenção deve ser
prestada à avaliação do desenvolvimento psicomotor e do nível cognitivo relacionado com a
idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de
Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de
Ruth Griffiths e outras).
No exame ósteo – músculo – articular são registadas as malformações e deformações ósseas e
articulares e procede-se ao registo quantificado
das limitações articulares (exame articular). Na
avaliação do movimento, motricidade fina e grosseira, há que registar sincinésias, compensações,
movimentos involuntários, com o registo das alterações do tono muscular.
O exame funcional avalia as consequências da
deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, actividades de vida diária e na vida relacional da
criança. A criança é observada a executar as diversas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao
efectuar o gesto avalia-se a lateralidade, a sua definição, a coordenação óculo-motora, o tempo de
atenção útil e outros parâmetros. A criança finge
beber um copo de água, lavar os dentes, pentear,
vestir, pontapear, etc.. As capacidades de transferência, marcha ou locomoção deverão ser avaliadas na sua eficiência, procurando caracterizar o
gasto energético que lhes está associado.
Há uma série de escalas que tentam “quantificar” o estado funcional do paciente, mais fáceis
de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são
as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São
úteis na monitorização dos progressos da reabilitação do doente, podendo servir como meio de troca de informações e experiências entre centros e escolas de reabilitação.
Após a anamnese e o exame objectivo é formulado o diagnóstico etiológico provisório, (podendo exigir-se a realização de exames complementares para a sua validação), o diagnóstico funcional e o prognóstico.
Os diagnósticos etiológico e, sobretudo, o fun-
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais
cional, sustentarão o estabelecimento do plano de
reabilitação e as respectivas orientações terapêuticas nas áreas funcionais de fisioterapia, terapia
ocupacional e terapia da fala. Este plano terapêutico deverá ser ajustado à criança, às suas múltiplas condicionantes e orientado para a resolução
dos seus problemas. Estes serão hierarquizados e
reavaliados ao longo do tempo, abrangendo as
vertentes pessoal, familiar e escolar. Tal programa
pode passar pela aplicação de agentes físicos
(situação menos frequente na criança que no adolescente e no adulto), pela aplicação de técnicas de
propriocepção (usando o frio e massagem), por
técnicas normalizadoras do tono muscular e estimulação do desenvolvimento, de que são exemplo os métodos de Bobath e de Votja. Podem usarse métodos de fortalecimento muscular e diferentes técnicas de cinesiterapia e posicionamento.
O plano terapêutico pode passar, igualmente,
pela prescrição de próteses, ortóteses e ajudas técnicas, incluindo as decorrentes das novas tecnologias destinadas a compensar a deficiência da criança ou atenuar-lhe as consequências, e permitindolhe o exercício das actividades de vida diária e a
integração na vida escolar, social e profissional. É
o caso das crianças com deficiência motora determinada por amputação, sequela de poliomielite,
traumatismo vértebro-medular ou paralisia cerebral necessitando de ajudas na função de locomoção. Expressa-se a ajuda na prótese, no aparelho curto ou longo para o membro inferior, em
auxiliares de marcha, ou na cadeira de rodas com
adaptação individual. É o caso ainda das crianças
com disfunção auditiva e da linguagem, com atraso escolar e lentidão na aquisição da leitura ou escrita e a quem os meios aumentativos ou alternativos de comunicação serão indispensáveis. Na criança com desvantagem associada a deficiência visual, a ajuda técnica pode passar pelo computador
com visor adaptado à ambliopia e com reforço simbólico de linguagem Braille. O estudo da necessidade e adequação das diversas ajudas técnicas às
deficiências da criança pode ser efectuado num
serviço de reabilitação que tenha desenvolvido experiência neste campo. Porém, há situações específicas e complexas que exigem a aplicação de
ajudas técnicas inovadoras ou decorrentes das novas tecnologias. Em tais situações justifica-se o recurso a instituições externas como o Centro de
65
Análise e Processamento de Sinais do Instituto
Superior Técnico, a Unidade de Missão e Inovação
de Conhecimento, e a Unidade de Técnicas Alternativas e Aumentativas de Comunicação.
Os resultados da intervenção terapêutica deverão ser reavaliados periodicamente, podendo
aproveitar-se para tal as idades-chave do desenvolvimento da criança. Poderá haver necessidade
de reformulação do plano terapêutico e dos objectivos inicialmente propostos de acordo com a
evolução da situação clínica. Toda a intervenção
será prioritariamente, orientada para a resolução
dos problemas da criança e da família.
Com base na experiência do Serviço de Medecina Física e Reabilitação do Hospital Dona Estefânia
– Lisboa são abordados aspectos específicos da reabilitação e habilitação, de modo integrado noutros
capítulos, a saber:
• Reabilitação respiratória
• Reabilitação na linguagem ou “habilitação na
criança com dificuldades na comunicação”
• Reabilitação neurológica
– Sequelas de prematuridade
– Habilitação para a marcha e ajudas técnicas
na criança com spina bifida
• Reabilitação ortopédica
• Reabilitação do doente com sequelas de queimaduras
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University Press, 2007
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
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McGraw-Hill, 2002
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital
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66
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
11
CONTINUIDADE DE CUIDADOS
À CRIANÇA E ADOLESCENTE
Maria do Céu Soares Machado
Importância do problema
A continuidade de cuidados à criança e adolescente pode ser definida de forma longitudinal –
todos os cuidados primários devem ser prestados
pelo mesmo profissional; ou transversal – quando
são necessários cuidados hospitalares ou especiais,
deve haver articulação e comunicação entre os
profissionais envolvidos.
Os cuidados à criança e adolescente devem
também ser centrados na família, o que pressupõe
parceria com os pais nos cuidados e nas decisões,
em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma
organizada.
Os cuidados continuados e centrados na família
permitem cuidados antecipados de promoção da
saúde e prevenção da doença mais efectivos e
coordenados, permitindo estilos de vida mais adequados, menos comportamentos de risco, melhor
cumprimento do plano de vacinação, menor procura de apoio de urgência e maior satisfação da
família e dos profissionais.
Em Portugal, os cuidados de saúde primários
são prestados no centro de saúde (CS) pelo especialista de medicina geral e familiar e pela enfermeira coordenadora de saúde infantil. Contudo,
verifica-se uma percentagem significativa de
crianças e adolescentes com vigilância de saúde
em regime de pediatra privado. Os cuidados hospitalares são prestados quase exclusivamente em
hospitais públicos.
Qualquer que seja o sistema, o Boletim de
Saúde Infantil (BSI) é o instrumento previligiado
de comunicação devendo ser preenchido integralmente na saúde e na doença. Nele devem constar
registos do peso, comprimento, perímetro cefálico,
respectivos percentis e do desenvolvimento psicomotor. Devem ainda estar referidas as doenças
agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em
consulta ou episódio de urgência, seja no centro de
saúde, seja no hospital.
Seguimento regular de uma criança
saudável
Todas as crianças devem ter um Médico que é o seu
médico e que a criança identifica e conhece pelo
nome.
No centro de saúde, o Médico de Família e a
Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis
pelo seguimento normal, segundo os parâmetros
definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde
Infantil e Juvenil - Programa Tipo de Actuação,
2002 (www.dgsaude.pt)
O Programa Nacional de Vacinação, o ensino
da alimentação e de uma vida saudável são da
responsabilidade do médico e da enfermeira do
CS, assim como os episódios de doença aguda; por
consequência, as consultas devem ser programadas em horários de acordo com as necessidades
da população local ou seja, na maioria dos casos,
pós-laboral.
Actualmente, menos de 20% dos CS portugueses têm pediatra atribuído que faz a consulta de
seguimento nos primeiros meses de vida e uma
consulta de referência para crianças com problemas.
Para os CS sem pediatra, a Comissão Nacional
de Saúde da Criança e Adolescente propõe um
pediatra consultor, nomeado pelo director do
serviço de pediatria da unidade de saúde, através
das unidades coordenadoras funcionais (UCFs).
As suas funções são basicamente a discussão de
casos–problema, a referenciação directa e a organização da formação contínua, com periocidade
variável, de uma vez por semana a uma vez por
mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e
a necessidade do CS.
As UCFs têm ainda um papel preponderante
na divulgação de protocolos de referenciação
discutidos e aprovados de forma abrangente.
O pediatra em regime privado é responsável
pelo seguimento, pelo ensino, pelos episódios de
doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas,
CAPÍTULO 11 Continuidade de cuidados à criança e adolescente
sendo a administração destas da competência do
CS. Idealmente, o mesmo deve estar organizado de
modo que, em caso de indisponibilidade numa
situação de doença aguda, a família possa recorrer
ao substituto por ele indicado.
Os cuidados continuados e centrados na família têm uma dimensão especialmente importante
nas crianças de famílias com pobreza e exclusão
social ou em situação ilegal (filhos de imigrantes).
A integração e a acessibilidade são as características
fundamentais dos cuidados básicos de saúde,
praticadas no contexto da família e da comunidade.
A lei portuguesa garante o direito aos cuidados
de saúde e à educação facilitando a atribuição de
um médico de família. Se apenas forem propiciados cuidados de urgência com diferentes médicos, o diagnóstico e intervenção, por exemplo nos
casos de atrasos do desenvolvimento estaturoponderal, psicomotor e nas doenças crónicas, podem ficar comprometidos.
Continuidade de cuidados
no internamento hospitalar
A continuidade de cuidados implica manter contacto com o médico que presta os cuidados fora do
hospital. Se a criança for internada com doença
aguda, durante o internamento deve haver contacto com o médico assistente, que conhece a família e em quem os pais confiam.
Na alta deve ser discutida a nota de alta com os
pais e enviada cópia directamente ao médico assistente, seja do CS, seja privado.
Sempre que possível, deve ainda haver articulação entre a enfermeira do hospital e a coordenadora de saúde infantil do CS.
Criança com doença crónica e/ou
necessidades especiais
O seguimento de uma criança/adolescente com
doença crónica e/ou necessidades especiais é
muito mais do que cumprir prescrições. Envolve
uma equipa multidisciplinar: criança-pais- médico
do hospital/cuidados primários/ especialistaenfermeiro-psicólogo-fisioterapeuta-professor.
Os cuidados devem ser partilhados com uma
responsabilidade bem definida de cada elemento
da equipa.
67
O especialista de medicina geral e familiar ou
o pediatra assistente devem ser responsáveis pelas
vacinas, alimentação, desenvolvimento e doença
aguda. O seguimento por outra especialidade ou
área pediátrica deve ser da responsabilidade do
médico do hospital ou da institução.
A equipa hospitalar deve fazer um plano
preciso da terapêutica e seguimento, sendo discutido com a família e com o médico assistente.
Não menos importante é o cuidado na centralização da informação e da orientação. O doente
crónico ou com necessidades especiais precisa de
um profissional que centralize o processo de modo
a não haver duplicações e perdas para a família, a
qual necessita de perceber a quem se dirigir e quais
as prioridades para o seu filho.
Cada um do profissionais de saúde deve
constituir-se advogado ou provedor da criança;
mas, nos casos de doença crónica deve existir o
“gestor” do doente, a sugerir pela equipa, o que
facilita a comunicação com os pais.
A comunicação pode ser facilitada por contacto
telefónico ou através do BSI de modo que o médico
assistente esteja suficientemente informado e possa esclarecer dúvidas dos pais.
Transição do jovem com deficiência,
doença crónica ou necessidades
especiais para o médico de adultos
O início da idade adulta determina novas necessidades médicas e pessoais, com cuidados médicos
apropriados à idade, mantendo-se os princípios de
continuidade e transdisciplinaridade.
A transição efectiva de cuidados é cada vez
mais importante, pois cada vez é maior o número
de crianças com doença crónica (~15-20%) que
chega à idade adulta e que, por terem limitações
funcionais com consequências sociais, emocionais
e de comportamento, experimentam dificuldades
na passagem dos cuidados pediátricos para os de
adultos. Tal transição depende da maturidade,
independência, capacidade funcional dos cuidados médicos de adultos e das diferenças entre a
medicina pediátrica e a medicina orientada para o
adulto as quais constituem duas culturas distintas.
Deve acontecer no final da idade pediátrica ou
seja aos 18 anos mas, em casos especiais, pode ser
prolongada até aos 21. Poderá haver resistência
68
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
por parte do adolescente a qual é devida à
percepção de que os cuidados na medicina de
adultos são deficitários quanto à preocupação de
continuidade e envolvimento da família.
O processo deve ser iniciado ainda antes da
adolescência, encorajando as famílias a projectar o
futuro do filho. A passagem de testemunho, a
combinação e concertação quanto a estratégias e
terapêuticas deve ser real, discutida com o adolescente e a família.
Os pontos fundamentais são:
1. Identificação da instituição de saúde mais
apropriada à situação.
2. Identificação do médico que passa a assumir
a responsabilidade, a coordenação e o planeamento.
3. Elaboração de nota de alta ou nota de transição escrita, concisa, contendo informação médica
sumária e estratégias combinadas com o jovem e
a família.
Em resumo, os cuidados de saúde à criança e
ao jovem devem ser especializados, centrados na
família, em parceria, com continuidade, e partilhados, qualquer que seja o nível quanto a prestação
(primária ou hospitalar), e através de um esforço
interdisciplinar coordenado.
A continuidade de cuidados é, pois, um fenómeno multifactorial que resulta da combinação de
acesso fácil aos profissionais, desempenho adequado, boa capacidade de comunicação entre a
família, os profissionais e as instituições que prestam
cuidados, e excelente coordenação entre todos.
BIBLIOGRAFIA
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PARTE III
Genética e Dismorfologia
70
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
12
A IMPORTÂNCIA DA GENÉTICA
NA CLÍNICA PEDIÁTRICA
Luís Nunes
A Genética Médica representa na Medicina moderna uma das estratégias essenciais para melhorar a saúde das pessoas e das comunidades. Para
esta conclusão contribuiram os enormes conhecimentos obtidos nos últimos anos, nomeadamente
com a sequenciação do genoma humano e a compreensão de mecanismos pelos quais os produtos
dos genes actuam e podem provocar doença nos
seres humanos.
O interesse da Genética para os profissionais de
saúde abrange áreas como o diagnóstico, a prevenção e o tratamento de síndromas e doenças
genéticas. A Biologia Molecular permitiu identificar alterações do genoma humano que viabilizaram o estabelecimento de critérios mais rigorosos de diagnóstico de algumas doenças e explicaram a variabilidade de expressão de outras
pelo tipo de mutações encontradas no gene, entre
outros aspectos.
Com a excepção das doenças genéticas que resultam de uma alteração num cromossoma ou da
mutação de um gene específico, a maior parte das
doenças genéticas resulta da interacção entre a susceptibilidade genética da pessoa e factores ambientais, na generalidade dos casos pouco conhecidos. Muitas destas doenças, como algumas formas
de cancro, de doenças cardiovasculares e da diabetes, são verdadeiros problemas de Saúde Pública.
O conhecimento actual é ainda muito limitado
quanto à compreensão dos mecanismos da interacção entre os factores genéticos e ambientais que
contribuem para a patogenia das doenças genéticas.
A contínua divulgação de novos conhecimentos na literatura científica e na comunicação social,
a necessidade de se prestarem os cuidados de
saúde na área da genética, de que os indivíduos e
famílias carecem, as questões de ética que são colocadas à sociedade com as novas descobertas e inovações, alertam para a necessidade de os médicos
e muito em especial os pediatras, adquirirem novas qualificações nestes temas e procurarem actualizar os seus conhecimentos. As próprias associações científicas estão conscientes desta realidade e
têm proposto iniciativas científicas de formação dirigidas aos profissionais.
A Genética Médica tem uma considerável importância em Clínica Pediátrica. Os pediatras para
além de cuidarem de crianças e adolescentes que
têm doenças genéticas ou um risco elevado de,
mais tarde, virem a expressá-las, estão em estreita
ligação com as famílias, já constituídas ou em
período de constituição, o que os torna uma fonte
de grande credibilidade para informação e aconselhamento genético. O pediatra e o clínico que
presta assistência a criança e adolescentes não devem, pois, perder esta oportunidade de comunicação; por outro lado, devem ter uma atitude próactiva na sua intervenção.
Para serem mais eficazes na assistência a crianças e adolescentes, os referidos clínicos devem
estar familiarizados com o diagnóstico das
doenças genéticas mais frequentes, o aconselhamento genético, e saber orientar os casos mais
complexos para serviços especializados. São estes
os aspectos a desenvolver nesta parte do livro.
CAPÍTULO 13 Doenças multifactoriais
13
DOENÇAS MULTIFACTORIAIS
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Conceitos básicos
Na maioria dos casos as doenças genéticas e as
anomalias congénitas resultam da interacção entre
factores genéticos, comportamentos e estilos de vida das pessoas, e factores ambientais. As doenças
genéticas com estas características são denominadas multifactoriais ou poligénicas. São exemplos,
algumas doenças cardiovasculares frequentes, formas de cancro e de doenças mentais, diabetes e
anomalias congénitas, tais como o pé boto, as anomalias do tubo neural e as fendas lábio-palatinas.
A contribuição dos factores genéticos para as
doenças multifactoriais resulta do efeito combinado de genes múltiplos, embora em número não
ilimitado, localizados em locus diferentes. Nestas
doenças, a componente genética não se manifesta
através de transmissão mendeliana, não sendo
identificadas anomalias cromossómicas. No conceito de oligogenia estão abrangidas as situações
em que um locus tem um efeito predominante no
fenótipo, ainda que necessite da colaboração de
outros genes para expressar a doença.
As principais características do modelo multifactorial são:
• Todos os genes têm um efeito no fenotipo,
que pode ser major ou minor;
• O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico;
• Os genes individualmente não exprimem
dominância ou recessividade;
• O fenotipo é um contínuo na expressividade;
• A maior parte das características quantitativas tem uma distribuição normal.
Os factores genéticos nestas doenças não
causam doença por si, mas influenciam a susceptibilidade individual a factores ambientais. A contribuição dos factores genéticos constitui a “carga
71
genética” liability que será maior se estiverem implicados mais genes na etiologia da doença.
Estima-se que esta “carga genética” tenha uma distribuição normal na população.
Outro conceito importante nestas doenças é o
de “limiar”, ou seja, a doença manifesta-se quando
os factores genéticos ultrapassam um determinado
gradiente. O sexo do indivíduo e o grau de parentesco com o caso índex têm influência no limiar.
Os factores ambientais implicados na origem
destas doenças são variados. Nas doenças frequentes do adulto vários factores têm um efeito aditivo relacionado com o comportamento alimentar.
Epidemiologia
Estima-se que ao nascer, em cada mil crianças, 50
apresentam uma anomalia de causa multifactorial, (versus 10 com uma doença provocada por um
gene mendeliano, e 6 com uma anomalia cromossómica). Considerando toda a população, estima-se que em cada mil indivíduos 600 tenham
doença multifactorial, (20 com uma doença monogénica e 3,8 com uma doença cromossómica). Para
muitas das doenças do adulto, há alguns anos não
havia provas científicas da contribuição de factores
genéticos para a sua etiologia. Estão descritas mais
de 6 mil doenças génicas.
Nalgumas doenças multifactoriais a incidência
varia com o sexo, como a estenose do piloro, que é
5 vezes mais frequente no sexo masculino do que
no feminino. As anomalias do tubo neural, pelo
contrário, são mais frequentes no sexo feminino.
Predisposição
Nos últimos anos, apesar dos inúmeros progressos
da genética molecular, foi identificado número
escasso de genes com uma contribuição importante na susceptibilidade às doenças multifactoriais. Uma das primeiras descobertas foi a identificação do gene NOD2-CAD15, que foi implicado na
susceptibilidade ao desenvolvimento da doença
de Crohn. Assim, não é ainda possível realizar rastreios de genes de susceptibilidade genética. Esta é
uma área cada vez mais atractiva que interessa a
investigadores e a outros sectores da sociedade.
Actualmente a identificação individual de um
risco elevado para uma doença multifactorial ne-
72
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cessita da identificação de uma doença num familiar e do estudo da árvore genealógica.
A identificação de um risco genético elevado
pode levar à prescrição de acompanhamento
médico personalizado e adaptado aos riscos, à realização de exames complementares de diagnóstico
precoce, e de intervenções de carácter preventivo
se forem conhecidos os factores ambientais relacionados com a etiologia.
Risco
Nas doenças multifactoriais o risco empírico representa a probabilidade esperada de ocorrer uma
doença genética particular na população. Tal risco
obtém-se, em grande parte, a partir dos resultados
encontrados em estudos epidemiológicos. O risco
empírico tem grande importância para o aconselhamento genético, por exemplo, quando um casal
já tem um filho afectado ou um dos progenitores é
portador de uma doença genética.
O risco empírico da ocorrência de uma doença
multifactorial depende de vários factores, nomeadamente:
• Frequência da doença na população
• Grau de parentesco com a pessoa afectada
(maior risco nos parentes em primeiro grau)
• Número de familiares afectados
• Gravidade clínica do caso índex
• Sexo da pessoa afectada
Os resultados dos estudos efectuados em populações diferentes mostraram diferenças na frequência, o que deve ser tomado em consideração
pelo médico. Para além das diferenças genéticas
eventualmente existentes entre populações, aspectos como a “definição de caso” e a modificação
na classificação das doenças ao longo do tempo devem ser ponderadas.
Alguns exemplos práticos da utilização do
risco empírico no aconselhamento genético em
situações comuns, são:
• Lábio leporino e fenda palatina: 4% se o casal
tem um filho afectado mas nenhum dos progenitores tem a doença; 3,2% se um dos progenitores tem a doença;
• Comunicação interventricular: 3,5% se o casal tem um filho afectado e os pais são saudáveis; 3% a 5% se um dos progenitores tem
a cardiopatia;
• Outras situações: aterosclerose, diabetes mellitus, displasia congénita da anca, hipospádia, asma, epilepsia, etc..
Outro conceito que é necessário precisar é o de
“hereditabilidade”, que mede a componente genética de uma doença multifactorial, separando-a da
contribuição dos factores ambientais. A hereditabilidade varia entre 1, quando a variação depende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se
depende apenas de factores ambientais. No pé
boto estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteligência entre 0,5 a 0,8.
Prevenção
Quando são conhecidos os factores ambientais
implicados na etiologia de uma doença genética, a
estratégia de prevenção passa pelo afastamento de
factores nefastos, pela suplementação, ou pela
modificação dos comportamentos e estilos de vida.
Um exemplo que demonstra a possibilidade de
se intervir na prevenção das doenças multifactoriais foi a descoberta da relação entre o ácido fólico
e a ocorrência de anomalias do tubo neural. Nas
famílias de risco a suplementação com ácido fólico no período pré-concepcional e pré-natal reduziu a incidência destas anomalias de forma significativa.
Actualmente a suplementação em ácido fólico
no período pré-concepcional e pré-natal faz parte
das recomendações de vigilância de saúde durante
a gravidez na maior parte dos países, e das orientações para a vigilância da saúde grávida em
Portugal.
CAPÍTULO 14 Hereditariedade mendeliana
14
HEREDITARIEDADE
MENDELIANA
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Definição
Por transmissão mendeliana entende-se a transmissão hereditária controlada pelos genes de um
único locus.
Os genes dispõem da informação essencial,
necessária para a actividade funcional do organismo dos seres vivos. As mutações que ocorrem nos
genes são responsáveis por uma informação que
chega às células diferente da que se verifica em
situações de não mutação, ou seja, diferente do que
é esperado, o que nalguns casos pode acarretar
uma situação de doença.
Todos os genes de que um indivíduo dispõe são
herdados dos seus pais que, por sua vez, também
foram herdados anteriormente. A maioria está localizada nos cromossomas/autossomas e os restantes nos cromossomas sexuais, especialmente no
cromossoma X.
Tipos de hereditariedade mendeliana
As doenças mendelianas são classificadas conforme o gene está localizado nos cromossomas
autossomas ou nos gonossomas, e/ou ainda tem
carácter dominante ou recessivo. As formas de
transmissão das doenças mendelianas mais frequentes são a hereditariedade autossómica recessiva e autossómica dominante, e recessiva ou dominante ligada ao cromossoma X.
Hereditariedade autossómica recessiva
A mutação recessiva num alelo não se traduz em
doença, pois o produto do outro alelo é suficiente
para as necessidades funcionais do indivíduo.
73
Tanto quanto se sabe, todos os indivíduos são portadores de genes recessivos de várias doenças genéticas, que apenas se podem manifestar no processo de reprodução.
As principais características da transmissão autossómica recessiva são:
• Ocorrem geralmente como casos isolados
sem menção a outras situações em gerações
anteriores;
• Ambos os sexos são atingidos;
• Os pais dos indivíduos afectados não têm
doença clínica;
• Quanto mais rara for a doença, maior é a
probabilidade de existir consanguinidade entre os progenitores;
• A descendência de dois heterozigotos em cada gestação origina a seguinte probabilidade:
50% são heterozigotos, 25% são homozigotos,
(portanto afectados) e 25% normais;
• Se apenas um progenitor é heterozigoto para
o gene com mutação, a probabilidade de transmitir esse gene a cada descendente é 50%.
Alguns genes recessivos são mais frequentes
nalgumas populações com maior consanguinidade. É o caso da talassémia nalgumas populações
mediterrâneas e da doença de Tay Sachs nos judeus Ashkenasi.
Alguns genes apresentam polimorfismo, pelo
que o indivíduo homozigoto nem sempre tem a
mesma mutação nos dois alelos. Estes casos correspondem a heterozigotos compósitos. Esta situação é responsável pela expressividade variável de
algumas doenças.
São exemplos de doenças autossómicas recessivas a fibrose quística, a talassémia, a drepanocitose, a doença de Tay Sachs, a hemocromatose, a
hiperplasia congénita da suprarrenal, a ataxia de
Friedreich, a homocistinúria. Para muitas doenças
já é possível realizar estudos laboratoriais para
identificar os portadores de doenças recessivas (estudo do produto dos genes, ou do próprio gene
por biologia molecular). A realização destes exames está limitada aos indivíduos de risco tendo em
conta a proximidade com o caso índex. (Quadro 1)
Hereditariedade autossómica dominante
A transmissão autossómica dominante refere-se às
situações em que a mutação num gene de um au-
74
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Doenças autossómicas recessivas
Doença
Doença de células falciformes
Talassémias
Fibrose quística
Doença de Tay – Sachs
Grupo étnico
África/Caraíbas
Ásia/Mediterrâneo
Europa do Norte
Judeus Ashkenazi
tossoma se manifesta por doença clínica no estado
de heterozigoto. A dominância, em si, não se refere a uma característica do gene, mas à sua relação
com o alelo homólogo, que se traduz na manifestação da doença.
Têm sido propostos vários mecanismos para
explicar a dominância. Vários autores explicam-na
pelo facto de o alelo com mutação produzir um
produto que interfere com o mecanismo normal de
expressão do alelo homólogo. Outros autores explicam a doença clínica pela haploinsuficiência
que resulta de facto de o alelo normal não produzir
o produto biológico necessário.
As principais características das doenças com
transmissão autossómica dominante são:
• Transmissão vertical, identificando-se casos
em várias gerações;
• Os homens e as mulheres são igualmente
afectados;
• Há transmissão de pai para filho;
• A descendência de um indivíduo afectado
tem 50% de probabilidade de herdar o gene
com a mutação e os restantes descendentes
são normais;
• Se os dois progenitores são afectados, a descendência esperada é 25 % serem saudáveis,
50% heterozigotos doentes e 25% homozigotos;
• A penetrância incompleta e a expressividade
variável são comuns;
• Ocorrem casos espontâneos, de novo, por
vezes em relação com o aumento da idade paterna.
As situações de homozigotia podem apresentar uma expressão clínica equivalente aos casos de
heterozigotia, o que se verifica na coreia de
Huntington. Noutras doenças podem manifestarse por uma forma clínica mais grave, letal no caso
da acondroplasia.
Frequência de portadores %
20%
10%
4%
4%
Nas doenças autossómicas dominantes é necessário ter em conta alguns fenómenos:
a) Penetrância incompleta: refere-se à proporção dos indivíduos que, sendo portadoras de
uma mutação, não a expressam clinicamente. Por
exemplo, a coreia de Huntington tem uma penetrância de quase 100% aos 70 anos, mas estima-se
ser de 50% aos 40 anos. A polidactilia, por outro lado, tem uma penetrância baixa, o que tem importância para o aconselhamento genético.
b) Expressividade variável: significa que o
fenotipo varia entre os indivíduos portadores de
uma mutação dominante desde uma apresentação
clínica ligeira a grave, inclusivamente na mesma
família. A esclerose tuberosa é um exemplo de uma
doença autossómica dominante com grande variabilidade clínica; na acondroplasia a variação é
muito menor. Têm sido propostas várias explicações para a expressividade variável, de que se
destaca, a influência de alguns factores ambientais,
o efeito de outros genes, e efeitos de “imprinting”.
c) Mutação de novo: significa que ocorreu uma
mutação no genoma do indivíduo, não existindo
história familiar dessa doença. Na acondroplasia,
85% dos doentes correspondem a mutações de novo. Para algumas doenças com transmissão dominante, demonstrou-se um efeito paterno, com um
aumento das novas mutações com o aumento da
idade, como é o caso da síndroma de Apert.
d) Antecipação: quando as manifestações de
uma mutação aumentam de importância clínica de
geração para geração, como é observado, por exemplo, na distrofia miotónica. A instabilidade do
ADN traduzida pelo aumento da expansão de
tripletos de trinucleótidos do ADN, permitiu explicar este fenómeno.
São exemplos de doenças autossómicas dominantes a coreia de Huntington, a neurofibromatose
tipo 1, a hipercolesterolémia familiar, a distrofia
miotónica, a síndroma de Marfan, a acondroplasia,
CAPÍTULO 14 Hereditariedade mendeliana
a esclerose tuberosa, a osteogénese imperfeita, etc..
Nalgumas doenças é possível fazer o diagnóstico do estado de portador através de estudos de
biologia molecular. Nas doenças que se manifestam vários anos após o nascimento, é possível realizar o diagnóstico preditivo, pré-sintomático,
antes de surgirem as manifestações clínicas. São
exemplo a doença de Machado-Joseph e a coreia
de Huntington.
Hereditariedade ligada ao cromossoma X
Na mulher, um dos cromossomas X está inactivado na maior parte do ciclo celular, assegurando o
outro alelo, a globalidade das funções necessárias
ao indivíduo. Este fenómeno de inactivação, a “lionização”, é aleatório explicando que alguma mulheres condutoras manifestem sinais clínicos da
doença (hipótese de Lyon).
As mutações no cromossoma X podem actuar
como recessivas ou dominantes a que corresponde, deste modo, a transmissão recessiva ligada
ao X e a transmissão dominante ligada ao X.
a) Hereditariedade recessiva ligada ao cromossoma X
Quando as mutações nos genes do cromossoma X se comportam como recessivas, a expressão
da doença depende do sexo do descendente.
As principais características são:
• As mulheres condutoras não expressam a
doença nas situações comuns;
• A descendência de uma mulher condutora
varia de acordo com o sexo do filho: se masculino, 50% são doentes e 50% saudáveis; se
feminino, 50% são condutoras e 50% não condutoras;
• A descendência de um homem afectado é a
seguinte: se for do sexo masculino, são todos
saudáveis; se forem do sexo feminino, são todas condutoras;
• Não há transmissão de pai para filho;
• Uma elevada percentagem de casos isolados
numa família corresponde a mutações “de
novo”; são exemplos doenças recessivas ligadas ao cromossoma X, a síndroma do Xfrágil, a hemofilia A e B, e as distrofias
musculares de Duchenne e de Becker. Para algumas doenças recessivas ligadas ao X é possível realizar o diagnóstico de estado de heterozigotia pelo estudo do produto do gene
75
ou do próprio gene através de exames de biologia molecular.
b) Hereditariedade dominante ligada ao cromossoma X
São raras as mutações do cromossoma X que se
transmitem como dominantes. As principais características desta transmissão são:
• A descendência de uma mulher heterozigoto
e que exprime a doença, tem uma probabilidade de 50% de ser afectada, independentemente do sexo;
• Se for o pai afectado, 100% das filhas são
doentes, mas nenhum dos filhos.
São poucas as doenças que apresentam estas
características. Um dos exemplos é a síndroma de
Rett.
76
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
15
ANOMALIAS
CROMOSSÓMICAS
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Importância do problema
Em 1959 foi demonstrado pela primeira vez uma
aplicação médica do estudo dos cromossomas:
Jérome Lejeune e colaboradores descobriram a
presença de um cromossoma extra nas crianças
com síndroma de Down. A partir de então, foram
reconhecidas muitas das principais síndromas
causadas por anomalias cromossómicas.
Actualmente estima-se que as anomalias cromossómicas são responsáveis por 80% dos abortos
espontâneos do primeiro trimestre da gestação, diagnosticando-se em 0,7% dos recém-nascidos.
Os indivíduos com anomalias cromossómicas
têm, em geral, fenotipos característicos e frequentemente apresentam mais semelhanças com os indivíduos com a mesma anomalia, do que com os seus
irmãos e progenitores. As anomalias fenotípicas resultam do desequilíbrio genético que perturba o
curso natural do desenvolvimento do embrião.
Dismorfias, anomalias congénitas e perturbações
do desenvolvimento psicomotor encontram-se em
todas as cromossomopatias em que existe material
genético em excesso ou perdido.
Os rearranjos estruturais equilibrados, (todo o
material genético está presente mas distribuído de
forma anormal) associam-se, em geral, a fenotipos
normais. No entanto, e por razões não completamente esclarecidas, verificou-se que em indivíduos com deficiência mental há um excesso de rearranjos equilibrados de novo.
Com as técnicas laboratoriais actuais, é possível
corar os cromossomas através de diversos métodos
que evidenciam um conjunto de bandas, permitindo identificar as várias regiões cromossómicas.
Morfologia do cromossoma
Os cromossomas, após a preparação laboratorial,
possuem um aspecto linear e são constituídos por
dois braços unidos por uma zona de constrição: o
centrómero. O braço curto é designado por p
(petit) e o braço longo designado por q (letra que
se segue no alfabeto).
Cada espécie tem um número de cromossomas
característico. A espécie humana é constituída por
46 cromossomas, que se organizam em 23 pares,
dos quais 22 autossomas (homólogos e com a mesma morfologia) e um par, o 23°, constituído pelos
cromossomas sexuais. Os cromossomas distinguem-se tendo em conta o seu tamanho, posição
do centrómero e padrão de bandas. O centómero
pode estar posicionado no centro e o cromossoma
designa-se metacêntrico; afastado do centro - submetacêntrico; ou próximo de uma das extremidades – acrocêntrico.
Anteriormente os cromossomas foram organizados em grupos de A a G de acordo com o seu tamanho e a posição do centrómero. Actualmente, com as
técnicas de coloração existentes, foi possível obter
um padrão de bandas específico para cada cromossoma. Os autossomas foram numerados do maior
para o menor, de 1 a 22. O estudo e a organização
dos cromossomas em pares e tamanho decrescente,
incluindo os gonossomas, designa-se por cariótipo.
Classificação das anomalias
cromossómicas
As anomalias cromossómicas podem ser numéricas ou estruturais e afectar um ou mais cromossomas, autossomas ou sexuais, ou ambos. Uma determinada anomalia pode estar presente em todas
as células do indivíduo, ou existir em duas ou mais
linhas celulares, das quais, pelo menos uma, é
anormal, constituindo um mosaico. Estes originam-se por não disjunção numa fase precoce da divisão do zigoto, e a proporção de células normais
e anormais pode variar de tecido para tecido.
Anomalias numéricas
As anomalias numéricas surgem principalmente
por não disjunção, na primeira ou na segunda divisão meiótica, fenómeno que é ainda mal conhecido e susceptível de controvérsia.
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas
O total de cromossomas de um gâmeta (n=23)
designa-se por haplóide, o dobro do número haplóide por euplóide, ou seja com 46 cromossomas.
Os múltiplos de n superiores a 2n, designam-se
poliplóides: um cariotipo com 3n designa-se
triplóide e, com 4n, tetraplóide. As triploidias são
conhecidas no homem embora poucos indivíduos
com esta anomalia tenham nascido vivos. As
tetraploidias foram encontradas apenas em abortos precoces. A poliploidia pode surgir devido a
vários mecanismos ainda mal esclarecidos.
Qualquer número de cromossomas num cariótipo que não seja múltiplo exacto do número haplóide designa-se por aneuplóide. As aneuploidias
podem ocorrer nos autossomas e nos gonossomas.
Anomalias estruturais
A deleção consiste na perda de uma parte do cromossoma, que pode ser terminal, se tiver ocorrido
apenas um ponto de quebra; ou intersticial, se
tiverem existido dois pontos de quebra. A parte
delecionada, se não contiver centrómero (fragmento acêntrico), em geral perde-se numa divisão
celular posterior.
Um exemplo comum de deleção terminal é o da
síndroma do Cri-du-Chat, descrito por Lejeune e
colaboradores, bem conhecido dos pediatras. As
crianças afectadas nos primeiros meses de vida
têm o choro semelhante ao “miar de gato”. Esta
síndroma é caracterizada por uma deleção do
braço curto do cromossoma 5: del (5) (p15.3).
O cromossoma em anel resulta de uma deleção de
ambas as extremidades do cromossoma e união
das extremidades, dando ao cromossoma a forma
citogenética característica.
A duplicação consiste na presença de um segmento duplicado do próprio cromossoma. São comuns e geralmente provocam menos alterações
fenotípicas que as deleções. Podem ser directas ou
invertidas; os mecanismos que as originam são
complexos.
A inversão corresponde a uma ruptura dum cromossoma em dois pontos de quebra e sua reconstituição com inversão de 180º do segmento. Se a inversão envolver apenas um dos braços do cromossoma designa-se por paracêntrica; se incluir a
região centromérica, é pericêntrica. A inversão isolada habitualmente não origina alterações no
fenotipo, apesar de poder ocorrer se os pontos de
77
quebra se situarem dentro de genes ou sequências
reguladoras. As inversões podem ter consequências no processo de reprodução, pois algumas
crianças das quais um dos progenitores é portador
de uma inversão, apresentam cromossomas recombinantes com duplicações ou deleções.
A translocação ou deslocamento de um ou mais
segmentos de cromossoma é de dois tipos: recíprocas e robertsonianas. A translocação recíproca
consiste na troca de fragmentos de cromatina entre cromossomas não homólogos, o que normalmente dá origem a fenotipos normais. O cromossoma formado chama-se derivado (der). Os descendentes de um indivíduo com translocação
equilibrada podem ter cariótipo normal, herdar a
translocação com um fenotipo normal, ou originar
gâmetas desequilibrados cuja manifestação será
um aborto espontâneo ou um recém-nascido com
cromossomopatia complexa.
A translocação robertsoniana ocorre entre dois
cromossomas acrocêntricos (13, 14, 15, 21, 22,) que
se fundem na região do centrómero e perdem os
seus braços curtos heterocromáticos, mostrando o
cariotipo 45 cromossomas. Este tipo de translocação, descrito por Robertson em 1916, é o rearranjo equilibrado mais comum na população, com
uma frequência de 1 em cada 1000 indivíduos.
Uma das translocações mais comuns ocorre entre
o cromossoma 13 e o 14: der (13;14) (q10;q10). Na
descendência de um portador pode ocorrer a formação de gâmetas desequilibrados.
A inserção é um tipo raro de translocação não
recíproca, em que um segmento de um cromossoma é inserido noutro.
O isocromossoma forma-se devido à divisão errada do centrómero que separa os dois braços em
vez dos dois cromatídeos, com duplicação de um
dos braços do cromossoma. O tipo mais comum de
isocromossoma é do braço longo do cromossoma
X. Dos casos de síndroma de Turner, 15% a 20%,
correspondem a esta anomalia cromossómica.
Síndromas de causa cromossómica
São descritas a seguir as características de algumas síndromas de causa cromossómica:
Trissomia 21 (Síndroma de Down)
A trissomia 21 foi descrita pela primeira vez por
78
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Langdon Down em 1866, mas a sua causa foi desconhecida durante quase um século. Desde as descrições iniciais ressaltou que a idade materna
destes indivíduos era avançada. Só em 1959 foi
verificado que as crianças com trissomia 21 tinham
47 cromossomas, sendo o cromossoma extra um
acrocêntrico, o 21. A designação de mongolismo
caiu em desuso: referia-se ao facto de o fenotipo
sugerir uma origem oriental pela obliquidade em
V das fendas palpebrais. A trissomia 21 é geralmente diagnosticada ao nascer ou pouco depois,
pela dismorfia facial característica e outras alterações fenotípicas.
As crianças são geralmente hipotónicas o que
tem relevância nos primeiros meses de vida. Em
cerca de 40% a 60% dos casos existe cardiopatia
congénita, (frequentemente defeitos completos do
septo aurículo-ventricular). Existem também associadas outras anomalias do tubo digestivo e da
área neuro-sensorial. Todas as crianças têm deficiência mental, habitualmente de grau moderado.
Os indivíduos afectados têm uma sobrevivência
cada vez mais longa.
A trissomia 21 ocorre na forma livre, por
translocação ou em mosaico. A forma mais frequente é a forma livre (95% dos casos) em que todas as células apresentam 47 cromossomas. A
causa principal é a não disjunção, relacionada com
o aumento da idade materna. Em 4% dos casos, a
trissomia 21 resulta de uma translocação que pode
ocorrer de novo ou relacionar-se com uma translocação num dos progenitores, mais frequentemente
dos cromossomas 14 e 21. O risco de recorrência
depende dos cromossomas envolvidos e do progenitor com translocação. Cerca de 1% dos casos
são mosaicos que, na maioria dos casos, correspondem a fenótipos menos marcados. A associação e a prevalência das características variam
(Figura 1 e Quadro 1).
Trissomia 18 (Síndroma de Edwards)
A trissomia 18, descrita pela primeira vez por
Edwards em 1960, tem uma frequência de 1 em cada 8.000 recém nascidos. A esperança de vida
destas crianças é em média de 2 meses, apesar de
alguns casos sobreviverem vários anos. Cerca de
80% dos indivíduos são do sexo feminino. A etiologia da trissomia 18 mais frequente é a não disjunção, correspondendo cerca de 10% a mosaicos.
FIG. 1
Síndroma de Down. Aspecto da fácies: inclinação mongolóide
das fendas palpebrais.
QUADRO 1 – Síndroma de Down.
Algumas características
Características faciais
• Face redonda
• Pregas do epicanto
• Manchas na íris
• Protusão da língua
• Orelhas pequenas
Outras anomalias
• Occiput achatado
• Sulcos anormais na palma das mãos e planta dos pés
(dermatoglifos)
• Hipotonia
• Cardiopatia congénita (40% dos casos)
• Atrésia duodenal
Problemas de manifestação tardia
• Dificuldades de aprendizagem
• Baixa estatura
• Infecções respiratórias correntes
• Défice auditivo relacionável com otite serosa
• Risco elevado de leucemia
• Risco de instabilidade atlanto – axial (rara)
• Hipotiroidismo
• Doença de Alzheimer
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas
As crianças com trissomia 18 têm atraso de desenvolvimento grave, dismorfia facial característica (nomeadamente fronte proeminente, hipoplasia
da mandíbula e pavilhões auriculares de baixa implantação e malformados). O esterno é curto. As
mãos fecham-se de um modo característico, com o
segundo e o quinto dedo sobrepondo-se ao primeiro e ao quarto. Os pés são arqueados com calcanhares proeminentes. São frequentes defeitos
cardíacos (Quadro 2 e Figuras 2 e 3).
Outras anomalias do cromossoma 18
Foram identificadas outras anomalias, como deleções parciais do braço curto e longo, trissomia do
braço longo, e cromossoma 18 em anel. Os fenótipos são característicos de cada anomalia.
FIG. 2
QUADRO 2 – Síndroma de Edwards
• Maxilar inferior hipoplásico
• Orelhas de implantação baixa
• Sobreposição dos dedos das mãos (polegar sobre a
palma, sobreposição do médico com o anelar)
• Calcanhar saliente (em forma de “martelo”)
• Defeitos congénitos cardíacos e renais
Trissomia 13 (Síndroma de Patau)
A trissomia 13 foi pela primeira vez descrita por
Patau em 1960; os indivíduos afectados apresentam um conjunto de características fenotípicas e
cerca de metade dos recém-nascidos morrem no
período neonatal. As anomalias amis frequentes
são: holoprosencefalia, fenda palatina e lábio leporino (60-80% dos casos), microftalmia, polidactilia, defeitos cardíacos e renais. Cerca de 20% dos
casos ocorrem por translocação (Figura 4).
Síndroma de Klinefelter (47,XXY)
Esta síndroma foi descrita em 1942 por Klinefelter
e caracteriza-se por atraso no desenvolvimento
sexual, testículos pequenos, alterações ou ausência de espermatogénese e ginecomastia; alguns indivíduos são altos e de tipo eunuco. Cerca de 15%
dos casos correspondem a mosaicos, com duas ou
mais linhas celulares, nomeadamente mos
46,XY/47,XXY. Existem outras variantes de aneu-
Síndroma de Edwards. Inclinação antimongolóide das fendas
palpebrais.
FIG. 3
Síndroma de Edwards. Aspecto de calcanhar saliente, “em
martelo”.
79
FIG. 4
Síndroma de Patau em RN com holoprosencefalia.
80
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Síndroma de Turner
• Linfedema das mãos e pés no recém – nascido
• Baixa estatura
• Prega do pescoço (pterigium colli)
• Cúbito valgo
• Mamilos muito afastados da linha média
• Defeitos cardíacos congénitos (particularmente coarctação da aorta)
• Disgenésia ovárica com consequente infertilidade
• Desenvolvimento cognitivo normal
16
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Definição e importância de problema
QUADRO 4 – Síndroma do X frágil
• Dificuldades de aprendizagem (QI: 20-80, média 50)
• Aspecto da fácies característica (face longa, orelhas
salientes – por vezes a única característica chamativa –
maxilar inferior proeminente e fronte grande
NB – Nas crianças pequenas os sinais dismórficos faciais poderão não ser evidentes; as
orelhas salientes poderão ser a única característica mais exuberante.
ploidias dos cromossomas sexuais como 48,XXYY,
48,XXXY, e 49,XXXXY. Geralmente estes indivíduos têm maior perturbação do desenvolvimento
psicomotor e alterações fenotípicas com o aumento do número total de cromossomas X no cariótipo.
Síndroma de Turner (45,X)
A síndroma de Turner foi descrita em 1938 por
Turner. Caracteriza-se por baixa estatura, pescoço
largo, baixa implantação dos cabelos, dismorfia facial característica e infantilismo sexual. Na maioria dos casos há infertilidade e amenorreia. Cerca
de 40% correspondem a mosaicos. Esta anomalia
está encontrada frequentemente associada a hydrops fetalis e abortos espontâneos (Quadro 3).
Síndroma do X frágil
As principais carcaterísticas desta síndroma (que
explica cerca de 3% dos casos de deficiência mental no sexo masculino e surge entre 1/1000 a
1/2000 RN do sexo masculino) constam do
Quadro 4.
O conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) abrange
um conjunto de técnicas de diagnóstico clínico para
determinar a integridade genética de um embrião
ou feto em desenvolvimento. Recorre a meios complementares de diagnóstico não invasivos como a
ecografia, ou invasivos como amniocentese, colheita
de vilosidades coriónicas, cordocentese e fetoscopia.
A actividade de DPN necessita do funcionamento harmonioso de uma equipa multidisciplinar que inclui:
• Obstetras com conhecimento de medicina fetal, das técnicas de DPN e dos procedimentos para a realização de interrupção de
gravidez;
• Pediatras, preferencialmente neonatologistas
com experiência em dismorfologia e anomalias congénitas;
• Geneticistas com experiência de aconselhamento genético e patologia do desenvolvimento fetal;
• Cirurgiões, cardiologistas pediátricos e especialistas de outras áreas, com experiência no
diagnóstico e tratamento de anomalias congénitas;
• Enfermeiros, técnicos do serviço social, psicólogos e outros profissionais.
Esta equipa agrega áreas muito diversificadas
quanto a conceitos e competências as quais permitem prestar cuidados especializados ao feto,
desde a realização de técnicas de diagnóstico até a
intervenções complexas de medicina fetal em que
o feto é cuidado na sua globalidade como doente,
ainda que in utero. De realçar as implicações éticas
de uma grande diversidade de intervenção.
De acordo com a legislação portuguesa, os hos-
CAPÍTULO 16 Diagnóstico pré-natal
pitais integrando Centros de Diagnóstico PréNatal (CDPN) têm uma Comissão Técnica de Certificação de Interrupção de Gravidez (CTCIG) que,
de acordo com a Lei, delibera sobre os pedidos da
interrupção de gravidez no seguimento da realização de exames de DPN.
Indicações
81
3 – Filho anterior com aneuploidia
Se o cariótipo revelar uma aneuploidia na forma
livre, o risco empírico de recorrência é cerca de 1%
a 2 % o que justifica a realização de cariótipo fetal.
4 – Progenitor com translocação equilibrada
Neste contexto está justificado realizar o cariótipo
fetal para excluir a ocorrência de translocação desequilibrada no feto.
As principais indicações para realizar o DPN, são:
1 – Idade materna ≥35 anos
A idade materna igual ou superior a 35 anos é a indicação mais frequente para a realização de DPN,
pois associa-se ao risco acrescido de não disjunção
dos cromossomas. As anomalias cromossómicas
mais frequentes ao nascer que se associam à idade
materna são as trissomias 21, 18 e 13.
Estas trissomias podem ser suspeitadas por
ecografia pelo padrão de anomalias habitualmente
presentes nas síndromas. Porém, torna-se sempre
necessário confirmar o diagnóstico pela realização
do cariótipo fetal.
No Quadro 1 apresenta-se a incidência de trissomia 21 em função da idade materna.
2 – Idade paterna
Até ao momento não foi demonstrado de forma
consistente que mais anos de idade paterna aumentem o risco de aneuploidias por não disjunção.
Porém, o risco parece bem documentado em relação a mutações dominantes, de que é exemplo a
síndroma de Apert.
QUADRO 1 – Incidência de trissomia 21
Idade materna
Risco de trissomia 21
no parto
ao nascer
35 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/384
36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/307
37 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/242
38 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/189
39 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/146
40 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/112
41 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/85
42 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/65
43 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/49
Adaptado de Burton PR, 2006
5 – Feto com diagnóstico de anomalia fetal
Os fetos com diagnóstico de anomalia congénita
major têm em 4% dos casos outras anomalias.
Deste modo, é necessário realizar sempre um estudo ecográfico em pormenor e amniocentese para
determinação do cariótipo fetal, pois muitos destes
fetos são portadores de anomalia cromossómica.
Significado diferente tem a presença de marcadores ecográficos, como o aumento da translucência da nuca, que não corresponde a uma anomalia; apenas é um sinal de risco acrescido de trissomia no feto.
6 – Doença recessiva autossómica ou ligada ao X
Se o caso índex estiver devidamente caracterizado,
é possível realizar um DPN específico para essa
doença.
7 – Doença autossómica dominante
O DPN é dirigido para a patologia específica após
o estudo aprofundado do caso índex e da história
familiar. Pode realizar-se a partir de células do líquido amniótico ou de outros tecidos e, em geral,
através de técnicas de biologia molecular.
É exemplo a distrofia miotónica. Tem frequência de 1/8000 em recém-nascidos e resulta da expansão do tripleto (CTG)n num gene localizado no
cromossoma 19 (19q13.2-q13.3). Na população
normal existem entre 5 a 27 exemplares do tripleto, nos doentes cerca de 50 exemplares nas formas
ligeiras, e mais de 1000 nas formas graves.
8 – Doença genética sem DPN específico
Corresponde às doenças em que, não tendo sido
possível localizar o gene e proceder a diagnóstico
laboratorial, se associam alterações ecográficas no
feto. De salientar, a propósito, as anomalias cardíacas podem ser diagnosticadas por ecografia no
período pré-natal sendo o risco de recorrência mé-
82
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dio para um casal com um filho afectado de 3% a
5%.
Técnicas invasivas de DPN
As principais técnicas invasivas utilizadas no
DPN são:
1 – Amniocentese
A amniocentese é a técnica invasiva mais frequentemente utilizada; realiza-se sob controlo
ecográfico entre as 15 e as 16 semanas de gestação.
Deve ser precedida por um exame ecográfico
para confirmar o número e a viabilidade dos fetos,
a localização da placenta e cordão umbilical, e a
quantidade de líquido amniótico. Em termos técnicos, insere-se uma agulha de punção lombar (calibre: 22 G) através da parede abdominal, directamente no saco amniótico, e aspira-se entre 20 ml e
30 ml de líquido amniótico. Após a amniocentese,
verifica-se a actividade cardíaca fetal e a existência
de sangramento da placenta, do feto ou do cordão
umbilical.
Caso não ocorra qualquer intercorrência, apenas se aconselha à grávida que limite a realização
de grandes esforços, natação ou banho de imersão
nas 24 a 48 horas seguintes.
Nas gestações gemelares dizigóticas é igualmente possível a realização de amniocentese, embora seja necessário proceder à injecção de um produto de contraste que permite ao obstetra identificar o saco amniótico que vai puncionar.
São exemplos de DPN realizados a partir do
líquido amniótico:
• Estudo da biologia molecular
Fibrose Quística
Frequência ao nascer de fetos homozigóticos:
cerca de 1/4000 em Portugal. O gene CFTR está
localizado em 7q31.2 e a mutação mais frequente é
a DF508, que corresponde a 70-75% dos casos.
Estão descritas mais de 1000 mutações.
X- Frágil
Estima-se a frequência de 1/1000 a 1/2000 em
recém-nascidos do sexo masculino. A anomalia
genética é a expansão de um tripleto (CCG)n no
gene FMR 1 localizado em Xq27.3, embora possa
ser causada por alteração de outros genes do cromossoma X. Na população normal existem de 6 a
50 tripletos CGG, nos indivíduos com pré-mutação
entre 41 e 200 tripletos e, nos indivíduos afectados,
mais de 200.
Distrofia Muscular de Duchenne
É uma doença genética com transmissão recessiva ligada ao X com a frequência esperada de 1/3500
a 1/5000 recém-nascidos do sexo masculino.
O gene (DMD, BMD Dystrophin) está localizado no braço curto do cromossoma X (Xp21.2), tem
uma grande dimensão, e estão descritos vários
tipos de mutação (cerca de 2/3 são deleções de um
ou mais exões) que provocam a não produção de
distrofina ou a produção de uma proteína anómala.
• Estudo enzimático
Através deste estudo procura-se um défice ou
excesso de determinado produto metabólico como
consequência da inexistência ou alteração de funcionamento de determinada enzima.
2 – Colheita de vilosidades coriónicas
A colheita de vilosidades coriónicas é realizada por
via transcervical ou transabdominal entre as 10 e as
12 semanas de gestação. A colheita por via vaginal
implica a colocação de um cateter estéril em contacto com a placenta, sob controlo ecográfico, e a
aspiração de 10 a 25 mg de vilosidades coriónicas.
Trata-se duma técnica de DPN do primeiro
trimestre de gestação, sendo as indicações para a
sua realização semelhantes às da amniocentese.
Apesar de estudos realizados em vários países
terem mostrado que o risco de perda fetal é semelhante ao da amniocentese, actualmente é pouco
aplicada na maioria dos países europeus.
3 – Cordocentese
A cordocentese ou técnica de colheita de sangue
dos vasos do cordão umbilical fetal, que se realiza
a partir das 18 semanas de gestação, tem indicações muito precisas e exige que o especialista em
medicina fetal tenha grande experiência. As principais indicações para diagnóstico são a realização
do cariótipo fetal, a avaliação de infecção fetal
nomeadamente por citomegalovírus, parvovírus
B19 e toxoplasmose, assim como o estudo genético de doenças da coagulação, de hemoglobinopatias e de imunodeficiências. Esta técnica é cada vez
mais utilizada para terapêutica fetal, nomeadamente, para transfusão intravascular de produtos
CAPÍTULO 16 Diagnóstico pré-natal
sanguíneos e administração de medicamentos
para tratar o feto.
A cordocentese tem complicações maternas e
fetais, embora raras; são exemplos a amnionite e a
hemorragia transplancentar. A perda fetal nas
grandes séries é cerca de 1%, mas este valor aumenta 4 a 5 vezes quando se utiliza para a realização de transfusão intravascular.
4 – Fetoscopia, biópsia de pele, músculo
e fígado fetais
A fetoscopia é uma técnica invasiva que permite a
visualização do feto com recurso a equipamento
de endoscopia com uma lente de focagem associada a bandas de fibras ópticas que transmitem
luz para a cavidade amniótica. Para a colheita de
tecidos fetais associa-se ao fetoscópio uma pinça
de biópsia específica.
As indicações para utilização desta técnica são
actualmente excepcionais pelo desenvolvimento
da biologia molecular que permite realizar o DPN
a partir de células do líquido amniótico, sem necessidade de visualização directa do feto.
Estudo do feto
Os fetos e recém-nascidos com anomalias congénitas e os fetos de interrupção médica de gravidez devem ter uma avaliação prévia pelo especialista de medicina fetal, obstetra, neonatologista
ou geneticista, com registo dos dados essenciais
observados no hábito externo. A fetopatologia
complementa os dados obtidos anteriormente e
procede ao estudo do hábito interno com o objectivo de se realizar o diagnóstico genético correcto.
Nos casos anteriormente mencionados, devem
realizar-se os seguintes procedimentos:
• Descrição do hábito externo e das anomalias
encontradas;
• Registo de imagens fotográficas em vários
planos desde a perspectiva global ao registo
dos aspectos de pormenor;
• Realização de radiogramas em dois planos;
• Colheita de sangue do cordão ou biópsia da
pele para cariótipo.
Terapêutica fetal
O progresso científico e tecnológico permite já ho-
83
je a realização de intervenções sobre o feto durante
a gestação, de carácter médico ou cirúrgico, com
impacte na sobrevivência e qualidade de vida do
recém-nascido. Esta área corresponde, na verdade,
à Medicina do Feto, valência devotada aos cuidados de saúde do feto enquanto “pessoa doente”,
ainda que fisicamente se encontre no útero da sua
mãe.
Eis algumas das áreas em que se prevê um
maior desenvolvimento nos próximos anos:
1 – Anomalias neurológicas
Hidrocefalia
O procedimento de registo intencional designado por "Fetal Surgery Registry" encontrou uma
sobrevivência de 83% após cirurgia de drenagem
em hidrocefalia fetal. Porém, em 18 dos 34 sobreviventes foram detectadas posteriormente alterações importantes no desenvolvimento psicomotor.
Anomalias do tubo neural
Estudos aleatórios, duplamente cegos, com administração de ácido fólico no período pré-concepcional e no primeiro trimestre de gestação, em
casais com um feto anterior portador de anomalia
do tubo neural, mostraram uma redução na recorrência destas anomalias superior a 70%.
2 – Doenças endócrinas e metabólicas
Hipotiroidismo fetal
O hipotiroidismo fetal pode ser secundário à
terapêutica materna com medicamentos antitiroideus ou corresponder a hipotiroidismo congénito. Pode manifestar-se por bócio que, se for de
grandes dimensões, poderá ter consequências no
desenvolvimento fetal, nomeadamente pela hiperextensão da cabeça. A confirmação da carência
hormonal no feto realiza-se no sangue fetal colhido por cordocentese, o que possibilita a administração de tiroxina ao feto com resultados clínicos
encorajadores.
Hiperplasia congénita da supra-renal
A administração de betametasona à grávida, o
mais precocemente possível até se determinar o
sexo fetal, pode impedir a virilização no sexo feminino.
3 – Doenças cardiovasculares
Taquicardia supraventricular
Estima-se que a incidência seja entre 1/10000 e
84
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
1/25000 fetos. Quando diagnosticada deverá ser
abordada como uma emergência e tratada com
digoxina, o que permite obter resultados geralmente favoráveis.
Bloqueio aurículo-ventricular completo
A frequência do bloqueio aurículo-ventricular
completo é cerca de 1/20000 recém-nascidos.
Cerca de metade destes fetos tem alterações cardíacas estruturais.
A terapêutica medicamentosa com terbutalina,
ou isoproterenol permite um sucesso relativo e está indicada, apenas, quando não existem anomalias cardíacas estruturais associadas, ou hidropisia
fetal.
4 – Doenças nefro-urológicas
Os fetos com síndroma das válvulas da uretra posterior apresentam-se em dois grupos distintos:
– Fetos com obstrução unilateral ou com ligeira
obstrução bilateral e líquido amniótico normal;
– Fetos com oligoâmnio grave e rins displásicos.
Os fetos evidenciando função renal não afectada são candidatos à realização de cirurgia in utero,
com boas expectativas de sucesso terapêutico. Os
fetos com sinais de displasia renal significativa não
beneficiam da cirurgia fetal.
5 – Doenças hematológicas
Trombocitopénia aloimune
Resulta da passagem transplacentar de anticorpos maternos contra um antigénio presente nas
plaquetas fetais. Nalguns casos poderá ser realizada uma transfusão plaquetar que diminui o risco
de hemorragia intracraniana durante o parto.
6 – Doenças pulmonares
Anomalia adenomatosa quística congénita
A correcção intra-uterina desta patologia
poderá realizar-se através de toracocentese com
colocação de derivação para o líquido amniótico
ou, por cirurgia fetal, com histerotomia e remoção
da massa pulmonar torácica. Até ao momento o
número de intervenções cirúrgicas realizadas é escasso, pelo que se torna necessário avaliar com
ponderação os resultados favoráveis que foram
publicados.
Hérnia diafragmática congénita
A hérnia diafragmática congénita é a principal
causa de morte por falência respiratória, com hi-
pertensão pulmonar devida a hipoplasia pulmonar em recém-nascidos. Nalgumas séries, a
cirurgia in utero permitiu a sobrevivência de 70% a
80% dos fetos.
Diagnóstico pré-implantatório
Determinada tecnologia permite efectuar o diagnóstico genético a partir de uma única célula
embrionária, com recurso a técnicas de reprodução medicamente assistida e transferência ou
congelação dos embriões seleccionados.
Os seus objectivos principais, são:
• O nascimento de um ser humano sem a alteração genética identificada anteriormente
no caso índex;
• O nascimento de um ser humano histocompatível para doação de material biológico
necessário a vida de um outro ser humano.
Esta tecnologia constitui um avanço importante da ciência. Porém, as questões éticas que levanta são motivo de debate na sociedade portuguesa e na comunidade científica, não existindo
consensos sobre as suas vantagens e circunstâncias
em que poderá ser aplicada.
Legislação portuguesa
A legislação portuguesa mais relevante nesta área
é a seguinte:
Despacho 5411/97, de 8 de Setembro
Define o âmbito e os princípios, a população
em risco e os modelos de organização dos Centros
de Diagnóstico Pré-Natal, e estabelece o modo de
participação da Genética nesses Centros
Despacho 10325/99, de 5 de Maio
Complementa o Despacho anterior e define o
modelo de constituição dos Centros e os recursos
de que deverá dispor.
Portaria 189/98, de 26 de Fevereiro
Estabelece a constituição das Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção de Gravidez e
as respectivas competências.
CAPÍTULO 17 A consulta de Genética
17
A CONSULTA DE GENÉTICA
Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas
Importância do problema
A consulta de Genética é uma consulta médica,
pelo que inclui elementos comuns a toda a prática
médica de que a história clínica é o elemento essencial.
A história pessoal inclui uma revisão pormenorizada da gravidez, da infância, do crescimento e desenvolvimento, precisando o início das
manifestações da doença, os exames complementares e as intervenções clínicas já realizadas.
A história familiar deve ser pormenorizada e
colhida ao consultante, embora nalgumas circunstâncias se torne necessário inquirir outros familiares. É necessário inventariar outros casos semelhantes na família, anomalias congénitas, doenças
genéticas, atraso mental ou perturbação neurosensorial, que aparentemente não estão relacionadas com o caso índex. Com base nestas informações é construída a árvore genealógica.
O exame clínico permite recolher muitos elementos que contribuem para o diagnóstico e, assim, deve ser sistematizado, valorizando uma percepção global do indivíduo (o apelo à memória de
casos semelhantes) e a descrição e registo de sinais
clínicos e medições antropométricas, que serão
comparados posteriormente com bases de dados
de imagens, nomeadamente, em suporte informático e tabelas apropriadas. A orientação e sequência do exame clínico depende da existência
prévia de um diagnóstico colocado por outro
médico ou da ausência de diagnóstico. Os elementos mais significativos do exame devem ser
sempre registados em imagem.
Os exames complementares a realizar decorrem das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua
realização deve ser criteriosa e económica, tendo
85
em conta os critérios que permitem o diagnóstico
da doença (os elementos necessários para a
“definição de caso”). Poderão realizar-se estudos
cromossómicos, de biologia molecular, imagiologia ou outros. Anteriormente já foram indicados os
elementos essenciais ao estudo dos embriões e fetos-mortos com anomalias congénitas ou que resultaram de interrupção de gravidez.
A principal responsabilidade do médico geneticista é prestar a uma pessoa ou família, informação de natureza genética relacionada com o diagnóstico de uma doença e o risco de recorrência na
sua descendência. Nesta perspectiva, o risco genético corresponde à probabilidade de um membro
da família nascer com uma doença genética particular.
O aconselhamento genético é um processo de
comunicação em que são discutidos riscos genéticos, opções reprodutivas, e também formas de suporte comunitário e apoio clínico à família. Tem
três dimensões principais: realizar ou confirmar o
diagnóstico de uma doença genética, avaliar o
risco genético de recorrência e apoiar o casal nas
suas opções reprodutivas.
É, por definição, não directivo e processa-se em
termos de respeito pela autonomia e dignidade da
pessoa. Porém, o papel do médico geneticista não
pode ser passivo, nem neutro, quando formula o
aconselhamento genético e apoia o processo de
tomada de decisão pelo casal.
Indicação para consulta de Genética
Poderá admitir-se que podem ter acesso às consultas de Genética todas as pessoas e casais em
que foi identificado um risco genético elevado.
Porém, como os recursos actualmente existentes
são escassos, considera-se que as principais indicações para a consulta de Genética são:
• Indivíduo com doença genética ou anomalia
congénita major;
• Pais de criança com doença genética, anomalia congénita importante ou deficiência mental;
• Indivíduo com risco genético elevado pela
história familiar;
• Casal consanguíneo;
• Grávida de risco genético ou com diagnóstico de anomalia fetal;
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
• Abortos recorrentes ou patologia da reprodução;
• Casal com feto-morto portador de anomalia.
Árvore genealógica
Com o uso, foram-se uniformizando os símbolos
utilizados para construir uma árvore genealógica,
seja no âmbito da consulta de genética, seja da
comunicação científica. Os símbolos que são usados com maior frequência, encontram-se descritos
no Quadro 1.
A árvore genealógica é geralmente representada em três gerações, embora nalgumas famílias seja conveniente alargá-la a gerações anteriores.
Deve ser construída de maneira simples e revelar
o máximo de informação possível, tendo em conta a doença particular em estudo. É necessário incluir os dois lados da família e indicar na árvore o
caso índex.
Na árvore genealógica as gerações são representadas em números romanos e da vertical para
a horizontal (I, II, III, etc.). Os indivíduos da mesma geração são representados por numeração
árabe, da esquerda para a direita, geralmente no
lado direito do símbolo a que se refere.
Aárvore genealógica pode ser elaborada imediatamente a partir da informação clínica que o doente
faculta, o que permite desde logo ter uma compreensão global dos dados relevantes da família. Em
situações mais complexas, quando existe consanguinidade, por exemplo, poderão ser registados os
dados essenciais de cada membro da família e, posteriormente, construir a árvore genealógica.
Testes genéticos
Os testes de Genética têm por objectivo realizar o
diagnóstico de doenças genéticas ou identificar
pessoas em risco elevado para determinada
doença genética. A realização dos testes de genética processa-se de acordo com várias tecnologias e
deve obedecer a procedimentos técnicos rigorosos
e contextos, de acordo com regras que garantam os
direitos e a dignidade das pessoas.
Indicações
As principais indicações para realizar testes de
Genética são:
QUADRO 1 – Árvore genealógica: simbologia
utilizada
Simbologia
Significado
Homem
Mulher
Casamento
Pais e Filhos
Gémeos dizigóticos
Gémeos monozigóticos
Sexo indeterminado
Indíviduos afectados
2
?
•
Número de crianças de sexo
determinado e indeterminado
Condutora (doenças recessivas
ligadas ao X)
Morto
→
86
Caso index
Aborto ou feto-morto de sexo
indeterminado
Casamento consanguíneo
• Confirmar o diagnóstico de uma doença
genética;
• Identificar o estado de portador de uma
doença genética numa pessoa saudável, mas
em risco pela história familiar;
• Predizer a probabilidade futura de ocorrer o
aparecimento de uma doença genética de
CAPÍTULO 17 A consulta de Genética
manifestação tardia (teste pré-sintomático);
• Diagnosticar em recém-nascidos a presença de
doenças genéticas que necessitam de terapêutica precoce (por exemplo a fenilcetonúria);
• Realizar o diagnóstico pré-natal e pré-implantatório;
• Prever a resposta do doente a uma terapêutica;
• Testar populações para obter dados sobre a
epidemiologia das doenças genéticas.
Para confirmar o diagnóstico de uma doença
genética é, por vezes, necessário recorrer à realização de diferentes testes, de acordo com o critério
clínico. A certeza do diagnóstico é essencial em
Genética, pois o médico quando afirma um diagnóstico, assume as consequências de realizar o
aconselhamento genético e orientar as opções reprodutivas do casal. Diagnosticar implica, deste
modo, que o doente preencha os critérios obrigatórios da “definição de caso”, o que nem sempre
é possível pela realização de um teste de Genética
específico, como nos casos da trissomia 21 ou da
coreia de Huntington.
Na neurofibromatose do tipo 1 e na síndroma
de Marfan, o diagnóstico é clínico-laboratorial, de
acordo com critérios de consenso definidos por
peritos internacionais. Nestas situações, a realização de testes de Genética específicos, nomeadamente de biologia molecular, nem sempre é obrigatória e poucas vezes é necessária para o diagnóstico.
Tipos de testes de Genética
Os principais exemplos de exames utilizados no
diagnóstico das doenças genéticas são os
seguintes:
a. Biologia molecular
É o método de estudo indicado nas doenças em
que o gene já foi identificado; são exemplos a fibrose quística e a distrofia muscular de Duchenne.
No gene podem ser detectadas várias alterações
como deleções ou mutações pontuais, que poderão
vir a ser responsáveis pela produção de uma proteína anómala.
Nalgumas doenças genéticas, uma única mutação é responsável pela ocorrência da doença
genética; são exemplo a drepanocitose (localização
genética em 11p15.5) e a acondroplasia (mutação
1138G-A no gene FGFR localizado em 4p16.3).
87
Noutras, de que é exemplo a fibrose quística,
foram descritas no gene inúmeras mutações a que
correspondem manifestações fenotípicas diferentes ou mesmo a ausência de alterações. Nas
doenças com estas características são importantes
os estudos de correlação entre o fenótipo e o
genótipo.
A ocorrência de sequências repetidas de trinucleótidos, intragénicas ou nas extremidades do
gene, são a causa de algumas doenças genéticas como a síndroma do X-Frágil, a coreia de Huntington
e a distrofia miotónica; tais sequências explicam
fenómenos como a antecipação e a pré-mutação
(consultar glossário).
Actualmente já é possível estudar por biologia
molecular centenas de genes e este número irá aumentar nos próximos anos. Em muitos casos tratase de genes de susceptibilidade implicados na
patogénese de doenças multifactoriais como cancro e doenças degenerativas do adulto.
b. Citogenética
As principais indicações para a realização de
testes de citogenética são a suspeita clínica de uma
anomalia cromossómica, o diagnóstico pré-natal
quando existe um risco aumentado de aneuploidia
(idade materna ≥ 35 anos ou a presença de anomalia por ecografia) e nas famílias com anomalia cromossómica equilibrada.
Nos últimos anos comprovou-se que algumas
doenças genéticas são provocadas por microdeleções cromossómicas que podem ser exploradas através de sondas específicas (FISH), quando o quadro clínico é sugestivo. São exemplos
deste tipo de doenças a síndroma de Prader-Willi
(15q12; 15q11.q13; 15q11) e a síndroma de Williams
(7q11.2).
c. Bioquímica genética
O doseamento enzimático tem indicação no diagnóstico dos erros inatos do metabolismo que, na
generalidade dos casos, têm transmissão autossómica recessiva. A utilização destas técnicas
para o diagnóstico de portadores coloca, por vezes,
algumas dificuldades, pois poderá haver sobreposição dos valores encontrados com os de indivíduos normais. Nestes casos, terá que se recorrer a outras técnicas laboratoriais complementares.
Outros testes de bioquímica têm importância
no diagnóstico de doenças genéticas, como o
doseamento do factor VIII na hemofilia A e a elec-
88
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
troforese das hemoglobinas e quantificação da A2
e F nas talassémias. Estes testes são utilizados nas
etapas iniciais do diagnóstico, a que se segue a realização de exames de biologia molecular.
Os tecidos biológicos em que se realizam os
exames de bioquímica variam de teste para teste.
Para cada caso é sempre desejável que o médico
tenha um contacto prévio com o laboratório que
irá realizar o exame para precisar aspectos como
as condições da colheita, o acondicionamento e as
características do transporte até ao laboratório.
d. Outras técnicas
Algumas doenças genéticas são diagnosticadas
essencialmente pela imagiologia como é o caso da
osteogénese imperfeita. O estudo histopatológico
tem importância na caracterização das distrofias
musculares; por outro lado, o exame oftalmológico
contribui para efectuar o diagnóstico na neurofibromatose tipo 1 (pesquisa de nódulos de Lisch).
Vantagem dos testes de Genética
Os testes laboratoriais de Genética constituem o
único método que permite o diagnóstico correcto
de algumas doenças complexas.
O diagnóstico correcto tem importância para o
aconselhamento genético e para a orientação das
opções reprodutivas, como já foi referido anteriormente. Para o pediatra e clínico geral, o diagnóstico correcto tem a vantagem de permitir estabelecer um programa de cuidados de vigilância de
saúde que tenha em conta a história natural da
doença, avaliar o recurso a outras abordagens terapêuticas e promover a mudança de comportamentos e estilos de vida quando existir um risco
genético elevado de doença multifactorial de acordo com história familiar.
Nas doenças de manifestação tardia, como a
doença de Machado-Joseph e a paramiloidose familiar, em que o teste pré-sintomático conduziu a resultado negativo, o indivíduo pode perspectivar a
sua vida profissional e reprodutiva sem a ansiedade
de poder vir a manifestar essa doença genética.
Limitações dos testes de Genética
Algumas das limitações dos testes são:
• Não são infalíveis e nem sempre permitem
confirmar um diagnóstico de certeza;
• Não é possível identificar todas as mutações
existentes num gene, nem relacionar as identificadas com alterações específicas do
fenotipo;
• Nem sempre a presença de uma mutação
pressupõe que a doença se venha a manifestar (penetrância incompleta);
• Para a maior parte das doenças identificadas
por testes de Genética, não existe terapêutica
nem prevenção;
• Nem sempre uma pessoa a quem foi identificado um risco genético elevado altera o seu
comportamento ou estilo de vida para prevenir o aparecimento da doença.
Contexto da realização dos testes
Deve ser assegurado um conjunto de critérios
para a correcta realização dos testes de genética,
nomeadamente, avaliação clínica e justificação
clara. O aconselhamento genético prévio é essencial e o médico deve explicar ao doente o tipo de
exame que irá realizar, as limitações dos resultados e os benefícios esperados. Esta intervenção, a
base do consentimento livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a assegurar o respeito pela
personalidade, dignidade e direitos da pessoa.
No período em que decorre a realização dos
procedimentos laboratoriais, o doente deverá ter
apoio psicológico se tal se revelar necessário. No
caso da realização de testes pré-sintomáticos ou
preditivos de doenças genéticas de manifestação
tardia, os procedimentos deverão realizar-se de
acordo com os protocolos nacionais, quando existentes.
Privacidade e confidencialidade
A possibilidade de se realizar o estudo directo do
material hereditário constitui um avanço científico
relevante, mas coloca igualmente novos desafios à
sociedade e aos profissionais de saúde.
Caso a informação que resulta da realização
dos testes se torne acessível a empresas ou instituições de direito privado ou público, poderão ocorrer situações de discriminação na vida privada, no
emprego e no acesso a serviços como seguros de
vida ou crédito bancário. Este risco de violação da
privacidade e discriminação pode reportar-se à
CAPÍTULO 17 A consulta de Genética
própria pessoa, aos familiares e mesmo aos seus
descendentes.
Existe, assim, o imperactivo ético de o Estado e
os Serviços de Saúde salvaguardarem a informação genética relevante dos doentes, nomeadamente em termos de acessibilidade, da circulação
nas instituições e do seu arquivamento. Os procedimentos deverão ser rigorosos de acordo com a
legislação em vigor e auditados regularmente.
Realização de testes a crianças
e adolescentes
89
ADN > ácido desoxirribonucleico que suporta a informação
genéticado indivíduo. Este material consiste numa dupla
hélice, como uma escada em espiral, na qual: o corrimão é
feito de moléculas alternadas de desoxirribose (um açúcar)
e fosfato; e os degraus feitos de bases purínicas e pirimidínicas, mantidas juntas por pontes de hidrogénio. A “escada” é torcida em dupla hélice. As bases purínicas são a
adenina (A) e a guanina (G); e as pirimídicas: a citosina (C)
e a timina (T). As referidas pontes de hidrogénio”garantem”
o emparelhamento de A com T e de G com C. Quando o
ADN se replica, os 2 filamentos separam-se e cada um, com
a ajuda da enzima ADN polimerase, forma um novo filamento, dando origem a 2 novas hélices, idênticas na se-
A realização de testes de biologia molecular para
fins clínicos deve obedecer a um conjunto de
regras que tenham em conta o interesse e as vantagens para a criança e adolescente da realização
do exame salvaguardando a sua autonomia e o
direito de, na maioridade, tomarem uma decisão
informada. Estas balizas foram tidas em conta na
elaboração da legislação portuguesa, nomeadamente a obrigatoriedade de os pais autorizarem
expressamente a realização dos exames, após
serem devidamente informados e esclarecidos
pelo médico assistente.
Legislação portuguesa
quência de bases:G – C/A – T.
Alelo > um dos dois genes diferentes que ocupam posições correspondentes ou idênticas (locus) em cromossomas homólogos, que exercem a mesma função mas determinam características diferentes.
ARNm (mensageiro) > o ácido nucleico que transporta do núcleo para o citoplasma a informação genética do ADNpara
ser traduzida (ver adiante o termo tradução) em proteína
(cadeia polipeptídica).
Autossoma > qualquer cromossoma que não seja sexual.
Carga genética (liability) > efeito cumulativo dos factores
genéticos na ocorrência de uma doença.
Codão > sinónimo de Tripleto (ver adiante).
Congénito > qualquer característica ou doença que esteja presente, visível ou não, no nascimento.
Despacho 9108/97, de 18 de Setembro
Define o contexto e os procedimentos para a realização dos testes de biologia molecular no âmbito
da prestação de cuidados de saúde, nas situações
de diagnóstico clínico, diagnóstico do estado de
heterozigotia, diagnóstico pré-sintomático e diagnóstico pré-natal.
As orientações deste diploma são claras e estabelecem os contextos e as preocupações que os
médicos devem ter quando prescrevem a realização de exames de biologia molecular a crianças e
adolescentes; em particular, para estudos do estado de heterozigotia, ou testes pré-sintomáticos,
quando não existe uma vantagem clínica imediata que justifique a realização dos testes.
Consanginidade > quando um casal partilha ascendentes comuns.
Cromossoma > estrutura intracelular que contém o material
hereditário do indivíduo. A capacidadede coloração deve-se à cromatina.
Diplóide > diz-se de uma célula que possui uma série dupla de
cromossomas homólogos.
Enzima de restrição > grupo de enzimas de origem bacteriana
que corta o ADN em sequências específicas.
Exão > segmento do gene que regula a sequência de aminoácidos duma proteína.
Expressividade > a intensidade com que se exprime um determinado fenótipo.
Fenótipo > características físicas de um indivíduo; representa
a interacção entre o património genético do indivíduo e os
factores ambientais.
FISH > “Fluorescente in situ hybridization”; é um método da
GLOSSÁRIO
Ácidos nucleicos > constituintes da célula viva (essencialmente
genética laboratorial.
Genómica > estudo do genoma e da sua acção.
do núcleo), que contêm uma base púrica, um açúcar e áci-
Genótipo > toda a informação genética contida no ADN do in-
do fosfórico (sob a forma de éter). Existem 2 tipos: o ácido
divíduo, que inclui o ADN existente nos cromossomas, nas
desoxirribonucleico (ADN) e o ácido ribonucleico (ARN).
mitocôndrias e noutros organelos intracelulares.
90
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Gene > unidade essencial do material hereditário (segmento
de ADN) que codifica um produto que vai desempenhar
uma função.
Gonossoma > cromossoma sexual, o X ou o Y.
Transcrição > processo pelo qual um gene se expressa num
ARN mensageiro.
Transgene > gene que foi incorporado no genoma de outro organismo.
Haplóide > diz-se de células que possuem apenas um exem-
Triploidia > situação de um núcleo, de uma célula, ou de um
plar de cada um dos cromossomas próprios da espécie (23
organismo cujo complemento cromossónico inclui três
na espécie humana). Os gâmetas são haplóides.
genomas haplóides. A triploidia é uma das formas fre-
Haplotipo > sequência de locus com proximidade num cromossoma que tendem a ser herdados em conjunto.
Hereditabilidade > proporção da variância total de uma característica que é causada pelos genes.
Heterozigoto > ter uma forma alélica deferente de um gene,
quentes de poliploidia.
Tripleto > grupo de três bases púricas (ou purínicas) ou pirimídicas na molécula de ADN ou ARN, que condiciona a incorporação de (codifica para) um aminoácido específico na
molécula de uma proteína. Sinónimo de codão.
em locus homólogos; isto é, 2 genes diferentes, com a mesma localização em cromossomas homólogos.
Homozigoto > ter a mesma forma alélica nos dois locus homólogos; isto é, 2 genes idênticos com a mesma localização em
cromossoma homólogos.
Intrão > segmento do gene que intervém na (ou concretiza) sequência de aminoácidos duma proteína.
Limiar > valor do efeito cumulativo dos factores genéticos, que
permite a ocorrência de uma característica multifactorial.
Linkage > situação em que genes, localizados com grande
proximidade, tendem a ser co-herdados.
Locus > a localização específica de um gene específico num cromossoma.
Mutação > alteração espontânea que ocorre no material hereditário.
Parentesco em 1.° grau > indivíduos que partilham 50% do
património genético: pais, irmãos, filhos.
BIBLIOGRAFIA (capítulos 12 a 17)
Braude P. Preimplantation diagnosis for genetic susceptibility
N. Engl J Med 2006; 355: 541-543
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Gosden RG, Feinberg AP. Genetics and Epigenetics – Nature´s
Pen-and-pencil set. N Engl J Med 2007; 356: 731-736
Parentesco em 2.° grau > indivíduos que partilham 25% do
Harper S, Hauser MA, DelloRusso C, Duan D et al. Molecular
património genético: meios-irmãos, avós, tios, sobrinhos, netos.
flexibility of dystrophin: implications for gene therapy of
PCR > técnica de biologia molecular que permite amplificar se-
Duchenne muscular dystrophy. Nature Med 2002; 8: 253-
lectivamente sequências de ADN (Reacção da polimerase
em cadeia ou Polymerase Chain Reaction).
Penetrância > expressão da frequência com que ocorre determinado fenótipo, quando um dos alelos tem uma mutação.
Polimorfismo > característica genética em que existe mais de
uma forma comum na população.
Portador > indivíduo heterozigo em que um dos alelos tem
uma mutação de uma doença autossómica recessiva.
261
Shachan, T Read AP. Human Molecular Genetics. New York:
John Wiley & Sons. 1999
Shastry BS. Schizophrenia: a genetic perspective (review). Int J
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World Health Organization. Genomics and world health- the
advisory committee on health research. Geneve: The World
Health Organization, 2002.
Proteonómica > técnicas que estudam as proteínas produzi-
Zletogora J. Parents of children with autosomal recessive dis-
das pelo genoma e como interagem para determinar as
orders are not always carriers of the respective mutant
funções biológicas.
allels. Hum Genet 2004; 114: 521-526
Susceptibilidade genética > representa a predisposição para
a ocorrência de determinada doença pela presença de um
alelo particular ou combinação de alelos.
Telómero > a extremidade natural de um cromossoma.
Tradução > processo pelo qual uma cadeia polipeptidica se
origina a partir de um ARN.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
91
18
ANOMALIAS CONGÉNITAS
Maria de Jesus Feijoó
Definição
Num sentido lato, anomalias congénitas (AC) são
erros de desenvolvimento, presentes desde o período embriofetal e manifestando-se por alterações
estruturais, funcionais ou bioquímicas, que podem
ser detectadas ao nascer ou mais tardiamente. A
sua etiologia é heterogénea, inerente ao feto como
no caso das anomalias cromossómicas ou génicas,
ou exterior a ele como no caso de factores físicos,
infecciosos, bioquímicos ou outros. Muitas vezes
pode haver acumulação de factores como no caso
da chamada etiologia multifactorial.
Num conceito mais restrito, o termo refere-se a
um defeito estrutural de instalação embriofetal, reconhecido ou não ao nascer, e de etiologia variável.
Importância do problema
A ocorrência de AC está documentada desde os
tempos mais remotos da Humanidade, em muitos
textos da Antiguidade, sendo inúmeras as suas
representações na Arte em todas as civilizações.
A explicação das suas causas bem como o comportamento da sociedade variaram naturalmente de
acordo com as várias culturas e o momento da
História. Mas foram os enormes avanços da Genética
Médica alcançados nas últimas décadas, e o reconhecimento de factores nocivos do ambiente como
causa de anomalias congénitas, que tornaram possível não só os conhecimentos que hoje temos da sua
etiologia e epidemiologia, bem como a utilização de
métodos de prevenção cada vez mais eficazes.
Hoje as AC são um problema de Saúde Pública
e a sua incidência é tanto mais elevada quanto
menor for a idade gestacional considerada. Se no
período pré-natal é difícil quantificar a sua im-
FIG. 1
Anomalias congénitas comparadas a um iceberg: evidentes e
não evidentes.
portância devido ao elevado número de perdas embrionárias e fetais por AC, elas são relativamente
frequentes e preocupantes no período pós--natal,
uma vez que 2 a 3 por cento dos recém-nascidos
vivos têm uma ou várias AC de gravidade muito
variável, o que justifica frequentemente o recurso a
internamentos hospitalares prolongados; constituem, efectivamente a segunda causa de mortalidade perinatal. Numa avaliação da mortalidade infantil em Portugal nos anos de 1991 a 1993, L Nunes
e MCA Carvalho encontraram uma percentagem
de 27,3% de óbitos no primeiro ano de vida e de
15% entre 1 e 4 anos, devidos a AC.
É, no entanto, de prever que a criação e desenvolvimento de Centros de Diagnóstico Pré-natal
bem organizados e equipados venham a ter, cada
vez mais, um impacte considerável sobre a prevenção de anomalias graves e não tratáveis no
recém-nascido.
Na Figura 1 está representada a clássica comparação das AC com um iceberg. As que se eviden-
92
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ciam após o nascimento, representadas pela parte
visível da massa gelada, são apenas uma pequena
parcela da realidade. Na verdade, a maioria das
AC, particularmente as mais devastadoras, são
letais no período pré-natal:
– cerca de 40% dos zigotos não sobrevivem
devido a erros de desenvolvimento, particularmente durante as primeiras oito semanas;
– 2 a 3% dos recém-nascidos (RN) têm anomalias congénitas, a maioria das quais de natureza genética;
– das mais de 4000 doenças mendelianas indexadas no catálogo de doenças hereditárias de
McKusick, cerca de 1900 têm alterações da morfogénese, sendo para cima de 1000 as descritas
com conjuntos malformativos complexos.
Factores etiológicos
O Quadro 1 resume os factores etiológicos mais
frequentemente implicados: genéticos e ambientais (teratogénicos), por vezes associados; pode
concluir-se que, na maioria dos casos não é possível identificar o factor causal.
No Quadro 2 são referidos alguns exemplos de
factores teratogénicos.
1 – Desenvolvimento embriofetal normal
e patológico – Breves conceitos
O genoma que o zigoto recebe dos seus progenitores constitui um conjunto de regras que permite
construir um embrião. Essas regras, que constituem o mecanismo regulador do desenvolvimento embrionário, estão na base de uma sucessão
muito complexa de acontecimentos minuciosamente programados no tempo e no espaço.
Desses acontecimentos fazem parte processos
tão importantes como a divisão celular, a adesão
celular, a indução, a migração das células, a apoptose, o crescimento e a diferenciação.
Os genes são as “ferramentas” moleculares responsáveis pela organização de toda a morfogénese
e estrutura cromossómica. Convém, no entanto, ter
sempre presente que num cariótipo se vêem os cromossomas mas não se visualizam os genes .
Cabe à biologia molecular explicar como a informação unidimensional contida na cadeia de ácido desoxirribonucleico (ADN) origina uma informação tridimensional (proteína) responsável pelas
QUADRO 1 – Anomalias congénitas – Etiologia
Etiologia
• Factores de Ambiente (Teratogénicos) (~10%)
• Factores Genéticos (~10-25%)
– Determinação poligénica
– Genes mutantes
– Desequilíbrio genético (anomalia cromossómica)
• Factores Ambientais e Genéticos
• Factores Desconhecidos (~65-75%)
Jones Kl, 1997
QUADRO 2 – Anomalias congénitas – Factores
ambientais
Factores Ambientais (Teratogénicos)
• Germes Microbianos
– Agentes TORCH
– Vírus da varicela
• Doenças Maternas
– Diabetes mellitus
– Fenilcetonúria materna
– Hipertemia
• Agentes Químicos, Físicos, Drogas
– Álcool
– Aminopterina e metotrexato
– Anticonvulsantes
– Dietilestilestrol
– Lítio
– Metil-mercúrio
– Radiações
– Tetraciclina
– Talidomida
– Análogos da Vitamina A (ácido retinóico)
– Varfarina
– Cocaína
Jones Kl, 1997
transformações têmporo-espaciais que caracterizam o normal desenvolvimento do embrião.
A partir do ovo, o embrião tem, pois, teoricamente todas as potencialidades para se desenvolver e crescer de uma forma harmoniosa e previsível. Esta evolução está dependente da interacção de factores genéticos específicos de cada indivíduo e de factores ambientais muito diversos
com particular relevância para os factores nutricionais, endócrinos e metabólicos.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
93
O programa de crescimento e desenvolvimento do embrião é muito preciso no que respeita ao
tempo e ao espaço em que ocorrem os acontecimentos que irão transformar o ovo num recémnascido.
Com uma frequência muito maior do que seria
de esperar e do que seria desejável, existem falhas
de natureza genética ou epigenética que conduzem a uma disrupção do programa estabelecido com consequências mais ou menos graves na
estrutura e funcionamento do embrião.
É muito útil para compreender a génese das
anomalias congénitas, relembrar os fenómenos da
fertilização e as fases do desenvolvimento embriofetal , caracterizadas por uma sucessão de estádios
ininterruptos mas morfologicamente bem definidos.
A fertilização é um fenómeno complexo de interacção entre um óvulo e um espermatozóide,
veículos da informação genética materna e paterna, indispensável ao normal desenvolvimento do
embrião e do feto. A fertilização tem como consequência a formação do zigoto, considerado como
o ponto zero do desenvolvimento embrionário.
Por vezes, a informação que chega ao zigoto,
quer por via materna, quer por via paterna, contém erros de natureza génica ou cromossómica,
responsáveis pela génese de anomalias congénitas
de natureza e gravidade muito variáveis.
Assim, as anomalias cromossómicas de número (devidas a não-disjunção meiótica), as
anomalias cromossómicas de estrutura e as mu-
tações génicas, podem chegar ao zigoto por via
materna, paterna, ou ambas simultaneamente.
A anomalia cromossómica mais frequente no
RN vivo é a trissomia 21, (Figura 2) que pode revestir a forma de trissomia livre (Figura 2 A) ou de
trissomia por translocação (translocação 21/14 na
Figura 2B). Neste último caso é necessário provar
se a anomalia é herdada de um dos progenitores
ou se é uma situação de novo a fim de poder calcular riscos de repetição.
FIG. 2A
FIG. 2B
Trissomia 21 – Cariótipo (forma livre).
Trissomia 21 – Cariótipo (translocação: 21/14).
FIG. 2
Caso de trissomia 21 (fácies).
94
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Mas a não-disjunção pode também ser mitótica (pós-zigótica) conduzindo à formação de mosaicos. De igual modo, as mutações génicas podem
aparecer só nas primeiras fases do desenvolvimento, com consequências variáveis em termos de
expressão fenotípica.
Nas primeiras 24 horas que se seguem à fusão
dos pronúcleos feminino e masculino, inicia-se
uma série de divisões mitóticas de forma que no
4ºdia existe um conjunto de 32 células constituindo a mórula.
Na fase de mórula, cada uma das células que a
compõem pode exprimir todo o potencial genético do novo indivíduo e uma só célula pode dar
origem a um indivíduo. Estas células pluripotenciais totipotentes, quando confrontadas com erros
genéticos ou agressões ambientais, têm uma
grande capacidade de se intersubstituir podendo,
assim, compensar esses erros. Se não forem capazes de o fazer, o destino do embrião será a morte.
Este fenómeno que é conhecido como “a lei do tudo ou nada”, tem muita importância quando é
necessário avaliar o risco de aparecimento de
anomalias congénitas em caso de agressão teratogénica nesta fase do desenvolvimento.
A partir do 4º dia de vida a mórula começa a
absorver líquido dando lugar à formação de uma
cavidade interna; toma então o nome de blastocisto que se vai implantar na parede uterina por
volta do 6º dia. No fim da primeira semana o embrião é unilaminar.
Entretanto a capacidade totipotente das células
perde-se e, com o blastocisto, começa uma fase de
especialização celular. As células tornam-se
pluripotentes, isto é, são capazes de se diferenciar
em quase todos os tecidos embrionários excluindo
a placenta e anexos.
A partir da segunda semana dá-se a formação
do embrioblasto, cujo destino é o desenvolvimento do embrião e do trofoblasto originando o desenvolvimento da placenta. No fim da segunda semana o embrião é bilaminar.
Durante a terceira semana forma-se o embrião
trilaminar com o disco embrionário tridérmico que
dará origem à ectoderme, mesoderme e endoderme e, posteriormente, a todos os tecidos e
órgãos definitivos.
Durante a quarta semana do desenvolvimento
têm lugar transformacões muito complexas e rápi-
das que marcam a passagem para a organogénese.
A estas quatro primeiras semanas, em que se
dão os acontecimentos mais importantes em termos de desenvolvimento embrionário, dá-se o
nome genérico de blastogénese. Embora muitos
embriologistas não atribuam muita importância à
individualização destas primeiras quatro semanas
no contexto da embriogénese, o facto é que o seu
conhecimento é indispensável para compreender
a génese das anomalias congénitas.
Assim, é nesta fase que se estabelecem os campos de desenvolvimento, os eixos do embrião, a
linha média, a lateralidade e a segmentação, que
ocorre a neurulação, a cardioangiogénese, a mesonefrogénese e aparecem os esboços dos membros.
A placenta, que também inicia a sua formação durante a blastogénese é naturalmente determinante
para a sobrevivência do feto (ver adiante).
Os campos de desenvolvimento têm um enorme interesse na compreensão da génese das anomalias congénitas.
Os defeitos mais graves do desenvolvimento
estabelecem-se na blastogénese. Os erros ocorridos
nesta fase podem naturalmente dar origem à
morte do embrião, ou mais tardiamente do feto,
mas podem também conduzir ao nascimento de
crianças com anomalias congénitas gravíssimas interessando um ou mais campos de desenvolvimento.
A partir da quinta semana começa a organogénese que decorre entre o 28º e o 56º dias. São outras quatro semanas, durante as quais se vão formar todos os órgãos, organizando-se em aparelhos
ou sistemas. Nesta fase cada órgão e cada sistema
tem um momento ou período crítico de formação
cujo conhecimento volta a ter muita importância
na avaliação do risco teratogénico.
Na organogénese distinguem-se dois processos
fundamentais: a morfogénese – formação dos
órgãos – e a histogénese – diferenciação das células e organização dos tecidos.
No fim da oitava semana termina organogénese, última fase embriogénese.
O período entre as nove semanas e o nascimento, (período fetal) é dominado pelo crescimento e maturação do feto.
A fenogénese, terceira e última parte do desenvolvimento, prolonga-se para além da vida fetal terminando quando se atinge a maturidade sexual.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
95
FIG. 3
FIG. 4
Sirenomelia / Embriopatia diabética.
Embriofetopatia alcoólica.
Nas Figuras 3 e 4 são apresentados alguns
exemplos de anomalias congénitas.
hipótese de embriofetopatia alcoólica. A história
revelou gravidez não vigiada e mãe com hábitos
alcoólicos muito acentuados. Neste caso a valorização de uma anomalia minor foi o fio condutor
para o diagnóstico.
O efeito do álcool teve o seu início na embriogénese (cardiopatia) e prolongou-se pela fenogénese
com evidência de uma anomalia minor (lábios finos).
Diagnóstico – Embriofetopatia alcoólica
Figura 3
Feto com 20 semanas de idade gestacional, em que
se verifica um único membro inferior constituído
por 3 segmentos. O exame radiológico identificou
um único fémur alargado e achatado com 2 côndilos, 2 rótulas, 2 tíbias e ossos de pé rudimentares.
Havia também imperfuração anal, agenésia renal
bilateral e agenésia do útero e restantes estruturas
do aparelho genital.
A história revelou diabetes insulinodependente e gravidez seguida de forma irregular.
Trata-se de um defeito da blastogénese.
Diagnóstico – Embriopatia diabética e regressão caudal com sirenomelia.
Figura 4
Feto com 20 semanas de idade gestacional, com
cardiopatia congénita. A existência de lábios muito
finos num feto de raça negra levou-nos a pôr a
2 – Campos de desenvolvimento e sua relação
com a génese das anomalias congénitas
Na primeira metade do século XX os trabalhos de
embriologia experimental de H Spemann e JS
Huxley introduziram a noção de campo de desenvolvimento. Em 1982 JM Opitz propunha a sua
aplicação em genética clínica e, a partir desse ano,
um grupo de trabalho internacional propunha
uma nova terminologia para os erros da morfogénese adoptando o conceito de campo de desenvolvimento para explicar a génese da maioria das
anomalias congénitas.
96
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Assim, um campo morfogenético ou de desenvolvimento é constituído por uma parte do embrião representando uma unidade coordenada de
indução embrionária da qual resulta um conjunto
de estruturas anatómicas. Daí decorre que o campo
de desenvolvimento é a unidade fundamental do
desenvolvimento, também definida como uma
unidade reactiva que responde de forma idêntica a
agressões diferentes, como anomalias cromossómicas, mutações génicas ou teratogénios.
Na fase inicial da blastogénese a totalidade do
embrião constitui um campo de desenvolvimento
primário que contém em si próprio o modelo geral
do desenvolvimento. Gradualmente, o campo
primário divide-se em vários campos progenitores,
que são os primórdios das estruturas definitivas.
Os campos progenitores, por sua vez, dão
origem aos campos secundários que, já durante a
organogénese, serão os responsáveis pelas estruturas finais e irreversíveis do embrião.
Todo este processo aparece, pois, como um
conjunto de acontecimentos em cascata e as anomalias serão tanto mais graves e diversificadas
quanto mais precoce for o momento em que o erro
acontece. Nesta perspectiva, os erros ocorridos na
blastogénese durante o estabelecimento dos campos progenitores, devido à sua proximidade e à
partilha de mecanismos moleculares, originam
anomalias que afectam estruturas diferentes em
várias regiões do corpo; são referidas como defeitos politópicos de campo, isto é, envolvem
dois ou mais campos progenitores.
As anomalias da blastogénese são heterogéneas do ponto de vista etiológico, graves e altamente letais, com baixo risco de recorrência e
afectando predominantemente as estruturas da
linha média. Um mesmo conjunto malformativo
pode ter etiologias diversas uma vez que o campo
de desenvolvimento reage da mesma maneira a
agressões diferentes.
Uma excelente revisão de J. Opitz refere uma
extensa lista de anomalias a incluir como defeitos
da blastogénese, em que sobressaem a gemelaridade monozigótica, os defeitos politópicos de
campo, as associações, as anomalias aparentemente monotópicas mas com provável origem na
blastogénese e as anomalias da formação do
cordão umbilical e da placenta.
Por outro lado, os erros ocorridos durante a
organogénese nos campos secundários originam
anomalias limitadas a uma só estrutura ou região do
corpo, sendo referidos como defeitos monotópicos
de campo. São exemplos as anomalias localizadas
tais como fenda palatina, hipospádia ou polidactilia.
Mesmo assim, embora se venham a manifestar
durante o período da organogénese, a sua origem
real pode ter sido durante a blastogénese.
Findo o período da embriogénese, correspondente às oito primeiras semanas de vida do
embrião, as estruturas embrionárias estão formadas de uma forma irreversível e assume-se que
já não será possível o desenvolvimento de anomalias estruturais graves (ou major).
Durante a fenogénese é possível o aparecimento de anomalias ligeiras (minor); refere-se que
pequenas dismorfias faciais podem tornar-se
aparentes apenas em fases mais tardias do desenvolvimento embrionário. As anomalias cromossómicas, que produzem os seus efeitos desde a blastogénese, reunem frequentemente anomalias
major e minor, o que significa que a sua acção se
prolonga durante a fenogénese (ver adiante).
3 – O mapa génico das anomalias congénitas
A enorme impacte que as técnicas de biologia
molecular tiveram no estudo do genoma humano
permitiram a construção de um mapa que identifica e localiza os genes em segmentos cromossómicos específicos.
Dado que se trata de uma ciência sempre em
expansão, qualquer livro estará sempre parcialmente desactualizado nesta matéria e a consulta
de artigos “on-line” é indispensável para uma
actualização permanente. Não cabe no âmbito
deste trabalho uma referência extensa aos genes já
identificados, mas pode-se dizer que mais de 50%
das doenças que constam da última edição do
indispensável livro “Smith’s Recognizable Patterns of
Human Malformation” já têm genes identificados.
Do conhecimento cada vez mais completo do
funcionamento da embriologia molecular decorrem duas observações importantes que são a heterogeneidade alélica e a heterogeneidade génica de
certas anomalias isoladas ou múltiplas.
No primeiro caso, mutações diferentes no
mesmo gene são responsáveis por fenótipos diferentes. São exemplos as mutações no gene GLI3
localizado no cromossoma 7, que são responsáveis
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
97
por doenças tão diferentes como a síndroma de
Pallister-Hall, a síndroma de Greig ou certas formas de polidactilia isolada. Também a acondroplasia e o nanismo tanatóforo, situações até há
pouco tempo consideradas independentes, dependem de mutações diferentes do mesmo gene
localizado no cromossoma 4.
No segundo caso, uma mesma síndroma com
quadro clínico em tudo semelhante, pode ser devida a mutações em genes diferentes. Temos como
exemplo a síndroma de Bardet –Biedl na qual já se
demonstrou até Maio de 2005, a relação causal
com vários genes diferentes localizados nos cromossomas 3, 4, 11, 14, 15, 16 e 20.
Ao contrário do que alguns investigadores supunham, o conhecimento dos genes responsáveis
pelas AC não diminuiu, mas aumentou a importância da observação clínica cuidadosa, assim
como a responsabilidade do sindromalogista, que
deve interpretar e construir um padrão de anomalias que possa conduzir a um diagnóstico. Só
através deste será possível determinar qual o gene
alvo que queremos encontrar.
Disrupção – depende de um acidente grave
(destruição) numa dada fase do desenvolvimento
de uma estrutura do embrião até aí normal, de
que resulta um defeito morfológico de um ou
mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como
consequência da existência de bandas amnióticas.
Deformação – resulta da acção de forças
mecânicas extrínsecas ao feto, que alteram o seu
desenvolvimento normal, modificando a forma, o
tamanho ou a posição da totalidade do corpo ou
de parte dele. É o que acontece, por exemplo,
como consequência do oligoâmnio.
Displasia – quando há morfogénese anómala
com alteração mais ou menos grave da organização celular de um ou vários tecidos. É o que acontece, por exemplo, nas displasias renais ou nas
displasias ósseas.
Classificação
As AC podem ser únicas ou múltiplas. É neste
último grupo que existe actualmente alguma confusão no que respeita à definição, nomenclatura e
limites da variabilidade fenotípica.
Para efeitos práticos as AC são divididas em major
e minor.
As anomalias ditas major são causa de perturbações funcionais ou estéticas de gravidade variável pelo que requerem cuidados médicos ou cirúrgicos como terapia curativa ou paliativa. As anomalias ditas minor são mais frequentes do que as
major mas a sua presença não levanta problemas
de natureza funcional ou estética, pelo que não
requerem, em geral, qualquer intervenção terapêutica. No entanto, a sua valorização é importante, pois podem constituir um fio condutor para
a procura de outras anomalias mais graves que
podem ocorrer em conjunto, como é o caso das
anomalias renais detectadas através da existência
de anomalias minor dos pavilhões auriculares.
Do ponto de vista qualitativo, é útil dividir as
anomalias congénitas em quatro subgrupos:
Malformação – consiste num processo anormal de desenvolvimento de natureza intrínseca
responsável por um defeito morfológico de um ou
mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como
consequência de uma anomalia cromossómica.
Por vezes é difícil distinguir estes grupos entre
si. Mas essa distinção é indispensável em termos
de aconselhamento genético uma vez que as formas de transmissão são diferentes, e diferente o
risco de repetição.
Em 1982 formou-se um Grupo de Trabalho
Internacional (IWG) liderado por J Spranger que se
debruçou sobre os erros da morfogénese, a sua definição e terminologia. Posteriormente, no Congresso
Internacional de Genética reunido em Berlim, em
1986, o mesmo grupo clarificou e redefiniu esses
conceitos, de acordo com o conhecimento da etiologia e patogenia dos conjuntos malformativos.
Do ponto de vista quantitativo são consideradas
as anomalias que contam do Quadro 3: hipo e hiperplasia, hipo e hipertrofia, atrofia, agenésia e aplasia.
Estes conceitos têm-se revelado de grande utilidade quando se trata de compreender melhor as
AC, calcular riscos de repetição e planear diagnóstico pré-natal em futuras gravidezes.
São descritas quatro formas de conjuntos de
anomalias (múltiplas):
98
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Alterações quantitativas
da morfogénese
Hipoplasia/Hiperplasia
• Hipo ou hiperdesenvolvimento de um tecido, órgão
ou organismo em função, respectivamente, do n.°
diminuído ou aumentado de células.
Hipotrofia/Hipertrofia
• Hipo ou hiperdesenvolvimento em função das dimensões diminuídas ou aumentadas das células.
Agenésia
• Ausência de uma parte do corpo devido a ausência
do “primordium”
Aplasia
• Ausência de uma parte do corpo por não desenvolvimento do “primordium”
Atrofia
• Diminuição das dimensões e/ou n.° das células de
órgão(s) ou tecido(s) normalmete desenvolvido(s).
Síndroma – define-se como um conjunto de
anomalias relacionadas entre si, constituindo um
entidade etiologicamente bem definida (génica,
cromossómica, teratogénica), embora a patogenia
nem sempre possa ser esclarecida. Daqui decorre
que a trissomia 21 e a embriofetopatia alcoólica
são exemplos de síndromas, e também que “síndroma de etiologia desconhecida”, frase tantas
vezes utilizada, não tem sentido.
Associação – define-se como a ocorrência de
um conjunto de anomalias de uma forma mais frequente do que o acaso faria supor, e cuja etiologia e
patogenia são desconhecidas. Este grupo poderia
também ser designado como defeitos da blastogénese de natureza idiopática. Uma associação é
habitualmente designada por acrónimos, como por
exemplo a associação VACTERL (Vertebral, Anal,
Cardiac, fístula Tráqueo-Esofágicas, Renal, Limbs)
e a associação CHARGE (Coloboma, Heart,
Choanal Atresia, Retardation, Genital, Ears).
Mas a etiologia das associações tende naturalmente a ser esclarecida e quando isso acontece, a
associação dá lugar a síndroma. Exemplo disso é o
que aconteceu com a já mencionada associação
CHARGE depois de recentes investigações demonstrando várias mutações no gene CHDZ
localizado em 8q12, responsáveis por grande
número de casos da associação CHARGE.
Sequência – define-se como um conjunto de
anomalias que tem a sua origem numa única
anomalia que constitui o acidente primário e que
é responsável por um conjunto de acontecimentos
em cascata. A etiologia, conhecida ou não, é heterogénea e os mecanismos patogénicos são, evidentemente, conhecidos. Temos como exemplo o
mielomeningocelo cuja sequência será: defeito de
encerramento do tubo neural – desenvolvimento
incompleto dos ossos da coluna vertebral com
exteriorização da medula (anomalia de ArnoldChiari) – hidrocefalia e pés botos.
Defeito Politópico de campo – este tipo de
defeito já foi referido atrás; as anomalias relacionam-se com alterações de dois ou mais campos
progenitores.
As anomalias múltiplas, no seu conjunto, estão
intimamente relacionadas com os campos de
desenvolvimento e os seus erros.
Avaliação clínica
A avaliação clínica das anomalias únicas ou múltiplas, além do seu interesse académico, tem como
objectivo último um diagnóstico que permita
esclarecer os pais quanto às causas do seu aparecimento, à história natural da doença, à eficácia
de eventuais terapêuticas médicas ou cirúrgicas,
às formas de transmissão e riscos de recorrência e
à possibilidade de eventual diagnóstico pré-natal
numa futura gravidez. Este conjunto de actividades define o chamado aconselhamento genético; e para que ele seja possível, torna-se indispensável uma avaliação clínica pormenorizada e a utilização de meios complementares de diagnóstico
adequados.
O protocolo habitualmente utilizado no estudo
e diagnóstico das anomalias congénitas não é
diferente do habitualmente usado em Pediatria,
mas envolve algumas particularidades relacionadas com a necessidade de construir um padrão
dismorfológico que seja um fio condutor para o
diagnóstico de uma entidade conhecida.
Assim, o protocolo deverá incluir:
1 – história pessoal e familiar com representação gráfica da árvore genealógica.
2 – observação dos parâmetros de desenvolvimento físico, psicomotor e sensorial.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
3 – observação e descrição da dismorfologia
facial.
4 – observação e descrição pormenorizada das
anomalias presentes.
5 – registo fotográfico da face e das anomalias
relevantes.
O estudo clínico orientará para os exames
complementares necessários a cada caso, salientando-se:
6 – exame citogenético com eventual recurso a
citogenética molecular.
7 – exame radiológico e outros registos imagiológicos.
8 – exames de natureza hematológica, bioquímica, enzimática ou outra.
9 – estudo génico orientado pela hipótese
diagnóstica proposta para cada caso.
Na observação de uma criança com AC
reveste-se de particular importância a apreciação
do seu aspecto geral (características faciais, forma
do corpo, postura, movimento, linguagem e comportamento ), de forma a identificá-la por meio de
uma comparação subjectiva com outras cujo diagnóstico é conhecido. Esta impressão global ou
gestalt que se apoia no facto de as várias
impressões isoladas (visuais, auditivas e outras)
estarem de tal forma organizadas que são percebidas como um todo e não como fenómenos dissociados, leva-nos a identificar uma pessoa conhecida quando a vemos sem necessidade de
analisar as suas várias componentes.
A primeira tarefa do “especialista em anomalias da forma do organismo” ou dismorfologista é,
pois, interpretar uma dada constelação de sinais
observados no seu doente de forma a identificar
uma síndroma, uma associação ou uma sequência.
A parte mais difícil desta tarefa reside no facto de
não haver, em geral, sinais patognomónicos, o
espectro de anomalias poder ser restrito ou vasto
dentro de uma mesma entidade, e várias doenças
etiologicamente bem definidas partilharem anomalias comuns. A dismorfologia é uma ciência em
evolução permanente.
A indispensável definição de critérios mínimos e de limites para a expressão fenotípica de
uma determinada entidade nem sempre tem
reunido o consenso dos dismorfologistas. A tudo
isto acresce a contínua publicação de casos clínicos cuja interpretação também nem sempre é coin-
99
cidente. Com algum sentido de humor, A Verloes
apontava recentemente que os sindromalogistas
se podem dividir: nos que separam entidades até
aí bem definidas em vários subgrupos a que dão
novos nomes (“splitters”); nos que reunem numa
entidade única várias outras doenças até aí consideradas como independentes (“lumpers”); e nos
que mudam certos conjuntos de anomalias de
uma síndroma para outra (“cutters and pasters”).
Num futuro próximo e à medida que se forem
identificando os genes responsáveis pela génese
das AC estes problemas vão perder a sua
importância.
Convém, contudo, não esquecer que, em termos de aconselhamento genético e de diagnóstico
pré-natal, o reconhecimento clínico de uma entidade e o conhecimento da sua história natural terá
sempre importância. Mutações diferentes no
mesmo gene podem corresponder a situações
clínicas de gravidade muito variável; e, se a variação intrafamiliar não é significativa, não é a presença de uma determinada mutação génica, mas
sim o quadro clínico esperado, que poderá influenciar a decisão dos pais de optar por uma interrupção de gravidez.
No contexto da observação clínica a apreciação
das anomalias morfológicas faciais assume uma
importância muito particular. Assim, em presença
de uma criança dismórfica, o aspecto facial pode
identificar uma determinada doença, reconhecer
outra já vista anteriormente, mas não imediatamente identificável, ou simplesmente revelar uma
situação completamente nova para nós. Nas situações difíceis, a comparação com outros casos publicados, o recurso a programas informatizados
de diagnóstico diferencial com imagem, e a discussão clínica com outros colegas com experiência
em dismorfologia, poderão ser de grande utilidade. Como noutras áreas da Medicina é preciso
conhecer para diagnosticar.
Convém ter sempre presente que, se por um
lado, um diagnóstico correcto tem todas as vantagens não só em termos de uma adequada intervenção terapêutica como na dispensa de exames
desnecessários, por outro lado um diagnóstico
errado, por falta de experiência ou precipitação,
pode ter consequências muito graves. Rotular uma
criança com um diagnóstico que não corresponde
à sua situação invalida uma eventual intervenção
100
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
terapêutica, multiplica múltiplas consultas e exames desnecessários e pode influenciar erradamente
um casal quanto à sua vida reprodutiva. As consequências podem ser, pois, muito negativas.
Nunca é demais salientar um aspecto que nos
parece muito importante e tem certamente forte
repercussão no aconselhamento genético aos pais
e na decisão quanto a futuras gravidezes. Trata-se
do empenho que deve ser posto no esclarecimento etiológico de um feto ou de um recém-nascido
com uma situação malformativa muito grave
mesmo quando a morte pareça ser inevitável. O
que parece ser inútil revela-se extremamente útil
para o futuro.
O diagnóstico pré-natal, já abordado no capítulo sobre Genética, tem tido nos últimos anos
um grande desenvolvimento como método de
prevenção secundária de anomalias congénitas.
Mas, se por um lado as anomalias que estiveram
na origem da interrupção médica de gravidez
necessitam de ser comprovadas, por outro tem-se
verificado um enorme interesse dos pais em saber
as causas da morte fetal e o grau de risco para futuras gravidezes. Isto levou ao desenvolvimento
de uma actividade multidisciplinar que é a embriofetopatologia clínica. Esta actividade, ponto
de encontro de patologistas, dismorfologistas,
geneticistas, perinatologistas e obstetras, no contexto dos Centros de Diagnóstico Pré-natal, tem
protocolos próprios. Se em linhas gerais são semelhantes aos descritos no protocolo anterior,
para a avaliação clínica dos nado vivos, revestem-se, como é óbvio, de alguns aspectos particulares. Assim, mantêm-se os 5 primeiros pontos,
com excepção naturalmente do desenvolvimento
psicomotor, bem como do ponto 7. No que respeita ao ponto 6, está provado que a tentativa de
efectuar estudo citogenético após a morte tem
taxas de sucesso baixas e muito dependentes das
condições em que as colheitas são realizadas. Daí
que é da maior importância enquanto o feto está
vivo, colher e armazenar produtos biológicos
para estudos de biologia molecular, bioquímicos
ou outros, que estão naturalmente comprometidos quando existe morte fetal, embora no caso da
biologia molecular seja possível utilizar material
fetal obtido em certas condições para armazenamento de ADN. Torna-se necessário, portanto,
desenvolver protocolos de participação entre os
especialistas acima referidos, de forma a tornar
possível o diagnóstico da causa de morte fetal e o
aconselhamento genético aos pais. (ver capítulo
17).
Registos Nacionais
e Internacionais
Existem actualmente em muitos países registos da
ocorrência e natureza das AC bem como das circunstâncias pessoais, familiares e ambientais do
seu aparecimento. Estes registos têm como objectivo a determinação da prevalência nacional e
regional das AC e a determinação das suas causas.
Em Portugal, além de alguns Registos regionais ou de Registos nacionais por patologias,
habitualmente sediados em Serviços Hospitalares,
existe um Registo Nacional de AC da responsabilidade do Instituto Nacional de Saúde (Centro de
Estudos e Registo de Anomalias Congénitas –
CERAC), que teve o seu início em 1996.
O CERAC é um registo de base populacional que
recebe notificações de várias origens, principalmente
dos Serviços Hospitalares de Obstetrícia, Pediatria e
especialidades pediátricas, mas também de outros
Serviços como Anatomia Patológica e Genética
Médica. Os seus objectivos consistem em determinar
a prevalência das AC e a sua distribuição geográfica
por residência das mães, observar as suas variações
e tendências espaciais e temporais e estabelecer um
sistema de vigilância epidemiológica.
São notificados todos os recém-nascidos vivos
cujas anomalias sejam detectadas até ao final do
período neonatal, as mortes fetais com anomalias e as
interrupções de gravidez por patologia malformativa. São registadas as anomalias estruturais major mas
não as minor quando isoladas (ver adiante).
Até ao ano de 1999 a codificação das anomalias
foi feita segundo a 9ª revisão da Classificação
Internacional de Doenças (CID 9), e a partir do
ano 2000 segundo a 10ª revisão (CID 10).
Durante o triénio 1997-1999 a cobertura populacional correspondeu a 75% do total de partos e a
prevalência observada foi de 200 por 10000 nascimentos.
A Figura 5 mostra a distribuição percentual de
anomalias pelos grandes grupos da Classificação
Internacional de Doenças (CID 9), bem como a
respectiva média durante o triénio 1997-1999.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas
1 – Sistema nervoso central
2 – Aparelho ocular
3 – Aparelho auditivo
4 – Aparelho cardiovascular
5 – Lábio leporino/Fenda palatina
6 – Aparelho digestivo
7 – Genitais externos
101
8 – Aparelho urogenital
9 – Membros
10 – Aparelho músculo – esquelético
11 – Anomalias cromossómicas
12 – Aparelho respiratório
13 – Pele
14 – Outros
Dados do CERAC: MJ Feijoó, 2000
FIG. 5
Distribuição percentual do número total de anomalias congénitas pelos grandes grupos da CID 9.
Na Europa existem outros Registos de AC,
nacionais ou regionais. O EUROCAT (European
Registry of Congenital Anomalies and Twins) é um
Projecto financiado pela Comissão Europeia, constituído por uma rede de vários Registos regionais
europeus que trabalham com a mesma metodologia e publicam os seus dados em conjunto.
Portugal colabora no Eurocat desde 1990 com a
Região a sul do Tejo.
É ainda de assinalar a existência de um importante Registo com uma participação populacional
muito mais alargada, a International Clearinghouse
for Birth Defects Monitoring Systems, que reúne
vários países da Europa, Ásia e Américas do Norte,
Centro e Sul.
Prevenção
Num contexto global da prevenção cabe aos
profissionais de saúde que trabalham na comu-
nidade um papel muito importante. O seu conhecimento da patologia familiar, das condições
ambientais porventura perigosas em que decorre
a vida das famílias e o papel que desempenham
nas consultas de planeamento familiar, tornamnos interlocutores privilegiados no contexto das
actividades que contribuem para a prevenção das
anomalias congénitas.
Se, pelo conhecimento do contexto familiar, os
mesmos podem identificar anomalias ou síndromas hereditárias e situações de risco durante a
gravidez e providenciar o recurso a consultas
especializadas, por outro lado podem ter um
papel decisivo na prevenção primária de algumas
situações frequentes mas evitáveis.
Assim, as embriopatias ocasionadas pela diabetes materna e pela rubéola, a embriofetopatia
alcoólica e os defeitos do tubo neural, são exemplos destas situações nas quais o controle adequado da diabetes materna, a vacinação anti-rubéola
102
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em tempo útil, o combate aos hábitos alcoólicos da
mulher na idade reprodutiva e a administração de
ácido fólico no período pré-concepcional são
medidas decisivas para diminuir a morbilidade e
a mortalidade de algumas anomalias congénitas.
A prevenção de algumas anomalias congénitas
é, pois, possível, mas seguramente exige um trabalho colectivo.
Opitz JM, Zanni G, Reynolds Jr JF, Gilbert-Barness E. Defects of
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AGRADECIMENTOS
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Agradecemos à Unidade de Fetopatologia do Hospital de Egas
Cassidy SB, Allanson JE. Management of Genetic Syndromes.
Moniz a cedência das imagens das Figuras 2 a 4, e ao Centro de
Hoboken, NJ-USA: Wiley-Liss, 2005
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Nacional de Saúde a cedência da Fig. 1.
PARTE IV
Crescimento Normal e Patológico
104
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
19
CRESCIMENTO
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
Definição
Crescimento significa aumento de volume e tamanho dos tecidos e órgãos como resultado do aumento do número e volume das células. Trata-se,
pois, dum processo de modificação física desde a
fecundação (ovo) até à idade adulta passando
pelas fases de embrião, feto, criança e adolescente.
O crescimento é indissociável da noção de desenvolvimento que, no sentido estritamente fisiológico significa modificação funcional das células,
tecidos ou órgãos; de facto, as células crescendo
diferenciam-se simultaneamente.
Por razões didácticas estes dois tópicos são
abordados separadamente.
Em termos de prática clínica, crescer é, fundamentalmente, aumentar de peso, de estatura/altura (ou comprimento enquanto a criança não assume a posição bípede), e de perímetro cefálico;
tais variáveis ou grandezas são mensuráveis.
A antropometria ou somatometria surge neste contexto como método que utiliza técnicas com a finalidade de quantificar as dimensões corporais
(crescimento) pela medição de parâmetros somáticos; para além dos já referidos, outros serão abordados adiante.
A auxologia é a ciência multidisciplinar que estuda o crescimento físico na espécie humana.
Aspectos da fisiopatologia
do crescimento
A regulação do crescimento é muito complexa,
estando dependente, não só de factores endócrinos como a hormona de crescimento (growth hormone ou GH), de hormonas tiroideias, hormonas
sexuais, neuromediadores, mas também de fac-
Hipotálamo
Gónadas
GH
Tiroideia
Córtex SR
IGF
Paratiroideias
Gravidez
gemelar
Pâncreas
Nutrição e
Má absorção
Outras
patologias
Clima
Genética
Ambiente
sócio-económico
Psicoafectivos
SNC
FIG. 1
Factores que influenciam o crescimento.
tores genéticos, metabólicos, psicossociais, etc..
A GH é uma hormona com 191 aminoácidos
produzida pela hipófise sob controlo hipotalâmico;
é mediada pelo IGF1 (insulin growth factor 1) verificando-se desde o nascimento à puberdade um
aumento progressivo da sua produção. O hipotálamo produz não só a somatostatina ou SRIF (“somatotropin release inhibiting factor”) que inibe secreção
de GH, como o GHRF ou “growth hormone releasing
factor” que a estimula. A secreção de GH faz-se de
forma pulsátil e predominantemente nocturna. A
GH circula ligada a proteínas de ligação e, a nível
periférico, liga-se ao seu receptor, levando à multiplicação dos condrócitos e à produção de IGF-I e da
sua principal proteína de ligação (IGFBP 3) (BP ou
“binding protein”). O IGF-I produzido, quer no fígado, quer localmente no tecido ósseo, irá induzir o
crescimento. O IGF1 é influenciado por vários factores, como sejam o estado nutricional da criança, e
circula ligado a proteínas transportadoras, a mais
importante das quais é a IGF1-BP3. Como a GH
tem uma libertação irregular, o doseamento do
CAPÍTULO 19 Crescimento
IGF1 e da IGF1-BP3 em conjunto, são indicadores
mais fiáveis da produção. As hormonas tiroideias
são essenciais para o crescimento pós-natal e também necessárias para a normal secreção. Os
esteróides gonadais, sobretudo os estrogénios, pela
sua acção sobre as cartilagens de crescimento, são
responsáveis por cerca de metade do crescimento
atingido durante a puberdade e permitem não só a
maturação sexual como a esquelética.
Fases do crescimento
Tratando-se de um processo dinâmico e contínuo, o
crescimento exterior, visível a “olho nu” acompanha-se do crescimento dos diversos órgãos e sistemas, ocorrendo em tempos diferentes. Por exemplo, 50% do crescimento craniano ocorre no 1º ano
de vida enquanto o crescimento dos órgãos genitais
externos só se verifica no período da puberdade.
Descrevem-se quatro fases no crescimento: 1)
pré-natal; 2) desde o nascimento até aos 2 anos; 3)
dos 2 aos 9 anos; 4) depois dos 9 anos até ao final
da puberdade. Estas fases, com velocidades de
crescimento diferentes, estão sujeitas a diversas influências e vão condicionar de modo particular a
estatura final.
O crescimento in utero está dependente de
influências, quer maternas, quer fetais. Ao nascer,
o feto encontra-se já em fase de desaceleração do
referido crescimento. A principal hormona responsável pelo crescimento fetal é a insulina, sendo
o feto relativamente resistente à GH. O crescimento intra-uterino está mais dependente dos factores
genéticos maternos do que dos paternos, razão
pela qual o peso do recém-nascido tem, em mulheres com bom estado de nutrição, uma correlação positiva com a estatura materna.
O crescimento do lactente (até 12 meses) é uma
continuação do crescimento fetal, caracterizandose por uma velocidade de crescimento rápida (até
25 cm/ano), que diminui ao longo do tempo. O
crescimento neste período é essencialmente
dependente de factores nutricionais.
A fase de crescimento infantil, iniciada por
volta dos 12 meses de idade, é lenta (VC = 4-8
cm/ano) e torna-se praticamente constante a partir dos dois anos de idade. A sua regulação
depende, sobretudo, de factores genéticos e da
HC.
105
Na puberdade, última fase do crescimento linear, ocorre nova aceleração da velocidade de
crescimento (10-12 cm/ano) predominantemente
dependente da acção dos esteróides gonadais, continuando efectiva a acção da GH. Começa aos 1012 anos na rapariga, e aos 12-14 anos rapaz. O
crescimento pubertário termina no final da maturação sexual, coincidindo com o encerramento das
epífises ósseas.
A avaliação do estádio pubertário (abordado
noutro capítulo) é, pois, importante para interpretar a evolução do crescimento.
A avaliação do crescimento dá uma boa indicação sobre o estado de saúde da criança. De
salientar que uma agressão que se repercute sobre
o peso e a estatura será necessariamente mais
grave e prolongada do que aquela que apenas tem
repercussão sobre o peso.
Antropometria
Para além do peso, comprimento ou estatura/altura
e perímetro cefálico, outros parâmetros ou índices
(estes últimos significando relação numérica entre
duas grandezas ou parâmetros) podem ser utilizados para avaliação do crescimento, tais como: perímetro torácico, perímetro abdominal, relação peso/
altura, segmento superior (SS), segmento inferior
(SI), relação SS/SI, envergadura e velocidade de
crescimento.
O SS é a distância entre o vértex (ou ponto mais
elevado da abóbada craniana no plano sagital mediano, com a cabeça direita) e o cóccix, ou seja, a
diferença entre o comprimento ou estatura e o SI.
O SI mede-se pela distância entre a sínfise
pública e o pavimento estando a pessoa com os
membros inferiores bem estendidos.
A relação SS/SI tem interesse clínico em situações acompanhadas de defeitos esqueléticos. Em
condições de normalidade tal relação é tanto maior
quanto menor a idade. No adolescente entre 16-18
anos é ~0,92.
Envergadura é a distância máxima entre as extremidades dos dedos médios de cada mão (com
os membros superiores estendidos na horizontal à
altura dos ombros), isto é, paralelamente ao pavimento. Este parâmetro permite avaliar a relação
entre o comprimento/altura e o comprimento dos
membros superiores.
106
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Velocidade de crescimento corresponde ao incremento em centímetros e milímetros em determinado período (em geral 1 ano).
Uma vez que medir é comparar, há que comparar a criança/caso-problema com outras crianças
de uma população considerada normal através de
curvas de percentis ou de média ± desvio padrão
(DP) obtidas por estudos transversais ou longitudinais; e também estabelecer comparação com os
achados da própria criança ao longo do tempo
através, designadamente, dos registos efectuados
no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil.
As Figuras 2 a 13 representam curvas de crescimento em percentis em diversas idades relativas
aos parâmetros peso, comprimento/altura, perímetro cefálico, relação peso/altura (relação peso
em kg/altura ao quadrado em metros ou índice de
massa corporal-IMC), utilizadas no referido boletim e divulgadas recentemente com autorização da
Direcção Geral da Saúde (DGS), decalcadas do
NCHS da OMS, actualizadas em 2002.
As Figuras 14, 15 e 16 representam respectivamente as curvas de crescimento do perímetro cefálico e da velocidade de crescimento, reproduzidas de publicações da Sociedade Brasileira de
Pediatria com autorização.
Torna-se importante estabelecer com aproximação a correspondência entre curvas de crescimento com base em percentis e DP (desviospadrão):
• + 1 DP <> percentil 85
• - 1 DP <> percentil 15
FIG. 2
Raparigas – Peso 0-24 meses.
• + 1,6 DP <> percentil 95
• - 1,6 DP <> percentil 5
• + 2 DP <> percentil 3
• - 2 DP <> percentil 97
• + 3 DP <> percentil 99,7
• - 3 DP <> percentil 0,3
Como facto histórico refere-se que em 2000, o
Center for Disease Control and Prevention (CDC) concluiu a construção de novas curvas de crescimento. Na Europa foram revistas entretanto as curvas
de 1977 do NCHS quer para crianças pequenas
(0-24-36 meses) quer para crianças mais velhas
(2-20 anos) e foram criadas as curvas respeitantes
FIG. 3
Raparigas – Comprimento 0-24 meses.
CAPÍTULO 19 Crescimento
FIG. 4
FIG. 6
Rapazes – Peso 0-24 meses.
Raparigas – Perímetro cefálico 0-36 meses.
FIG. 5
FIG. 7
Rapazes – Comprimento 0-24 meses.
Rapazes – Perímetro cefálico 0-36 meses.
107
108
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 8
FIG. 10
Raparigas – Peso 2-20 anos.
Rapazes – Peso 2-20 anos.
FIG. 9
FIG. 11
Raparigas – Estatura 2-20 anos.
Rapazes – Estatura 2-20 anos.
CAPÍTULO 19 Crescimento
109
FIG. 14
Perímetro cefálico: Sexo feminino.
FIG. 12
Raparigas – Índice de massa corporal 2-20 anos.
FIG. 15
Perímetro cefálico: Sexo masculino.
FIG. 13
Rapazes – Índice de massa corporal 2-20 anos.
ao índice de massa corporal para a idade. Estas novas curvas, constituindo um instrumento de avaliação do crescimento e do estado de nutrição mais
representativo da diversidade rácico-étnica e do
perfil de aleitamento registados nos Estados
Unidos, vieram substituir as curvas do NCHS de
1977. Foram tais curvas as que recentemente a
Direcção Geral da Saúde adoptou para Portugal.
As curvas até então em vigor no nosso país podem continuar a ser utilizadas, importando no entanto lembrar que a principal diferença, relativa às
110
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
acromegália e o gigantismo; este último é definido
como situação clínica caracterizada por crescimento exagerado do esqueleto, tanto em altura como em largura, em comparação com o crescimento normal de indivíduos da mesma raça e idade.
Gigantismo pode estar associado a perturbações
endócrinas hipofisárias.
A acromegália, em geral associada a adenoma
da hipófise, é o aumento anormal das dimensões
do nariz, orelhas, maxilar inferior, mãos e pés, relativamente ao resto do corpo.
Outros métodos de avaliação
do crescimento
Para além da antropometria e de métodos bioquímicos, outros métodos poderão ser utilizados
para avaliar o crescimento. Os que são mais frequentemente aplicados fundamentam-se na valorização de aspectos da semiologia (clínica e radiológica) do crescimento ósseo a saber:
FIG. 16
Curva de velocidade de crescimento para a estatura considerando os diversos segmentos do corpo (SBP).
novas curvas, se centra na evolução ponderal nos
primeiros meses de vida, com valores superiores
nos lactentes exclusivamente alimentados ao
peito, seguida de uma ligeira desaceleração relativamente às anteriores curvas.
O Quadro 1 concretiza os valores médios de
crescimento linear por grupos etários.
A velocidade de crescimento inferior a 4
cm/ano é considerada dado anómalo.
Como exemplos extremos de anomalias do
crescimento citam-se: por défice, a baixa estaturaabordada em ulterior capítulo; e, por excesso, a
QUADRO 1 – Velocidade de crescimento linear
Idade
Velocidade de crescimento
em cm/ano
0-12 meses
20-25
13-24 meses
12
25-36 meses
8
37 meses-idade pré-púbere
5-7
Idade púbere
8-10
Exame das fontanelas
No lactente as fontanelas constituem um marcador do estado de ossificação do esqueleto.
Considerando as seis fontanelas, a que mais interessa no âmbito do tópico em análise é a fontanela
anterior ou bregmática. A sua exploração (que
deverá ter sempre em consideração, em concomitância, o valor do perímetro cefálico) faz-se
por palpação anotando-se em centímetros a medida das diagonais ântero-posterior e transversal.
(ver capítulo Discranias).
Dentição
Este tópico é analisado na parte sobre Estomatologia Pediátrica.
Determinação da idade óssea por método
radiológico
Através deste método procede-se ao estudo dos
núcleos de ossificação e do estado de calcificação
das áreas de junção diáfise – epífise dos ossos longos; com base na idade cronológica do caso-problema e estabelecendo comparação com tabelas,
na prática procede-se à radiografia da mão e do
carpo ou membro superior, em geral a partir do 1
ano; e do membro inferior desde o nascimento até
àquela idade. Valoriza-se o aparecimento de
CAPÍTULO 19 Crescimento
QUADRO 2 – Comparação entre idade
cronológica e idade óssea
111
Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics.
Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007
Pereira-da-Silva L, Virella D, Videira-Amaral JM, Guerra A.
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo
1 ano – Carpo: 3 núcleos; Tarso: 2 núcleos
2 anos – Cabeça do úmero; Carpo idem; Tarso: adição da
epífise do perónio
3 anos – Carpo: adição do piramidal; Tarso: adição do 1º
cuneiforme
4 anos – Carpo: adição de mais 1 núcleo; Tarso: adição de
mais 2 núcleos
5 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos
6 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos
núcleos de ossificação, assim como o seu tamanho, textura e contorno. Determinadas alterações
podem conduzir ao diagnóstico de situações
como, por exemplo, disgenésia no hipotiroidismo,
em que se verifica atraso de crescimento ósseo.
Em geral considera-se dentro da normalidade
desvio de ± 20% da relação idade óssea-idade
cronológica. (± 2 anos).
Na prática clínica são mais frequentes as situações de atraso de ossificação (por exemplo, hipotiroidismo, prematuridade, etc.) relativamente
às de avanço (por exemplo puberdade, hipertiroidismo, displasia fibrosa poliostótica de
Albright, etc.).
O Quadro 2 sintetiza a relação entre idade
cronológica e o aparecimento sequencial de núcleos de ossificação (idade óssea desde o nascimento até aos 7 anos) o que implicará, por parte do
leitor, a consulta de bibliografia suplementar.
BIBLIOGRAFIA
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Guerra A. As novas curvas da OMS para avaliação do crescimento do lactente e da criança. Acta Pediatr Port 2006; 37:
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Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson
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Antropometria no Recém-Nascido. Revisão e Perspectiva
Actual. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007
Rudolph CD, Rudolph´´s Pediatrics. New York: McGrawHill,
2002
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
20
BAIXA ESTATURA
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
Definição e factores etiológicos
A baixa estatura é definida como estatura inferior
a 2 DP abaixo da média. As causas são múltiplas
(Quadro 1); cerca de 80% dos casos corresponde a
variantes da normalidade: baixa estatura familiar
e atraso constitucional do crescimento. Assumir
que baixa estatura traduz variante da normalidade
é por vezes difícil, devendo sempre fazer-se com
base na avaliação da integridade de todos os
mecanismos de de crescimento.
Avaliação
No pressuposto de ter sido identificado a priori determinado caso de baixa extatura, com realização
prévia da anamnese e exame objectivo, cabe salientar determinados aspectos a relevar neste contexto; é o que consta do Quadro 2.
A medição correcta da criança, procedimento
especificado nos livros de semiologia, constitui
uma manobra fundamental, sendo necessário um
observador treinado, um instrumento de medição
adequado e a colocação da criança em posição correcta (deitada até aos 3-4 anos). Tal procedimento
deverá ser sistematizado e continuado no tempo.
Na avaliação de uma criança identificada como
de baixa estatura devem considerar-se vários
parâmetros, tais como idade estatural (IE), idade
óssea (IO), velocidade de crescimento e estaturaalvo familiar.
A idade estatural é a idade que, para a estatura da criança, corresponde ao percentil 50. A idade
óssea é a idade a que corresponde a maturação
óssea observada numa radiografia da mão e punho esquerdo da criança quando comparada com
o Atlas de Greulich & Pyle. A velocidade de cresci-
mento é o incremento em estatura por unidade de
tempo (cm/ano), considerando-se que o intervalo
mínimo para a podermos determinar com rigor é
6 meses. A chamada estatura alvo familiar permite
corrigir a estatura da criança em função da estatura dos pais. Calcula-se da seguinte forma:
Rapaz: (altura da mãe + 13) + altura do pai
2
Rapariga: altura da mãe + (altura do pai-13)
2
Na avaliação inicial de uma criança não se dispõe, muitas vezes, de estaturas anteriores, o que
dificulta muito o estudo. É, por isso, muito importante registar sempre no Boletim de Saúde Infantil
e Juvenil todas as avaliações do crescimento realizadas.
Com base nestes elementos é possível definir 3
padrões de crescimento diferentes:
1* Baixa estatura intrínseca
2* Crescimento “atrasado”
3* Crescimento “atenuado”
Diagnóstico diferencial e exames
complementares
Os referidos padrões de crescimento permitem
dirigir o diagnóstico diferencial e decidir sobre a
necessidade da realização de outros exames
auxiliares de diagnóstico (Quadro 3).
Por outro lado, é também importante considerar se o peso se encontra mais ou menos afectado
do que a estatura. Na primeira hipótese trata-se
geralmente de doenças crónicas ou de suprimento
calórico insuficiente. Na segunda hipótese, poderá tratar-se, com maior probabilidade, de causa
endocrinológica.
Outro dado importante do exame objectivo é
verificar se a normal proporcionalidade entre os
vários segmentos se encontra ou não mantida; a
existência de desproporção apontará para displasia
óssea ou síndroma de raquitismo. A existência de
dismorfias levará a admitir uma das várias síndromas acompanhadas de baixa estatura.
Em todas as crianças com estatura entre o percentil 3 e o percentil 1 e IO IE < IC, para além da
anamnese e exame objectivo exaustivos, haverá que
Ⲙ
112
CAPÍTULO 20 Baixa estatura
113
QUADRO 1 – Causas de baixa estatura
I. Baixa estatura intrínseca
A. Genética
a) Familiar
b) Anomalias cromossómicas
– trissomia 13, 18, 21
– 45 XO e variantes
c) Displasias esqueléticas/condrodistrofias
– acondroplasia
– outras
B. Restrição do crescimento intrauterino (RCIU)
a) Associado a insuficiência placentar
b) Associado a infecções intrauterinas
c) Associado a outras anomalias somáticas
i. Síndroma de Russell-Silver
ii. Síndroma de Prader-Willi
iii. Síndroma de Cornelia de Lange
iv. Síndroma de Seckel
v. Síndroma de Cockayne
II. Atraso constitucional do crescimento e de maturação
III. Doenças sistémicas
A. Atraso de crescimento psicossocial
B. Nutricionais
1. Kwashiorkor
2. Marasmo
3. Défice de zinco/ferro
C. Gastrintestinais
1. Má-absorção
a) Doença celíaca
b) Doença inflamatória do intestino (enterite regional,
colite ulcerosa)
c) Fibrose quística
2. Doença hepática
a) Hepatite crónica
b) Doenças de armazenamento do glicogénio
D. Cardiovasculares
a) Cardiopatias congénitas graves cianóticas ou acianóticas
b) Cardiopatias adquiridas (febre reumática)
proceder a um conjunto de exames auxiliares gerais
(a seleccionar em função do contexto clínico) para
afirmar ou excluir causas patológicas que tenham
como manifestação a baixa estatura (Quadro 4).
Se os resultados obtidos forem normais, deverse-á esperar 6 meses para determinar a velocidade
de crescimento.
E. Respiratórias
a) Asma
b) Fibrose quística
F. Renais
a) Acidose tubular renal isolada ou associada a outras
alterações da função tubular (Síndroma de Fanconi e
variantes)
b) Insuficiência renal crónica
i. congénita: uropatia obstrutiva
ii. adquirida: glomerulonefite crónica; pielonefrite
crónica
G. Hematológicas
a) Anemias crónicas congénitas ou adquiridas
H. Sistema reticuloendotelial
a) Mucopolissacaridoses
b) Gangliosidoses
I. Endocrinológicas
a) Hipopituitarismo
b) Hipotiroidismo
a) Raquitismo hipofosfatémico vitamino-resistente
b) Diabetes insulinodependente mal controlada
c) Pseudo-hipoparatiroidismo
d) Hipercortisolémia
e) Puberdade precoce
f) Défice de hormona de crescimento (GH)
i – genético: ausência do gene da GH; associado a
défice de IgG; insensibilidade à GH do tipo da
Síndroma de Laron; pigmeus africanos
ii – adquirido
J. Outras doenças crónicas
a) Atraso mental
L. Drogas (corticóides)
IV. Erros inatos do metabolismo
a) Aminoacidúrias e aminoacidémias
b) Cetoacidúrias
c) Outras doenças
Em crianças que se apresentem com uma das
seguintes condições: estatura inferior a -3 DP,
crescimento com velocidade inferior ao percentil 25, IO com atraso superior a 2 anos em
relação à IC, haverá que admitir e investigar
causas gerais e endocrinológicas de baixa
estatura, nomeadamente por défice de GH.
114
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Avaliação de uma criança com baixa estatura
Anamnese e exame objectivo
• Antecedentes familiares:
– Estatura dos pais e irmãos (medir toda a família, se possível)
– Puberdade dos pais e irmãos – menarca? início de barba?
• Antecedentes pessoais:
– Gestação – RCIU, ingestão de drogas, infecções?
– Parto – pélvico? forceps?
– Peso e comprimento ao nascer, índice de apagar
– Problemas/anomalias congénitas detectadas durante o período neonatal?
– Doenças anteriores – infecções urinárias de repetição, cardiopatias, infecções respiratórias de repetição, diarreia crónica, asma e seu tratamento (corticóides?)
– Desenvolvimento psicomotor
• Doença actual:
– Construir a curva de crescimento anterior com base nos dados existentes no Boletim de Saúde Infantil
– Revisão por sistemas e aparelhos, nomeadamente: sinais e sintomas de alteração da função tiroideia, lesão cerebral,
fenótipo de síndroma de Cushing?
• Exame objectivo:
– Peso, estatura (comprimento/altura), relação peso/estatura
– Proporção entre os vários segmentos (tronco, membros superiores e inferiores)
– Estádio pubertário
– Dismorfias (fenótipo sugestivo de síndroma de Turner na rapariga?) – descrever exaustivamente as alterações encontradas e, se possível, fotografar
– Dentes – mudou já os caninos? incisivo central único?
– Pressão arterial e frequência cardíaca
– Palpação da tiroideia
Seguidamente são descritas algumas situações
clínicas acompanhadas de baixa estatura.
1. BAIXA ESTATURA FAMILIAR
É uma das causas mais frequentes de baixa estatura. O seu diagnóstico é, no entanto, de exclusão e
obriga ao seguimento continuado da criança ao
longo do tempo, a fim de detectar atempadamente
qualquer desvio.
A estatura final de um indíduo tem uma forte
influência genética. É na fase de crescimento infantil que essa influência é mais importante.
Assim, uma criança com baixa estatura familiar
nasce habitualmente com um peso e comprimento adequados à sua idade gestacional, sendo durante os dois primeiros anos de vida que cruza os
percentis de estatura até estabilizar num percentil
igual ou inferior ao 3, mas superior ao percentil 1.
A partir de então a criança tem uma velocidade
de crescimento normal e apresenta uma maturação
óssea adequada à idade cronológica: o pico de
crescimento e maturação pubertário ocorrem na
idade habitual.
Sintetizando, esta situação caracteriza-se por:
– Antecedentes familiares de baixa estatura.
– Comprimento ao nascer inferior à média,
mas adequado no contexto familiar.
– Curva de crescimento paralela à curva de
percentis, com velocidade de crescimento
normal.
– Dados da anamnese irrelevantes e exame
físico sem alterações fenotípicas (nomeadamente compatíveis com síndroma de Turner
na rapariga) e sem sinais de doença sistémica.
– Altura prevista de acordo com a estatura alvo
familiar.
– Idade óssea sem atraso significativo em relação
à idade cronológica e atraso da idade estatural.
– Estatura final correspondente à estatura alvo
familiar.
CAPÍTULO 20 Baixa estatura
115
QUADRO 3 – Padrões de crescimento e diagnóstico diferencial de baixa estatura (*)
Padrão
de crescimento
Relação entre
IC, IO e IE
Velocidade
de crescimento
Diagnóstico
diferencial
Baixa estatura
intrínseca
IE < IO
IC
Normal
• Baixa estatura familiar
• Síndromas genéticas:
– cromossomopatias
– displasias ósseas
– síndromas dismórficas
• RCIU grave
Crescimento
“atrasado”
IO
Ⲙ
IE< IC
Normal
• Atraso constitucional de maturação
• Doença crónica ligeira
• Má-nutrição ligeira
Crescimento
“atenuado”
IO
Ⲙ
IE<< IC
Abaixo do normal
• Doença crónica grave
• Má-nutrição grave
• Doenças metabólicas
e do equilíbrio ácido-base
• Doenças endócrinas:
– Défice de GH
– Hipotiroidismo
– Síndroma de Cushing
– Hipogonadismo
• Privação emocional e abuso
Ⲙ
(*)Adaptado de Rosenfield RL, 1996
ABREVIATURAS: IC: idade cronológica; IE: idade estatural; IO: idade óssea
QUADRO 4 – Baixa estatura e exames
complementares
Sangue
– hemograma completo e velocidade de sedimentação
– creatinina, ionograma
– pH e gases
– cálcio, fósforo e fosfatase alcalina
– provas de função hepática
– anticorpos antigliadina e antiendomísio, etc.
– T3, T4 e TSH
– IGF-I e IGFBP3
– cariótipo ( nas raparigas )
Urina
– análise sumária e urocultura
Fezes
– exame parasitológico das fezes com pesquisa de Giardia
2. ATRASO CONSTITUCIONAL DO
CRESCIMENTO
Trata-se duma situação de incidência familiar
cujas causas não estão completamente esclarecidas. É possivelmente a segunda maior causa de
baixa estatura. As crianças com esta situação caracterizam-se por terem somatometria ao nascer
adequada à idade gestacional, cruzando habitualmente percentis nos anos pré-puberais. Verifica-se
nestes casos um atraso da maturação óssea e sexual. O seu diagnóstico é também de exclusão,
nomeadamente de formas ligeiras de doença
crónica (doença de Crohn, doença celíaca, acidose
tubular renal, etc.).
Caracteriza-se por:
– Antecedentes familiares de crescimento lento
ou atraso pubertário, nomeadamente mãe
com menarca tardia.
– Comprimento ao nascer normal assistindo-se,
depois, a uma diminuição lenta do crescimen-
116
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
to linear e ponderal até que, nos anos prépuberais, peso e estatura se encontram ambos
abaixo do percentil 5.
– Crescimento inferior ao percentil 3 mas superior ao percentil 1 e paralelo à curva de percentis, com velocidade de crescimento normal
a partir da primeira infância e até à idade
pubertária.
– Na idade habitual da puberdade desaceleração da velocidade de crescimento.
– O “pico” de crescimento pubertário ocorrendo tardiamente, pelos 14 anos nas raparigas e
16 anos nos rapazes.
– Dados da anamnese e exame físico sem alterações.
– Idade óssea com atraso significativo em
relação à idade cronológica, e de acordo com
a idade estatural.
– Prognóstico de estatura de acordo com a
estatura alvo familiar.
– Estatura final normal.
3. DÉFICE DE HORMONA
DO CRESCIMENTO (GH)
O défice de GH é, na maior parte dos casos, idiopático. Pode associar-se a causas orgânicas tais
como tumores cerebrais, em especial craniofaringeoma, intervenção cirúrgica e /ou irradiação do
sistema nervoso central, alterações anatómicas,
nomeadamente displasia septo-óptica e síndroma
da sela turca vazia. Pode ainda resultar de um
défice de secreção ou de alteração da acção da GH
de causa genética.
Manifestações clínicas
O quadro clínico do défice de GH é variável consoante a idade da criança.
Assim, no período neonatal o défice de GH
acompanha-se de outros défices do eixo hipotálamo-hipofisário, traduzindo-se por hipoglicemia neonatal (défice de GH e ACTH / cortisol),
micropénis (défice de gonadotrofinas) e icterícia
neonatal prolongada. O quadro clínico de hipoglicemia associado a micropénis deve chamar a
atenção para o diagnóstico de défice hipotálamohipofisário o qual se acompanha também de défice de TSH (hipotiroidismo de causa central). Esta
situação, cujo tratamento urgente é fundamental,
não é detectada pelo rastreio neonatal (diagnóstico precoce).
Na criança mais velha o défice traduz-se por
baixa estatura proporcionada e desaceleração progressiva do crescimento, geralmente sem quaisquer alterações do exame físico. Alguns casos
apresentam obesidade troncular moderada (“aspecto de redondinho”), fácies de boneca, voz
aguda, pele e cabelos finos, característicos do
défice congénito de GH; nos antecedentes pessoais destas crianças encontra-se com maior frequência restrição de crescimento intra-uterino
(RCIU), asfixia neonatal com índice de Apgar
baixo, apresentação pélvica e parto por cesariana.
O défice de GH pode associar-se a defeitos da
linha média tais como incisivo central único, fenda palatina, lábio leporino, ou displasia septoóptica com nistagmo.
Diagnóstico
Face à suspeita clínica de défice de GH, a criança
deverá ser dirigida a uma consulta de
Endocrinologia Pediátrica, pois o diagnóstico
implica, não só a verificação de critérios clínicos e
auxológicos, mas também a comprovação dos
resultados das provas de estimulação da produção de GH. A realização de RMN crânio-encefálica deve ser realizada em todos os casos de
défice confirmado para estudo da região
hipotálamo-hipofisária e exclusão de patologia do
SNC, nomeadamente tumoral.
Tratamento
Em Portugal, o tratamento com GH está sujeito a
critérios definidos, sendo os casos submetidos a
avaliação por uma Comissão Nacional.
A hormona de crescimento, biossintética, é
administrada diariamente, em injecção subcutânea única, à noite, até ser atingida a idade
óssea de 14 anos na rapariga, e 16 anos no rapaz.
4. SÍNDROMA DE TURNER
Importância do problema
A síndroma de Turner (ST) ocorre em 1/1500 a
117
CAPÍTULO 20 Baixa estatura
QUADRO 5 – Manifestações clínicas da
Síndroma de Turner
FIG. 1
Síndroma de Turner. Pescoço curto alado/pterigium colli. (NIHDE)
1/2500 indivíduos do sexo feminino e deve-se a
alteração numérica ou estrutural de um dos cromossomas X. Em 60% dos casos verifica-se a
ausência de um dos cromossomas X, e em cerca de
20 % dos casos de ST existem anomalias estruturais de um dos cromossomas X: deleção do braço
curto [p-] ou do braço longo (q-), cromossomas em
anel, isocromossomas. Em 20 % dos casos também existe um mosaicismo em duas ou mais
linhas celulares, podendo mesmo existir linhas
com Y, a que se associa um risco acrescido de
gonadoblastoma, obrigando a gonadectomia profiláctica. De referir que os mosaicos podem
somente ser detectados se forem contadas mitoses
suficientes ou se forem utilizadas técnicas avançadas de genética molecular (ver parte sobre
Genética).
Manifestações clínicas
A baixa estatura é um sinal clínico major, encontrando-se em 95 - 100 % dos casos. O comprimento e o peso ao nascer são cerca de 48 cm e 2800 g
em média, respectivamente. Ulteriormente, o
crescimento processa-se a uma velocidade normal
até cerca dos 3 anos, idade a partir da qual se
assiste a uma diminuição progressiva daquela
entre os 3 - 14 anos, não havendo também “pico”
pubertário. Assim, sem tratamento, a estatura
final (que só é atingida na terceira década e que
depende também da estatura dos progenitores) é,
em média, 143 cm, correspondendo o “efeito
Turner” a uma perda de 20 cm.
• Alterações do crescimento esquelético
Baixa estatura
100 %
Pescoço curto
40 %
Alteração relação segmento
superior/inferior
97 %
Cubitus valgus
47 %
Encurtamento dos metacárpicos
37 %
Deformidade de Madelung
8%
Escoliose
13 %
Genu valgum
35 %
Fácies característica: micrognatia
60 %
palato em ogiva
38 %
• Obstrução linfática
Pescoço alado (pterigium colli)
Inserção baixa do cabelo e
orelhas rodadas
Edema das mãos e pés
Displasia das unhas
Dermatoglifos característicos
42 %
22 %
13 %
35 %
• Defeitos das células germinais
Falência gonadal
Infertilidade
96 %
99 %
• Defeitos vários
Estrabismo
Ptose
Nevi pigmentados múltiplos
Anomalias cardiovasculares
Hipertensão
Anomalias renais e renovasculares
18 %
11 %
26 %
55 %
7%
39 %
• Doenças associadas
Tiroidite de Hashimoto
Hipotiroidismo
Doenças gastrintestinais
Intolerância à glucose
34 %
10 %
3%
40 %
25 %
As alterações cardiovasculares traduzem-se
por cardiopatia congénita e hipertensão arterial.
Os defeitos cardíacos ocorrem em cerca de 1/3 dos
casos e atingem mais frequentemente o coração
esquerdo: válvula aórtica bicúspide; coarctação da
aorta; prolapso da mitral; mesocárdia e aneurisma
dissecante da aorta.
118
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
As alterações renais verificam-se em 35 a 70 %
dos casos (habitualmente rim em ferradura, rim
pélvico unilateral e duplicação pielocalicial).
Podem também existir anomalias renovasculares.
Existe um grande número de doenças associadas, nomeadamente doenças autoimunes tais
como tiroidite de Hashimoto, doença de Graves,
vitíligo e também doutras doenças, por exemplo:
doença de Crohn, colite ulcerosa, diabetes mellitus tipo 2 / intolerância à glucose.
A forma de apresentação clínica é diferente
consoante a idade da criança.
No recém-nascido do sexo feminino, deve suspeitar-se de ST quando existe edema linfático das
mãos e pés e “excesso de pele” na região posterior
do pescoço ou pescoço alado (“pterigium colli”)
(Figura 1). No lactente é o diagnóstico de coarctação ou estenose aórtica que levantará a suspeita,
o que implica a realização de cariótipo. Em todas as
crianças do sexo feminino com baixa estatura inexplicada dever-se-á considerar a possibilidade do
ST. Numa adolescente com atraso pubertário (inexistência de botão mamário aos 13 anos), com paragem do desenvolvimento pubertário ou com
amenorreia primária deverá também investigar-se
esta patologia. O Quadro 5 sintetiza a frequência
dos achados clínicos associados a Turner.
Tratamento
O tratamento compreende:
• Administração de GH a iniciar a partir dos 2
anos de idade, diária, subcutânea, à noite;
• Administração de estrogénios a iniciar em
idade pubertária e no contexto do tratamento com GH; dose inicialmente baixa, aumentando progressivamente e associando-se
ulteriormente progestagénio.
BIBLIOGRAFIA
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PARTE V
Desenvolvimento e Comportamento
120
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
21
DESENVOLVIMENTO
Maria do Carmo Vale
Conceitos fundamentais
"Eu sou eu e as minhas circunstâncias..."
Ortega e Gasset
Em Pediatria, Desenvolvimento é definido geralmente como processo de aquisição de competências, habilidades e comportamentos cada vez mais
complexos, o qual resulta da interacção de influências exteriores ao indivíduo com o próprio indivíduo congregando múltiplas potencialidades.
Para que a criança e o adolescente rendibilizem
plenamente as suas potencialidades, é necessária
a existência de condições psicossociais entre as
quais se destacam:
• amor e afecto
• meio familiar consistente e previsível propiciando a exploração e a descoberta.
A assimilação de todos estes estímulos psicoafectivos pressupõe capacidade de interacção; e o
processo que se designa por desenvolvimento
processa-se à medida que a criança reage aos
estímulos do ambiente e aprende a fazer exigências ao seu meio.
A avaliação do referido processo tem como
objectivo, não só a obtenção de um diagnóstico,
mas também a avaliação do perfil das chamadas
“áreas fortes” e “fracas”, quer da criança, quer da
família e respectivos sistemas de suporte cultural,
educativo e social, a fim de se efectuar a programação e integração das áreas a privilegiar.
Uma das áreas que mais atenção tem suscitado
é a perspectiva actual da criança como parceiro e
modulador activo do seu meio social e cultural, e
não como receptor passivo de socialização.
Os diversos modelos biopsicossociais reconhecem actualmente que o Desenvolvimento é o pro-
duto de uma herança genética (nature) e do ambiente (nurture).
A investigação tem demonstrado o profundo
impacte das primeiras experiências no desenvolvimento cerebral. O cérebro compreende, à
nascença, 100 biliões de neurónios; cada neurónio
desenvolve, em média, 15.000 sinapses até aos 3
anos de vida, que se mantêm estáveis até aos 10
anos, declinando depois o número dos mesmos. À
medida que se formam novas sinapses, outras
desaparecem, sendo este fenómeno condicionado
pela menor utilização.
Assim se explica a característica de plasticidade
do sistema nervoso central (SNC) em caso de lesão
estrutural: a exercitação de vias sinápticas acessórias viabiliza alternativas de crescimento e
reforço sináptico e neuronal que poderão
condicionar a substituição da função de células
lesadas por outras células, vias e áres do sistema
nervoso central, reactivando ou regenerando áreas
silenciosas geradoras da recuperação total ou
parcial. Esta capacidade é máxima durante os
primeiros três anos de vida, reduzindo-se progressivamente até aos 10 anos, mantendo-se durante
toda a vida, embora com cada vez menor impacte.
A permanente experiência e aprendizagem do
meio (nurture) influencia a estrutura cerebral
gerada (nature).
Também assim se compreende que crianças
com diferentes talentos e temperamentos (nature)
provoquem diferentes estímulos no meio (nurture)
e que, face a estímulos ambientais idênticos, possam interpretá-los e a eles reagir de forma diversa.
As experiências, quer sejam positivas ou
negativas, influenciam a evolução e a capacidade
adaptativa da criança aos futuros estímulos, isto é
o seu desenvolvimento. São assim determinantes
deste, as influências biológicas, ambientais, psicológicas e sociais, estas últimas designadas, mais
apropriadamente, como condicionantes sociais.
Para avaliar adequadamente progressos, identificar variantes, atrasos ou anomalias, aconselhar
devidamente os pais e planear a intervenção,
torna-se, pois, necessário que o pediatra, o clínico
geral e os profissionais de saúde que prestam
cuidados a crianças e adolescentes compreendam
o sentido abrangente do termo Desenvolvimento
e estejam a par das teorias, perspectivas e estratégias baseadas na evidência.
CAPÍTULO 21 Desenvolvimento
De salientar, em síntese, que a avaliação do
desenvolvimento deve ser individualizada, dinâmica e compartilhada com a criança e sua familia.
Influências psicológicas
Erik Erikson identificou o primeiro ano de vida como o período de estabelecimento de uma ligação
de confiança e afecto mútuo adquiridos através de
resposta atempada e adaptada às necessidades e
estímulos da criança.
A noção de vinculação diz respeito à tendência
do lactente em procurar a proximidade dos pais,
quando colocado em risco, e à relação que lhe
permite utilizar os pais como pessoas com capacidade para restabeler conforto, segurança e bemestar após uma experiência desagradável.
Em todos os estádios evolutivos, a criança
necessita de um adulto com quem estabeleça uma
ligação afectiva electiva e que corresponda adequadamente aos seus reptos verbais e não verbais,
mantendo simultaneamente um estado de receptividade e de auto-regulação da sua progressiva
autonomia.
Influências sociais e família
como modelo ecológico
O centro deste modelo pressupõe a existência de
formas específicas de interacção entre a criança e
o ambiente (os chamados processos proximais)
que actuam através do tempo e são considerados
prioritários para o desenvolvimento humano; naturalmente que estes ocorrem preferencial e electivamente no âmbito da interacção familiar.
Exemplos paradigmáticos deste tipo de processos são os cuidados alimentares e de higiene prestados pela mãe ao recém-nascido e o reforço da
díade e vinculação que proporcionam no dia a dia.
Mais tarde será a actividade lúdica (só ou em
grupo), a leitura, a resolução de problemas, a ideação e execução de planos, assim como a aquisição
de novos conhecimentos.
A família funciona como sistema com ligações
internas e externas, subsistemas, papéis e regras de
interacção. Em famílias com subsistema parental
rígido e autoritário é geralmente negada à criança
capacidade de decisão, incitando à rebeldia e desobediência, comparativamente a famílias com espa-
121
ço de comunicação e maior permeabilidade às
opiniões e preferências da criança; neste último
caso as circunstâncias que estimulam os filhos à
criatividade e sentido de responsabilidade.
Ou seja, para que uma criança se desenvolva é
necessário que esta inicie uma actividade, que esta
seja regularmente reactivada por períodos de
tempo razoáveis e que haja reciprocidade nas permutas afectivas, lúdicas e sociais. Daí a necessidade de cuidadosa atenção à gama de estímulos
presentes no meio ambiente geradoras de experiências e de novas aprendizagens.
Os considerandos referidos integram a definição
de ecossistema subdividido em micro e macrossistema. No primeiro incluem-se as características
dos pais, amigos, professores, etc., que participam
activamente na vida da criança, regularmente e por
períodos extensos; e, no segundo, o padrão ideológico subjacente à organização política e socio-económica da sociedade em que estão inseridas.
Mas, o modelo bioecológico é ainda mais
abrangente ao englobar na estrutura do microssistema, não só a interacção com pessoas, mas
também com objectos, símbolos, conceitos, critérios, estruturas e instituições que particularizam o
ambiente nos denominados processos proximais,
ampliando-o; constitui-se, assim, o macrossistema.
Entre os dois sistemas, localiza-se mesossistema (ou exossistemas), que integra estruturas: em
que a criança participa activamente, como a escola
viabilizando e interacção com os pares; e estruturas que, sem intervenção directa, têm repercussão na qualidade de vida da criança – por exemplo
a estabilidade laboral e económica dos pais,
viabilizando disponibilidade e qualidade de cuidados parentais.
Risco, resiliência e modelo
transaccional (de transigência)
Em Pediatria define-se risco como a presença de
factores biopsicossociais adversos, e resiliência como
a capacidade de resistir ou ultrapassar factores adversos ao longo do ciclo de vida da criança; por oposição
à resiliência define-se vulnerabilidade como particular susceptibilidade aos referidos factores.
O modelo proposto por Baltes defende que a
criança é função da interacção entre as influências
biológicas e sociais, sublinhando o papel de facto-
122
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
res normativos como a idade e época histórica
vivenciada, e de factores não normativos relacionados com acontecimentos imponderáveis (doença grave e incapacitante, acidente, morte de progenitor, etc.).
Exemplo de factores normativos relacionados
com factos históricos e políticos é o das crianças
que crescem em zonas de guerra, instabilidade
política e económica geradoras de fome, angústia
e amputadora de projectos de vida.
Determinados factores como o temperamento e
o estado de saúde influenciam o ambiente onde a
criança cresce e se desenvolve; por sua vez a criança pode ser directamente afectada pelos condicionalismos ambientais daí decorrentes.
Um recém-nascido (RN) prematuro evidencia
longos períodos de sono e curtos períodos de
vigília, hipotonia fisiológica e menor capacidade de
fixação do olhar na face materna, choro débil e
pouco frequente, comparativamente a um RN de
termo (factores normativos). Este comportamento
pode gerar curtos períodos de interacção e oportunidades de vinculação, eventualmente agravados
e potenciados por depressão materna pós-parto.
Pelo contrário, RN e lactentes com períodos de
vigília mais longos e choro vigoroso, interpretados
apelativamente pela mãe, proporcionam maiores
oportunidades de interacção e vinculação da díade
que, quando bem funcionantes e integradas,
proporcionam elevado grau de satisfação e sensação
de competência materna.
Um outro aspecto é o da desvantagem social e
da pobreza de certas crianças as quais são submetidas, designadamente, a maior exposição a factores de risco, quer biológicos como a desnutrição ou
a intoxicação por agentes químicos, quer a dificuldades de acesso a oportunidades e experiências
educativas (factores não normativos).
Quando submetidas a programas de intervenção em tempo oportuno, intensivos e suficientemente prolongados (a que as famílias social e
economicamente auto-suficientes têm acesso facilitado), as crianças de risco mostram uma marcada
melhoria na sua trajectória de desenvolvimento,
de capacidades.
Assim, a privação e a desvantagem decorrem
de uma complexa interacção entre factores de risco
ecológicos, culturais, históricos, demográficos e
psicológicos
De referir que tem sido valorizada a importância
de determinados factores protectores biológicos, tais
como: carácter persistente, apetência por modalidade desportiva, quociente de intelegência elevado,
comportamento cooperativo, eficácia, auto-estima,
empatia, sentido de humor e capacidade de liderança, importantes .
Alguns estudos sublinham ainda a importância
de determinismos sociais como a existência de um
adulto de referência – pais, avós ou professor – com
quem a criança manteve ou mantém relacionamento electivo ou preferencial, bem como crença
religiosa, contribuindo significativamente para o
incremento da resiliência.
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Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 1999
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Vale MC. Autonomia em Pediatria. Tese de Mestrado.
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2001
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção
22
DESENVOLVIMENTO
E INTERVENÇÃO
Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale
Períodos, etapas e áreas
de desenvolvimento
É universalmente aceite que o desenvolvimento da
criança se faz por etapas e que existem desempenhos
característicos de cada idade. De acordo com certos
autores (Piaget, Gesell, Freud, Winnicott) essas
etapas têm fundamentos filosóficos diferentes e
traduzem-se por aquisições em áreas ou domínio de
funções diferentes do mesmo.
A teoria desenvolvimentalista de Piaget, muito
utilizada, baseia-se na interacção contínua do
indivíduo com o meio, num processo de adaptação
(acomodação-assimilação) e traduz-se por vários
estádios que fornecem informação acerca de
capacidades e limitações da criança numa dada
idade. De uma forma geral, os períodos de
desenvolvimento tendem a ser organizados em
dois grandes grupos, do zero aos seis anos e dos
seis aos 12 anos. Tal deve-se ao facto de, após os
seis anos de idade, se considerar a escolaridade
como indicativa do desenvolvimento em várias
áreas, sendo o aproveitamento escolar demonstrativo de algumas aquisições, permitindo dar
muita informação sobre a criança.
No entanto, estas noções devem sempre ser
encaradas de uma forma dinâmica e contextualizada,
com o intuito de promover o acompanhamento da
criança, e nunca de forma a estigmatizar as falhas e
a impor um “rótulo”. É, por isso, fundamental ter a
noção de que é essencial um suporte orgânico ou
alicerce para o desenvolvimento, mas também que é
a estimulação providenciada pelo meio que permite
o desenvolvimento de potencialidades. As várias
123
aquisições fazem-se de acordo com a maturação
orgânica e exigências exteriores, em sinergia e
continuidade. Cada aquisição é fundamental para o
desenvolvimento da seguinte, não só porque
constitui o seu substrato, mas também porque funciona como fonte de estímulo para novas aprendizagens.
Exemplo disto é a sequência sentar-se → elevação
para posição bípede; o aumento do tono da coluna
vai permitir uma elevação do campo da visão e
necessariamente uma maior curiosidade pelo meio.
Embora as habilidades e aquisições da criança
devam ser entendidas num todo porque são interdependentes, a avaliação da criança deve ser
realizada por áreas dado que este modelo permite
uma maior pormenorização de tarefas e melhor
sistematização das alterações quando estas existem. Deste modo e, independentemente da escala
de desenvolvimento utilizada, são contemplados
globalmente os seguintes parâmetros:
• Autonomia pessoal e social – O desenvolvimento pessoal envolve uma grande variedade de habilidades que podem ser agrupadas
em hábitos – alimentação, controlo de esfíncteres, e emoções – sorrir, noção de identidade.
• Comunicação – A comunicação envolve mais
competências não verbais, como as expressões faciais, gestos e movimentos posturais,
bem como competências verbais. A comunicação está obviamente ligada à audição e à
cognição na medida em que é a função
intelectual que analisa, quer a linguagem
compreendida, quer a linguagem expressiva.
• Cognição – Esta área de desenvolvimento
inclui o leque de atenção, a noção de permanência do objecto, a noção de causalidade,
a imitação, a estruturação espacial-temporal
e o jogo, sendo através deste que a criança
recria o mundo que a rodeia, aprendendo a
brincar e a jogar de formas cada vez mais
complexas. A cognição relaciona-se com o
desenvolvimento social e emocional, e os
processos mentais superiores com o pensamento, memória e aprendizagem.
• Motricidade grosseira – As habilidades
motoras globais envolvem o movimento de
grandes massas musculares e incluem o
controlo postural e os padrões locomotores
rudimentares – sentar-se, gatinhar, andar,
124
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
correr. Numerosos autores, especialmente
Wallon, deram grande importância ao tono
no desenvolvimento motor e psicológico. O
desenvolvimento é acompanhado de um
aumento do tono axial e processa-se a par da
diminuição progressiva da hipertonicidade
dos membros; é uma certa extensibilidade
que permite o jogo harmonioso dos músculos
para a realização das sinergias motoras.
• Motricidade fina e visão – A motricidade, é o
meio através do qual a consciência se edifica e
se manifesta. Nesta perspectiva, a motricidade
passa a ser compreendida nas estruturas
associativas que a planificam, elaboram, regulam, executam e integram. O desenvolvimento
das habilidades motoras finas (preensão,
manipulação) é uma aquisição que distingue o
ser humano das outras espécies animais. A
visão está intimamente associada à motricidade
fina, permitindo avaliar, entre outros, designadamente a capacidade visual, a persistência e a
dominância (Quadro 1).
QUADRO 1 – Etapas do desenvolvimento psicomotor (dos 3 aos 60 meses)
Áreas/
Locomoção
Pessoal e Social
Audição e Linguagem
Visão – manipulação
Proezas e raciocínio
Parâmetros
Motricidade
Autonomia pessoal
Comunicação
Motricidade fina
Cognição
Idades
3 meses
global
e social
Eleva a cabeça
Segue pessoa com o olhar
Emite dois ou três sons
e visão
Move o olhar entre
na posição dorsal
Sorri em resposta
Ouve música
2 objectos; Segue
Resiste a que
objecto lentamente
tirem objectos
Tira objecto da mesa
a uma atitude
6 meses
Brinca com os dedos
Senta-se com suporte
Manipula colher (a brincar)
Emite mais de que
Brinca com objecto
Rola
Bebe por caneca
quatro sons
Segue objecto a cair
Tenta gatinhar
Tira um chapéu
Galreia
Faz preensão fina
Brinca com pedaço
Fica sentado no chão
Ajuda a segurar um copo
Diz uma palavra nítida
(“pinça” com o
de papel
polegar e indicador)
Fica com objecto
Responde quando chamado
9 meses
Atira para fora objectos
12 meses
15 meses
18 meses
24 meses
Gatinha
Brinca com a colher
Reage vocalmente
Aponta um dedo
(sabe função)
à música
Pega num lápis
Anda com auxílio
Bate palminhas
Balbucia quando sozinho
Anda sozinho
Usa a colher sozinho
Usa cinco palavras
Coloca objecto
Sobe escadas
Abraça os pais
Identifica objectos
sobre o outro
Põe e tira objectos
Rabisca livremente
de uma caixa
Atira uma bola
Tapa uma caixa
Anda “marcha-atrás”
Utiliza copo meio cheio
Diz nove palavras
Trepa cadeira
Tira sapatos e meias
Gosta de livros ilustrados Faz uma torre
Chuta uma bola
Ajuda a vestir-se/despir-se
Sobe e desce escadas
Consegue abrir a porta
48 meses
60 meses
Salta com pés juntos
Indica desejos
Aponta uma parte
com três cubos
do corpo
Nomeia quatro
Atira uma bola ao cesto
Desenrosca um frasco
brinquedos
Faz um traço horizontal Aponta quatro partes
Usa frases
36 meses
Cumpre ordem simples
Diz o 1º nome quando pedido Nomeia doze objectos
do corpo
Faz uma torre com
Sabe o que é dinheiro
Equilibra-se com um pé Guarda os brinquedos
Usa dois ou mais adjectivos oito cubos
Distingue grande/
Copia um círculo
pequeno
Marcha com música
Calça meias e sapatos
Usa pronomes pessoais
Corta um quadrado
Conta para além de quatro
Salta dois degraus
Sabe a idade
Conhece seis cores
em dois
Compara dois tamanhos
Desenha um homem
e dois pesos
Corre para chutar
Lava sozinho mãos e cara
Define pelo uso
Copia uma cruz
Conhece duas moedas
uma bola
Sabe morada (rua e número)
seis palavras
Desenha uma casa
Conhece três moedas
Desce escadas
Usa bem o garfo e a faca
Descreve um desenho
Corta papel com tesoura Conta dez cubos
como adulto
grande
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção
125
QUADRO 2 – Desenvolvimento psicomotor e sinais de alarme
1 - 2 meses
– Em posição sentada: instabilidade cefálica;
– Em posição vertical ou quando suportado pelo examinador em decúbito ventral, evidencia hiper ou hipotonicidade;
– Não segue a face do observador;
– Não sorri;
– Não estabelece qualquer tipo de contacto social.
9 meses
– Desequilíbrio em posição de sentado;
– Imobilidade na posição de sentado, permanece imóvel;
– Ausência notória de preensão palmar, não levando os
objectos à boca;
– Ausência de vocalização;
– Ausência de constacto social;
– Engasgamento fácil.
3 - 4 meses
– Não fixa, nem segue objectos;
– Não dirige os olhos ou a cabeça para o som (principalmente) quando ouve a voz humana);
– Deixa cair a cabeça para trás, quando seguro pelas
mãos e antebraços;
– Mantém as mãos sempre fechadas;
– Membros rígidos em repouso;
– Postura assimétrica;
– Reage com choro ao tacto;
– Actividade motora monótona.
12 - 18 meses
– Imobilidade permanente, não procura mudar de posição;
– Postura assimétrica;
– Não agarra os objectos ou agarra-os só com uma mão;
– Ausência de resposta à voz;
– Não mastiga;
– Não brinca mantendo apatia;
– Não “obedece” às ordens simples;
– Não diz palavras que se percebam.
6 meses
– Não “segura” a cabeça (instabilidade)
– Membros inferiores com rigidez;
– Segue objectos;
– Assimetria na postura
– Não reage aos sons, evidenciando “apatia”;
– Ausência de vocalização;
– Ausência de preensão palmar (não agarra os objectos);
– Estrabismo constante
De reiterar que todos estes domínios são interdependentes, cada um deles influenciando e sendo
influenciado pelos outros.
Após a avaliação de cada um destes domínios por
tarefas, (sendo de referir que cada uma permite perceber mais do que uma capacidade), é importante
analisar o desempenho e verificar se as falhas são
pontuais ou globais e se eventualmente são alarmantes e carecem de encaminhamento para centro especializado na perspectiva de possível intervenção. No
caso de crianças prematuras deve ter-se em conta a
idade corrigida até aos dois anos de idade.
Chamando-se a atenção para variações indivi-
2 anos
– Ausência de marcha;
– Manipulação dos objectos sem finalidade aparente;
– Parece não compreender o que se lhe diz;
– Não diz palavras perceptíveis.
Mais de 3 anos
– Hiperactividade e dificuldade de concentração;
– Linguagem incompreensível;
– Aparenta “não ver”;
– Alterações do comportamento (agressividade na escola ou no meio familiar, dificuldade no convívio com
outras crianças, birras excessivas, reacção excessiva se
separado da mãe.
duais de semanas ou meses no respeitante, designadamente ao desenvolvimento cognitivo e
motor tendo como referência o padrão médio da
idade-chave em questão, o Quadro 2 de interesse
prático para o clínico, elucida sobre determinadas
falhas consideradas alarmantes.
Pontos de viragem “Touch points”
e intervenção preventiva
Está demonstrado que a auto-estima da criança
poderá ser melhorada se a família adquirir conhecimentos e competências sobre o desenvolvimento
126
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
motor, cognitivo e emocional em idade pediátrica.
Nesta perspectiva, em colaboração com o médico e profissional de saúde seguindo, “ em conjunto a criança e discutindo assuntos relacionados,
haverá excelentes oportunidades para prevenir
certas falências do desenvolvimento.
Por outro lado reforça-se a confiança e aliança
entre profissional e família, o que contribui para o
progresso do desenvolvimento.
É esta a filosofia do modelo dos touchpoints,
(pontos de viragem), que teve a sua criação em
Terry Brazelton, seguido e desenvolvido em
Portugal por Gomes Pedro.
Baseia-se na teoria de sistemas. Cada componente deve reagir a todo e qualquer motivo de
estresse que possa incorrer no sistema, e dado que
cada membro partilha as suas reacções, a presença
do técnico de saúde poderá reduzir o estresse tanto
nos pais, como na criança. Cada momento de estresse
é visto como uma oportunidade de aprendizagem,
seja para o sucesso, seja para o insucesso.
O modelo dos “pontos de viragem” corresponde
a um tipo de intervenção preventiva que dá relevo
principal aos potenciais e forças da família e que
combina a compreensão do desenvolvimento da
criança com a criação de relações entre os
intervenientes (técnico, clínico, pais e criança). O
desenvolvimento da criança é descrito como nãolinear; é dinâmico, em surtos, com regressões, saltos
e pausas, sendo que uma área de desenvolvimento
influencia as outras. Os pontos de viragem são
momentos em que uma mudança do sistema é
provocada por uma alteração no desenvolvimento da
criança, correspondendo a períodos previsíveis de
regressão que ocorrem antes de um “salto” no
desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento
é multidimensional e interdependente; um salto
numa área causa uma regressão temporária noutra
área. Estes períodos de regressão causam desorganização no sistema no qual a criança está inserida,
mas correspondem também a um período de
reorganização. É possível que os pais se sintam
desorientados e tenham medo de que a regressão
conduza a uma alteração do comportamento.
Uma vez que estes períodos são previsíveis - um
na gravidez, sete no primeiro ano, três no segundo
ano e dois em cada ano subsequente, é função do
médico e do técnico de saúde explicar antecipadamente o seu sentido aos pais, tendo em vista reduzir
a ansiedade e aumentar a confiança naqueles.
(Quadro 3)
Resumem-se a seguir, com exemplos concretos,
alguns aspectos relacionados os oito pontos de
viragem considerados por Brazelton e Gomes Pedro
(desde a gravidez até aos 12 meses):
• 1º Ponto de Viragem – O 1º ponto é importante
para formar uma relação com os futuros pais;
no 7º mês de gravidez o profissional tem a
oportunidade de conhecer e partilhar preocupações com os pais establecendo-se uma
relação de confiança antes da chegada do bebé.
• 2º Ponto de Viragem – O 2º ponto dá-se no
hospital ou em casa, pouco depois de o bebé
nascer; pai e mãe, participando na consulta de
avaliação, poderão ser sensibilizados para o
comportamento do bebé designadamente no
que respeita à sua notável capacidade para
reagir ao ambiente que o rodeia.
• 3º Ponto de Viragem – O 3º ponto deverá
ocorrer entre as 2 – 3 semanas de vida; ou seja,
antes da idade de 4 – 12 semanas, período este
caracterizado por choro irritante ao fim do
dia relacionado com a reacção do sistema
nervoso imaturo aos estímulos ambientais.
Com a intervenção antecipada (2–3 semanas),
explicando aos pais que não deverão pegar
no bebé (o que constitui estímulo adicional
para choro irritante), o período de choro pode
ser reduzido e o bebé fica mais calmo. É
também a oportunidade para criar um ambiente calmo e caloroso, esclarecendo regras
sobre a prática do aleitamento materno. Consequentemente os pais sentirão que foram
bem sucedidos.
• 4º Ponto de Viragem – O quarto ponto
corresponde aos 2 meses, data de vacinas e
em que se reavalia a alimentação, o sono e os
ciclos de agitação. Se o profissional comentar
com os pais certos padrões de comportamento do bebé (contacto social frente a frente,
actividade motora, etc.), os mesmos poderão
avaliar a aprendizagem já ocorrida no bebé,
aumentando-lhes o auto-estima e o sentido
de responsabilidade.
• 5º Ponto de Viragem – O 5º ponto (consulta
dos 4 meses) antecede um período de sobressalto na consciência cognitiva do ambiente: interrompe a refeição, olha em volta atento
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção
127
QUADRO 3 – Aspectos principais de cada ponto de viragem (touchpoints)
Idades
1) Pré-natal
Preparação para a
paternidade
2) Recém-nascido Saúde
3) 2-3 semanas
Exaustão parental
4) 2 meses
Sociabilidade
5) 4 meses
Afeição
6) 6 meses
Capacidades motoras
7) 10 meses
Mobilidade
8) 12 meses
Independência
9) 15 meses
Autonomia
10) 18 meses
Conhecimento
11) 24 meses
Brincadeiras
de “faz-de-conta”
12) 36 meses
Imaginação
Bebé imaginado
(idealizado/real)
Bebé real
Alimentação
Autoconfiança parental
Interesse pelo mundo
Alimentação
Referência social
Capacidades motoras
Brincadeira (exploração)
Noção do “eu”
Linguagem
Relações familiares
Pai imaginado
Emoções parentais
Relações entre os pais
Relações com o mundo exterior
Padrões de cuidados
Sono
Controlo (mover/pensar)
Aprendizagem (descoberta)
Dependência
Exercício do controlo
Autonomia
Afeição
Individualidade
Medos e fobias
Linguagem
Relações com outras crianças
aos estímulos do ambiente e começa a acordar
de noite após período de sono seguido, com
mudança dos padrões alimentares. Esta fase
do desenvolvimento corresponde a “rápido”
sobresalto do mesmo, ou de “desorganização”. É então altura de os pais serem esclarecidos que tal período é precursor de rápido
desenvolvimento e não constitui qualquer
fracasso no que respeita aos cuidados
prestados. É sinal de que o bebé precisará de
refeições mais curtas sendo importante que os
pais compreendam esta evolução. No que
respeita ao sono, se o bebé tiver aprendido a
encontrar conforto através duma forma
independente de adormecer (por exemplo,
chuchando no dedo ou agarrando-se ao
cobertor), e não habituado a adormecer ao
colo dos pais, haverá maior probalidade de
adormecer depois de acordar de noite.
• 6, 7º e 8º Pontos de Viragem – Aos 6, 10 e 12
meses ocorrem mais três pontos de viragem,
cada um dos quais constitui uma oportunidade
para discutir questões que vão surgindo, com
os pais. Cada ponto de viragem antecede um
sobressalto numa ou mais áreas.
O Quadro 3 resume os aspectos principais de
cada ponto de viragem até aos 36 meses.
Salienta-se que a data em que os pontos de
viragem acontecem pode ser alterada nos
casos de prematuridade.
Exigências do bebé
Permanência do objecto
Permanência de pessoas
Irritabilidade
Linguagem
Linguagem
Capacidades motoras
Em suma, os pais da criança sentirão que o
médico e o profissional de saúde se preocupam
não só com o progresso fisico, mas também estão
atentos ao seu desenvolvimento psicológico. Por
outro lado, os referidos pontos de viragem podem
ser encarados como oportunidades para dar apoio
aos pais preocupados.
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128
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
23
COMPORTAMENTO
E TEMPERAMENTO
Maria do Carmo Vale
Definições e importância do problema
Define-se comportamento como o conjunto de
acções, reacções ou actividades motoras observáveis como resposta aos estímulos internos e
externos. Desde o nascimento as crianças apresentam diferentes comportamentos: algumas choram
muito, outras são mais calmas, umas mais sisudas,
outras mais sorridentes e activas.
Define-se temperamento como o conjunto de
características biológicas que influenciam o humor, comportamento e emoções, correspondendo
ao substrato biológico sob o qual se estrutura a
personalidade. São exemplos o nível de actividade
motora, capacidade de adaptação à mudança,
qualidade e intensidade das respostas a novas
situações, limiar sensorial, humor positivo ou
negativo, capacidade de atenção, concentração e
persistência. Temperamento é, afinal, um estilo
comportamental de etiologia biológica com componente fortemente genética.
O perfil de temperamento na primeira
infância é traduzido pelos ritmos de sono e
alimentação, reacção ao banho, adaptação a
novos alimentos e pessoas, frequência e intensidade do choro e riso, etc..
Na segunda infância é traduzido pelo relacionamento com os pares, padrões de jogo, capacidade de atenção e persistência nas tarefas.
Na criança em idade escolar relaciona-se com
a adaptação à escola, à família, aos pares, às
actividades lúdicas e de grupo, orientadas por
educadores, ou seja, pelo reportório de interacção.
O temperamento é, assim, intrínseco à criança,
por oposição ao comportamento que é influenciado pelo meio e pelo relacionamento e perfil da
mãe ou substituto materno (vinculação).
De referir que a vinculação é fundamental para
o desenvolvimento cognitivo e emocional da
criança, sendo a sua avaliação primordial para a
apreciação dos problemas do comportamento, sobretudo durante o primeiro ano de vida.
A partir do segundo e terceiro anos de vida, a
criança torna-se menos dependente das figuras de
vinculação.
Em 1988, Belsky e, posteriormente, Bydar e
Brooks-Gunn, concluiram que periodo superior a
20 horas semanais em creche, durante o primeiro
ano de vida, pode pôr em risco a relação mãe-filho,
bem como o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental da criança o que não
acontece quando a actividade laboral materna é
adiada para o segundo ou terceiro ano de vida.
A problemática da separação mãe-filho noutras
situações como a hospitalização, institucionalização, adopção, etc., condicionou uma maior ênfase no encurtamento das mesmas; sublinhou-se,
por exemplo, as vantagens do hospital de dia, dos
internamentos de curta duração e da aceleração
dos processos de adopção.
Define-se perturbação do comportamento como
a modificação do padrão de acções, reacções ou
respostas aos estímulos do meio, de carácter persistente ou repetitivo, em que são violados os direitos
básicos dos outros ou importantes regras ou normas
sociais próprias da idade. Tal situação gera um
défice clinicamente significativo na actividade social
escolar ou laboral.
A prevalência da perturbação do comportamento parece ter aumentado nas últimas décadas;
é usualmente mais elevada nos meios urbanos
comparativamente aos rurais e varia entre menos
de 1% e 10%.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Foram estabelecidos dois tipos de perturbação do
comportamento com base na idade de início (início
na infância ou início na adolescência), podendo
apresentar-se de forma ligeira, moderada ou
grave.
O tipo início na infância é definido pelo menos
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento
129
QUADRO 1 – Perturbação do Comportamento: Critérios de Diagnóstico
Padrão de comportamento repetitivo e persistente, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes
regras ou normas sociais próprias da idade, manifestando-se pela presença de três ou mais dos seguintes critérios,
durante os últimos 12 meses e, pelo menos, de um critério durante os últimos 6 meses.
Agressão a pessoas ou animais
1. com frequência insulta, ameaça ou intimida as outras pessoas.
2. com frequência inicia lutas físicas.
3. utilizou uma arma que pode causar graves prejuízos aos outros.
4. manifestou crueldade física para com as pessoas.
5. manifestou crueldade física para com os animais.
6. roubou confrontando-se com a vítima.
7. forçou alguém a uma actividade sexual.
Destruição de propriedade
8. lançou deliberadamente fogo com intenção de causar prejuízos graves.
9. destruiu deliberadamente a propriedade alheia.
Falsificação ou roubo
10. arrombou a casa, propriedade ou automóvel de outra pessoa.
11. mente com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações.
12. rouba objectos de certo valor sem confrontação com a vítima
Violação grave das regras
13. com frequência permanece fora de casa de noite apesar da proibição dos pais, iniciando este comportamento antes dos
treze anos de idade.
14. fuga de casa durante a noite, pelo menos duas vezes, enquanto vive em casa dos pais ou em lugar substitutivo da casa
paterna.
15. faltas frequentes à escola com início antes dos treze anos.
Tipos
Tipo início na segunda infância: antes dos 10 anos, início de pelo menos uma característica do critério de Perturbação do
Comportamento.
Tipo início na adolescência: antes dos 10 anos ausência de qualquer critério característico do critério de Perturbação do
Comportamento.
Perturbação do comportamento, início não especificado: a idade de início é desconhecida.
Gravidade
Ligeira: poucos ou nenhum dos problemas de comportamento para além dos requeridos para fazer o diagnóstico sendo
de referir que os problemas de comportamento causaram apenas pequenos prejuízos aos outros.
Moderada: o número de problemas de comportamento e os efeitos sobre os outros situam-se entre”ligeiros” e “graves”.
Acentuada: muitos problemas de comportamento que excedem os requeridos para fazer o diagnóstico ou os problemas
de comportamento causam consideráveis prejuízos aos outros.
por um dos critérios característicos da perturbação
do comportamento antes dos 10 anos (Quadro 1).
Trata-se habitualmente de crianças do sexo
masculino, evidenciando frequentemente agressi-
vidade física com os outros, relações perturbadas
com os companheiros, perturbação da oposição no
início da infância e sintomas que preenchem os
critérios de perturbação do comportamento antes
130
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
da fase pubertária. Muitas crianças com este tipo
têm também perturbação de hiperactividade com
défice de atenção.
O tipo início na adolescência é definido pela
ausência de características de perturbação do
comportamento antes dos 10 anos de idade. Comparativamente ao tipo anterior manifestam-se
menos comportamentos agressivos com tendência
para relações mais aproximadas do normal com os
companheiros.
Evolução
A evolução da perturbação do comportamento é
variável; verifica-se remissão até à idade adulta na
maior parte das crianças. Contudo existe uma
proporção que continua a revelar na idade adulta
comportamentos anti-sociais.
O início precoce prenuncia um mau prognóstico e risco mais elevado de evoluir para uma
perturbação anti-social da personalidade ou para
perturbações associadas ao abuso de drogas na
idade adulta.
Tipos especiais
de comportamento social
Comportamentos considerados apropriados ou
aceitáveis em determinadas idades passam a
patológicos quando surgem mais tardiamente.
Os espasmos do soluço, mentira, impulsividade e birras são considerados normais entre os 24 anos e devidos a uma necessidade de afirmação
e autonomia face à real dependência motora e
social, traduzindo frustração e zanga por tal facto.
São analisados alguns exemplos:
O espasmo do soluço (pausa respiratória e
cianose com choro) é observado nos dois primeiros
anos de vida e tem por objectivo o controle do
meio, nomeadamente dos pais e cuidadores, nas
situações de desprazer da criança.
Este comportamento deve ser ignorado e acaba
por extinguir-se, se a criança não atinge os seus
objectivos.
A mentira é utilizada entre os 2 e os 4 anos
como meio de treino da linguagem e imaginação
(fabulação), expressando a criança a fantasia dos
seus desejos.
Na criança em idade escolar por vezes a men-
tira é utilizada para encobrir algo que ela não
aceita no seu comportamento, conseguindo desta
forma um bem estar temporário e preservação da
auto-estima.
A pré-delinquência é uma entidade clínica
manifestada através de vários comportamentos
anti-sociais como o roubo, mentira, destruição de
propriedade, crueldade para com os animais,
violação, crueldade física para com os outros e
repetidas tentativas de fuga.
O comportamento de oposição é manifestado
através de comportamentos menos graves como a
birra, o desrespeito de regras, atitude de desafio
permanente, culpabilização sistemática dos outros,
comportamento vingativo e frequente utilização de
linguagem obscena.
Os comportamentos de oposição e as birras
(teimosia e zanga), frequentes entre os 18 meses e
os 3 anos, são de alguma forma apelativos, na
medida em que procuram centralizar a atenção
dos pais. A resposta desajustada, nomeadamente
através de punição, reforça e perpetua este tipo de
comportamento, pelo que os pais devem dar
espaço e tempo à manifestação da criança que,
depois de acalmada, deve ser chamada à razão
através de um diálogo profícuo, explicando o
motivo pelo qual o seu comportamento é inaceitável, moldando e controlando progressivamente a referida conduta.
Define-se agressão como qualquer forma de
hostilização; é frequentemente considerada como
um traço negativo, apesar de desempenhar papel
relevante na evolução da espécie animal.
A agressividade, tipo de comportamento
social, pode ser expressa de diferentes maneiras:
não verbal, sob a forma de pontapés e empurrões;
verbal, traduzida por apreciações mais ou menos
depreciativas que podem ir atá ao insulto, instrumental e hostil (intencionalidade); e a individiual
ou de grupo.
Tal como já foi referido, a agressividade da
criança pode ser condicionada pela dificuldade de
relacionamento com os pares ou pais, sendo,
importante investigar as causas e motivos.
As crianças sem comportamento empático ou
pró-social são frequentemente agressivas e podem
necessitar de intervenção de equipa de saúde mental.
Nas crianças expostas a modelos de agressividade nos meios audiovisuais como a televisão
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento
desenvolve-se mais frequentemente comportamento de agressividade, comparativamente a
crianças não expostas.
Intervenção
Na maior parte dos casos as perturbações de comportamento são transitórias e regridem, ou espontaneamente, ou através de atitudes educativas
como o reforço positivo de comportamentos prósociais e adequados.
Contudo, tais perturbações exigem maior atenção para prevenir situações graves (delinquência),
ou do foro psicopatológico.
Existem diferentes modos de lidar com a
conflitualidade, comportamento anti-social ou
pré-delinquência; por exemplo ignorar o comportamento em causa, separação das outras crianças
para evitar reforçar o referido comportamento,
recompensar a atitude não agressiva, reforçar
regras, efectuar manobras de diversão, explicar a
igualdade de direitos, incentivar a autodefesa,
sugerir soluções, encorajar a amizade, ensinar boas
maneiras, desaprovar, etc..
A intervenção só se justifica se a agressividade
for mantida, condicionando ruptura com o meio
familiar, escolar ou social.
Dois tipos de intervenção podem ser utilizados
com sucesso nas perturbações de comportamento:
treino da criança na capacidade de solucionar
problemas e treino dos pais.
O primeiro utiliza a modelo comportamental,
“role-playing”, análise das boas razões e correcção
de conduta, reforço social de comportamentos
adequados (imaginação de soluções, perspectiva
do outro, etc.) em sessões suficientes para obter
resultados (nunca menos de 20-30 sessões).
O treino parental envolve o ensino de princípios
e técnicas educativas que promovam comportamentos ajustados, de que são exemplo o reforço
positivo ou condicionado (premiar ou louvar o
comportamento adequado), cobrar ou “multar” a
resposta inadequada (por exemplo com a perda de
pontuação) e plano de contingência adaptado.
Existem diferentes tipos de intervenção
centrada no apoio e ensino dos pais englobando os
seguintes aspectos:
• Observar, identificar e monitorizar o comportamento do filho.
131
• Reforçar o comportamento adequado e prósocial.
• Lutar contra comportamentos agressivos ou
de ruptura, ignorando-os.
• Dar directivas claras e concisas.
• Avisar uma única vez as consequências do
não cumprimento de uma ordem ou
directiva.
• Utilizar tempo limitado para o cumprimento
de uma ordem (3-5 minutos).
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Perturbações Dissruptivas
do Comportamento e de Défice de Atenção in DSM-IV-TR.
Lisboa: Climepsi, 2002: 94-103
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
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Lewis M. Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore:
Lipincott, Williams & Wilkins, 2002
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York:
McGraw-Hill, 2002
Vitulano LA, Tebes JK. Child and Adolescent Behavior Therapy
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Baltimore: Lipincott Williams & Wilkins, 2002: 998-1112
Yancy WS. Aggressive Behaviour and Delinquency in Levine
MD, Carey WB, Crocker AC (eds). DevelopmentalBehavioral Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 471-476
132
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
24
DEFICIÊNCIA MENTAL
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
Definições e importância do problema
Deficiência mental (DM) é definida como o
conjunto de perturbações caracterizadas por um
funcionamento intelectual global (habitualmente
definido por um quociente de inteligência – QI –
obtido através de testes de inteligência) inferior à
média (défice cognitivo) acompanhado de limitações do funcionamento adaptativo em, pelo
menos, duas das seguintes áreas: comunicação,
cuidados próprios, vida doméstica, competências
sociais/interpessoais, utilização de recursos comunitários, autocontrolo, competências académicas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança.
O início da DM deve ocorrer antes dos 18 anos;
com múltiplas etiologias, corresponde à via final
comum de vários processos patológicos que
afectam o funcionamento do sistema nervoso
central (SNC).
Segundo a classificação do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition
– DSM IV, a deficiência mental pode ser
classificada em:
• Deficiência Mental Ligeira: QI> 50-55 <70
• Deficiência Mental Moderada: QI>35-40 <5055
• Deficiência Mental Grave: QI >20-25 <35-40
• Deficiência Mental Profunda: QI < 20-25
• Deficiência Mental, Gravidade Não
Especificada
Cerca de 1-3% da população apresenta DM. É
importante reconhecer que a grande maioria das
crianças (85%) se situa no grupo de DM Ligeira,
crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes
apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A
DM Moderada representa cerca de 10% das crian-
ças as quais são consideradas “treináveis” e com
capacidade de integração comunitária. Apenas 34% das formas DM se classificam como Graves,
com aproveitamento mais limitado a nível préescolar; e apenas 1-2% das situações correspondem
à forma DM Profunda.
A melhoria dos cuidados de saúde (e do
respectivo acesso) diminuiu a prevalência de DM.
Mas se, por um lado, o diagnóstico pré-natal e a
intervenção precoce permitiram reduzir as
consequências da síndroma de Down, da fenilcetonúria e do hipotiroidismo congénito, assistiuse a um aumento de casos de DM devido ao
aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso
e a um aumento da sobrevivência de crianças de
alto risco perinatal (relacionado designadamente
com prematuridade extrema e muito baixo peso).
O défice cognitivo é a patologia grave do neurodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no
sexo masculino, comparativamente ao sexo feminino numa relação de 2/1 no défice cognitivo
ligeiro e 1.5/1 no défice cognitivo grave.
Factores etiológicos
Como já referimos existem muitas causas de DM,
frequentemente em concomitância. A identificação
da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não
é recomendada por rotina uma investigação exaustiva de todas as causas possíveis, mas sim uma
investigação orientada pela clínica.
Os factores a ter em consideração para
investigar um défice cognitivo são:
• Gravidade do défice cognitivo (quanto mais
grave for, maior a possibilidade de um
diagnóstico etiológico).
• História familiar ou semiologia sugestiva de
perturbação específica.
• O desejo dos pais de uma nova gravidez o
que, por si só, justifica esforços acrescidos no
esclarecimento etiológico.
• Opinião dos pais: alguns estão mais interessados no tratamento e outros estão focados
na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a
intervenção antes de conhecer o diagnóstico.
Na população com DM Ligeira há frequentemente um envolvimento de componentes genéticas e ambientais (sócio-económicos, culturais,
etc.) e as causas específicas de DM ligeira/mode-
CAPÍTULO 24 Deficiência mental
rada são diagnosticáveis em menos de 30% dos
casos.
Na população com DM grave e profunda é
mais provável a possibilidade de identificação de
causas orgânicas e, uma vez que o impacte na
família pode ser determinante, devem ser desenvolvidos mais esforços no sentido de identificar
uma possível etiologia; neste grupo as etiologias
pré-natais são predominantes. As causas perinatais e pós-natais comparticipam apenas 10-25%
dos casos nas formas mais graves de défice
cognitivo.
Exemplos de factores causais referentes ao
período pré-natal incluem as anomalias cromossómicas e doenças genéticas com múltiplas anomalias congénitas major/minor, e causas não
genéticas como a exposição a tóxicos (álcool ou
drogas de abuso), infecções maternas (rubéola,
toxoplasmose e citomegalovírus), alterações
estruturais do SNC (perturbações da migração
neuronal, agenésia do corpo caloso, hidrocefalia).
Exemplos de etiologia perinatal incluem o
sofrimento fetal, hipóxia ou complicações da
prematuridade.
As causas de DM pós-natal incluem as infecções do SNC, hipotiroidismo, má nutrição,
trauma e exposição a toxinas (chumbo), etc..
Em geral, quanto mais precocemente ocorrer a
noxa, mais graves as consequências como é o caso
das perturbações que afectam a embriogénese
precoce: anomalias cromossómicas (trissomia 21,
X frágil), erros congénitos do metabolismo/
perturbações neurodegenerativas (mucopolissacaridose) e anomalias do desenvolvimento do SNC
(défice de migração neuronal, lisencefalia).
Manifestações clínicas e diagnóstico
Excluindo as situações de dismorfia (síndroma
genética, como por exemplo a trissomia 21 ou
microcefalia isolada), patologia já identificada ou
situações de risco (como os prematuros), a maior
parte das crianças com DM recorre ao pediatra ou
médico de família por não cumprir as metas de
desenvolvimento nas idades esperadas. Nalguns
casos em que não há estigma físico que permita uma
orientação etiológica, os pais podem sentir que algo
está errado com a sua criança, cabendo ao pediatra
e médico de família na sua vigilância regular de
133
saúde infantil perceber se os desempenhos da
criança são próprios da idade cronológica.
As perturbações do comportamento adaptativo são também frequentemente o sintoma
revelador da DM. O comportamento adaptativo
refere-se à maneira como as crianças lidam com as
necessidades da vida diária e ao grau de independência pessoal em relação ao esperado para um
indivíduo do seu grupo etário.
O médico deve inquirir e observar a criança em
relação ao seu comportamento e desenvolvimento
de forma a fazer uma detecção precoce e
orientação adequada. Pode usar testes simples de
rastreio (como o Denver II) ou questionários dirigidos aos pais.
Entre os 6 e os 18 meses são mais frequentemente detectados problemas nas áreas motoras,
hipotonia ou hipertonia, com atraso nas aquisição
de competências como o sentar-se, gatinhar ou
andar. Os problemas de linguagem e comportamentais, são queixas referidas, sobretudo, após os
18 meses. Algumas situações mais ligeiras, podem
só ser detectadas com o início do infantário ou
mesmo da escolaridade. Por outro lado, quanto
mais grave for o défice cognitivo, mais precoce
será o diagnóstico e maior a necessidade imediata
de intervenção.
Assim, numa criança em que se verifique a
suspeita de DM (com ou sem orientação etiológica
definida), deve ser programada uma avaliação
completa do desenvolvimento por profissionais
especializados, idealmente numa equipa multidisciplinar.
Esta avaliação não se limita apenas à realização
de testes psicológicos individuais, que permitem a
definição do QI e consequentemente a classificação
nosológica, mas deve resultar na defição de um
perfil funcional individual.
Assim, é possível diagnosticar DM em crianças
com QI≥70 e ≤75 se existirem concomitantemente
défices significativos no comportamento adaptativo.
Inversamente, não será diagnosticada DM em criança
com QI≤70 se não coexistirem défices ou perturbações
significativas do comportamento adaptativo.
Naturalmente, os instrumentos de avaliação
deverão ter em conta factores limitantes como por
exemplo o nível sócio-cultural, língua materna e a
associação de limitações nas áreas da comunicação, motora e sensorial.
134
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Na maioria dos testes são avaliadas diferentes
sub-áreas: motricidade grosseira, motricidade
fina, socialização, autonomia pessoal e comunitária, a linguagem e a comunicação verbal e nãoverbal, a cognição verbal e não verbal, o comportamento e a atenção, etc..
É de uma caracterização extensa e pormenorizada destes múltiplos desempenhos que é possível construir um perfil quanto ao desenvolvimento. Este perfil permite, não apenas confirmar o
diagnóstico e avaliar a presença de co-morbilidades
(de notar que pode haver DM concomitantemente
com défices específicos em determinadas áreas),
mas conhecer as áreas “fortes e fracas” da criança,
o que é imprescindível para a elaboração de um
programa de intervenção adequado e eficaz.
A investigação etiológica inclui, geralmente
estudos neuroimagiológicos (anomalias do SNC,
doenças neurodegenerativas, anomalias de desenvolvimento do SNC), estudos cromossómicos
(cromossomopatias), moleculares (X frágil) e
metabólicos (mucopolissacaridoses, doenças do
ciclo da ureia, outras doenças metabólicas).
As crianças com défice cognitivo apresentam
frequentemente problemas de visão, audição,
emocionais e comportamentais associados. Se não
forem atempada e adequadamente diagnosticados
e tratados tais problemas associados potenciam
adversamente a evolução destes casos.
Por outro lado, conhecer a etiologia do défice
cognitivo pode ajudar a diagnosticar problemas
associados na medida em são habituais em
determinados casos: por exemplo na trissomia 21 é
frequente a coexistência de hipotiroidismo,
subluxação atlantoaxial e défices sensoriais; e na
síndroma de X frágil e síndroma fetal-alcoólica são
frequentes os problemas comportamentais.
O Quadro 1 refere-se a anomalias cromossómicas
frequentemente associadas a défice cognitivo
(quatro exemplos). (ver Parte III)
Intervenção
Independentemente do maior ou menor sucesso
na identificação da etiologia, a intervenção na
DM deve ser iniciada imediatamente uma vez
feito o diagnóstico de DM e definido o perfil de
desenvolvimento da criança.
Quando o diagnóstico é precoce, deve ser de
QUADRO 1 – Anomalias cromossómicas
associadas a défice cognitivo
SÍNDROMA DE DOWN OU TRISSOMIA 21 (1/700)
Quadro clínico
• Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica.
• Malformações congénitas: cardíacas, gastrintestinais,
• Baixa estatura, obesidade, hipotonia
• Hiperlaxidão articular (subluxação atlanto-axial ou
atlanto-occipital)
• Anomalias da visão: cataratas, estrabismo, nistagmo,
erros de refracção
• Anomalias da audição: hipoacúsia; otite serosa
• Perturbações da dentinogénese.
• Leucemia; imunodeficiência
• Demência precoce; doença de Alzheimer futura
SÍNDROMA DE X FRÁGIL (1/1000)
Quadro clínico
• Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica.
• Macrocrânia, pavilhões auriculares proeminentes.
• Hiperextensibilidade articular/hipotonia.
• Macrorquidismo
• Prolapso da válvula mitral.
• Perturbação da comunicação
• Hiperactividade
SÍNDROMA DE TURNER (XO)
SÍNDROMA DE KLINEFELTER (XXY)
imediato sinalizada para uma equipa em centro
especializado e iniciar-se um programa de intervenção definido de acordo com as dificuldades e
potencialidades da criança. A intervenção deve
ser feita no domicílio ou na instituição que a
criança frequenta e ser sobretudo centrada no
apoio indirecto aos pais, que deverão sempre ser
considerados parceiros fundamentais na estimulação da criança.
De acordo com o modelo inclusivo que é
actualmente defendido a nível mundial, as
crianças devem ser integradas em estabelecimentos de ensino regular, com apoio de educação
especial. Só este modelo de integração permite
que elas desenvolvam um comportamento convencional e adaptativo, que é a chave para a sua
aceitação na comunidade.
CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação
O programa de intervenção deve ser reavaliado
e reajustado periodicamente; por isso o pediatra
do desenvolvimento deve elaborar um plano de
vigilância e seguimento, em colaboração com o
pediatra geral ou médico de família, a equipa de
técnicos, e os pais.
Um diagnóstico em tempo oportuno e uma
intervenção, o mais precoce possível, poderão
permitir minorar as dificuldades da criança
ajudando-a a rendibilizar as suas potencialidades
e a encontrar o seu lugar na comunidade.
135
25
PERTURBAÇÕES DA
LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Deficiência Mental in DMSIV-TR. Lisboa: Climepsi, 2000:41-49
Crocker AC, Nelson RP. Mental Retardation in Levine MD,
Definições e importância do problema
Carey WB, Crocker AC (eds). Developmental-Behavioral
Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 551-559
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
2007
Russell AT, Tanguay PE. Mental Retardation in Lewis M (ed).
Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore: Williams &
Wilkins, 1996:502-510
Shapiro BK. Mental Retardation in Batshaw ML, Perret YM
(ed). Children with Disabilities. Baltimore: Paul H Brookes,
1992: 259-289
A fala tem várias componentes e qualidades: a
articulação que está relacionada com o som
produzido pelos movimentos das estruturas orais;
a voz, ou fonação, que resulta da produção de som
pela vibração das cordas vocais; a ressonância que
resulta da amplificação ou filtração do som
emitido pela vibração das cordas vocais (cavidade
oral e nasal); a fluência que se refere ao ritmo e
fluxo apropriados da fala (um exemplo de disfluência é a gaguez); e a prosódia que se refere à
entoação, inflexão e cadência da fala.
A elevada prevalência de perturbações da
linguagem e problemas de aprendizagem nas
famílias de crianças com perturbações da linguagem condicionou a hipótese de etiopatogénese
genética para os problemas evolutivos da linguagem.
Mais de metade das crianças com perturbações da comunicação apresentam problemas
emocionais ou comportamentais. Alguns autores reportaram que cerca de dois terços de
crianças recorrendo à consulta de pedopsiquiatria apresentavam problemas relacionados com
linguagem.
Para compreender melhor a complexidade
desta patologia é importante abordar a terminologia: Linguagem é um sistema de representação
simbólica usado para comunicar sentimentos,
ideias e intenções; a fala é a expressão da linguagem na forma verbal pela emissão de sinais
acústicos; os fonemas são as unidades de som na
fala; a fonologia refere-se à forma como os sons se
136
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
organizam para formar palavras; a semântica
refere-se ao significado das palavras; a sintaxe
refere-se à ordem por que as palavras são agrupadas para formar frases, segundo as regras gramaticais das diferentes línguas; a pragmática referese ao uso social e aplicação dos significados nos
diferentes contextos, exigindo capacidade de
antecipação e sensibilidade ao outro.
A linguagem é o veículo do pensamento. Sem
linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos
e emoções; e sem um pensamento estruturado é
impossível transmitir verbalmente uma ideia ou
pensamento de forma perceptível.
A comunicação e interacção estão presentes
desde o início da vida extra-uterina, manifestandose, sobretudo, a partir do final do primeiro mês,
através da troca de sons, contacto físico e visual. A
comunicação engloba linguagem nas suas componentes verbal, gestual e de código social,
ultapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos
e emoções. Os animais interagem e comunicam
entre si; no entanto, a linguagem é uma competência única e característica da mente humana e
uma das mais vulneráveis.
As perturbações da comunicação constituem os
problemas de desenvolvimento mais frequentes
na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças
funcionando abaixo da média. Três a 6% das
crianças têm uma perturbação específica da
linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco
de desenvolvimento posterior de dificuldades na
leitura e escrita.
Diagnóstico
Há diversas abordagens e sistemas de classificação
diferentes para as perturbações da linguagem e
fala, variando de acordo com a formação profissional dos autores. As classificações ditas médicas tendem a centrar-se mais nas causas e as
ditas linguísticas nos padrões de alteração observados.
O diagnóstico diferencial destas perturbações
é igualmente complexo uma vez que um amplo
espectro de patologias pode resultar em disfunção
do sistema neural e de estruturas periféricas,
responsáveis pela percepção, processamento e
produção da linguagem.
Assim, por exemplo, há que considerar os pro-
blemas relacionados com défice auditivo ou dificuldades de percepção/discriminação auditiva.
Torna-se, pois, fundamental que estas crianças
tenham uma avaliação completa da audição,sendo
este tópico abordado noutro capítulo.
É importante perceber se a perturbação corresponde apenas à área da linguagem e fala, se faz
parte de uma perturbação mais generalizada, ou
se está associada a perturbações neurológicas ou
comportamentais. Com efeito, é frequente tratarse duma primeira manifestação de uma deficiência
mental, inserir-se num contexto de patologia do
espectro do autismo, ou associar-se a patologias
como a síndroma do X Frágil, a síndroma de
Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cerebral (afasia adquirida).
Excluídas estas situações o clínico fica confrotado com perturbações específicas do desenvolvimento da linguagem que, segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por
Perturbações da Comunicação e se dividem em
grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem
Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem
Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação
Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez.
É tradicional a distinção entre a disfunção da
linguagem expressiva (que compromete a
verbalização) e a perturbação mista da linguagem
receptiva-expressiva.
Reportando-nos às definições caberá referir
que a linguagem expressiva engloba a capacidade
de formar palavras com os sons (fonologia), de
combinar palavras com um significado adequado
(semântica), em frases gramaticalmente correctas
(sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social
(pragmática).
Seguidamente são sintetizados aspectos relativos às principais perturbações da comunicação.
1. Perturbação da linguagem expressiva
As crianças com disfunção da linguagem expressiva podem evidenciar capacidade para um
número limitado de palavras, vocabulário reduzido, dificuldades na aprendizagem de novas
palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com
estrutura gramatical simplificada, por vezes com
perturbação da sintaxe. As crianças com perturbação do tipo evolutivo geralmente começam a
CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação
falar tarde e progridem mais lentamente, embora
seguindo as sequências normais de desenvolvimento. Nos casos menos frequentes de lesão
adquirida (por patologia neurológica) a perturbação surge após um período de desenvolvimento
normal.
Problemas como a memorização e recrutamento
de palavras podem prejudicar a fluência da linguagem; apesar de as crianças apresentarem um vocabulário adequado, têm dificuldade em encontrar as
palavras exactas quando delas necessitam, utilizando definições substitutivas (circunlocução).
Esta perturbação está frequentemente associada a perturbação fonológica.
2. Perturbação mista da linguagem
receptiva-expressiva
As crianças com perturbação mista da linguagem
receptiva-expressiva podem ter, para além das
dificuldades já referidas de expressão verbal,
dificuldade em seguir instruções, compreender
explicações verbalizadas e interpretar o que leram.
No entanto, habitualmente a expressão está mais
afectada do que a compreensão, não alteração significativa da comunicação não verbal ou empatia,
o que permite o diagnóstico diferencial com as perturbações do espectro do autismo.
A perturbação mista também se associa
frequentemente a perturbação fonológica ou a
perturbações da aprendizagem. Pode também
estar associada a perturbação de hiperactividade e
défice de atenção, a perturbação da coordenação
ou a enurese.
3. Perturbação fonológica
A perturbação fonológica, anteriormente designada por perturbação da articulação verbal, engloba,
não apenas os problemas de coordenação das
estruturas que produzem e modulam os sons, mas
também os problemas de défice da consciência
fonológica (noção dos fonemas e sua correspondente representação gráfica), que resultam
mais tarde em problemas de leitura e escrita
(dislexia). Inclui alterações da fonação, articulação,
ressonância e prosódia.
Este tipo de perturbação pode estar presente
em crianças com perturbação da coordenação
motora, as quais apresentam também défices na
motricidade fina e grosseira.
137
A gaguez inclui os problemas de disfluências,
conforme é indicado nos critérios apresentados a
seguir e surge, como a maioria das perturbações
da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá
o franco crescimento da linguagem. Nestas situações é fundamental um diagnóstico precoce e uma
intervenção em tempo oportuno para que o problema não se torne persistente.
4. Gaguez
Trata-se de uma perturbação da fluência normal e
da organização temporal normal da fala (inadequadas para a idade do sujeito), caracterizada por
ocorrências frequentes de um ou mais dos seguintes fenómenos: repetições de sons e sílabas;
prolongamentos de sons; interjeições; palavras
fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos;
circunlocuções; palavras produzidas com um
excesso de tensão física; repetições de palavras
monossilábicas.
A alteração na fluência interfere significativamente com o rendimento escolar ou laboral ou com
a comunicação social.
Se coexistirem défice motor da fala ou défice
sensorial, o problema tem maior relevância.
Diagnóstico diferencial
No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a
importância, não só dos estádios da linguagem,
mas também das competências sociais da criança
no desenvolvimento da linguagem.
A ausência, atraso ou desadequação destas
competências pré-verbais ou pré-linguísticas
(mostrar e imitar), apontam para a possibilidade
de autismo.
Apesar de nem todas as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentarem perturbações da linguagem, uma elevada proporção de
crianças com perturbações específicas de linguagem apresentam dificuldades de aprendizagem,
particularmente na leitura e escrita.
As perturbações adquiridas da comunicação
podem ser secundárias a lesões focais, lesões
associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões
associadas a tumores, infecção ou radiação, e
traumatismo crânio-encefálico.
Por sua vez, as crianças expostas no período prénatal a cocaína ou outras drogas de abuso podem
138
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
apresentar perturbações da linguagem. Tal se
verifica também em crianças com baixo peso de
nascimento, prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, ou reduzido perímetro cefálico.
Intervenção e prognóstico
Como foi referido, o diagnóstico das perturbações da comunicação não é fácil e exige um
grande conhecimento sobre a patologia do desenvolvimento, para permitir a exclusão de outros
diagnósticos e a avaliação das perturbações associadas.
Cabe ao pediatra e aos clínicos gerais, médicos
– assistentes de crianças e adolescentes, fazerem a
detecção o mais precoce possível destas situações.
Testes de rastreio como o Denver II ou o ELM
(Early Language Milestones) são simples e podem
ser usados pelos clínicos na consulta de saúde
infantil. É importante estar atento ao cumprimento
dos marcos de desenvolvimento e aos sinais de
alarme não adiando uma avaliação mais premonorizada ou o envio à consulta de desenvolvimento
quando estes surgem.
A ausência do palrar aos 10 meses, do uso de
palavras isoladas aos 18 meses ou de frases aos 24
meses, ou a presença de padrões atípicos de
linguagem com ecolália e discurso ininteligível aos
4 anos, obrigam a uma pronto de encaminhamento
para centro especializado. A noção que durante
muito tempo perdurou, de que a criança “iria
libertar-se quando entrasse para o infantário” temse mostrado muito prejudicial e deverá abandonada.
A criança deve ser avaliada por uma equipa
multidisciplinar que inclua terapeuta da fala
para uma avaliação completa da linguagem. Esta
avaliação pretende esclarecer o diagnóstico diferencial, avaliar comorbilidade, e competências
cognitivas, e excluir problemas médicos associados. Quando for justificado pode ser necessário proceder a avaliação por neurologista ou
otorrinolaringologista, sendo em todos os casos
recomendada uma avaliação formal da audição.
Deve ser, em suma, planeada uma intervenção
adequada às dificuldades de cada criança, que
abranja as perturbações associadas, um plano de
seguimento e reavaliações periódicas.
O prognóstico será dependente das dificuldades encontradas, da patologia associada e da
resposta à intervenção. No entanto, não se deve
esquecer que a chave para um sucesso nas
crianças com perturbações da linguagem reside
na detecção precoce dos problemas, no diagnóstico preciso e na aplicação de intervenções apropriadas.
BIBLIOGRAFIA
American
Psychiatric
Association.
Perturbações
da
Comunicação In DMS-IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores,
2000: 58-66
Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson
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Lewis M (ed).Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore:
Williams & Wilkins, 1996: 510-519
Smith PK, Cowie H, Blades M (ed). Language in Understanding
Children’s Development. Oxford: Blackwell Publishers,
2001: 299-331.
CAPÍTULO 26 Habilitação da criança com dificuldades na comunicação
26
HABILITAÇÃO DA CRIANÇA
COM DIFICULDADES NA
COMUNICAÇÃO
Isabel Portugal
O papel do Serviço de Medicina
Física e Reabilitação (MFR)
Todo o serviço de MFR pediátrica tem, naturalmente, um sector de terapia da fala ao qual recorrem crianças com perturbações da linguagem, da
fala, da voz e da motricidade oral.A intervenção
da terapia da fala é na maior parte dos casos
demorada, prolongando-se, muitas vezes, em longos períodos do crescimento da criança e será
tanto mais benéfica quanto mais precoce; torna-se
fundamental o seu início antes da idade escolar.
Segundo a experiência do Serviço de MFR, as
alterações da linguagem mais frequentemente
encontradas na criança são o atraso da aquisição
da linguagem, as dificuldades da aprendizagem
da leitura e da escrita, as perturbações específicas
da linguagem e as afasias adquiridas. Na sua
avaliação a criança é submetida a um teste de linguagem, habitualmente o “Reynell Developmental Language Scales” de Joan K Reynell, que caracteriza a linguagem expressiva e a compreensão
verbal. As crianças com dislexia e disortografia,
perturbações de abordagem complexa na sua caracterização e tratamento, necessitando de um
tempo de intervenção muito prolongado, são
habitualmente enviadas a centros especializados
no seu âmbito do seguimento.
Nas perturbações da fala as alterações articulatórias, fonológicas e a gaguez são as mais frequentes. Nas primeiras incluem-se a dislália (troca
ou omissão de certas consoantes) e o sigmatismo
139
(vulgo “sopinha de massa”). As mais frequentes
perturbações fonológicas são a disfonia (rouquidão), a afonia, a hipernasalidade (rinolália) e a
hiponasalidade. A rinolália (voz nasalada devido
ao escape nasal) observa-se frequentemente nas
crianças que nasceram com fenda palatina;
mesmo após o encerramento cirúrgico desta
anomalia, muitas destas crianças mantêm rinolália devida à insuficiência velofaríngea, necessitando de terapia e vigilância continuadas.
A gaguez pode ser funcional até aos 3 anos.
Apesar da ansiedade que gera nos pais, requer
vigilância e aconselhamento, não necessitando de
outra intervenção até essa idade.
A motricidade oral pode estar perturbada,
surgindo dificuldades, quer alimentares, quer no
controlo da baba, situações que são frequentes em
crianças com paralisia cerebral. Quando o ensino
do treino alimentar em tempo adequado se mostra
ineficaz, opta-se pela gastrostomia.
Pelas exigências da integração social e se a criança não conseguir o controlo da baba até à idade
escolar, recorre-se à terapêutica com toxina botulínica e, no caso do seu insucesso, à cirurgia.
BIBLIOGRAFIA
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140
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
27
APRENDIZAGEM E INSUCESSO
ESCOLAR
Maria do Carmo Vale.
Importância do problema
A aprendizagem, uma das características fundamentais da especie humana, processa-se ao longo
de toda a vida, inclusivé pré-natal. Difinida sucintamente como aquisição de conhecimentos, o seu
âmbito é muito mais lato pois o respectivo
processo implica a recepção de estímulos endógenos e exógenos que são integrados, armazenados, adaptados e aplicados ulteriormente.Toda
esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer
das competências da pessoa, as quais variam com
a maturação/evolução ou involução. Diversos
factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínsecos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço
físico da escola com características diversas de
funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2)
intrísecos; citam-se como exemplos as competências em relação ao neurodesenvolvimento (essencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de
linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas
como ansiedade, auto-estima, irritação, etc..
Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma
criança em idade escolar importa considerar as seguintes áreas: atenção, memória, linguagem, organização temporal-sequencial, organização espacial, capacidade neuromotora, cognição social e funções superiores da cognição. De referir que não
existem duas crianças com modos iguais de funcionamento (Ver adiante Avalição).
O baixo desempenho numa ou mais destas
áreas pode estar associado a problemas de aprendizagem culminando no insucesso escolar, em
dificuldades comportamentais, de adaptação e de
integração social.
A prevalência dos problemas de aprendizagem
varia de país para país o que se pode explicar pela
inexistência de critérios consensuais quanto a
difinição e classificação.
Estima-se que cerca de 15% das crianças em
idade escolar apresentam dificuldades de aprendizagem relacionáveis com perturbações do
neurodesenvolvimento; todavia, a actual prevalência pode ser ainda mais elevada se forem consideradas certas disfunções ligeiras e auto-limitadas. O sexo masculino parece ser mais afectado
(2/1 a 4/1).
Uma variante que traduza uma área fraca (como
um problema na área da linguagem expressiva)
corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção interferir com a aquisição de uma determinada competência (como a escrita), gera-se uma incapacidade; e, se esta for particularmente impeditiva de
originar produtividade e gratificação, pode gerar-se
um quadro de deficiência.
Mas as variantes podem também incluir áreas
de raro talento e força; e, ao descrever o perfil
funcional de uma criança, é importante tomar em
consideração as áreas fortes que constituem os
seus recursos para fazer face às próprias dificuldades, (por exemplo a criatividade, a capacidade de
organização ou a capacidade de resolução de
problemas não-verbais).
Etiopatogénese
Para a compreensão dos problemas relacionados
com o défice de aprendizagem com implicações
práticas no tipo de intervenção a planear, cabe
referir os principais factores etiológicos:
– Défice cognitivo ou atraso global do
desenvolvimento.
– Alterações sensoriais (por exemplo, défice
auditivo ou visual).
– Doença motora (por exemplo, paralisia
cerebral ou defeitos do tubo neural)
– Perturbações da comunicação e da linguagem.
– Problemas comportamentais e afectivos (por
exemplo, ansiedade, inibição, défice de
atenção).
– Problemas em áreas específicas como a leitura,
a escrita / ortografia, matemática, etc..
CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar
– Doença crónica (em relação essencialmente
com efeitos acessórios de medicamentos, e
absentismo, hospitalizações ou actos médicos repetidos em ambulatório).
Áreas-chave para a avaliação
do insucesso escolar
Analisam-se seguidamente as áreas consideradas
chave para avaliação da aprendizagem e do
insucesso escolar.
1. Atenção
A disfunção da atenção constitui o problema de
neurodesenvolvimento mais frequente em crianças, com um largo impacte no desempenho escolar diário.
2. Memória
Existem fundamentalmente dois tipos de memória
importantes para o bom desempenho académico: a
de curta duração e a de longa duração.
Muitas crianças apresentam dificuldades na
memória de curta duração, nomeadamente na
memória de trabalho. Esta consiste na capacidade
de manter em mente, todas as diferentes componentes de uma tarefa, como por exemplo durante
a resolução de um problema de matemática.
A memória de trabalho permite, por exemplo,
a que, após a memorização de um número, o
utilizemos imediatamente (como por exemplo um
número de telefone), e a memorização do início de
um parágrafo ao chegar ao seu termo.
Assim, as crianças com perturbações da
memória de trabalho têm dificuldade em efectuar
cálculos de matemática ou em memorizar ou
reproduzir o que leram.
Quando tentam escrever experimentam uma
sobrecarga exagerada que se traduz, nomeadamente, em ilegibilidade, pontuação incorrecta, deficiente soletração, etc..
Outras crianças têm dificuldade em consolidar
a informação na memória de longa duração.
Este problema pode ter consequências graves
no que diz respeito à escrita, que necessita de
memorização de curta e longa duração quanto a
soletração, formação das letras, pontuação, factos,
ideias, vocabulário, para dar alguns exemplos.
Os progressos académicos desenvolvem a
141
memória ao criar estratégias compensadoras
(mnemónicas, técnicas facilitadoras do registo e
de consolidação de dados em múltiplas categorias
pré-existentes de conhecimento), para visualizarem o que se ouviu ou verbalizarem o que se viu,
preparando e facilitando o seu armazenamento na
mesma.
3. Linguagem
A linguagem é o veículo do pensamento e muitas
capacidades da mente e pensamento humanos são
organizadas e transmitidas através da linguagem.
As crianças linguisticamente (ou verbalmente)
competentes representam um grupo de sucesso escolar, porque todas as capacidades académicas convergem para a linguagem verbalizada, e muito do
que aprendem é codificado em linguagem escrita.
Há muitas formas de disfunção da linguagem:
algumas crianças têm problemas com a fonologia,
apreciação e manipulação dos diferentes sons da
linguagem, outras na discriminação e associação
de sons; mais recentemente foram descritos problemas na memorização de fonemas (sons da
linguagem), grafemas (combinações específicas de
letras) e palavras (consciência fonológica), apontados como a causa mais comum de problemas de
leitura e escrita. Estas crianças têm dificuldade em
descodificar palavras durante a leitura e a
codificá-las durante a soletração. Para muitas
delas é difícil reter sons na memória, decompor
palavras nos respectivos sons, e reutilizar estes
para descodificar novos vocábulos.
A semântica pode constituir outra dificuldade:
repertório rígido e limitado do significado das
palavras e difícil aquisição de vocabulário novo,
importante em fases académicas mais diferenciadas em que a linguagem tecnológica é fundamental
para a compreensão de diferentes matérias.
Outros problemas da linguagem são a compreensão e utilização da sintaxe (ordenação de
palavras), a limitada compreensão das regras linguísticas (metalinguística), a utilização de linguagem abstracta, a linguagem simbólica (metáforas,
analogias) na formação de conceitos abstractos, e
o domínio de uma segunda língua.
A falta de aquisição de um determinado nível
de sofisticação da linguagem condiciona o insucesso académico e está frequentemente associada
a dificuldades de comportamento adaptativo.
142
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
4. Organização espacial
Grande parte dos dados referentes ao espaço são
adquiridos através de sensações propriocinéticas e de concepção abstracta, não verbal: o
tamanho, posição, forma, constância da forma
(independentemente da sua posição no espaço),
as relações entre os corpos, são alguns dos pilares da organização visual-espacial. É evidente a
repercussão que as perturbações nesta área podem ter, por exemplo, na aprendizagem da
leitura e escrita.
As crianças com este tipo de disfunção evidenciam dificuldades de discriminação direitaesquerda a que se associam frequentemente dificuldades de coordenação motora fina e coordenação motora global (crianças desajeitadas).
5. Organização temporal-sequencial
A incapacidade de soletração, narrativa e sequenciação (do maior para o menor e vice-versa)
pode ter consequências a diferentes níveis e áreas
académicas como a escrita, matemática, tempo,
hierarquização de tarefas por prioridades, ou limitação de tempos para a sua execução.
6. Função neuromotora
As competências motoras da criança podem ter
um papel significativo num largo repertório de
actividades.
Ao aspecto motor da escrita denomina-se função grafo-motora, que assenta numa boa coordenação motora fina, embora distinta desta; efectivamente, há crianças com bom desempenho na área
da coordenação motora fina e que apresentam um
mau funcionamento na escrita.
A escrita exige uma rápida e precisa coordenação grafo-motora e a disfunção desta pode condicionar perturbações importantes do desempenho
académico.
7. Desenvolvimento cognitivo superior
Sob esta designação incluem-se a capacidade de
abstracção (da qual depende a aquisição de conceitos), a solução de problemas, o pensamento
crítico, a metacognição, várias formas de raciocínio,
o reconhecimento de regras e a sua aplicação.
A variabilidade no funcionamento de cada
criança determina que a aquisição de novos conceitos dependa de conceitos pré-existentes e, ao
longo da maturação destes, do desenvolvimento
da capacidade de destrinça e relação entre uma
ideia e um conceito. Infelizmente muitas crianças
adquirindo poucos conceitos, na maior parte das
vezes por deficiente estruturação do meio
(famílias com elevado grau de iliteracia, condições
socio-económicas pouco propícias à troca de
informação e interacção e ao consequente desenvolvimento cognitivo) apresentarão naturalmente
maiores dificuldades nas aprendizagens escolares.
A capacidade de resolver problemas é fundamental para todos os conteúdos e actividades
escolares. As crianças com esta capacidade bem
desenvolvida mostram a sua criatividade na selecção e monitorização das várias técnicas possíveis
para a solução de um problema, diferentes ideias
e valores, permeabilizando-as à mudança, inovação ou diferença, fundamentais ao respeito para
com os seus pares e a sociedade em geral, permitindo-lhe flexibilizar ideias, regras e atitudes.
Uma vez que todas as áreas referidas apresentam diferente expressividade na mesma criança,
sucesso académico pressupõe que as mais fortes
compensam e equilibram as mais fracas.
Intervenção
Durante muito tempo a Pediatria avaliou o desenvolvimento psicomotor e cognitivo das crianças
em idade pré-escolar, monitorizando a progressão nas áreas motora, cognitiva, adaptativa, linguística e social, com vista ao diagnóstico e orientação dos problemas de desenvolvimento.
Mas o desenvolvimento infantil não termina
aos 5 anos de idade e a diminuição de prevalência
de outro tipo de patologia permitiu ao pediatra
estar mais disponível para outras áreas como as
dificuldades de aprendizagem, comportamento de
desadaptação, desajustamento social, comportamental e perturbação da atenção, potencialmente
responsáveis pelo insucesso escolar.
O diagnóstico e proposta terapêutica do insucesso escolar exigem uma equipa multidisciplinar
que inclui o médico-pediatra, o psicólogo clínico e
educacional, o pedopsiquiatra, o neuropediatra, o
médico de família, entre outros.
A observação inclui a aplicação de determinados testes designados PEEP, PEER, PEEX 2, e
PEERAMID 2, através dos quais se observa e
143
CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar
avalia directamente funções chave nas áreas do
neurodesenvolvimento como a atenção, linguagem e capacidades motoras.
Com os referidos testes será possível obter o
perfil funcional da criança (força e dificuldades
nas diversas áreas académicas) como base para
intervenção psico-educacional.
As formas de apoiar e atenuar estes problemas
compreendem os seguintes passos:
– Desmistificação.
– Utilizar estratégias de acomodação (dar mais
tempo, simplificando explicações e orientações, reduzindo a carga académica nas
áreas de menor desempenho, apresentando a
informação de forma mais atractiva.
– Terapias específicas: terapia da fala,
ocupacional e comportamental.
– Modificação dos currícula e conteúdos programáticos escolares e respectiva adequação
às reais capacidades da criança (plano educativo individual).
– Fortalecimento das áreas “fortes” como
compensação das “fracas”, condicionando
um reforço da auto-estima.
– Medicação adaptada a cada caso e reajustada
em avaliações periódicas.
A ideia de aprendizagem activa, por contraposição à passiva apontada por autores como
Piaget, revolucionou a metodologia de ensino;
aplicando tal estratégia, a criança condicionada à
exploração e descoberta, constrói o seu próprio
conhecimento. O papel do professor ou educador
seria o de facilitador da aprendizagem, encorajando a criança a questionar, especular e experimentar, fomentando o espírito crítico relativamente à
informação.
De acordo com Piaget é a criança que condiciona todo o processo de aquisição do conhecimento; o professor fomenta situações que desafiam
a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a
descobrir novos conceitos.
Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget
atribuindo papel igualmente relevante à interacção social e à comunicação e linguagem. Para
ele a aprendizagem é conseguida através da cooperação com um largo repertório de interlocutores sociais – pares, professores, pais e
outros intervenientes – bem como através dos
símbolos representativos da cultura da criança,
como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas
e modelos.
A teoria de Vygotsky assenta essencialmente
no papel dos processos interpessoais e no papel
da sociedade em que se enquadra a criança.
Prevenção
A prevenção dos problemas de aprendizagem em
geral, e do insucesso escolar em especial, implica
entre outras medidas melhoria dos cuidados
primários e das condições, socioeconómicas, prevenção da prematuridade extrema e detecção
precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-se duma tarefa difícil para a qual todos os
profissionais de saúde, e em especial o pediatra e
o médico de família, devem estar sensibilizados.
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144
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
28
PERTURBAÇÕES DO SONO
Maria do Carmo Vale e João M Videira Amaral
Classificação e importância
do problema
O sono é um estado fisiológico, periódico e reversível, caracterizado essencialmente pela suspensão temporária do estado de consciência com
graus variáveis de resposta a estímulos ambientais; é acompanhado de abolição mais ou menos
importante da sensibilidade e abrandamento da
maior parte das funções orgânicas: diminuição
das frequências cardíaca e respiratória, da temperatura em cerca de 0,5 ºC, relaxamento muscular, diminuição do ritmo secretório(exceptuando o
rim), etc..
Classicamente são considerados dois tipos de
sono, identificáveis a partir dos 6 meses de idade:
– não REM ou abreviadamente NREM (sigla
do inglês (no rapid eye movements) chamado inactivo ou calmo sincronizado em que se verifica predomínio da actividade parassimpática (redução
das frequências cardíaca e respiratória) e redução
progressiva do tono muscular;
– sono REM, definido como sono activo ou
paradoxal, caracterizado por intensa actividade
cortical cerebral, predomínio da actividade simpática (aumento das frequências cardíaca e respiratória) acompanhado de atonia muscular e movimentos oculares rápidos circulares bilaterais .
No sono não-REM são individualizados quatro estádios (1-2-3-4) em função de outros tantos
padrões electroencefalográficos (EEG). O estádio 1
corresponde ao início da transição vigília-sono,
com um baixo limiar para o despertar; os estádios
3 e 4 são chamados de sono de ondas lentas ou
sono profundo.
Os ciclos NREM → REM → NREM → REM ...
ocorrem em ciclos (com a duração aproximada de
70 a 100 minutos) durante o período do sono.
O registo em simultâneo dos traçados electroencefalográficos,electromiográficos,dos movimentos oculares (electroculograma) associado à
verificação dos vários graus de profundidade do
sono constitui o polissonograma.
O sono do lactente apresenta um predomínio
de sono REM. Com a idade, a duração relativa do
sono REM diminui, enquanto a do sono NREM
vai aumentando até atingir 80% do tempo de sono
no adulto e idoso.
O recém-nascido (RN) dorme ainda com
maior predomínio de “sono activo”, o precursor
do futuro “sono REM”. Esta é uma das razões
pelas quais os primeiros meses de vida apresentam uma vulnerabilidade maior às situações que
ocorrem ou são agravadas durante o sono REM.
De facto, sendo os RN e os lactentes jovens respiradores nasais quase obrigatórios, têm uma
tendência única para episódios de obstrução
durante o sono, em especial durante infecções das
vias respiratórias superiores, uma vez que cerca
de 50% são incapazes de iniciar a respiração oral
alternativa antes de passarem 25 segundos a partir do momento em que a obstrução nasal se estabeleceu.
As perturbações do sono – que surgem, em
idade pediátrica, numa proporção estimada entre
25-43% – são classificadas em:
– dissónias ou perturbações em que se verifica
dificuldade em iniciar ou manter o sono e/ou
sonolência excessiva; e
– parassónias correspondendo a fenómenos
físicos ocorrendo predominantemente durante o
sono, não constituindo, de facto, anomalias do
processo sono-vigília.
O termo insónia na criança, fazendo parte das
dissónias, refere-se à impossibilidade de manutenção duma boa qualidade do sono (por exemplo sono curto, interrompido ou intermitente,
relacionável em geral com aquisição de determinados hábitos ou tensão emocional).
Parassónias
No âmbito das parassónias são consideradas:
– as perturbações do despertar (incluindo o
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono
despertar confusional, o sonambulismo, o terror
nocturno, as perturbações da transição vigíliasono e as parassónias associadas ao sono REM);
– as perturbações da transição vigília-sono
(incluindo as perturbações dos movimentos rítmicos ou jactatio capitis nocturna e a sonilóquia);
– as perturbações associadas ao sono REM
(incluindo o pesadelo, o bruxismo do sono, a enurese do sono, a roncopatia primária, a síndroma de
hipoventilação congénita de causa central, a mioclonia neonatal benigna do sono e a distonia paroxística nocturna). A síndroma de morte súbita do
lactente/recém-nascido, ocorrendo em cerca de
80% dos casos enquanto a criança dorme, é abordada no capítulo 42.
Relativamente a parassónias é dada ênfase às
seguintes situações:
Sonambulismo
Mais frequente no sexo masculino entre os 4 e 15
anos, consiste numa série de actividades comportamentais complexas tais como: sentar-se na cama
ou deambulação durante o sono, sem consciência,
podendo levar à tentativa de sair do quarto ou de
casa; se o doente for acordado, verifica-se estado
confusional, sem se lembrar do ocorrido. Esta situação pode associar-se a terror nocturno e a sonilóquia.
Na sua base exitem factores genéticos de
ordem maturativa.
O diagnóstico diferencial faz- se com a epilepsia parcial complexa nocturna.
Como medidas terapêuticas apontam- se a psicoterapia incluindo tranquilização dos pais e, em
casos especiais, administração de benzodiazepinas por períodos curtos.
145
Os episódios, variando entre 1 a 30 minutos,
são caracterizados por intensa descarga autonómica com taquicárdia, taquipneia, erecção
pilosa, midríase,etc.. A criança senta-se na cama
assutada, chorando e gritando, e não respondendo a estímulos evidenciando estado confusional
uma vez acordada.
O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com estado confusional, pesadelo e epilepsia.
As medidas terapêuticas são semelhantes às
mencionadas para o sonambulismo.
Perturbações dos movimentos rítmicos
Trata-se de movimentos repetitivos e estereotipados envolvendo a cabeça, o pescoço e, por vezes, o
tronco,pouco antes do início e por vezes mantidos
durante o sono leve(estádio 1 não-REM); mais de
2/3 das crianças evidenciam este padrão comportamental aos 9 meses de idade,diminuindo depois
a prevalência.
Dum modo geral não se torna necessária qualquer terapêutica.
Sonilóquia
A sonilóquia consiste na emissão de palavras e
frases desconexas emitidas involuntariamente
durante o sono; está associada ao sono REM e não
REM.
Podendo surgir em qualquer idade, como factores etiológicos apontam- se ansiedade, estresse e
febre. Não necessita de qualquer medida terapêutica.
Despertar confusional
Também por vezes associado a outras parassónias, em certos casos há que fazer o diagnóstico
diferencial com epilepsia parcial complexa.
Como medidas terapêuticas apontam- se a disciplina nos horários do sono,e a evicção de actividades físicas excessivas.
Pesadelo
Trata-se de sonho com algo que, provocando
medo e ansiedade, desperta a criança do sono
REM (segunda parte da noite).
Estando provado que as crianças sonham já
pelos 14 meses, os pesadelos são mais frequentes
entre os 3 e os 6 anos, surgindo em cerca de 10 a
50% das crianças.
Como medidas preventivas haverá que evitar
situações que originem tensão emocional.
Terror nocturno
Esta situação surge em cerca de 3% das crianças
com maior prevalência entre os 4 e 12 anos de idade,
na primeira parte da noite, no sono não REM.
Bruxismo
O bruxismo do sono consiste em movimentos
estereotipados de “ranger de dentes” em qualquer
fase do sono podendo eventualmente conduzir ao
146
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
despertar. Com uma prevalência de cerca de 30%,
superior em crianças saudáveis, tal parassónia é
frequentemente descrita em crianças e adolescentes com paralisia cerebral e /ou atraso mental.
Não requer medidas terapêuticas especiais; em
certos casos poderá estar indicada a administração de benzodiazepinas.
Roncopatia primária
Consiste na emissão de ruído intenso, geralmente
inspiratório e expiratório produzido nas vias respiratórias superiores, não acompanhado de episódios de apneia ou hipoventilação.
Como factores etiopatogénicos apontam-se:
hipertrofia amigdalina ou das adenóides, obstrução nasal, obesidade. O tratamento é etiológico
podendo, em casos especiais, ser necessário o
recurso à intervenção cirúrgica.
Síndroma de hipoventilação congénita
de causa central
Esta síndroma, evidente já no recém- nascido, é
explicada por falência do mecanismo de regulação
central automática da respiração, na ausência de
doença pulmonar primária ou de patologia muscular respiratória.
A etipatogenia relaciona-se com anomalia do
centro respiratório do tronco cerebral onde ocorre
a integração dos quimiorreceptores periféricos e
centrais.
O quadro clínico decorre da exixtência de
hipóxia e hipercápnia levando a sequelas, nomeadamente pulmonares e do sistema nervoso central.
A manutenção da vida implica a necessidade
de assistência respiratória (pressão positiva contínua nas vias respiratórias superiores).
Enurese do sono
Antes de abordar esta entidade clínica, será
importante recordar algumas noções básicas sobre
terminologia relacionada com o fenómeno da
micção.
A enurese, no sentido genérico do termo,
define-se como a micção involuntária (incontinência urinária) mais do que duas vezes por semana
durante três meses consecutivos em crianças com
mais de 5 anos(idade em que, dum modo geral, o
controle dos esfíncteres deve estar estabelecido).
Considera-se primária (ou funcional) se a
criança teve sempre este tipo de comportamento,
excluindo-se patologia de base de tipo médico,
neurológico, urológico ou mental; considera-se
secundária (ou orgânica) se na criança for demonstrada patologia de base, e um período mínimo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia,
com recorrência ulterior de micções involuntárias.
A enurese nocturna (ou do sono) ocorre em tal
circunstância; a enurese diurna ocorre durante o
dia. De referir que a enurese diurna e nocturna
podem coexistir
A enurese primária representa cerca de 90% de
todos os casos. A enurese secundária ocorre mais
frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade.
A enurese do sono, mais frequente na primeira
parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2),
ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos,
10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos.
Admite-se hereditariedade de tipo autossómico
recessivo, ou dominante com 90% de penetrância;outros estudos identificaram anomalias nos
cromossomas 13 e 14 .
A patogenia da enurese do sono não é bem
conhecida; admite-se que possa estar em causa
atraso da maturação neurofisiológica, bexiga de
capacidade limitada e /ou aumento da contractilidade, discrepância entre a secreção de hormona
antidiurética(HAD) nocturna e capacidade da
bexiga,alteração do ritmo circadiano da HAD,etc..
Frequentemente existe associação com problemas
de ordem psicoemocional e social.
Estima-se que em cerca de 97% das situações
de enurese do sono não existe causa orgânica.
Em mais de 50% das situações de enurese nocturna primária existem antecedentes familiares.
O diagnóstico diferencial da enurese do sono
faz-se com situações de enurese secundária (doenças orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus
ou insípida, bexiga neurogénica, anomalias do
tracto urinário tais como uréter ectópico, obstipação crónica, estresse emocional, etc.). De salientar que em todos os casos de enurese verificada
durante o sono importa proceder, como sempre, a
um exame clínico completo da criança e, nomedamente, a detecção de anomalias do foro neurológico e espinhal.
No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral
será importante a realização dum conjunto de exa-
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono
mes complementares mínimos,como determinação
da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina
com especial atenção para detecção de glicosúria,
pH e densidade, eventual urinocultura, etc..
No que respeita à actuação na criança com
idade igual ou inferior a 5 anos, há a referir um
conjunto de medidas gerais cuja finalidade é
explicar a situação, transmitir confiança e modificar alguns hábitos:
– não criticar nem punir a criança, mantendo
atitude de ambiente calmo;
– apoio psicológico para criar auto-estima e
tentar lutar contra o medo de ir à casa de
banho;
– nunca dormir com luz uma vez que esta
diminui a secreção da hormona antidiurética
– treino de consciencialização de “bexiga
cheia” medindo a quantidade de urina que
corresponde a tal sensação;
– promover o esvaziamento regular da bexiga
de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o suprimento em líquidos durante o dia (bebendo
líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a
partir das 19 horas;
– evitar bebidas estimulantes da diurese (chá,
café,chocolate, bebidas de cola, refrigerantes
gaseificados);
– responsabilizar a criança/jovem pela sua
higiene, incumbindo-a/o do registo dos
chamados calendários(incluindo o miccional);
– retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar
também o resguardo;
– incutir a rotina de esvaziamento da bexiga
antes de ir para a cama à noite;
– entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das
medidas gerais, a utilização de alarmes e fármacos como desmopressina (DDAVP), em
geral sob a forma de spray nasal (10-40
mcg/dia), ou imipramina (para aumentar a
capacidade da bexiga) na dose máxima de
2,5 mg/kg ao deitar .
147
Nos casos de insucesso destas medidas, a
criança deverá ser encaminhada para consulta de
subespecialidade (neurologia pediátrica, nefrourologia pediátrica, etc.), em função do contexto
clínico para ulteriores exames complementares,
nomeadamente imagiológicos.
Dissónias
No âmbito das dissónias são consideradas as
seguintes situações:
Narcolepsia
Trata-se de uma perturbação de etiologia indefinida, caracterizada por sonolência excessiva diurna
e outros fenómenos do sono REM .
O diagnóstico diferencial deve ser feito com as
situações a abordar seguidamente e com certas
formas de epilepsia.
Movimentos periódicos do sono
São episódios periódicos de movimentos dos
membros, repetitivos e estereotipados. Tais movimentos ocorrem geralmente nos membros inferiores e consistem em extensão do dedo grande do
pé associada a flexão do pé, joelho e coxa. Esta
situação é rara em idade pediátrica.
Síndroma de membros inferiores “ inquietos”
É uma situação também rara que consiste numa
sensação desagradável e mal definida nos membros
inferiores surgida antes do início do sono, e aliviada
com a movimentação dos membros inferiores.
Pode haver associação com défice de atenção e
hiperactividade.
No tratamento utilizam-se agentes dopaminérgicos.
Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
Esta situação é abordada no capítulo seguinte.
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Parassónias. DMS-IV-TR.
A estratégia que utiliza os calendários deve ter
em conta o registo de uma tarefa ou objectivo (um
de cada vez: ou registo de noites secas,ou de acordar espontaneamente para urinar, ou menor
quantidade de perda urinária ou aumento de ingestão de líquidos durante o dia).
Lisboa: Climepsi Editores. 2002; 109: 704-712
American Academy of Pediatrics. Clinical practice guideline:
diagnosis and management of childhood obstructive sleep
apnea. Pediatrics 2000; 109: 630-644
Howard BJ, Wong J. Sleep disorders. Pediatrics in Review 2001;
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Kryger MH, Roth T, Dement WC. Principles and Practice of
Sleep Medicine. Philadelphia:Saunders, 2000
Laberg l, Tremblay RE, Vitaro F, Montplisir J. Development of
parasonias from childhood to early adolescence. Pediatrics
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29
Owens L, France KG Wiggs L. Behavioral and cognitive behavioral interventions for sleep disorders in infants and children: A review. Sleep Medicine Reviews, 1999;3:281-302
SÍNDROMA DA APNEIA
OBSTRUTIVA DO SONO (SAOS)
Mário Coelho
Definição
A SAOS é uma perturbação respiratória caracterizada por episódios de obstrução parcial prolongada e/ou obstrução completa intermitente
das vias aéreas superiores perturbando a ventilação normal durante o sono e os padrões normais
deste. Tais episódios estão geralmente associados
a diminuição da saturação da hemoglobina em
oxigénio com hipoxémia e, por vezes, hipercápnia.
Aspectos epidemiológicos
e importância do problema
A SAOS ocorre em todas as idades pediátricas,
desde o recém-nascido ao adolescente, sendo mais
prevalente na idade pré-escolar (2 a 6 anos), provavelmente pela relação aumentada entre as vegetações adenóides/amígdalas e o calibre das vias
aéreas superiores(VAS) verificada nesta faixa
etária. Estima-se que em Portugal existam cerca de
20.000 a 45.000 crianças e adolescentes com SAOS,
o que transforma esta patologia num problema de
grande magnitude, quer pela elevada prevalência,
quer pelas consequências para a criança e para o
futuro adulto, caso não surja em tempo oportuno
a terapêutica adequada ou uma eventual resolução espontânea.
Fisiopatologia
Como resultado das diferenças de pressão geradas
durante as fases da respiração, as vias aéreas
149
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
extratorácicas (nasofaringe, laringe e traqueia)
têm tendência ao colapso inspiratório e obstrução.
Em condições fisiológicas existem forças de sentido contrário que levam à dilatação dessa via
aérea, impedido o colapso. Essas forças dilatadoras são geradas por cerca de 40 músculos que
fixam e puxam para diante, quer a língua (por ex:
genioglosso), quer a laringe (por ex: aparelho
muscular e osso hióide).
Com frequência existem causas estruturais
(vegetações adenóides e amígdalas palatinas hipertrofiadas, obesidade, macroglossia, etc.) e/ou
funcionais (doenças neuromusculares com hipotonia, incoordenação neuromuscular local, hipossensibilidade dos centros respiratórios do lactente,
fases do sono, etc.) que, actuando sinergicamente
e por múltiplos mecanismos, acabam por potenciar a vertente colapsante.
Neste caso, a obstrução instala-se, a resistência
intraluminal aumenta desproporcionadamente
(Lei de Laplace), o fluxo aéreo torna-se mais turbulento, os tecidos moles envolventes vibram e produz-se o característico ruído de obstrução parcial
das vias aérea superiores – o “roncar” ou “ressonar” (“snoring”).
O grau de obstrução das vias aéreas superiores
pode situar-se entre dois extremos: uma expressão
de gravidade mínima que cursa com obstrução
ligeira sem outras repercussões aparentes – o “ressonar primário”, ronco ou roncopatia primários, já
referido noutro capítulo; e, no extremo oposto, a
obstrução completa intermitente com apneia e
repercussões multissistémicas graves – a “síndroma de apneia obstrutiva do sono” (SAOS).
Entre os dois extremos existe um espectro de
situações clínicas resultantes de graus diversos de
obstrução a que correspondem nosologias como
por exemplo “síndroma de resistência aumentada
da vias aéreas superiores” (SRAVAS) e “síndroma
de hipopneia obstrutiva do sono” (SHOS).
A Figura 1 procura representar o ciclo fisiopatológico da SAOS. Após o adormecer inicial, estabelece-se normal e progressiva hipotonia das VAS
que, nestes casos, condiciona a sua obstrução e a
ocorrência de redução significativa (hipopneia) ou
paragem duradoura do fluxo ventilatório (apneia).
A hipoxémia e retenção de CO2 resultantes são
estímulos efectivos para o centro respiratório,
levando a um novo aumento da actividade dos
Redução tono
das VAS
Adormecer
O2/CO2 Normal
Desobstrução
Obstrução
Actividade
aumentada
dos musculos
respiratórios
Apneia
obstrutiva
Redução do fluxo
aéreo Hipoxémia
Hipercápnia
“Despertar”
Esforço respiratório
aumentada
FIG. 1
Fisiopatologia da SAOS
músculos dilatadores da faringe que conseguem
abrir o lume e, por vezes, tornar o sono mais
superficial (“microdespertar”, “despertar”; “arousal”), recuperação do tono das VAS, desobstrução,
retoma do fluxo ventilatório e normalização do
PH e gases no sangue. Este ciclo repete-se a ritmos
variáveis que podem chegar até dezenas de
apneias/hora (índice de apneia).
Quanto maior o índice de apneia, mais vezes o
sono profundo é interrompido por “despertares”.
Tal fenómeno leva à “fragmentação do sono”
reduzindo a duração das fases de sono reparador.
SAOS na criança e no adulto
Apesar de muitos aspectos da fisiopatologia da
SAOS serem comuns ao adulto e à criança, a SAOS
na criança não é uma forma infantil da SAOS do
adulto. De facto, os factores de risco, manifestações clínicas e complicações, critérios de diagnóstico e prioridades terapêuticas são muito distintos entre ambos. O Quadro 1 realça este aspecto comparando algumas das características da
SAOS na criança e no adulto.
Factores predisponentes
Deve ter-se em conta que existem algumas situações predisponentes de SAOS; daí a importância
da sua identificação para o rastreio da SAOS.
O Quadro 2 dá exemplos de algumas das situações que requerem particular atenção.
150
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – SAOS na criança e SAOS no adulto
Sexo
SAOS no Adulto
Sexo M/ Sexo F: 10/1
Respiração oral diurna
Pouco comum
Obesidade
Comum
Má progressão ponderal/emagrecimento
Não
Alterações neurocomportamentais
Excessiva sonolência diurna
Factor etiológico mais comum
Tratamento
Alterações neurocognitivas e
dimunição da concentração
Sinal major
Obesidade
Uvulopalatofaringoplastia
CPAP
SAOS na Criança
Sexo M/ Sexo F: 1/1
Comum
Pouco comum
Comum
Hiperactividade, irritabilidade,
atraso do desenvolvimento
Pouco comum
Hipertrofia das vegetações adenóides
Amígdalo-adenoidectomia
CPAP (raro; casos seleccionados)
Abreviatura: CPAP – Continuous Positive Airway Pressure ou pressão positiva contínua nas vias aéreas
Manifestações clínicas
A história clínica é um instrumento fundamental para a abordagem de uma criança com suspeita de SAOS (ou qualquer outra entidade do
espectro da obstrução das vias aéreas superiores).
QUADRO 2 – Factores predisponentes de SAOS
I – Estreitamento ou compressão das vias aéreas; disfunção neuromuscular; hipertrofia das vegetações
adenóides e amígdalas palatinas*; disfunção dos músculos das vias aéreas (doenças neuromusculares);
hipotiroidismo; macroglossia; micrognatia*; retrognatia;
nasofaringe estreita*; pólipos nasais; drepanocitose;
tumor laríngeo; obesidade*; status pós reparação de
fenda palatina; laringomalácia; etc..
II – Doenças neurológicas; disfunção neurológica de
qualquer origem; paralisia cerebral; doenças neuromusculares*; defeitos do tronco cerebral (anomalia de
Arnold-Chiari; hidrocefalia; mielomeningocele; distrofia
miotónica; etc.)
III - Supressão do controle das vias aéreas (álcool;
anestesia; narcóticos; sedativos).
IV – Anomalias genéticas e defeitos congénitos com
hipoplasia do maciço facial (acondroplasia; síndroma de
Down*; síndroma de Apert; artrogripose; síndroma de
Beckwith-Wiedemann; doença de Crouzon; síndroma de
Marfan; síndroma de Pierre-Robin*; mucopolissacaridoses;
etc.)
*risco major
Pela anamnese há que pesquisar um conjunto
de sintomas que, embora inespecíficos, devem ser
valorizados no âmbito do diagnóstico de uma
eventual SAOS:
– Sintomas nocturnos/durante o sono
– Ressonar: especialmente se crónico e/ou
intenso: manifestação major cuja pesquisa
deve fazer parte da anamnese nas consultas
de rotina da criança de qualquer idade.
– Esforço respiratório aumentado: graus diversos de taquipneia, adejo nasal, retracção
inspiratória, movimento paradoxal tóracoabdominal, cianose
– Episódios de apneia
– Estertor: no retomar da ventilação após
apneia
– Respiração bucal
– Posição particular a dormir (ex: extensão do
pescoço)
– Sono muito agitado
– Sudação profusa
– Enurese
– Acordar frequente e parassónias (terrores
nocturnos, pesadelos)
– Dificuldade ao acordar e confusão
– Mau humor
– Cefaleia
– Boca seca
– Obstrução nasal e/ou respiração bucal
– Náusea e vómito frequentes, dificuldade de
deglutição, anorexia
– Problemas escolares: alterações do compor-
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
tamento, irritabilidade, hiperactividade, redução da atenção, dificuldades de memória e
concentração
– Sonolência excessiva.
Ao realizar o exame objectivo há que dar
atenção aos seguintes aspectos:
– Exame geral na vigília é “normal”na maioria
dos casos – o que não exclui o diagnóstico.
– Índice de massa corporal aumentado ou atraso de crescimento
– Fácies adenoideia
– Nariz, septo e fossas nasais (rinite, pólipos,
desvios)
– Orofaringe (volume das adenóides e amígdalas), anomalias do palato e úvula
– Estruturas
craniofaciais:
micrognatia,
hipoplasia do andar médio, hipoplasia
mandibular
– Atraso de desenvolvimento, atraso de crescimento ou morte são manifestações de formas
muito graves já raramente observadas.
– Manifestações de síndromas do neurodesenvolvimento (por ex.: síndroma de Down),
anomalias do tórax, cardíacas ou neurológicas).
Exames complementares
Os exames complementares enquadram-se em dois
grandes grupos, sendo dirigidos à avaliação de:
1. Obstrução significativa e parâmetros do sono
- Polissonografia nocturna (PSN)
Constitui o método de “ouro” ou de excelência“gold
standard” para o diagnóstico. Requerendo tecnologia e profissionais diferenciados assim como
equipamentos sofisticados, implica algum incómodo para a criança e acompanhante. A polissonografia é cara e de acesso difícil aos escassos laboratórios de sono existentes. A execução e interpretação dos resultados é mais difícil na criança.
Trata-se do único exame susceptível de fornecer
indicações simultâneas e quantificadas sobre
importantes parâmetros biológicos durante o sono,
permitindo obter índices funcionais indispensáveis
à completa classificação e avaliação da situação
(índice de apneia, índice de hipopneia, modo de
despertar, eficácia do sono, estádios do sono, tipos
de apneia – central, obstrutiva, mista, etc.), e dar
indicações quanto à terapêutica mais adequada.
151
– Técnicas “abreviadas” ou de “rastreio”
Tais técnicas incluem, designadamente PSN
parcial, oximetria de pulso nocturna contínua ou
de uma sesta, gravação áudio do ressonar,
videograma do sono, registo dos movimentos dos
membros (actigrafia), inquéritos do sono, várias
combinações de técnicas, etc..
Estas técnicas abreviadas são úteis se os resultados forem positivos (valor preditivo positivo:
oximetria de pulso isoladamente: 70 a 100%;
videograma do sono isoladamente: 83%; audiograma do sono utilizado isoladamente: (50-75%).
O valor preditivo negativo é, pelo contrário, muito
fraco. De salientar que um resultado negativo em
criança clinicamente suspeita de SAOS deve ser
sempre ser confirmado por PSN.
2. Repercussões sistémicas da perturbação
ventilatória
– Para avaliar a repercussão sistémica da perturbação ventilatória, está indicado um conjunto de
exames complementares essenciais tais como:
hemograma (para detecção de eventual policitémia), estudo do pH e gases no sangue (para
avaliar as eventuais alterações da relação ventilação/perfusão V/P), electrocardiograma (ECG),
ecocardiograma/doppler, etc. em função do contexto clínico e, nomeadamente, da identificação de
factores predisponentes.
Face à escassez de meios humanos e de
equipamento para responder em tempo útil às crianças com suspeita de patologia do sono, há que
estabelecer prioridades nas indicações para realização de uma investigação clínico-laboratorial
exaustiva, nomeadamente de PSN.
Assim, devem ser prioritariamente encaminhadas para um centro com experiência no tratamento de perturbações respiratórias do sono as
crianças que ressonam e nas quais se verifique um
ou mais dos critérios referidos no Quadro 3.
Em suma, no final da avaliação de uma criança
que ressona havendo suspeita de SAOS, o médico deve estar em condições de identificar:
a) Uma de duas situações “extremas”:
– “Ronco primário”, se não existirem outras
manifestações clínicas de perturbação ventilatória
no sono, não existirem episódios de défice de saturação em O2, de apneia ou de hipopneia significativa. Trata-se de diagnóstico de exclusão;
152
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Critérios prioritários de
encaminhamento para centro
especializado (suspeita de SAOS)
1 – Descrição pelos pais de pausas e/ou estertores
durante o sono
2 – Sonolência diurna excessiva ou alteração neurocomportamental
3 – Redução do rendimento escolar
4 – Hipertrofia das adenóides
5 – Infecções recorrentes das vias aéreas superiores
6 – Deficiente progressão ponderal
– “SAOS” se, pelo contrário, as referidas perturbações incluirem episódios de hipopneia e
apneia em número que cumpram os critérios de
SAOS.
b) ou situações “intermédias” com manifestações na fronteira das duas anteriores:
– “SRAVAS (síndroma de resistência aumentada das VAS ), em que existe clínica de obstrução e
défice de saturações em O2 nocturnas, mas índices
de apneia e/ou hipopneia normais;
– “SHOS” (síndroma de hipopneia obstrutiva
do sono), com índices de hipopneia acima do limite superior do normal, mas sem apneias significativas.
À medida que maior número de crianças que
ressonam forem sujeitas a avaliação clínico-laboratorial, a proporção das situações incluídas em b)
será cada vez maior.
Tratamento
O tratamento da SAOS deve ser o tratamento das
situações ou causas predisponentes, nomeadamente das causas obstrutivas das VAS. As medidas terapêuticas mais comuns são:
1. Amigdalo-adenoidectomia
Resultando em 75% a 100% de curas, é o tratamento de primeira linha em crianças com hipertrofia adenoamigdalina e ausência de contra-indicações para cirurgia. Algumas crianças (Quadro 4)
com SAOS, pelo risco elevado de complicações
pós-operatórias (edema das VAS, edema pulmonar, pneumotórax, morte, etc.) devem ser submetidas a plano anestésico-cirúrgico especial e a
QUADRO 4 – Factores de risco pós-operatório
em crianças com SAOS
submetidas a
adenoamigdalectomia
• idade inferior a 2-3 anos
• SAOS grave detectada por PSN (índice de apneia/
/hipopneia>10/h; Saturação em O2 <70%)
• complicações cardíacas da SAOS
• atraso de crescimento/má progressão ponderal
• obesidade
• história de prematuridade
• infecção respiratória recente
• anomalias craniofaciais
• hipotonia muscular
vigilância pós-operatória prolongada até ao dia
seguinte, com monitorização por oximetria de
pulso.
2. Ventilação por pressão positiva contínua
(CPAP ou BiPAP)
Permite o controlo da situação em 85% a 90% dos
casos. A evolução tecnológica dos aparelhos na
última década permitindo o seu uso domiciliário
seguro a custos comportáveis: o aparecimento de
máscaras nasais cada vez mais confortáveis e
adaptáveis às dimensões faciais da criança com o
crescimento, vieram transformar esta forma de
ventilação não invasiva numa opção eficaz no
tratamento da SAOS. É utilizada, quer em
primeira linha (doenças médicas, patologia neuromuscular, dismorfias faciais, obesidade, contraindicações para cirurgia, persistência de SAOS
após intervenção cirúrgica etc.), quer como alternativa à cirurgia ou à ventilação por traqueostomia, quer ainda de forma transitória (“tratamento
em ponte”) quando é necessária uma estabilização
clínica antes da intervenção cirúrgica. Persistem
alguns problemas relacionados com a pressão local
da máscara nasal e respectivas fitas suspensoras e
com a secura/ congestão da mucosa nasal e ocular;
contudo, dum modo geral, a tolerância é boa.
3. Outras terapêuticas e medidas coadjuvantes
Técnicas como uvulopalatofaringoplastia, técnicas
de ortodôncia e outras técnicas cirúrgicas, raramente utilizadas na criança, têm interesse muito
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
secundário. Poderão ser adoptadas as seguintes:
posicionamento durante o sono com alívio da
obstrução; emagrecimento se houver excesso ponderal; redução de medicamentos depressores do
sistema nervoso; corticoterapia inalada; antibioticoterapia se se verificar infecção crónica local, etc..
Cabe referir, no entanto, que apesar dos
recentes avanços na investigação e experiência
adquirida nesta área da pediatria, ainda não há
consenso sobre vários aspectos da SAOS na criança, tais como critérios de diagnóstico mais adequados e terapêutica ideal.
GLOSSÁRIO
Apneia > Critérios clínicos – ausência de fluxo aéreo bucal ou
nasal; tipo central (ausência de esforço respiratório); tipo
obstrutivo (presença de esforço respiratório continuado,
devido a colapso das vias aéreas superiores); ou tipo misto
(apneia central e obstrutiva ocorrendo sequencialmente
sem que haja respiração normal entre os dois eventos).
Critérios polissonográficos – tipo obstrutivo (ausência de
fluxo oro-nasal na presença de esforço respiratório contínuo,
durando mais de 2 ciclos respiratórios; geralmente, mas não
sempre, associado a hipoxémia); tipo central (cessação de
esforço respiratório que dura 2 ou mais ciclos respiratórios).
Dessaturação (ou défice de saturação) > descida da SatO2 ≥4%
Hipoventilação > Critérios clínicos – redução da ventilação
pulmonar abaixo de um mínimo que assegure valores normais de O2 e CO2 sanguíneos: tipo obstrutivo (obstrução
alta parcial levando a ventilação pulmonar inadequada
com centro respiratório funcionante); ou tipo não-obstrutivo, (estado de depressão do centro respiratório, doença
neuromuscular ou doença pulmonar restritiva).
Índice de apneia/hipopneia > nº de episódios de apneia/
hipopneia/hora.
Ressonar habitual > ressonar em todas as noites ou na maioria das noites (10% de todas as crianças).
BIBLIOGRAFIA
Academia Americana de Pediatria.Guia de Prática Clínica:
Diagnóstico e terapêutica da Sindroma da Apneia
Obstrutiva do Sono. Pediatrics (edição portuguesa)
2002;10:213-221
American Thoracic Society.Standards and indications for cardiopulmonary sleep studies in children. Am J Respir Crit
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Amorim A, Machado A, Winck JC, Almeida J. Síndroma de
apneia obstrutiva do sono em crianças. Acta Pediatr Port
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Rosen CL. Obstructive sleep apnea syndrome in children: controversies in diagnosis and treatment. Pediatr Clin North
Am 2004; 51: 153-167
154
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
30
PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO
DO AUTISMO
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto
QUADRO 1 – Classificação das Perturbações
Globais do Desenvolvimento
segundo a DSM-IV
1. Perturbação Autística
2. Perturbação de Rett
3. Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância
(síndroma de Heller)
4. Perturbação de Asperger
5. Perturbação Global do Desenvolvimento – sem outra
especificação (PGD-SOE)
Aspectos epidemiológicos.
Importância do problema
Em 1943 e 1944, o pedopsiquiatra americano Leo
Kanner e o pediatra austríaco Hans Asperger descreveram uma doença infantil caracterizada pela
tríade: défice na comunicação, comportamento
repetitivo e défice na interacção social. A referida
doença que viria posteriormente a ser designada
por psicopatia autística ou autismo.
Actualmente sabe-se que o autismo não é uma
doença específica, mas uma perturbação do
desenvolvimento cerebral com uma forte base
genética e acentuada heterogeneidade, podendo
apresentar desde sintomas ligeiros a alterações
graves, sendo as formas ligeiras mais frequentes
que a forma clássica. Tem sido referida a ligação
entre o autismo e algumas variantes do gene do
trasportador da serotonina, admitindo-se que a
susceptibilidade genética possa ser potenciada
por factores ambientais. Devido às variações
qualitativas e quantitativas dos sintomas, passou
a considerar-se a existência de um espectro do
autismo. Assim, o autismo clássico, as doenças do
espectro do autismo ou perturbações globais do
desenvolvimento, como são designadas na classificação mais recente, Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM
IV (Quadro 1) fazem parte de um grande contínuo
de perturbações cognitivas e neurocomportamentais com os mesmos critérios basilares acima referidos: alteração da interacção social, da comunicação (verbal e não verbal), e padrões de comportamento, interesse e actividades repetitivas, restritas
ou estereotipadas.
Estudos internacionais recentes estimam uma
prevalência do autismo clássico oscilando entre 1 e
16/10.000 sendo que os valores têm aumentado nos
ultimos 35 anos, com predomínio no sexo masculino
numa relação de 3/1. O aumento da prevalência em
relação a estudos anteriores resulta de uma
combinação de factores como inclusão de formas
mais ligeiras no espectro, maior informação e
capacidade de diagnóstico, e subida real devida a
influências ambientais. Não foi, porém, encontrada
qualquer relação de causalidade entre o autismo e a
vacina contra o sarampo, papeira e rubéola (VASPR).
Os estudos em gémeos mostraram uma elevada concordância em gémeos monozigóticos e não
em dizigóticos, sugerindo que se trata de uma
doença genética. Os estudos epidemiológicos
indicaram que os factores ambientais como a exposição a tóxicos ou lesões perinatais eram responsáveis por um número reduzido de casos e
que as doenças médicas diagnosticáveis, alterações citogenéticas ou doenças monogénicas (como
a esclerose tuberosa, síndroma do X frágil ou
outras doenças metabólicas mais raras) correspondem a menos de 10% dos casos. Os estudos
sugerem que se trata de uma patologia genética,
provavelmente multigénica, sendo de referir que
factores epigenéticos e a exposição a modificadores ambientais contribuem para a grande variabilidade de expressão fenotípica.
No maior estudo epidemilógico realizado em
Portugal por Guiomar Oliveira e colaboradores,
divulgado em 2005, a prevalência de perturbações
do espectro do autismo foi de 0,92/1.000 com
predomínio no sexo masculino (75%).
CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo
Uma vez que se trata de uma patologia definida
por sintomas comportamentais, e com um peso
negativo importante para os pais, tem havido uma
dificuldade em fazer um diagnóstico precoce, da
parte dos técnicos, por receio, sobretudo, de
diagnóstico incorrecto. Assim, o diagnóstico de
autismo geralmente não é colocado antes dos 3 anos,
idade em que os problemas de socialização ou da
linguagem (comunicação) se tornam mais flagrantes.
No estudo portugês atrás referido 93% dos
casos foram identificados até aos 2 anos de idade.
A criança em risco
Em cada consulta de saúde infantil, é importante
que os clínicos identifiquem as crianças em risco
de desenvolvimento atípico, usando métodos de
rastreio adequados e, inquirindo sobre a comunicação, o comportamento e a interacção social. Se a
criança não atinge um dos seguintes marcos:
palrar aos 12 meses; usar o gesto para apontar ou
dizer adeus aos 12 meses; dizer palavras isoladas
aos 16 meses; juntar palavras (espontâneo e não
ecolálico) aos 24 meses. Se se verificar perda de
competências sociais ou da linguagem em qualquer idade, deve ser feito um rastreio específico
do autismo (usando testes como a Checklist for
Autism in Toddlers – CHAT e um rastreio audiológico para excluir défice auditivo. Caso o referido
rastreio confirme alterações ou no caso de o clínico
não ter conhecimentos específicos sobre esta área,
a criança deve ser encaminhada para um especialista em patologia do desenvolvimento. Os irmãos
deverão ser alvo de uma vigilância rigorosa uma
vez que o risco de repetição é cerca de 10-20%, ou
seja, 50 vezes superior ao da população em geral.
Manifestações clínicas
O diagnóstico de perturbação autística (cujos
critérios estão especificados no Quadro 2) não é
fácil e deve ser feito por uma equipa multidisciplinar, com recolha de informação de vários
contextos (casa, escola, actividades de tempos
livres, etc.) e sob várias formas (inquéritos, questionários específicos, escalas específicas e testes),
de forma a poder ser definido o perfil de desenvolvimento e planeada uma intervenção de acordo
com as potencialidades e dificuldades da criança.
155
O desenvolvimento aberrante das competências sociais é a base das perturbações do espectro
do autismo. Pode incluir alteração do contacto
visual, isolamento, não responder ao seu nome,
não usar o gesto para apontar ou mostrar, não ter
jogo interactivo e não manifestar interesse pelos
seus pares.
A criança com autismo tem, frequentemente,
alterações da linguagem expressiva, que podem ir
do mutismo à fluência verbal, embora com perturbação da semântica e pragmática. O atraso na
fala e alguns problemas de comportamentos bizarros ou atípicos constituem preocupações frequentes dos pais nas crianças entre 1 e 3 anos.
No autismo, o valor do quociente intelectual
de realização (QIR) quantifica o desempenho nas
áreas não verbais; é habitualmente superior ao do
quociente intelectual verbal (QIV). No entanto, a
diferença entre QIR e QIV depende da gravidade
do défice intelectual. O perfil cognitivo típico nos
casos de autismo clássico avaliado através da
prova WISC (escala de inteligência de Wechsler
para crianças) caracteriza-se por resultados elevados na construção de cubos e baixos na compreenção e composição de figuras.
As perturbações da motricidade fina e grosseira são também frequentes, associando-se a
maneirismos e estereotipias motoras.
O processamento sensorial pode estar alterado
provocando respostas atípicas aos diferentes estímulos, com hiper ou hiporreactividade. Há dificuldades acrescidas nas actividades que requerem
processos conceptuais complexos, raciocínio e
interpretação, integração e abstracção, estando as
competências que dependem de memória e
repetição automática ou de processos perceptuais
mais conservadas.
Os instrumentos de diagnóstico classificam-se
em 2 grupos: questionários ou entrevistas e escalas de observação directa; ambos os métodos se
complementam. Citam-se alguns daqueles instrumentos mais utilizados: a Gilliam Autism Ratig
Scale, a Parent Interview for Autism, o Pervasive
Developmental Disorders Screening Test – Stage
3, a Autism Diagnostic Interview – Revised, a
Childhood Autism Rating Scale, a Screening Tool
for Autism in Two-Year-Olds, ou o Autism
Diagnostic Observation Schedule – Generic.
Devem ser complementados, quando necessário,
156
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Critérios de Diagnóstico de Perturbação Autística segundo a DSM-IV
A. Presença de seis (ou mais) itens de (1), (2) ou (3), com pelo menos dois de (1), e um de (2) e um de (3)
(1) défice qualitativo na interacção social, manifestado pelo menos por duas das seguintes características:
a. acentuado défice no uso de múltiplos comportamentos não verbais, tais como, contacto ocular, expressão facial, postura
corporal e gestos reguladores da interacção social;
b. incapacidade para desenvolver relações com os companheiros, adequadas ao nível de desenvolvimento;
c. ausência da tendência espontânea para partilhar com os outros prazeres, interesses ou objectivos (por exemplo, não mostrar,
trazer ou indicar objectos de interesse);
d. falta de reciprocidade social ou emocional;
(2) défice qualitativo na comunicação manifestado, pelo menos, por uma das seguintes características:
a. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral (não acompanhada de tentativas para compensar através de
modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímica);
b. nos sujeitos com um discurso adequado, uma acentuada incapacidade na competência para iniciar ou manter uma
conversação com os outros;
c. uso estereotipado ou repetitivo da linguagem ou linguagem idiossincrática;
d. ausência de jogo realista espontâneo, variado, ou de jogo social imitativo adequado ao nível de desenvolvimento;
(3) padrões de comportamento, interesses e actividades restritos, repetitivos e estereotipados, que se manifestam pelo menos por
uma das seguintes características:
a. preocupação absorvente por um ou mais padrões estereotipados e restritivos de interesses que resultam anormais, quer na
intensidade quer no seu objectivo;
b. adesão, aparentemente inflexível, a rotinas ou rituais específicos, não funcionais;
c. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exemplo, sacudir ou rodar as mãos ou dedos ou movimentos
complexos com todo o corpo);
d. preocupação persistente com partes de objectos;
B. Atraso ou funcionamento anormal em, pelo menos, uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade
(1) interacção social
(2) comunicação
(3) comportamento repetitivo
C. A perturbação não é explicada pela presença de uma perturbação de Rett ou perturbação desintegrativa da
segunda infância
por avaliações mais específicas da linguagem e
avaliações cognitivas e do comportamento adaptativo, de forma a elaborar o perfil funcional da
criança. Posteriormente, deve haver um cuidado
de observação continuada e reavaliação, pelo
menos com periodicidade anual.
A maioria das crianças com doença do espectro do autismo idiopática evidencia um exame
físico normal.
No entanto, o autismo poderá coexistir com
sintomalogia neurológica decorrente de disfunção
cerebral difusa ou de imaturidade neurológica.
São exemplos de tal comorbilidade o défice intelectual e outro défices cognitivos, a epilepsia,
problemas auditivos, visuais, sensoriomotores,
perturbações do sono, perturbações do foro psi-
quiátrico e sinais dismórficos. Muitas crianças têm
“cabeça grande”, somente preenchendo os critérios de macrocefalia associada a neuropatologia
uma pequena percentagem.
De referir igualmente a relação possível entre
doença celíaca e autismo, não consensual para alguns investigadores. Assim, o recurso a determinados exames complementares deve ser ponderado caso a caso, designadamente na perspectiva
do diagnóstico diferencial.
Poderá ser recomendado um estudo genético,
nomeadamente cariótipo de alta resolução e análise de ADN para X Frágil nas crianças com défice
cognitivo, com antecedentes familiares relevantes
ou dismorfias.
A investigação metabólica deve ser iniciada
CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo
segundo a clínica, sobretudo nos casos de letargia,
vómitos cíclicos, convulsões precoces, dismorfias,
ou défice cognitivo.
O EEG não deve ser feito por rotina, mas está
indicado se houver convulsões, suspeita de convulsões subclínicas ou história de regressão do
desenvolvimento. Embora as crianças com autismo possam ter, como foi referido, aumento do
perímetro cefálico, não há evidência clínica que
defenda o recurso por rotina à neuroimagiologia.
Também não se justifica o estudo por rotina para
para investigar, por exemplo, doença celíaca,
atopia, alterações imunológicas ou neuroquímicas, micronutrientes, função tiroideia, estudos
de permeabilidade intestinal ou doenças mitocondriais.
Intervenção
A intervenção requer, como foi salientado, cooperação multidisciplinar. Nesta perspectiva, este
tópico é também abordado na parte referente
Pedopsiquiatria.
Segundo as revisões recentes as estratégias
presentemente aceites são: 1. A melhoria do nível
funcional global da criança, envolvendo-a num
programa apropriado de intervenção educativa
que promova o desenvolvimento das competências comunicativas, sociais, adaptativas, comportamentais e académicas (como por exemplo o
programa TEACCH ou “Treatment and education of
autistic and related communications of handicapped
children); 2. A redução dos comportamentos desajustados e repetitivos através de controle farmacológico, nomeadamente com antidepressivos
como a fluoxetina ou neurolépticos como a risperidona, ou comportamentais; 3. Apoio à família
no sentido de gerir o estresse, fornecendo informação e fomentando apoio de grupos de pais.
Em suma, o diagnóstico precoce associado a
uma intervenção precoce, (idealmente pelos 2 ou 3
anos de idade) consistente e intensiva e com
ensino entre 15-40 horas/semanais, educacional e
comportamental, tem contribuído para melhorar
o prognóstico.
De notar que tem havido um número crescente
de terapias alternativas não provadas cientificamente.
São exemplos o treino de integração auditiva
157
ou a comunicação facilitada, modificações dietéticas, a integração sensorial, recurso a vários tipos
de fármacos ou estimulação pelo contacto com
animais.
Prognóstico
Dada a grande heterogeneidade da população
com perturbação do espectro do autismo, o prognóstico é igualmente variável e tem vindo a
melhorar, o que é explicável pelo diagnóstico e
intervenção precoces. O prognóstico é francamente melhor nos indivíduos com QI acima de 6065 na infância e que adquirem linguagem funcional no início da idade escolar. Nas situações em
que há uma regressão ou perda de competências,
como na síndroma de Heller ou na síndroma de
Rett, o prognóstico é naturalmente mais reservado.
Apenas uma minoria de indivíduos atinge
autonomia social na idade adulta, sendo que a
percentagem que vem a obter emprego oscila
entre 0-21,5% conforme os diversos grupos de
investigadores. De referir que cerca de 50% dos
casos mantêm dependência total.
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31
PERTURBAÇÕES
DE HIPERACTIVIDADE
E DÉFICE DE ATENÇÃO
Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale
Importância do problema
A perturbação de hiperactividade e défice de atenção
(PHDA) é o distúrbio neurocomportamental mais
comum na infância. Com uma prevalência estimada
de 5-10% nas crianças em idade escolar, persistindo
na adolescência e idade adulta, conta-se entre as
doenças crónicas mais prevalentes no grupo etário
pediátrico.
Durante muitos anos pensou-se que resultaria
de uma lesão cerebral, mas o predomínio familiar
apontou para causas genéticas. Estudos mais
recentes, especialmente estudos em gémeos
monozigóticos e dizigóticos, revelaram tratar-se de
uma doença multifactorial, com uma forte base
genética. As investigações actuais consideram
dever-se a uma alteração genética (aparentemente
multigénica) que determina uma alteração na
actividade dos neurotransmissores (especialmente
da dopamina e serotonina) originando um padrão
comportamental característico. Os familiares de
crianças com PHDA têm um risco 6 vezes superior
de terem PHDA relativamente à população normal.
O ambiente, embora não tendo uma relação causal
directa, é importante na modulação dos sintomas e
no grau de disfunção causada. Os sintomas podem
ser atenuados por um ambiente mais estruturado
ou ser exacerbados por um ambiente menos
favorável e mais desorganizado.
Manifestações clínicas e diagnóstico
A forma de apresentação clínica pode ser muito
CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção
variável, sendo frequentes as queixas de insucesso
escolar, alterações do comportamento na sala de
aula, desatenção, problemas nas relações sociais,
ou baixa auto-estima. Os sintomas principais da
PHDA incluem essencialmente falta de atenção,
hiperactividade e impulsividade, não associados a
qualquer patologia psiquiátrica. O Quadro 1,
adaptado do Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV, sintetiza os critérios diagnósticos da referida entidade
clínica.
As crianças com os sintomas típicos de hiperactividade e impulsividade são geralmente identificadas pelos professores porque perturbam a sala
de aula. No entanto, as crianças com o subtipo
desatento da PHDA, com sintomas de hiperactividade e impulsividade ausentes ou mínimos,
podem passar despercebidas, manifestando apenas insucesso escolar, sendo por vezes rotuladas
como desinteressadas ou desmotivadas em
relação à escola.
Na população em geral parece haver um
predomínio no sexo masculino, embora possa
haver subdiagnóstico no sexo feminino, devido a
um predomínio do subtipo “desatento”. Em
Portugal esta entidade apenas recentemente tem
sido alvo de interesse pelos clínicos, o que explica
a falta de estudos epidemiológicos nacionais, bem
como uma taxa de diagnóstico seguramente
inferior à real.
Segundo as recomendações internacionais,
perante uma criança entre os 6 e 12 anos, com falta
de atenção, hiperactividade, impulsividade, insucesso escolar ou problemas de comportamento, o
clínico deve iniciar uma avaliação de PHDA com
encaminhamento para uma consulta de especialidade.
Para o diagnóstico da PHDA torna-se fundamental recolher informação de várias fontes: dos
pais, dos professores, ou de outros profissionais
que conhecem a criança. Como não há instrumentos que indiquem com confiança o grau e a
natureza da perturbação funcional de uma forma
objectiva, devem ser utilizadas perguntas livres
genéricas, perguntas específicas sobre alguns
comportamentos, questionários semi-estruturados, assim como questionários e escalas específicas. A aplicação de escalas e questionários
específicos tem evidenciado sensibilidade e es-
159
pecificidade acima de 94%, permitindo assim
distinguir crianças com e sem PHDA. Estes
questionários e escalas são aplicáveis aos pais e
professores, com modelos específicos para cada.
De salientar que não há testes físicos específicos para o diagnóstico da PHDA.
Várias outras perturbações podem estar associadas à PHDA, consideradas como comorbilidade,
sendo as mais frequentes: a perturbação de
oposição/desafio ou a perturbação da conduta; as
alterações do humor/depressão; a ansiedade e as
perturbações da aprendizagem/défice cognitivo
ligeiro. Podem estar presentes em cerca de um terço
das crianças com PHDA. É importante a detecção
destas situações uma vez que a sua identificação
tem implicações na intervenção proposta.
A existência de uma perturbação do desenvolvimento da coordenação motora, concomitante com
a PHDA, resultando num quadro característico de
défice da coordenação motora (grosseira e fina), de
atenção e de percepção (visual e/ou auditiva),
justificou a definição de uma entidade designada
por défice de atenção, motricidade e percepção
(DAMP), que é actualmente considerada um
subtipo da PHDA. Esta entidade, cujo prognóstico é
mais reservado, necessita de uma intervenção mais
abrangente, abordando as dificuldades presentes
nas diferentes áreas. É, portanto, fundamental a sua
identificação precoce, devendo ser sempre excluída
perante uma criança com PHDA.
Intervenção
O clínico responsável pelo diagnóstico (que deve
ser desmistificado) deve informar a família sobre
a doença, aconselhando-a e estar disponível para
prestar todos os esclarecimentos e promover a
ligação a outras famílias, assegurando a coordenação dos serviços de saúde e educação.
A PHDA, como outras doenças crónicas, necessita dum plano de tratamento específico para a
criança, idealmente levado a cabo por uma equipa
multidisciplinar, com metas definidas, formas de
seguimento e de vigilância. A principal meta do
tratamento deve ser a de valorizar devidamente
toda a função, melhorando a relação com os outros, melhorando o desempenho académico, independência e auto-estima.
Na maioria das crianças o tratamento farmaco-
160
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de perturbação de hiperactividade e défice de atenção
segundo a DSM-IV
Critérios (1) ou (2)
(1) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de falta de atenção persistindo, pelo menos durante seis meses, com
uma intensidade inconsistente com o nível de desenvolvimento:
Falta de atenção
(a) com frequência não presta atenção suficiente aos pormenores ou comete erros por descuido nas tarefas escolares, no trabalho
ou noutras actividades;
(b) com frequência tem dificuldade em estar atento no desempenho de tarefas ou actividades;
(c) com frequência parece não ouvir quando se lhe fala directamente;
(d) com frequência não segue as instruções e não termina os trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho (não por
comportamentos de oposição ou por incompreensão das instruções);
(e) com frequência tem dificuldades em organizar tarefas ou actividades;
(f) com frequência evita, sente repugnância ou está relutante em envolver-se em tarefas que requeiram esforço mental mantido
(tais como trabalhos escolares ou de índole administrativa);
(g) com frequência perde objectos necessários a tarefas ou actividades (por exemplo, brinquedos, exercícios escolares, lápis,
livros ou ferramentas);
(h) com frequência distrai-se facilmente;
(i) esquece-se com frequência das actividades quotidianas;
(2) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperactividade-impulsividade persistindo, pelo menos, durante
seis meses, com uma intensidade não condizente com o nível de desenvolvimento:
Hiperactividade
(a) com frequência movimenta excessivamente as mãos e pés, mexe-se quando está sentado;
(b) com frequência levanta-se na sala de aula ou noutras situações em que se espera que esteja sentado;
(c) com frequência corre ou salta excessivamente em situações em que é impróprio fazê-lo (em adolescentes e adultos pode
limitar-se a sentimentos subjectivos de impaciência);
(d) com frequência tem dificuldade em jogar ou em se dedicar tranquilamente a actividades de ócio;
(e) com frequência “anda”, ou só actua como se estivesse “ligado a um motor”;
(f) com frequência fala “de mais”;
Impulsividade
(g) com frequência precipita as respostas antes que as perguntas tenham acabado;
(h) com frequência tem dificuldade em esperar pela sua vez;
(i) com frequência interrompe ou interfere nas actividades dos outros (por exemplo, intromete-se nas conversas ou jogos);
Codificação baseada no tipo
314.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Misto: se preenchidos os critérios 1 e 2 durante os últimos
seis meses.
314.00 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Desatento: se preenchido o critério
1 mas não o critério 2 durante os últimos seis meses.
341.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Hiperactivo-Impulsivo: se critério 2
preenchido mas não o critério 1 durante os últimos seis meses.
Nota de codificação: Para sujeitos (especialmente adolescentes e adultos), actualmente com sintomas que já não preencham
todos os critérios, deve especificar-se “em remissão parcial”. (Associação Psiquiátrica Americana, 1994))
CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção
lógico é muito eficaz, particularmente no que
respeita à atenção. O tratamento comportamental
tem valor como abordagem inicial ou adjuvante.
Os fármacos mais utilizados são os estimulantes,
particularmente o metilfenidato, havendo em
Portugal disponíveis no mercado formulações de
longa acção e acção intermédia. A dextroanfetamina é mais raramente usada.
Tratando-se de uma doença crónica, o tratamento é prolongado. Os sintomas podem persistir
até à idade adulta, geralmente com uma atenuação dos comportamentos mais hipercinéticos, mas
mantendo desatenção e impulsividade. De referir
que os adolescentes e jovens adultos com PHDA
não tratados estão em maior risco de instabilidade
familiar e laboral, de consumo de drogas de
abuso, de delinquência ou de gravidez indesejada.
É possível que o futuro, com os avanços da
genética, nos venha a elucidar melhor sobre os
mecanismos etiopatogénicos da PHDA, e a permitir um diagnóstico mais fácil e um tratamento não
apenas sintomático, mas sim dirigido à causa da
perturbação.
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PARTE VI
Pedopsiquiatria
164
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
32
INTRODUÇÃO À CLÍNICA
PEDOPSIQUIÁTRICA
Maria José Gonçalves
Âmbito da Pedopsiquiatria
O campo de intervenção da Pedopsiquiatria é de
difícil definição. Em termos gerais, o pedopsiquiatra interessa-se pelo bem-estar psíquico da
criança em cada momento, no contexto do seu
desenvolvimento e no contexto do seu envolvimento relacional, quer seja na família, quer seja na
escola, quer noutras situações decorrentes das circunstâncias de vida, como no hospital ou em instituições de acolhimento. De uma forma mais
específica, o campo da pedopsiquiatria define-se
pelo estudo do funcionamento mental da criança
(que ultrapassa largamente o funcionamento cerebral) e pela identificação e tratamento dos fenómenos psicopatológicos que põem em risco a sua
saúde mental. Esta define-se pelo desenvolvimento das competências afectivas, cognitivas e sociais
que permitirão à criança tornar-se num adulto
saudável, na plenitude das suas capacidades.
Tendo pontos comuns com a Pediatria do
Desenvolvimento e disciplinas não médicas (psicologia, ciências psicossociais, pedagogia) que também se
interessam pelo bem-estar da criança, a dimensão
médica é dada pelo uso dos conhecimentos científicos disponíveis que permitem fazer o diagnóstico do
quadro clínico e programar a intervenção terapêutica, com vista à retomada tanto quanto possível normal do desenvolvimento infantil.
A teoria da vinculação.
Uma das contribuições mais ricas do ponto de
vista teórico é a teoria da vinculação. Nos dias de
hoje é consensual a sua importância, tanto para a
compreensão do desenvolvimento infantil como
para a integração dos dados da clínica e da observação experimental nas políticas de prevenção em
saúde mental infantil.
O conceito de vinculação foi inicialmente
introduzido por Bowlby para caracterizar a
relação afectiva que se estabelece entre a mãe e a
criança; constitui o ponto de partida para o desenvolvimento duma teoria que se tornou um instrumento valioso na compreensão do desenvolvimento psicológico e da psicopatologia da criança
e do jovem.
A teoria da vinculação surgiu numa altura em
que havia uma grande preocupação com os efeitos
da carência materna nas crianças e na sequência
dum relatório feito em 1948 pelo próprio Bowlby,
a pedido da Organização Mundial de Saúde
(OMS), sobre crianças sem família. Milhares de
crianças e jovens tinham ficado órfãos ou separados dos familiares após a segunda guerra mundial, tendo-se comprovado as graves consequências
psicológicas que resultaram das perdas dos pais e
das separações prolongadas. Simultaneamente,
nos Estados Unidos multiplicaram-se os estudos
sobre os efeitos da institucionalização de crianças
pequenas, de que Spitz se torna a figura de proa,
ao descrever um quadro depressivo nos bebés que
eram separados das mães, a que chamou “depressão anaclítica do lactente”.
Para o desenvolvimento da sua teoria, Bowlby
contou ainda com o contributo dos etólogos com
quem se cruzou e cujos trabalhos e conclusões
foram para ele uma fonte de inspiração. A teoria da
vinculação agregou, ao longo dos últimos 50 anos,
contribuições de variados campos científicos,
desde a psicanálise até às ciências cognitivas e
transformou-se, graças à importante investigação
a que deu origem, na mais fecunda forma de conhecimento sobre o comportamento social e relacional da criança e sobre a transmissão transgeracional dos modelos relacionais e da psicopatologia.
A vinculação é um fenómeno complexo que se
refere à ligação que se estabelece entre o dador
principal de cuidados e a criança. É uma relação
específica que se constrói progressivamente e se
caracteriza por comportamentos activos de aproximação da criança, na procura de conforto, protecção e garantia de apoio e segurança. É a existência desse vínculo que origina as reacções de
CAPÍTULO 32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica
ansiedade e depressão da criança face à separação
do prestador de cuidados e possibilita a actividade exploratória livre.
Os comportamentos de vinculação da criança
definem-se como sendo todas as manifestações
que tendem a favorecer a proximidade com a figura de vinculação. A figura de vinculação, por
definição, é aquela em relação à qual a criança
dirige o seu comportamento de vinculação. A
organização dos comportamentos de vinculação,
cujo objectivo é manter a proximidade, faz-se em
função de determinados contextos específicos de
vida da criança e em torno duma figura particular.
Os comportamentos básicos, inatos, descritos inicialmente por Bowlby, nos quais se funda a ligação da criança à mãe, são o olhar, o sorrir, o chorar,
o agarrar e o chupar. Também a mãe desenvolve
em relação à criança uma relação afectiva de
grande intensidade a que se chama “bonding”. O
sistema de vinculação tem um carácter estável e
permanente tornando-se operativo entre os 9 e os
12 meses de idade da criança.
A teoria da vinculação tem uma vasta aplicação clínica, nomeadamente nos casos de carência afectiva, de multiplicação dos dadores de
cuidados e ainda nos casos das separações e dos
lutos precoces; efectivamente, começou a haver
uma maior atenção e preocupação dos profissionais em detectar estas situações e levar a cabo
medidas terapêuticas e preventivas. Um exemplo
foi a introdução da melhoria nas condições de
acompanhamento das crianças nos hospitais e
noutras instituições de acolhimento de menores.
O conceito de vinculação foi posto em prática
graças à classificação dos seus vários tipos, a partir
das diferentes reacções da criança face à separação e
à presença do estranho, feita por M. Ainsworth, discípula de Bowlby. Desde então a investigação nesta
área tem tido um grande desenvolvimento e os
estudos longitudinais realizados com base nas
diferentes categorias do comportamento de vinculação (segura, insegura/evitante, insegura/ansiosa,
desorganizada) têm demonstrado existir uma correlação significativa entre o desenvolvimento da resiliência e a vinculação segura.
Por outro lado, são as crianças maltratadas e
carenciadas que mais evidenciam vinculações de
tipo desorganizado e que desenvolvem mais tarde
perturbações de comportamento.
165
As perturbações reactivas da vinculação propriamente ditas são já contempladas nas diferentes classificações diagnósticas e os estudos
existentes demonstram tratar-se de quadros clínicos bem individualizados que apresentam perturbações da socialização e/ou intensa angústia do
estranho, e que se distinguem claramente da
depressão e do “estresse” traumático. Há também
evidência clínica de que, com elevada frequência,
as perturbações “limite” estão relacionadas com
histórias de vida em que as relações de vinculação
são extremamente precárias.
Avaliação diagnóstica
Em Pedopsiquiatria, a abordagem diagnóstica é
longa e complexa. Consiste na entrevista com os
pais (anamnese), no exame objectivo, na observação da relação pais/criança, e na observação da
criança em contexto livre e semi-estruturado.
Deve ter em linha de conta a perspectiva evolutiva e multifactorial da patologia, pelo que agrega à
informação clínica, a informação escolar e social.
Os elementos colhidos, que deverão permitir a
formulação dum diagnóstico e a elaboração dum
projecto terapêutico, têm de ser avaliados em
função de certos parâmetros que passamos a
descrever:
1. Sinais e sintomas: devem ser valorizados
caso a caso. Os mesmos sintomas podem ter significados patológicos diferentes consoante:
a) o nível do desenvolvimento – é necessário
ter em mente as fases de desenvolvimento infantil
e as tarefas do desenvolvimento próprias de cada
fase para se poder avaliar até que ponto os sintomas interferem com essas tarefas e/ou impedem a passagem à fase seguinte. Várias vertentes
do desenvolvimento devem ser avaliadas,
nomeadamente a psicomotora, cognitiva, afectiva,
socialização, grau de autonomia, jogo, etc..
b) a estrutura do sintoma – os sintomas devem
ser avaliados de acordo com a sua intensidade,
factores desencadeantes, modo de início, duração,
associação de sintomas de várias áreas de funcionamento e grau de limitação da actividade.
2. Antecedentes familiares: há que ter em
linha de conta os acontecimentos de vida, espe-
166
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cialmente os relacionados com rupturas ou traumas: separações precoces, doenças incapacitantes
dos pais, lutos, violência, abusos.
A integração social da família e a sua capacidade para utilizar os recursos da comunidade são
igualmente factores a considerar.
3. Observação das relações pais-criança: abrange os aspectos comportamentais, verbais e afectivos.
Destes destacamos:
a) as expectativas e as percepções subjectivas
dos pais em relação à criança bem como as
reacções das crianças;
b) a qualidade afectiva das interacções (desligada, ansiosa, hostil, preocupada, etc.);
c) a capacidade de os pais transmitirem padrões estruturantes de funcionamento, tais como:
distinção clara dos diferentes papéis desempenhados pelos seus membros; respeito pela diferença entre gerações; consciência das necessidades
básicas da criança em termos de segurança afectiva e dos limites, bem como da sua diferente percepção do mundo e do tempo.
4. Observação da criança: nem sempre a
criança observada corresponde à criança descrita
pelos pais, pelo que, tanto quanto possível, e com
as limitações impostas pela faixa etária, a criança
deve ser observada sozinha.
Na observação da criança devem ser valorizados os seguintes elementos, de acordo com a
idade: a qualidade da relação estabelecida com o
observador, a motricidade e postura, o discurso,
em termos formais e de conteúdo, o humor, a
capacidade de brincar e nível do jogo (imitação,
funcional, simbólico), o nível do desenho do
ponto de vista gráfico e da capacidade de representação simbólica, a estrutura do pensamento,
bem como o grau, tipo de ansiedade (separação
dos pais, situação estranha, etc.) e estratégias de
superação.
5. Subjectividade: um dos aspectos da avaliação clínica que o pedopsiquiatra não pode descurar é o seu carácter relacional. Existe sempre
subjacente um factor de subjectividade a equacionar. A relação que se estabelece com os pais e
com a criança tem um impacte afectivo no observador, maior ou menor, o qual constitui um ele-
mento valioso no estabelecimento do diagnóstico.
Exige treino na capacidade de auto-observação,
mas o seu reconhecimento contribui para a evitar
erros grosseiros que podem enviesar o processo
de avaliação. É relativamente frequente, por
exemplo, a tendência a fazer “alianças” imediatas
quer com os pais, quer com a criança, ou a transportar para a observação elementos transmitidos
por terceiros, sem tomar as distâncias necessárias.
Nos capítulos seguintes são abordados os quadros clínicos mais frequentes em Clínica Pedopsiquiátrica.
CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade
33
PERTURBAÇÕES
DA ANSIEDADE
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
Definição
A ansiedade corresponde a um vivência penosa e
inquietante, ligada a um sentimento de perigo iminente e indeterminado que provoca medo e insegurança. É muitas vezes acompanhada de reacções
somáticas, tais como taquicardia, constrição respiratória e cardíaca, palidez, diarreia, relaxamento
ou contracção muscular, etc., classicamente definidas como angústia. Muitas vezes usam-se os termos angústia ou ansiedade indiferentemente.
A ansiedade é um estado afectivo considerado
como um componente normal do desenvolvimento psicológico; só adquire significado patológico
quando, pela sua intensidade, duração e carácter
invasivo, determina alterações significativas na
vida da criança, interferindo em diferentes áreas
de funcionamento (sono, socialização, aprendizagem, etc.) e/ou impede o seu desenvolvimento.
Manifestações clínicas
A ansiedade e/ou a angústia pode aparecer de
uma forma difusa, mas raramente é referida pela
criança. Manifesta-se frequentemente através de:
• medos (do escuro, da separação e abandono,
de estar sozinho, medo das doenças, da
morte dos pais);
• sintomas somáticos (cefaleias, dores abdominais, vómitos, queixas inespecíficas);
• perturbações do sono (oposição ao deitar,
dificuldade em adormecer, insónia, acordar
ansioso, terrores nocturnos e pesadelos);
• perturbações do comportamento (instabilidade psicomotora, agitação ou inibição).
167
Convém salientar que, sendo a ansiedade considerada uma reacção normal e adaptativa às situações de estresse, as manifestações acima citadas
podem aparecer de forma transitória, com uma
intensidade moderada, relacionadas com acontecimentos de vida da criança (ida para a escola, nascimento dum irmão, doença, separação, etc.), sendo
então consideradas como reacções de adaptação.
De salientar que ansiedade nem sempre é evidente, isto é, nem sempre aparece sob a forma de
sintomas. Estes aparecem em consequência da utilização pela criança de mecanismos inconscientes
cuja função é reduzir a angústia resultante dos
conflitos psíquicos. Estes sintomas podem ser considerados equivalentes da angústia.
Consoante o tipo de angústia e os mecanismos
de defesa usados pela criança podemos classificá-los
em sintomas de tipo: fóbico, designados por fobias,
obsessivo-compulsivo, histérico e de inibição.
Sintomas fóbicos
As fobias são medos injustificados desencadeados
por uma situação, objecto ou pessoa e que não
representam um perigo real. A angústia desencadeada na presença da situação geradora de
fobia é acompanhada de estratégias defensivas,
nomeadamente os comportamentos de evitamento ou fuga e a utilização de manobras de tranquilização (mecanismos contra-fóbicos), como o uso de
pessoas (a mãe, por ex.) ou de um objecto, para
enfrentar a situação sentida como perigosa.
Alguns medos aparecem durante o desenvolvimento normal da criança e têm uma função estruturante do sistema psíquico. São eles:
• medo (ou angústia do estranho) que aparece
por volta dos 6 meses;
• medo da separação (ou angústia de separação), a partir dos 18 meses;
• medo do escuro, a partir dos 2 anos;
• medo dos animais entre os 3 e os 6 anos.
Existem medos que variam ao longo do tempo,
sendo a plasticidade, um sinal do seu carácter
benigno.
As fobias são patológicas quando, isoladas ou
associadas a outros sintomas, pela sua intensidade, persistência e complexidade dos mecanismos contra-fóbicos, limitam a actividade da criança, invadem a sua vivência psíquica, e comprometem o seu desenvolvimento.
168
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
As fobias aparecem em geral associadas a
quadros de neurose infantil e necessitam de acompanhamento psicoterapêutico.
As fobias atípicas são sintomas de tipo fóbico
com características bizarras que estão inseridas
em quadros de psicoses infantis ou quadros de
tipo autista.
Um dos quadros clínicos mais complexo é a
fobia escolar. Caracteriza-se por um comportamento de recusa de ir à escola, acompanhado de
intensas manifestações de angústia (choro, suores,
opressão cardíaca) e manifestações somáticas
(cefaleias, vómitos, diarreias), podendo chegar às
manifestações de pânico. Todos estes sintomas
desaparecem quando cessa a obrigatoriedade de ir
à escola, dando lugar a um estado de tranquilidade normal. Podem existir sintomas associados,
nomeadamente da linha fóbico-obsessiva ou
depressiva. Este quadro aparece em crianças em
idade escolar, que já tinham frequentado anteriormente a escola sem problemas, com bom rendimento escolar, mas dificuldade em aceitar maus
resultados. Estas crianças apresentam um grau de
dependência materna acentuada e uma fraca
autonomia.
O diagnóstico diferencial faz-se, nos casos das
crianças mais novas, com os casos de angústia de
separação, que se manifesta desde a entrada para
a escola; e, nas crianças mais velhas, com os casos
de faltas à escola por existência de dificuldades
escolares (perturbações da conduta ou dificuldades de aprendizagem).
A fobia escolar necessita de uma intervenção
pedopsiquiátrica rápida e incisiva, de forma a não
prolongar a situação de absentismo escolar, a evitar a cronicidade da situação e o risco de perda da
inserção social. A intervenção terapêutica deve
incidir na criança e na família, sendo por vezes
necessário o recurso a fármacos.
Sintomas obsessivo – compulsivos
Neste grupo de sintomas incluem-se as obsessões,
os rituais e as compulsões que podem aparecer
isoladamente ou associados.
As obsessões são pensamentos e ideias que se
impõem de forma recorrente e contra a vontade
da criança. As obsessões mais frequentes são as do
medo da contaminação e da doença ou da ordenação/arrumação de objectos. Os rituais consis-
tem em comportamentos efectuados de forma
repetitiva e com carácter imperativo, sempre nas
mesmas circunstâncias, como por exemplo os rituais de higiene, para comer, para se vestir, etc..
Estes rituais, por vezes, invadem toda a vida da
criança, que passa grande parte do seu tempo a
realizá-los, entrando num estado de grande
ansiedade, por vezes catastrófica se for impedida
de os realizar.
As compulsões são comportamentos ou actos
mentais repetitivos submetidos igualmente a
regras inflexíveis que não podem ser alteradas.
Algumas compulsões mais frequentes são as de
verificação, de tocar, de repetição de gestos.
Certos comportamentos de tipo obsessivo são
frequentes e normais em certas fases do desenvolvimento:
• rituais de adormecimento, a partir do 1º ano
de vida
• rituais de higiene e de verificação, entre os 6
e os 10 anos
• coleccionismo na idade escolar
É mais uma vez a intensidade, o carácter invasivo dos sintomas, a sua associação entre si ou
com outros sintomas e os constrangimentos que
impõem no quotidiano da criança e da família que
conferem o carácter patológico, sendo os 11 anos a
idade média de aparecimento deste quadro clínico.
Sintomas de tipo histérico
São sintomas da esfera corporal sem substrato
orgânico que traduzem um conflito psíquico de
que a criança não tem consciência. Neste caso, a
ansiedade, que não chega a ser vivida pela criança, é convertida num sintoma somático. Os sintomas histéricos podem aparecer sob a forma de
crise histérica, com queda, corpo em opistótono,
movimentos desordenados de contracção e extensão dos membros, semelhantes às crises epilépticas. Outros sintomas, localizados e permanentes,
são as paralisias funcionais, afonias, parestesias,
perturbações da visão, etc.. Há ainda as manifestações ditas somatoformes, tais como as cefaleias,
dores abdominais, algias osteoarticulares e outras
síndromas dolorosas. Em todas estas situações
este diagnóstico só deve ser feito após exclusão de
patologia orgânica. O seu carácter involuntário
permite diferenciá-los das simulações, se bem que
CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade
os benefícios secundários possam estar presentes
em ambas as situações.
Os sintomas histéricos predominam no sexo
feminino, na idade escolar ou na adolescência, e
aparecem isolados ou associados à neurose histérica, situação relativamente rara na criança (0,5%).
Inibição
A inibição consiste na manifestação de uma limitação, mais ou menos intensa, que pode atingir
vários sectores da vida da criança, nomeadamente
a área motora, os comportamentos sociais, a linguagem, a aprendizagem e o pensamento. Pode
manifestar-se em geral crianças ou adolescentes
com boas capacidades intelectuais e boas potencialidades cognitivas. Os comportamentos de
inibição correspondem a mecanismos reguladores
da ansiedade; e podem ter uma função adaptativa, aparecendo de forma circunscrita a certas
situações (por ex. na adaptação a novos ambientes). A inibição, como sintoma, tem múltiplas
configurações clínicas e pode prejudicar gravemente a aprendizagem escolar e as competências
sociais da criança.
Intervenção terapêutica
A intervenção terapêutica nas situações de
ansiedade deve incidir na criança e na família,
sendo dada maior ou menor ênfase a cada uma
destas vertentes consoante os casos.
Na criança recomenda-se:
• a intervenção psicoterapêutica: que favorece
a compreensão do sintoma, como uma manifestação inconsciente dos seus conflitos relacionais e necessidade de regulação da sua
auto-estima. Esta intervenção pode ter uma
frequência variável, mas deve ser regular e
prolongada. Permite uma resolução do sintoma mais definitiva e um salto maturativo
no desenvolvimento afectivo da criança;
• a terapêutica farmacológica que pode ser
usada nos casos em que, pela sua intensidade, rigidez e fixação, os sintomas afectam
gravemente a vida da criança e da família.
São usados neurolépticos, em doses sedativas, ou pontualmente benzodiazepinas na
redução dos níveis de ansiedade. Os antidepressivos revelam alguma eficácia nos casos
169
dos sintomas de tipo obsessivo-compulsivo,
nas fobias escolares e nas crises de pânico,
mas só deverão ser utilizados antes dos 13
anos de idade, em situações graves e sempre
com vigilância pedopsiquiátrica.
Na família, e concretamente com os pais, deverão ter-se em linha de conta:
• os modos como os sintomas da criança são
interpretados (maldade, manipulação, defeito, benefício secundário, etc.) e as respectivas
reacções parentais;
• as interacções patológicas pais - crianças que
perpetuam os sintomas;
• as repercussões dos sintomas na dinâmica
familiar.
Cada um destes aspectos deverá ser abordado
em entrevistas com os pais, juntos ou separados,
sob a forma de aconselhamento, orientação, ou
mesmo consultas de acompanhamento psicoterapêutico regular.
170
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
34
DEPRESSÃO
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
Definição
A depressão é uma perturbação do humor mantida
que se caracteriza por um estado de tristeza, mais ou
menos manifesto, desinteresse, lentidão psicomotora, acompanhada de ideias de incapacidade ou culpa
e ainda perturbações do sono e/ou alimentares.
Manifestações clínicas e intervenção
terapêutica
São descritos os seguintes quadros e a respectiva
intervenção terapêutica:
1. Perturbações depressivas na infância
A depressão na criança é um quadro clínico relativamente frequente que atinge 2 a 3% da população infantil e tem gerado muita discussão, pela
dificuldade em estabelecer o seu diagnóstico; de
referir que não devem ser aplicados os mesmos
critérios das classificações dos adultos. Na população infantil atendida nas consultas de saúde
mental a frequência chega a atingir 20%.
O polimorfismo dos seus sintomas, muito frequentemente na linha da inibição, e também a
dificuldade da criança em tomar consciência das
suas vivências de tristeza, obriga o clínico a ter
uma atitude activa na exploração diagnóstica.
O quadro clínico apresenta um elenco variado
de sintomas, tais como:
• tristeza, raramente expressa como tal, mas
manifesta pela ausência de interesse e entusiasmo, raras manifestações de prazer, isolamento, passividade. Este grupo de sintomas
ditos “negativos” é muitas vezes pouco notado, atrasando o reconhecimento da existência do problema;
• diminuição e falta de prazer na actividade
lúdica: incapacidade de brincar ou brincadeiras pobres, do ponto de vista do conteúdo, e repetitivas;
• ideias de incapacidade, de desvalorização ou
de culpa, de falta de segurança nas relações,
nomeadamente com os colegas ou com os
pais e família;
• diminuição da atenção, da capacidade de
memorização e do interesse intelectual, com
consequentes dificuldades escolares;
• alterações do comportamento, marcadas por
irritabilidade, instabilidade, agitação psicomotora e crises de agressividade. Estes sintomas, quando estão presentes pelo seu carácter exuberante, dominam o quadro clínico.
Outros sintomas, associados ou isolados, que
podem mascarar o quadro depressivo, são: insónias, anorexia, enurese, encoprese, os síndromas
dolorosas.
A intensidade, duração e associação destes sintomas, não só pelo sofrimento que trazem à criança, mas também pelas suas repercussões na vida
diária, nas relações familiares e nas dificuldades
escolares, criam uma dinâmica de fracassos e malestar e determinam o carácter patológico das manifestações e a necessidade da intervenção pedopsiquiátrica.
As manifestações depressivas podem aparecer
associadas a várias circunstâncias:
• saltos maturativos do desenvolvimento que
implicam novos e mais complexos modos de
funcionamento mental. Trata-se de crises em
que os sintomas depressivos, como choro
fácil, a irritabilidade, as alterações do sono, a
instabilidade, são transitórios e não produzem alterações significativas na vida da
criança. Em geral, quando necessárias, as
intervenções são pontuais;
• acontecimentos de vida que funcionam
como factor desencadeante. Os mais frequentes implicam separações ou perdas de
pessoas significativas. São consideradas
reacções depressivas, devendo ser ponderada uma intervenção especializada e avaliado
o prognóstico a curto e médio prazo;
• interacções pais/crianças patológicas que se
mantêm ao longo do tempo ou depressão parental crónica.
CAPÍTULO 34 Depressão
As tentativas de suicídio são difíceis de objectivar na criança, em parte, devido ao aparecimento
tardio do conceito de morte em termos da sua irreversibilidade e, em parte, porque muitas das condutas suicidárias são confundidas com acidentes
ou condutas perigosas. Entre estes acidentes ou
comportamentos de risco, verdadeiros “equivalentes suicidários” estão a ingestão de produtos
tóxicos domésticos, quedas, feridas, etc.. Ocorrem
frequentemente no contexto duma crise familiar
ou de violência, mas é difícil admitir a dimensão
suicidária do acto; com efeito, tal aceitação traz
uma grande culpabilidade aos pais tornando difícil aceitar a ideia do desejo de morte na criança.
Antes de se elaborar um projecto terapêutico,
deve ser feita uma avaliação diagnóstica aprofundada do grau de sofrimento da criança, da intensidade dos sintomas e do seu impacte no funcionamento mental e desenvolvimento afectivo, bem
como dos factores desencadeantes. Em relação à criança, a intervenção directa deve contemplar o apoio
psicoterapêutico ajudando a melhorar a auto-estima, a lidar com a adversidade e a elaborar os conflitos. O uso de antidepressivos não é recomendável, embora nalguns casos de maior gravidade possam ser usados com precaução e vigilância.
Em relação aos pais deve ser feito um trabalho
de consciencialização das necessidades de segurança afectiva da criança, de maior tolerância para
com os seus insucessos e de flexibilização dos
comportamentos interactivos.
2. Perturbações depressivas no adolescente
No quadro do desenvolvimento normal do adolescente surgem frequentemente episódios breves de
perturbação do humor que se confundem com perturbações depressivas recorrentes de curta duração.
A prevalência da depressão no adolescente
situa-se, segundo os diferentes estudos, entre os 3
e os 7%, com predomínio do sexo feminino. As
manifestações clínicas da depressão no adolescente aproximam-se das do adulto e caracterizam-se por tendência para a recidiva. Cerca de 30% a
50% dos casos diagnosticados recidivam num
período de 4 anos.
O quadro clínico caracteriza-se por:
• humor depressivo, irritabilidade e tendência, maior que nos adultos, para a reactividade e a instabilidade do humor;
171
• perda de interesse e prazer nas actividades
habituais, acompanhada de um sentimento
de tédio;
• desempenho psicomotor feito com lentidão,
com mímica pobre e discurso monótono, ou
agitação;
• fadiga fácil e dificuldades de concentração;
• insónia ou hipersomnia;
• sentimentos de desvalorização, vergonha, auto-acusação. As ideias de desvalorização e crítica
são, por vezes, atribuídas a terceiros, nomeadamente aos companheiros ou aos professores,
contribuindo para o isolamento do adolescente.
Estes sintomas agrupam-se em quadros sindromáticos diferentes, segundo a forma clínica,
duração, intensidade e existência, ou não, de factores desencadeantes.
Assim, consideram-se:
Depressão major, em que os sintomas devem
estar presentes pelo menos 2 semanas e em quase
toda a sua gama, com um elevado grau de intensidade.
Perturbação distímica, clinicamente semelhante à depressão major, em que os sintomas são
menos intensos, mas devem estar presentes no
mínimo de 2 anos. Aparece com carácter insidioso
e, pela sua cronicidade, provoca uma maior limitação escolar e social do jovem.
Depressão reactiva, relacionada com factores
desencadeantes, tais como acontecimentos de
vida adversos (lutos, doenças na família, etc.).
Depressão associada a outros quadros clínicos: comportamentos aditivos, perturbações do
comportamento alimentar ou perturbações de
personalidade, nomeadamente as perturbações
“limite”, como um diagnóstico de comorbilidade.
O diagnóstico diferencial da depressão no adolescente é difícil e só no enquadramento de uma
intervenção psicoterapêutica regular se pode fazer
um diagnóstico mais preciso e avaliar os riscos.
Por outro lado, é também no âmbito da nova
relação que se cria na psicoterapia que o adolescente consegue exprimir o seu sofrimento e os
seus conflitos.
As intervenções familiares podem ser úteis,
sendo por vezes de aconselhar as intervenções de
inspiração sistémica.
172
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A terapêutica farmacológica está indicada nas
situações em que as manifestações depressivas
apresentam maior intensidade; a mesma deve ser
sempre acompanhada dum apoio psicoterapêutico individual e deve ser prescrita no quadro de
um acordo entre o médico, o adolescente e os pais.
Usam-se medicamentos antidepressivos, tendo
sempre presente que a respectiva potencialidade
de activação pode desencadear uma tentativa de
suicídio até aí não concretizada.
Os neurolépticos são por vezes usados com o
objectivo de diminuir a impulsividade e de estabilizar o humor.
As benzodiazepinas são de uso limitado pela
dependência que podem criar e pela ausência de
efeitos a médio prazo.
3. Perturbação bipolar
Nos adolescentes cerca de 20% dos quadros depressivos entram na categoria diagnóstica da perturbação bipolar. Esta patologia caracteriza-se pelo
facto de as alterações depressivas do humor
alternarem com períodos de humor expansivo,
exaltado, chamados episódios maníacos. Estes
episódios são acompanhados frequentemente de
irritabilidade, logorreia, ideias de grandeza, fuga de
ideias, redução da necessidade de sono, desinibição
social e sexual. Nos episódios maníacos francos, as
alterações observadas sugerem uma perda de contacto com a realidade, enquanto noutros casos,
chamados hipomaníacos, as ideias delirantes não
estão presentes e o disfuncionamento psíquico não
é tão grave. As perturbações bipolares apresentam
uma forte incidência familiar e pertencem ao grupo
das psicoses. Têm uma evolução crónica havendo,
por vezes, necessidade de internamento hospitalar.
Actualmente estão descritos casos de perturbações bipolares em crianças de idade escolar.
O tratamento das perturbações bipolares combina o tratamento das perturbações depressivas
com o carbonato de lítio e outros estabilizadores
do humor.
4. Ideias e comportamentos suicidários no
adolescente
O suicídio representa a segunda causa de morte
na adolescência, sendo mais frequente no rapaz
do que na rapariga, embora nestas sejam mais frequentes as tentativas de tal acto.
As tentativas de suicídio ocorrem na maioria
dos casos no decurso de uma depressão diagnosticada (cerca de 80%). Em muitos casos, a
depressão surge associada a perturbações do comportamento alimentar, dependência de drogas ou
de uma perturbação da personalidade, pelo que o
plano de cuidados deverá ter em conta as perturbações subjacentes.
Não é raro que a tentativa de suicídio seja o
acontecimento inaugural do quadro depressivo;
contudo, mesmo nestes casos, existem quase sempre sinais preocupantes que antecedem o acto suicidário. Assim, embora as ideias suicidárias sejam
bastante frequentes na adolescência, a sua verbalização não deve ser banalizada e deve alertar os
familiares, professores e amigos próximos do
jovem para a existência de risco, sobretudo se
acompanhadas de isolamento, evitando a família
e os amigos, períodos de ausência ou fugas,
queixas somáticas várias e inespecíficas (cefaleias,
astenia, falta de apetite, etc.).Há também que sublinhar que existe uma elevada taxa de recidiva
(cerca de 20%,), o que mostra a importância de
valorizar do ponto de vista clínico estas manifestações, fazendo a sua avaliação diagnóstica e
prognóstica.
A ideação e a tentativa de suicídio constituem
um apelo do adolescente e reflectem uma situação
de impasse psíquico, que nem sempre está associado a factores de risco externos familiares. Ladame
considera potencialmente traumáticos do ponto de
vista do impacte suicidário, dois tipos de acontecimentos: o suicídio de uma pessoa da família ou
de amigos, e as situações de abuso ou de incesto.
Perante uma tentativa de suicídio, a boa prática recomenda o internamento hospitalar cuja
duração pode ir de uma a várias semanas por
forma a potenciar os efeitos terapêuticos de uma
intervenção em crise junto do adolescente e da
família, e permitir uma avaliação aprofundada
diagnóstica e prognóstica.
CAPÍTULO 35 Psicoses
35
PSICOSES
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
Definição
O grupo das psicoses abrange uma grande diversidade de quadros clínicos, difícil de delimitar,
cujo traço comum é a sua gravidade. De salientar
um predomínio das perturbações do pensamento
e da emergência de angústias profundas e intensas que interferem com o funcionamento psíquico
normal da criança.
Manifestações clínicas e intervenção
terapêutica
São descritos os seguintes quadros e a respectiva
intervenção terapêutica:
1. Psicoses da criança
As perturbações psicóticas da criança são muito
diferentes das do adulto. Foi em 1961 que Creek,
na Inglaterra, definiu os critérios mais específicos
para o seu diagnóstico na infância. São eles:
• alteração duradoura das relações interpessoais;
• dificuldades em reconhecer a identidade
própria;
• fixação exagerada em objectos particulares
sem relação com o seu uso habitual;
• resistência às mudanças de ambiente;
• crises de ansiedade intensa, frequentes, de
início abrupto e sem motivo aparente;
• atraso ou outras perturbações da linguagem;
• anomalias do comportamento motor (estereotipias, gestos anómalos, alterações da
tonicidade);
• perfil psicológico desarmónico, com um funcionamento intelectual particularmente desenvolvido em certas áreas, embora num fundo de
173
atraso do desenvolvimento cognitivo.
A psicose na criança pode ter um início precoce, antes dos 4 anos, sendo o quadro clínico
dominado por comportamentos de retirada e de
isolamento social com perda de aquisições já
adquiridas, como a linguagem, o jogo, etc..
Nos casos de início mais tardio, na idade escolar, são mais evidentes as perturbações do pensamento e do discurso que se torna por vezes incoerente, impregnado de elementos de irrealidade e
fantasia, muitas vezes de cariz persecutório. Estas
crianças apresentam crises de ansiedade catastrófica e grandes dificuldades na adaptação e rendimento escolar, embora possam manter as potencialidades intelectuais normais.
Actualmente o conceito de psicose desapareceu das classificações diagnósticas internacionais,
com excepção da classificação francesa, sendo
substituído por uma nova entidade nosográfica: a
perturbação pervasiva do desenvolvimento,
deixando para segundo plano a perturbação da
ansiedade e o conflito psíquico, o que em nosso
entender não corresponde à realidade clínica
desta perturbação.
Considerando os diversos quadros de psicose
infantil de início precoce, e em que esta polémica
tem sido mais viva, destaca-se pela sua gravidade a
chamada perturbação do espectro do autismo, cuja
a importância e prevalência foram referidas na
parte sobre Desenvolvimento e Comportamento.
O quadro clínico caracteriza-se sucintamente
por alterações em 3 domínios principais do funcionamento da criança:
• as interacções sociais (isolamento, retirada
do contacto, olhar periférico, ausência de
reciprocidade afectiva);
• a comunicação e atraso ou ausência da linguagem verbal ou uso anormal da linguagem
(estereotipias, neologismos, agramatismo, etc.);
• actividades repetitivas, estereotipadas, resistência extrema à mudança de ambiente, uso
inapropriado de objectos, maneirismos e
estereotipias motoras.
O prognóstico é reservado. Um quociente intelectual abaixo da média, a associação a doenças
orgânicas e a ausência do aparecimento de linguagem antes dos 5 anos são considerados factores de
mau prognóstico
De uma maneira geral, a evolução da maioria
174
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dos casos de psicoses diagnosticados na infância é
crónica, mantendo-se o diagnóstico de psicose em
mais de 50% dos casos na adolescência e na idade
adulta. Destes, um número reduzido de casos tem
uma evolução demencial grave.
Em cerca de 20% dos casos há evolução para
perturbações da personalidade de tipo esquizóide
e só em cerca de 10% se pode considerar uma
evolução para a normalidade.
A gravidade do quadro clínico obriga a uma
intervenção intensiva com a criança e com a
família.
Com a criança impõem-se uma intervenção
multicêntrica, intensiva, que inclui vários tipos de
apoio consoante as áreas afectadas: psicoterapia,
psicomotricidade, terapia da fala, apoio educativo. Nalguns casos é necessário o recurso ao hospital de dia.
Pode ser necessário utilizar fármacos neurolépticos nas crianças mais velhas e quando a
desorganização do pensamento e a ansiedade são
mais graves.
Com a família, o apoio e aconselhamento são
indispensáveis para ajudar os pais a lidar com a
própria ansiedade causada pelo comportamento
da criança e para melhorar as interacções entre
pais e filhos.
2. Psicoses da adolescência
A esquizofrenia é a forma de psicose mais frequente e mais grave com início na adolescência; é
provavelmente a doença psicológica mais grave e
incapacitante, com consequências dramáticas para
o próprio e para a família.
Atinge cerca de 1% da população, tendo um
curso habitualmente crónico, com períodos de
remissão mais ou menos prolongados, mas raramente isentos de sintomas. Na ausência de tratamento conduz a uma deterioração intelectual; daí
a sua denominação inicial de Demência Precoce,
(Morel, 1860). O termo esquizofrenia só foi utilizado a partir de 1911 por Bleuler.
O processo esquizofrénico parece ser determinado multifactorialmente. Estão reconhecidamente implicados factores biológicos (genéticos,
bioquímicos), psicossociais e relacionais, cujo peso
relativo é difícil de atribuir.
Caracteriza-se por um vasto leque de sintomas
relacionados com o pensamento, emoções e com-
portamentos que se agrupam, classicamente, em
dois tipos: positivos e negativos.
Entre os sintomas positivos encontram-se as
alucinações que são alterações da percepção. As
mais frequentes e características da esquizofrenia
são as alucinações auditivas, habitualmente sob a
forma de vozes. Por vezes associam-se alucinações tácteis olfactivas ou visuais. A existência de
alucinações visuais isoladas é extremamente rara
e deve levar a considerar outra hipótese de diagnóstico, nomeadamente uma perturbação histeriforme.
Os delírios constituem alterações do pensamento determinando convicções que não são, em
princípio, postas em causa através dos dados da
realidade. Podem apresentar uma temática persecutória, religiosa, grandiosa ou sexual.
As alterações formais do pensamento incluem
a perda da coerência associativa, bloqueios do
pensamento (traduzidos frequentemente por uma
paragem súbita do discurso) e pensamento hiper
inclusivo.
Podem surgir também sintomas de tipo obsessivo-compulsivo, com um cariz bizarro e ausência
de angústia, o que os diferencia do tipo que surge
no contexto de perturbações da ansiedade.
Os sintomas negativos incluem um empobrecimento dos afectos e da sua expressão (fácies inexpressiva, mímica facial pobre, restrição do contacto visual e da motricidade geral), pobreza verbal,
com aumento do tempo de latência das respostas
e desadequação geral nos contactos sociais.
Surgem ainda alterações acentuadas na atenção e
anedonia (incapacidade para sentir prazer).
O modo de início da esquizofrenia pode ser
insidioso, numa personalidade já com alguns
traços de sintomas negativos, ou agudo, com um
quadro inaugural de delírios e alucinações.
Em função do tipo de sintomas predominantes
são considerados os seguintes subtipos:
a) Esquizofrenia paranóide, no qual predominam os sintomas positivos e habitualmente um
delírio de temática paranóide.
b) Esquizofrenia catatónica, em que o quadro
clínico é dominado por sintomas negativos psicomotores: períodos de imobilidade que pode ser
quase absoluta ou alternar com períodos de agitação motora e intenso negativismo.
Podem ainda aparecer quadros mistos, formas
CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento
predominantemente deficitárias (esquizofrenia
hebefrénica), ou quadros que cursam com alterações do humor (depressão ou mania).
Pela sua gravidade e implicações terapêuticas,
o diagnóstico de esquizofrenia é um diagnóstico
de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da
doença deve ter uma duração superior a seis
meses.
O diagnóstico diferencial deve ser feito com as
perturbações do humor, perturbações da personalidade, perturbações ligadas ao consumo de estupefacientes e algumas doenças orgânicas (epilepsia temporal, tumores cerebrais, doenças endócrinas ou autoimunes).
A evolução faz-se em cerca de 30% dos casos
para formas crónicas com incapacidade acentuada
que implica hospitalização. Em cerca de 50% dos
casos o curso da doença permite algum grau de
reintegração social e até mesmo profissional.
A intervenção terapêutica baseia-se na utilização de fármacos antipsicóticos em monoterapia ou
em associação. A medicação deve manter-se fora
dos episódios agudos, numa dose de manutenção
que permita evitar recaídas, dado que cada novo
surto psicótico deixa um défice no funcionamento
global. O internamento psiquiátrico é habitualmente necessário nos períodos críticos. A intervenção psicossocial é fundamental para promover
a reintegração destes adolescentes na família e na
escola, por vezes após internamentos prolongados. O treino de competências sociais é um trabalho fundamental a desenvolver com este tipo de
doentes.
A família deve ser sempre integrada no projecto terapêutico de modo a ser capaz de lidar em
sintonia com as características especiais que esta
patologia determina.
175
36
PERTURBAÇÕES
DO COMPORTAMENTO
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
Definição e importância do problema
As perturbações do comportamento constituem
30% dos pedidos de consulta psiquiátrica na
criança e no adolescente; correspondem a um
leque variado de situações em que os conflitos
psíquicos se exprimem através do modo de agir,
dependendo a sua expressão, em grande parte, da
reacção do meio familiar ou escolar.
As perturbações do comportamento vão desde
simples irrequietude passageira e condutas de
oposição ligadas às etapas do desenvolvimento,
até às alterações de cariz patológico como as
fugas, furtos e violência.
Manifestações clínicas
e intervenção terapêutica
São descritos sucintamente os seguintes quadros e
a respectiva intervenção terapêutica:
1. Hiperactividade
Uma das queixas mais frequentes é a hiperactividade, que, em 80% dos casos se caracteriza por
uma instabilidade psicomotora; aparece como
uma manifestação sintomática das perturbações
depressivas, de ansiedade ou ainda dos comportamentos de oposição. As atitudes de exigência
excessiva e de censura frequente por parte dos
pais ou, pelo contrário, a excessiva permissividade reforçam estes comportamentos por acentuarem o clima de conflitualidade, a insegurança da
criança e diminuirem a sua auto-estima.
A hiperactividade associa-se frequentemente
às perturbações da atenção, sendo hoje em dia
176
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
uma das patologias mais frequentemente diagnosticadas na infância. Atinge 5 a 10% das crianças
em idade escolar e 4 vezes mais em rapazes do
que em raparigas. Pode aparecer associada a
vários tipos de patologia, como as psicoses infantis, as depressões ou as debilidades. Impõe-se
fazer o diagnóstico da perturbação subjacente,
antes de estabelecer uma indicação terapêutica.
2. Perturbação de hiperactividade e défice
de atenção (PHDA)
Em 20% dos casos de hiperactividade verifica-se a
existência de uma tríada sintomática constituída
para além daquela por alterações da atenção e
impulsividade não associadas a qualquer outra
patologia psiquiátrica; tais manifestações são
responsáveis por grave desadaptação escolar e
social. Nos Estados Unidos este diagnóstico tem
vindo a banalizar-se e os respectivos critérios progressivamente alargados e redefinidos. Na Europa
e também em Portugal, os pedopsiquiatras consideram esta entidade como um quadro clínico
bem individualizado. Nestes casos tem-se verificado que existe um forte componente hereditário,
com vulnerabilidade genética. Nestas crianças
comprovou-se também alterações no sistema
dopaminérgico as quais não são, no entanto, nem
específicas nem determinantes.
Actualmente a ênfase tem sido dada à perturbação da atenção, como o sinal mais característico
desta patologia. Nesta perspectiva, a hiperactividade e a impulsividade podem ser entendidas
como uma consequência do défice de atenção.
Os critérios diagnósticos de perturbação de
hiperactividade com défice de atenção, segundo o
DSM-IV TR (Manual de Estatística e Diagnóstico
das Perturbações Mentais) foram abordados em
pormenor no âmbito da Parte sobre o Desenvolvimento e Comportamento, o que testemunha a
afinidade da Pediatria do Desenvolvimento com a
Pedopsiquiatria tal como foi dito na Introdução
(Capítulo 32).
Nos casos especificamente diagnosticados
como de hiperactividade com défice de atenção, a
terapêutica apoia-se na utilização de fármacos
estimulantes (metilfenidato), que podem melhorar significativamente os sintomas, nomeadamente a atenção e permitir, assim, uma melhoria
franca do aproveitamento escolar. A terapêutica
farmacológica deve ser simultânea com outro tipo
de abordagens individuais e familiares. A terapia
relacional com a criança deve ajudá-la a ser capaz
de pensar e expressar melhor as suas vivências e
dificuldades de modo mais adequado, por forma
a que a melhoria dos sintomas possa persistir e
consolidar-se. O trabalho com as famílias deve ter
como objectivo ajudá-las a compreender a criança,
os seus ritmos, não lhes exigindo tarefas que ultrapassem aquilo de que a criança é capaz, permitindo que se crie um ciclo em que predominem as
experiências positivas, visando melhorar a auto –
estima.
3. Perturbações do comportamento alimentar
As perturbações do comportamento alimentar
surgem em qualquer período da vida da criança e
do jovem, sendo as mais frequentes e as mais significativas do ponto de vista da psicopatologia, as
que surgem na primeira infância e na adolescência.
Na primeira infância, pela imaturidade psicológica, o corpo é um lugar privilegiado da
expressão do sofrimento mental; na adolescência
o corpo, com um papel fundamental na construção da identidade sexual, é objecto de um forte
investimento por parte do jovem. São abordados,
pela sua gravidade e frequência, os seguintes
quadros:
Anorexia do lactente: define-se como um comportamento de recusa alimentar, sem causa
orgânica; trata-se da forma mais frequente de perturbação do comportamento alimentar nesta
idade.
Anorexia de oposição: é a forma mais comum e
aparece a partir do 2º semestre de vida num contexto de oposição, tornando-se as refeições verdadeiros campos de batalha. A progressão ponderal é baixa, mas constante, e a perda de peso,
quando se verifica, é motivo para preocupação. O
seu início está ligado à mudança do regime alimentar do bebé e agrava-se durante a fase de
aquisição do controle dos esfíncteres. Do ponto de
vista psíquico, este sintoma associa-se ao processo
de aquisição de autonomia da criança. Surge em
crianças activas, com bom desenvolvimento psicomotor, vivas e alegres. As interacções mãe-criança
CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento
adquirem um carácter de imposição/oposição,
criando-se um círculo vicioso de aumento da
ansiedade materna e de ganhos secundários por
parte da criança. A evolução é variável e depende
muito da instalação de mecanismos de perpetuação do conflito na relação mãe-filho, não parecendo haver continuidade entre esta forma de
anorexia e a anorexia mental da adolescência (ver
capítulo 22).
Existem, no entanto, formas de anorexia de
oposição, com recusas alimentares graves, de início súbito e que se inscrevem no quadro de uma
psicopatologia precoce, como as psicoses de tipo
autista, desarmonias evolutivas, ansiedade maciça
e invasiva.
Anorexia passiva ou de inércia: é uma forma
grave de anorexia que se manifesta por uma
rejeição silenciosa dos alimentos em bebés tristes,
apáticos, com desinteresse pela interacção social e
pelas solicitações do exterior, pouco activos na
procura de estimulação. Este quadro aparece
geralmente no contexto de uma privação afectiva,
como por exemplo a insuficiência crónica da vinculação ou as descontinuidades e incoerências
nos cuidados e modos de vida da criança,
nomeadamente nos casos de famílias com riscos
múltiplos ou de patologia psiquiátrica materna
grave.
Anorexia nervosa do adolescente: atinge 1% da
população total adolescente e caracteriza-se por
uma tríada sintomática que inclui anorexia, emagrecimento (pelo menos 15% do peso normal) e
amenorreia. Tem repercussões somáticas graves
provocadas pela desnutrição e uma taxa de mortalidade de 7 a 10%. Há um predomínio do sexo
feminino (em 10 casos, apenas 1 é do sexo masculino), com “picos” de frequência aos 14 e aos 18
anos. No entanto, em cerca de 8% de casos o início
verifica-se antes dos 10 anos.
Trata-se de uma patologia multifactorial que
associa factores individuais (psicológicos e
biológicos) familiares e sociais.
Aparece com mais frequência nas classes médias e nas sociedades industrializadas. A problemática familiar é complexa. Combina alguns
aspectos contraditórios do funcionamento familiar, nomeadamente uma aparente harmonia com
177
um funcionamento simbiótico, em que o pai é em
geral uma figura apagada e submissa. As relações
da jovem com a mãe são conflituosas e marcadas
por grande dependência, embora mascaradas por
uma pseudo-autonomia precoce.
Em muitos casos o início da doença está associado a uma modificação na composição da
família (saída dum elemento da família, morte ou
doença, divórcio), o que ilustra bem o carácter
simbiótico do funcionamento familiar.
Do ponto de vista individual a anorexia traduz
uma dificuldade da jovem no que respeita ao
processo psicológico que leva à construção da sua
identidade feminina, da aceitação da sexualidade
e da negociação da sua autonomia psíquica.
A anorexia caracteriza-se por uma restrição
voluntária da ingestão dos alimentos ao serviço de
uma intenção de emagrecer. O emagrecimento
pode atingir níveis de caquexia sem demover a
jovem da sua determinação de recusar os alimentos. Existem outros comportamentos associados,
como uso de laxantes, diuréticos, acessos de
bulimia com indução do vómito (50% dos casos ),
prática exagerada de exercício físico, etc..
A amenorreia, habitualmente secundária, pode
preceder a perda de peso.
Outros elementos clínicos associados são:
• desejo de emagrecer e negação da magreza;
• alteração da representação da imagem do
corpo;
• tendência a restringir as relações sociais;
• hiperinvestimento escolar;
• desinteresse pela sexualidade e pela imagem
corporal.
Do ponto de vista orgânico, verifica-se:
• diminuição do índice de massa corporal
(IMC);
• alterações cardiovasculares (bradicardia,
hipotensão);
• hipotermia;
• Diminuição de TSH (tireotropina), FSH (hormona folículo-estimulante), T3 e T4 (tiroxina).
O diagnóstico é, em geral, simples de estabelecer, havendo, nos casos atípicos, que distinguir
outras formas de anorexia associadas à depressão
ou ainda doenças do foro orgânico, nomeadamente patologia digestiva ou da tiróide.
As recaídas são frequentes embora, a longo
178
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
prazo, haja tendência para o desaparecimento das
perturbações alimentares. Em cerca de 15 a 20%
dos casos há evolução para formas crónicas com
limitações psicológicas e físicas importantes.
A intervenção terapêutica deve obrigatoriamente incidir em 3 polos simultaneamente:
1 – O tratamento da alteração do comportamento alimentar e a retoma de peso que devem
ser uma prioridade, pela gravidade das consequências orgânicas e pelo risco de tal comportamento se perpetuar, tornando-se crónico. A
retoma de peso não pode ser obtida por meios
puramente médicos considerando-se que tal
estratégia tem um cariz persecutório cujos benefícios são de muito curta duração.
Deve ser acordado com a jovem e com a família um contrato em que são definidos os objectivos em relação ao peso, (com a ajuda dum nutricionista que estabelecerá o plano dietético), e em
fases bem definidas.
O internamento está indicado nos casos de não
adesão a este tipo de contrato ou quando o IMC
é inferior a 14; poderá ter vantagem na promoção
da autonomia da adolescente e no estabelecimento de novos modelos relacionais.
2 – Tratamento psicoterapêutico da perturbação psicológica e farmacoterapia nos casos de
depressão ou ansiedade associada.
3 – Tratamento das interacções familiares distorcidas através de entrevistas familiares regulares ou mesmo terapia familiar. A inclusão da
família no projecto terapêutico e a sua adesão ao
tratamento é essencial para o sucesso terapêutico
e para o prognóstico. (Ver parte sobre Nutrição).
Conclusão
Para terminar, é importante salientar alguns
princípios estruturantes da intervenção clínica em
saúde mental infantil:
1. O funcionamento psíquico da criança tem como
substrato o funcionamento cerebral, mas ultrapassa-o largamente.
2. As relações de vinculação, uma vez estabelecida, tendem a manter as suas características ao
longo da vida e constituem a base para a construção da personalidade.
3. A subjectividade é um elemento inerente a toda
a intervenção.
4. Desde o primeiro contacto com a criança e com
a família todas as intervenções devem ter um
cariz terapêutico.
5. O valor dos sintomas deve ser avaliado em
função da fase de desenvolvimento, da função
que lhe é atribuída na dinâmica familiar e do
contexto familiar.
6. As intervenções (farmacológicas, sociais, familiares) devem ter sempre um suporte psicoterapêutico.
7. A evolução terapêutica é avaliada em função da
capacidade de a criança retomar o seu desenvolvimento.
BIBLIOGRAFIA GERAL (Pedopsiquiatria)
Ajuriaguerra J. Manuel de Psychiatrie de L`Enfant. Paris:
Masson, 1970
American Psychiatric Association. DSM- IV-TR (tradução portuguesa). Lisboa: Climepsi Editores, 2000
Andreasen N, Black D. Introductory Textbook of Psychiatry.
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College National des Universitares de Psychiatrie. Psychiatrie
de L`Enfant et de L’Adolescent. Paris: Presse Editions, 2000
Guedeney N, Guedeney A. Vinculação. Conceitos e Aplicações. Lisboa: Climepsi, 2001
Houzel, D Emmanuelli M, Moggio F. Dicionário de
Psicopatologia da Criança e do Adolescente, (tradução portuguesa). Lisboa: Climepsi, 2004
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2007
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York:
McGraw-Hill, 2002
PARTE VII
Ambiente, Risco e Morbilidade
180
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
INTRODUÇÃO À PARTE VII
Reiterando o que atrás foi referido a propósito de
Desenvolvimento, José Ortega e Gasset (18831955) ensinou-nos que “cada pessoa é ela própria
e a sua circunstância”. Considera-se circunstância
da criança e adolescente o ambiente que os rodeia,
classicamente considerado num contexto físico e
social; no entanto, cabe salientar que o conceito de
ambiente, na sua essência, integra também aspectos morais, afectivos e de mudança.
Esta parte do livro é dedicada à abordagem de
alguns dos tópicos que exemplificam a influência
do ambiente potencialmente adverso na saúde da
criança e do adolescente. Noutros capítulos (sobre
Imunoalergologia, Urgências, Cirurgia, Ortopedia,
etc.) ressalta igualmente o papel do ambiente na
morbilidade pediátrica.
João M Videira Amaral
37
A CRIANÇA MALTRATADA
Deolinda Barata e Ana Leça
Definição
De uma forma genérica, os maus tratos podem ser
definidos como qualquer forma de actuação física
e/ou emocional, não acidental e inadequada,
resultante de disfunções e/ou carências nas relações entre crianças e jovens, e pessoas mais velhas,
num contexto de uma relação de responsabilidade,
confiança e/ou poder.
Podem traduziu-se por comportamentos
activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos
(omissão ou negligência nos cuidados e/ou
afectos). Pela maneira reiterada como geralmente
acontecem, privam o menor dos seus direitos e
liberdades afectando, de forma concreta ou
potencial, a sua saúde e o desenvolvimento (físico,
psicológico e social) e/ou dignidade.
Importância do problema
Tais comportamentos deverão sempre ser
analisados tendo em conta a cultura e a época em
que têm lugar, sendo importante conhecer as
práticas e as ideias que apoiavam e promoviam
muitos actos socialmente aceites em determinada
época, relativamente à infância. Ao longo do
tempo tem-se comprovado que tais práticas
inadequadas e as agressões, sob as mais diversas
formas, têm sido comuns desde os tempos mais
remotos; ainda num período relativamente recente, há cerca de um ou dois séculos, eram
considerados correctos e, como tal, socialmente
aceites.
Foram necessárias profundas modificações
culturais, sociais e de sensibilidades até que fossem reconhecidos a individualidade e os direitos
próprios da criança.
CAPÍTULO 37 A criança maltratada
Nota histórica
A história da violência exercida sobre a Criança,
ao longo dos tempos, confunde-se com a história
da própria Humanidade. Quanto mais recuamos
no tempo, maiores são as atrocidades cometidas
contra as crianças. Assim, na Antiguidade o infanticídio era uma prática habitual que perdurou nas
culturas orientais e ocidentais até ao século IV DC.
Realizava-se por diversos motivos, entre os quais
se contam: eliminar filhos ilegítimos, deficientes
ou prematuros; dar resposta a crenças religiosas
(salvar a vida do rei em perigo, acalmar a fúria
dos deuses, demonstrar-lhes devoção ou pedir-lhe
graças); controlar a natalidade, etc..
Na Roma antiga, o direito à vida era outorgado
em ritual, habitualmente pelo pai, sendo ilimitados os seus direitos sobre os filhos. Os recémnascidos eram não só sacrificados em altares dedicados exclusivamente a este fim como também
projectados contra as paredes ou abandonados
sem qualquer vestimento às intempéries.
O aparecimento do Cristianismo e a conversão do Imperador Constantino ao mesmo,
provocou uma mudança fundamental da atitude
da sociedade para com as pessoas mais débeis.
Este Imperador, autor da primeira lei contra o
infanticídio, influenciou decisivamente o percurso histórico da questão da violência exercida
sobre os menores, através do conhecimento dos
seus direitos, contribuindo para a redução dos
casos de infanticídio.
Durante a Idade Média, face às numerosas guerras e à precariedade económica, muitas crianças dos
grupos sociais mais carenciados eram vítimas de
infanticídio ou abandono.
Nas classes abastadas verificava-se mais o
abandono afectivo e as manifestações do poder do
pai como dono da criança. As práticas sexuais com
adolescentes eram naturalmente admitidas.
Durante os séculos XVII e XVIII, a protecção
das crianças era feita através do seu internamento
em instituições. Nesse período a infância começou
finalmente a ser encarada como uma etapa
específica da vida, necessitando de atenções especiais. No entanto, ainda no século XVIII, foi criada
a “Roda”, onde as crianças abandonadas eram
expostas, acabando muitas delas por perecer.
O interesse pela protecção infantil apareceu,
181
definitivamente, no século XIX, como consequência da Revolução Industrial, apesar de esta ter trazido consigo a exploração da criança pelo trabalho
e de, ainda nesta época, ser frequente o infanticídio dos filhos ilegítimos.
Em 1860, em França, começaram a ser denunciados os casos de maus tratos infantis. Nesse ano,
Ambroise Tardieu fez a primeira grande descrição
cientifica da síndroma da criança maltratada no
seu livro “Étude médico-legal sur les sevices et
mauvais traitements exercés sur les enfants”. O seu
trabalho não foi valorizado pela comunidade científica durante quase cem anos, mas conseguiu
despertar a consciência social naquele país, acabando por levar à promulgação de uma lei de protecção das crianças maltratadas.
A I Guerra Mundial, pelos seus efeitos sobre a
população civil e sobre a infância, teve uma influência decisiva nesta matéria, sendo fundada em
Genebra, em 1920, a “União Internacional de Socorros às Crianças” a qual criou uma carta de
princípios, conhecida pela “Carta dos Direitos da
Criança ou Declaração de Genebra”.
A II Guerra Mundial veio dar novo impulso à
evolução nesta matéria. Foram então criados em
1947 organismos como a UNICEF ou “Fundo
Internacional de Socorro da Infância”. Em 1948,
foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos
Humanos” e, em 1959, a Assembleia Geral das
Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança” que constituiu um importante
avanço. (Parte I – Introdução à Clínica Pediátrica).
Já a partir de 1939 Caffey, detectando fracturas
e hematomas subdurais em certas crianças, veio
definir uma entidade clínica que designou
“traumatismo de origem desconhecida”. Na sequência desses estudos, Silverman, em 1953,
admitiu que tais casos, acompanhados de sinais
de traumatismo, poderiam ser provocados pelos
pais tendo outros autores demonstrado que as
lesões melhoravam com o afastamento da criança
do seu núcleo familiar.
Em 1961, H. Kempe começou a usar a
expressão “battered child” ou “criança batida” e,
em 1962, juntamente com os seus colaboradores,
publicou um artigo sobre crianças maltratadas
considerando esta situação como uma síndroma
clínica (“the battered child syndrome”), relativamente à qual previa já a necessidade de uma
182
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
intervenção multidisciplinar e o afastamento temporário dos pais.
Depois de Kempe os resultados de muitos
estudos vieram reforçar a importância da
protecção à infância e da sua defesa nos seus
múltiplos e variados aspectos.
Na década de setenta do século XX foram
criados em muitos hospitais grupos multidisciplinares, tendo como objectivos o diagnóstico e a
orientação das crianças maltratadas.
Em 1989, na Assembleia Geral das Nações
Unidas foi aprovada a Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se defende que as crianças,
devido à sua vulnerabilidade, necessitam de
cuidados e atenções especiais, sendo dada
especial ênfase aos cuidados primários e às
responsabilidades da família.
Em Portugal, foi na década de oitenta passada
que este assunto passou a merecer atenção
especial com a criação dos primeiros núcleos de
estudo e apoio à criança maltratada, integrando
pediatras, técnicos do serviço social, enfermeiras,
psicólogos, pedopsiquiatras, representantes dos
tribunais de menores e outros profissionais.
Em 1990 foi ratificada, na Assembleia da
República, a Convenção sobre os Direitos da
Criança, em sintonia com a deliberação anterior
da Assembleia Geral da Nações Unidas.
Em 1991 foram criadas as Comissões de
Protecção dos Menores, com sede nas autarquias
locais, integradas por representantes dos tribunais, técnicos de serviço social, médicos e elementos da autarquia e da comunidade.
Em 1998 a Comissão Interministerial para o
estudo da articulação entre os Ministérios da
Justiça e da Solidariedade e Segurança Social,
passou a utilizar o termo “criança em risco”.
Em 1999 foi redigida a Lei de Protecção de
Crianças e Jovens em Perigo (entrada em vigor em
1 de Janeiro de 2001), substituindo as Comissões
de Protecção de Menores pelas Comissões de
Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando
previstas novas formas para a sua protecção.
Tipologia dos maus tratos
A violência para com as crianças e jovens manifesta-se por formas muito diferentes, como
maus tratos físicos (que, no limite, se traduzem
pelo infanticídio ou homicídio), abuso emocional
ou psicológico, abuso sexual, negligência, abandono, exploração no trabalho, exercício abusivo
da autoridade e tráfico de crianças e jovens, entre
outras formas de exploração. Esta violência pode
observar-se em diferentes contextos, designadamente familiar, social e institucional.
Assim, as crianças e jovens podem ser maltratados por um dos progenitores ou por ambos,
por um cuidador, por um irmão ou outro familiar,
por uma pessoa conhecida ou por um estranho. O
abusador pode ser um adulto ou um jovem mais
velho.
Apenas em situações de muita gravidade se
consideram como situação de maus tratos os que
acontecem fora do contexto familiar ou institucional.
Pela sua frequência e relevância apenas serão
consideradas as seguintes formas de maus tratos:
negligência, maus tratos físicos, abuso sexual e
abuso emocional, e a chamada síndroma de Munchausen por procuração.
1. Negligência
A negligência constitui um comportamento de
omissão relativamente aos cuidados a ter com as
crianças e jovens, não lhes sendo proporcionada a
satisfação das suas necessidades em termos de
cuidados básicos e de higiene, alimentação, segurança, educação, saúde, estimulação e apoio.
Pode ser voluntária (com a intenção de causar
dano) ou involuntária (resultante da incompetência
dos pais para assegurar os cuidados necessários e
adequados). Inclui diversos tipos como a negligência
intra-uterina (durante a gravidez), física, emocional e
escolar, além da mendicidade e do abandono.
Deste comportamento resulta dano para a
saúde e/ou desenvolvimento físico e psicossocial
da criança e do jovem.
2. Maus tratos físicos
Esta forma de maus tratos corresponde a qualquer
acção, não acidental, por parte dos pais ou pessoa
com responsabilidade, poder ou confiança, que
provoque ou possa provocar dano físico na
criança ou jovem.
O dano resultante pode traduzir-se em lesões
CAPÍTULO 37 A criança maltratada
183
físicas de natureza traumática, doença, sufocação,
intoxicação e a síndroma da criança abanada.
5. Síndroma de Munchausen por
procuração
3. Abuso sexual
Definição
Abordar a problemática dos maus tratos na
criança implica também a referência especial a
uma situação designada por síndroma de
Munchausen por procuração. Trata-se dum quadro clínico em que um dos progenitores- invariavelmente a mãe – está implicado, simulando ou
causando doença no filho. Esta situação é perpetrada em crianças incapazes ou não desejosas de
identificar a agressão e o agressor
O abuso sexual traduz-se pelo envolvimento da
criança ou jovem em práticas que visam a
gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem
mais velho, numa posição de poder ou de
autoridade sobre aquele.
Trata-se de práticas que a criança e o jovem, dado
o seu estádio de desenvolvimento, não conseguem
compreender e para as quais não estão preparados.
Pode ser intra ou extra familiar, (muito mais
frequente o primeiro) e ser repetido, ao longo da
infância.
São exemplos deste tipo de abuso: a obrigação
de a criança e o jovem conhecerem e presenciarem
conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou
objectos pornográficos ou actos de carácter exibicionista; a utilização do menor em fotografias,
filmes, gravações pornográficas, ou em práticas
sexuais de relevo; a realização de coito (penetração oral, anal e/ou vaginal).
4. Abuso emocional
Esta forma de abuso constitui um acto de natureza
intencional caracterizado pela ausência ou inadequação, persistente ou significativa, activa ou
passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento
das necessidades emocionais da criança ou jovem.
Do referido abuso resultam efeitos adversos no
desenvolvimento físico e psicossocial da criança
ou jovem e na estabilidade das suas competências
emocionais e sociais, com consequente diminuição da sua auto-estima.
São citados como exemplos insultos verbais,
humilhação, ridicularização, desvalorização,
ameaças, indiferença, discriminação, rejeição, culpabilização, críticas, etc..
Como se depreende, este tipo de maus tratos
está presente em todas as outras situações de maus
tratos, pelo que só deve ser considerado isoladamente quando constituir a única forma de abuso.
O diagnóstico de qualquer destas situações
requer, em geral, um exame médico e psicológico
da vítima, e uma avaliação social e do seu contexto
familiar.
Etiopatogénese
Existem várias possibilidades quanto à etiopatogénese: o progenitor propicia uma história clínica
inventada; poderá falsificar os resultados ou o
nome do titular de exames complementares laboratoriais; poderá provocar sintomatologia na
criança através de diversos estratagemas: lesão
traumática em condições especiais, administração
de determinados fármacos tirando partido de
determinados efeitos dos mesmos; simulação de
síndroma febril exibindo o termómetro previamente introduzido em líquido quente; exposição
repetida a determinada toxina; apneia e convulsões provocadas, por exemplo, por sufocação;
coloração de fezes e urina com o sangue simulando respectivamente rectorragias e hematúria,
etc..
Muitas vezes a mãe tem experiência de ambiente médico-assistencial, estando familiarizada
com nomes e sintomas de determinadas doenças.
As manifestações estão sempre associadas à
proximidade entre a mãe e a criança.
Noutras circunstâncias a mãe incute no filho a
ideia de situação de risco ou mesmo de doença, o
que origina da parte da criança o desejo de mais
dependência e de estar com ela , implicando, por
exemplo, absentismo escolar.
Neste contexto, o cenário habitual é o de um
pai que tem um papel passivo e distante deixando a cargo da mãe todas as diligências relativas
aos cuidados a prestar ao filho.
Manifestações clínicas
A detecção da síndroma de Munchausen por
procuração requer um elevado índice de suspeita;
184
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
os sintomas e sinais, atípicos e incompatíveis com
processos mórbidos naturais e reconhecidos, poderão ser indiciadores.
As manifestações são diversas e dedutíveis
das circunstâncias etiopatogénicas atrás referidas,
conforme a idade da criança; por exemplo: hiperactividade, sonolência, febre, convulsões, apneia,
cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer
aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma
variedade de processos patológicos.
Por vezes existem antecedentes maternos da
referida síndroma.
Classicamente a síndroma é mais frequente em
crianças que ainda não falam; no entanto, estão
descritos casos no período pubertário.
De referir, no entanto, que por vezes existe
doença orgânica associada.
Diagnóstico
Face às suspeitas da situação, para além de redobrada vigilância estando a criança hospitalizada,
haverá que proceder a exames complementares
comprovativos estritamente necessários e minimamente invasivos segundo o princípio de “primum
non nocere”.
Aspectos epidemiológicos
É impossível determinar a verdadeira incidência
de casos de maus tratos em qualquer país e,
consequentemente, a morbilidade e mortalidade a
eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto
de um elevado número de casos acontecer em
meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade),
à aceitação social de muitos deles, às dificuldades
no seu diagnóstico e à falta de notificação sistemática dos mesmos.
A maior parte dos maus tratos surge em todos
os grupos sociais. Admite-se que acontecem com
maior frequência nas classes sociais mais desfavorecidas, em virtude das carências económicas a
que se associam as más condições habitacionais, o
baixo nível ou ausência de instrução escolar e da
promiscuidade, e a desorganização da vida profissional, social e familiar.
Algumas estimativas sugerem que o número
de casos detectados corresponde apenas a 30 –
35% do total.
De acordo com o estudo epidemiológico reali-
zado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985,
haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Por
outro lado, a Comissão Nacional de Protecção de
Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte a
frequência relativa:
• Negligência e abandono: 65,8%;
• Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%;
• Abuso Sexual: 5,5%
De salientar que o número de casos aumentou
82% entre 1998 e 1999; provavelmente este achado
deve-se, não a um aumento real das situações de
maus tratos, mas a uma maior inquietação e
sensibilidade na detecção dos mesmos.
Deste estudo realça-se que em 83% dos casos,
os abusadores residem com a criança, sendo que
em cerca de 65% dos casos o abusador é a mãe ou
o pai. Como se deduz, poucos casos de maus
tratos chegam a ser detectados e a ser objecto de
tratamento, sobretudo os casos de abuso intra
familiar, os quais se repetem frequentemente no
anonimato da família, muitas vezes com a
conivência de alguns dos seus membros.
Os estudos epidemiológicos nesta área realizados mais recentemente corroboram, no essencial, os resultados referidos naquele.
Factores de risco
São considerados factores de risco dos maus tratos
todas as influências que aumentam a probabilidade de ocorrência ou de manutenção de tais situações. Contudo, na sua avaliação deve imperar
sempre o bom senso, tendo em conta o contexto
da situação, uma vez que qualquer destes factores,
isoladamente, poderá não constituir um factor de
risco.
Tais influências estão relacionadas com
características individuais dos pais, da criança ou
jovem, assim como do contexto familiar, social e
cultural.
As características individuais dos pais são
múltiplas, enumerando-se as mais frequentes:
alcoolismo, toxicodependência; perturbação da
saúde mental ou física; antecedentes de comportamento desviante; personalidade imatura e
impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerância às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes
de maus tratos na infância; idade muito jovem
CAPÍTULO 37 A criança maltratada
(inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível
económico e cultural; desemprego; perturbações
no processo de vinculação com o filho (especialmente mãe/filho no período pós-natal precoce);
excesso de vida social ou profissional que dificulta
o estabelecimento de relações positivas com os
filhos.
As características da criança ou jovem mais
frequentemente associadas ao tópico em análise
são: a vulnerabilidade em termos de idade e de
necessidades; a personalidade e temperamento
não ajustados aos pais; a prematuridade; baixo
peso de nascimento; perturbação da saúde mental
ou física (anomalias congénitas, doença crónica),
etc..
As características do contexto familiar, isto é,
as fontes de tensão facilitadoras dos maus tratos
são: gravidez não desejada; família mono parental, reconstituída com filhos de outras ligações,
com muitos filhos, não estruturada (relação disfuncional entre os pais, crises na vida familiar,
mudança frequente de residência ou emigração);
famílias com problemas socioeconómicos e
habitacionais (extrema pobreza, situações profissionais instáveis, isolamento social), entre outras.
Também as características do contexto social e
cultural, tais como a atitude social para com as
crianças, as famílias e atitude social em relação à
conduta violenta, são factores de intensificação do
trauma.
Diagnóstico
As manifestações clínicas são muito variadas,
dependendo do tipo de mau trato; com efeito, não
existindo lesões patognomónicas, tornam-se necessários uma particular atenção e um elevado
índice de suspeita diagnóstica.
Assim, para além duma anamnese minuciosa e
com bom senso, obtida, por técnico de saúde
experiente, em ambiente de privacidade, tentando
obter o maior número possível de informações
dos diferentes elementos da família, ouvidos em
separado e confidencialmente, é indispensável
efectuar um exame físico completo, no sentido de
identificar o tipo de lesões mais frequentes ou
mais sugestivas: as equimoses ou hematomas com
estádios de evolução diferentes e de localização
preferencial na face, pescoço, pavilhões auricu-
185
lares, tronco e nádegas, as queimaduras circulares
ou de limites muito bem definidos, os hematomas
subdurais nos lactentes, particularmente se associados à presença de hemorragias retinianas; as
fracturas dos membros no primeiro ano de vida; a
detecção de várias fracturas com diferentes
estádios de calcificação ou de fracturas de arcos
costais.
Em suma, uma história clínica inverosímil,
com contradições ou diferentes versões e, sobretudo, as discrepâncias entre a história relatada e o
tipo de lesões observadas, aliados ao atraso na
procura de cuidados médicos, constituem a chave
para o diagnóstico.
Intervenção
Na suspeita de maus tratos, a criança (ou jovem)
deve ser internada ou temporariamente afastada
do meio familiar, com um duplo objectivo: em
primeiro lugar, a sua protecção, impedindo que os
maus tratos continuem e provoquem lesões mais
graves; em segundo lugar, dispor de tempo
suficiente para um estudo familiar e social completo. Esta actuação vai permitir que se tomem as
diligências necessárias ao seu encaminhamento
correcto. Contudo, nalgumas situações de maus
tratos perpetrados por alguém não próximo da
criança/jovem em que não são necessários cuidados médicos, pode ponderar-se a eventualidade de
a criança/jovem voltar ao seu domicílio, desde que
os pais sejam “de confiança” e protectores,
permitindo um acompanhamento seguro em situação de não internamento.
A observação do comportamento dos pais, da
criança, e da relação entre ambos, pode fornecer
elementos adicionais importantes para a formulação do diagnóstico de maus tratos. Ao contrário
do que acontece com as situações acidentais em
que os pais se mostram geralmente preocupados
com o estado de saúde da criança, nas situações de
maus tratos devem ser considerados suspeitos: os
que recusam o tratamento ou o internamento dos
filhos; os que se mostram indiferentes ou agressivos; ou os que colocam as suas preocupações
acima do estado de saúde da criança.
Por sua vez, as crianças podem mostrar-se
demasiado assustadas, não acalmando com a
presença ou com as carícias dos pais ou assumin-
186
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do posturas de defesa à aproximação de adultos.
A atitude da equipa (multidisciplinar) que
orienta estes casos deve pautar-se sempre por
extrema prudência e calma, mostrando uma
atitude de compreensão e evitando juízos de crítica ou atitudes de punição da família. É
fundamental, pois, perceber que se está perante
uma família doente e que uma intervenção de
ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais
eficaz.
Consequências orgânicas
e psicossociais
Não é possível estabelecer uma relação simples
entre o tipo de maus tratos e as suas consequências a longo prazo, dado que na maior parte das
vezes se trata de situações mistas, em todas elas
estão subjacentes os maus tratos emocionais que,
pela sua natureza, são difíceis de identificar e
controlar.
Os maus tratos intrafamilares são aqueles que
mais graves consequências têm para crianças e
jovens, dado que dos mesmos resultam uma
profunda quebra de confiança e uma importante
perda de segurança em casa, por sua vez uma
ameaça profunda para o desenvolvimento.
É sabido que uma criança vítima de maus
tratos corre sérios riscos de morte, de lesões
cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro
ano de vida, se não for diagnosticada e não se
providenciarem as medidas adequadas à sua
protecção.
A grande maioria dos casos fatais de maus
tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos.
As causas mais frequentes são os traumatismos
cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas
lesões intra-abdominais (rotura de vísceras),
asfixia e sufocação.
Nas crianças mais velhas, em idade escolar,
não existe geralmente risco de vida. A repetição
dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter,
contudo, repercussões graves na vida futura da
vítima; importa, por isso, estar atento a estas
questões no sentido de as prevenir, identificar e
tratar.
Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as
seguintes consequências psicossociais: atraso de
crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de
linguagem, insucesso escolar, alterações de comportamento, risco elevado de delinquência, diminuição da auto-estima, dificuldades no relacionamento social, baixas expectativas de vida e transmissão do mau trato às gerações futuras.
Prevenção
Em todo o processo de protecção da infância, a
prevenção dos maus tratos constitui a sua prioridade fundamental. Existem três níveis de
prevenção, consoante os objectivos e os alvos a
que é dirigida:
• Primária – prestação de serviços à população
em geral, tendo em vista evitar o aparecimento de casos de maus tratos;
• Secundária – prestação de serviços a grupos
específicos de risco, a fim de tratar ou evitar
novos casos, promovendo o regresso da
criança à família;
• Terciária – prestação de serviços a vítimas de
maus tratos, para minorar a gravidade das
consequências e evitar a recidiva.
A prevenção primária engloba vários tipos de
medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de
níveis distintos, pelo que se designam prevenção
primária inespecífica, ou específica.
A prevenção primária inespecífica é dirigida à
população em geral e deve começar por fomentar
uma cultura antiviolência, passando pela informação da comunidade; pela promoção da saúde
materno-infantil; pela preparação de técnicos que
trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros
pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela
protecção legal, e pela criação de estruturas sociais
de apoio à maternidade e a criança e ao jovem.
Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de
cariz social, como a promoção da melhoria das
condições de vida, da saúde, e do emprego; e o
combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à
toxicodependência, entre outras.
A prevenção primária específica tem como
principal objectivo a identificação das crianças e
famílias em risco. A estratégia de intervenção
depende do tipo de problemas identificados em
cada família.
A identificação de crianças em risco na maternidade deve levar a maior vigilância e apoio à
mãe: ensino de regras de puericultura; estimu-
CAPÍTULO 37 A criança maltratada
lação do aleitamento materno e da relação mãefilho; acompanhamento mais estreito nas consultas de saúde infantil; promoção de programas de
visitas domiciliárias; ensino da prevenção de
acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica
ou toxicodependência dos pais; auxílio na aquisição de benefícios sociais; melhoria das condições
habitacionais; integração em creches; e ocupação
dos tempos livres. Estas medidas devem ser
desenvolvidas em todas as situações familiares de
risco.
A prevenção secundária inclui: o tratamento
adequado da criança e intervenção na família, e o
apoio e vigilância no domicílio e na comunidade.
As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras,
assistentes sociais, a colaboração do médico de
família, e a integração das crianças em creches ou
jardins de infância são medidas que devem fazer
parte deste deste tipo de prevenção.
As modalidades de abordagem acima referidas não terão êxito se não puderem contar com o
apoio de meios adequados e legislação que, garantindo os direitos humanos, permita a sua aplicação. Assim, as estruturas políticas deverão ser
consideradas como parceiros sociais nas acções de
prevenção relativas aos maus tratos.
A reflexão sobre os programas de prevenção do
mau trato permite deixar uma nota de optimismo
desde que o apoio seja precoce e continuado e,
sobretudo, se se conseguir o estabelecimento de
uma relação respeitosa e de confiança entre os
técnicos e as famílias das crianças maltratadas.
Esta intervenção reestruturante da anarquia
das relações familiares consegue muitas vezes
estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar
das potencialidades intelectuais e afectivas das
crianças e jovens vítimas de maus tratos.
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188
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
38
TRAUMATISMOS, FERIMENTOS
E LESÕES ACIDENTAIS –
O PAPEL DA PREVENÇÃO
Mário Cordeiro
Importância do problema
Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais
(TFLA) constituem, em quase todos os países do
Mundo, nos grupos etários da infância e da
adolescência, a maior causa de morte, anos de
vida, potenciais perdidos, doença, internamento,
recurso aos serviços de urgência, incapacidades
temporárias e definitivas. Consequentemente,
constituem um dos problemas com custos socioeconómicos mais elevados.
Infelizmente, no nosso País o problema revelase de uma agudeza extrema, com taxas de
mortalidade, por exemplo, quatro vezes superiores às da Suécia. Encarar os acidentes como um
grave problema nacional e assumir a sua
resolução como uma tarefa de toda a sociedade é
um passo fundamental e indispensável.
A impessoalidade das cifras pode fazer-nos
esquecer o drama humano, ao qual só damos a
necessária atenção quando somos confrontados
com ele nas nossas casas ou no nosso círculo
pessoal de amigos.
Os acidentes manifestam-se por "doenças" – os
traumatismos, ferimentos e lesões deles decorrentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter
presente que os TFLA:
• têm uma causa (um agente, a energia resultante dos impactes, do calor, do movimento de objectos, etc.);
• provocam sintomas e sinais bem definidos;
• têm um processo de diagnóstico;
• têm um processo de terapêutica;
• são passíveis de prevenção primária, secundária e terciária, tal como a maioria das
doenças.
O que talvez diferencie os TFLA de outras
doenças é a rapidez da acção da causa e o pequeníssimo lapso de tempo entre a acção do agente
e os sintomas e sinais, o que também contribui
para a dificuldade da prevenção, se analisarmos
esta numa perspectiva médica estrita.
Podemos também considerar os TFLA numa
perspectiva ecológica, tal como por exemplo as
doenças infecciosas: o acidente resulta da interacção entre o agente, o meio humano e o meio
material, envolvendo o indivíduo. A aceitação
desta tríade (ou tétrada) traz consequências
imediatas: qualquer acção preventiva que deixe
de lado um dos elementos será votada ao insucesso; por outro lado, a compreensão do problema
na sua plena extensão passará obrigatoriamente
por uma análise aprofundada das circunstâncias e
da história destas várias vertentes.
O planeamento urbano e a construção, o
design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa
complexa na qual é necessário ter em conta as
diversas, e por vezes contraditórias, necessidades
dos diversos grupos de cidadãos. Quando o
desenvolvimento urbano – para citar um dos
exemplos actualmente mais preocupantes –, se
baseia em interesses pouco claros ou unilaterais,
remetendo para segundo lugar os interesses dos
cidadãos, designadamente a sua saúde, o resultado é frequentemente um ambiente de má
qualidade no qual as gerações presentes e vindouras terão de viver. Acresce que os erros
estruturais se traduzem geralmente por consequências a longo prazo, sendo a sua inversão
extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo
impossível.
A origem dos acidentes que envolvem crianças
e jovens não reside assim, como veremos mais
desenvolvidamente, no "mau" comportamento
daquelas ou destes mas, pelo contrário, na
agressividade e desadaptação do ambiente às suas
características físicas, mentais e psicológicas. Por
outras palavras, não são as crianças e os adolescentes que estão errados – o mundo que os rodeia
e onde são forçados a viver é que se torna, dia a
dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais
recheado de armadilhas.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção
As principais vítimas de um ambiente
insalubre e perigoso são sempre os grupos psicológica ou fisicamente mais vulneráveis, ou com
menores capacidades adaptativas, seja decorrentes da sua própria vulnerabilidade e das suas
características bio-psico-sociais (designadamente
do seu grau de resiliência), seja dos seus estilos de
vida próprios. As crianças, os idosos e os cidadãos
com deficiência estão no epicentro deste problema
e é nestes grupos que se tornam mais evidentes e
mais graves as consequências da desadequação
entre o “continente” e o “conteúdo”, ou seja, entre
o mundo onde os seres humanos têm que viver e
as capacidades e necessidades desses mesmos
seres humanos.
O ambiente constitui pois, actualmente, a
maior ameaça à vida e à saúde das crianças e dos
jovens. Culpar a criança dos acidentes será, afinal,
culpar a vítima e desculpar o "criminoso".
Aspectos epidemiológicos
Na abordagem dos TFLA, revela-se indispensável
um conhecimento epidemiológico aprofundado,
pois será certamente muito difícil delinear uma
estratégia pertinente e adequada para controlo de
um problema quando se desconhece a sua
verdadeira dimensão e, ainda mais importante, os
pormenores e as circunstâncias que rodeiam o
acontecimento. Este facto é tanto mais gravoso
quanto é verdade estarmos na presença de um
conjunto de situações de origens várias, em que
causas distintas podem gerar o mesmo efeito ou,
ao invés, causas semelhantes efeitos diferentes:
uma queda pode ter etiologias díspares e gerar
diversos traumatismos ou lesões; por outro lado, a
mesma lesão – uma fractura de um membro, por
exemplo – pode ser causada por agentes
diferentes, como um choque de automóveis, um
coice de cavalo ou uma queda de uma árvore.
A diversidade de local para local, relacionada
com distintas identidades culturais, constitui
outro factor de importância inegável, não
podendo ser subvalorizado.
Num capítulo de um livro como este, não é
possível desenvolver exaustivamente a questão
dos indicadores epidemiológicos. Entendemos, no
entanto, justificar-se encarar os TFLA nas suas
diversas vertentes: mortalidade, morbilidade,
189
anos de vida, potenciais perdidos, idas ao
serviço de urgência, internamentos, dados do
Sistema ADELIA (Acidentes Domésticos e de
Lazer – Informação Adequada), e também de
outras fontes menos ligadas à Saúde (Instituto de
Socorros a Náufragos, Companhias de Seguros,
Ministério da Educação, Serviço de Bombeiros,
etc). (Quadro 1)
Além do escasso âmbito ou representatividade
de alguns dos dados, a metodologia adoptada por
cada uma, designadamente em parâmetros tão
básicos como os grupos etários, as definições de
caso, etc., não é frequentemente a mesma,
impedindo muitas vezes a junção ou a comparação1. Falta assim fazer um trabalho de recolha
dos indicadores existentes e sua análise crítica,
identificação de eventuais áreas com lacunas e
propostas metodológicas consensuais para que,
sem um esforço acrescido, se possam obter
informações mais amplas e fiáveis, portanto mais
úteis. Este problema não é, contudo, exclusivamente português.
No que respeita ao impacte económico do
problema em Portugal, designadamente, foi
estimado que os acidentes de viação, por exemplo,
somando todos os tipos de custos, custaram ao
País, quase 4% do PIB, ou seja, cerca de 25.000
milhões € por ano, algo como cinco mil euros por
minuto. Admitindo um gasto equivalente nos
acidentes domésticos de lazer (ADL) – mais
frequentes mas globalmente menos graves –, os
acidentes custariam, em Portugal, mais de uma vez
e meia o orçamento do Ministério da Saúde, sendo
a maior parcela equivalente a gastos com TFLA.
Prevenção
1. Obrigação da Sociedade
A opção por medidas modificadoras do ambiente
são geralmente caras, mais radicais e de maiores
custos políticos, em comparação com a fácil,
1. É sintomática (e preocupante) a “anarquia” reinante em items tão
simples como as idades consideradas: depois dos 4 anos de vida
cada sistema utiliza a sua classificação etária, dividindo em grupos
de 5 anos ou juntando dos 5 aos 14, uns terminando aos 16, outros
aos 17, 18 ou 19 anos. Outro exemplo elucidativo diz respeito à
mortalidade por acidente de viação, considerada por algumas
entidades como a ocorrendo no local do acidente, por outras como
indo até às 48 horas após o evento e, por outras ainda, como a
resultante do acidente, não importando o lapso de tempo decorrido.
190
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Colheita de dados
epidemiológicos sobre TFLA
Sistemas nacionais de colheita de dados
Mortalidade (Instituto Nacional de Estatística)
Viação (Observatório Rodoviário e DGV)
ADELIA (Observatório Nacional de Saúde)
Inquéritos complementares (Instituto do Consumidor)
Inquérito Nacional de Saúde (Observatório Nacional de
Saúde)
Fontes complementares
Instituto de Medicina Legal de Lisboa
Centro de Reabilitação do Alcoitão
Dados colhidos a nível nacional e de forma contínua
Acidentes escolares (Ministério da Educação)
Acidentes desportivos (Ministério da Educação)
Intoxicações (Centro de Informação Anti-Venenos)
Dados recolhidos a nível nacional ou regional de
fontes relacionadas com os serviços de saúde ou de
emergência
Projecto "médicos-sentinela" (Observatório Nacional de
Saúde)
Cruz Vermelha Portuguesa
Serviço Nacional de Bombeiros
Instituto Nacional de Emergência Médica
Polícia de Segurança Pública
Polícias Municipais
Instituto de Socorros a Náufragos
Inquéritos ad-hoc locais ou regionais
(vários)
Outras fontes
Acidentes pessoais/trabalho (Companhias de Seguros e
Segurança Social), etc..
barata e tradicional (mas muitas vezes ineficiente)
“educação para a saúde”. Há, muito claramente,
uma relação inversamente proporcional entre o
dinheiro atribuído às várias medidas e a sua
eficiência.
Praticamente em todas as culturas, à semelhança
do que acontece na maioria das espécies animais,
é considerado natural proteger a vida e a saúde
das crias. No chamado "Mundo Ocidental", este
conceito desenvolveu-se não apenas em termos de
disponibilidade e adequação de cuidados – saúde,
educação, segurança social, entre outras – como
também em termos ambientais – provimento de ar
puro, água potável, nutrição correcta, etc..
Paralelamente, depois do reconhecimento
gradual e sequencial dos direitos dos homens, dos
trabalhadores e das mulheres, registou-se neste
século um movimento crescente a favor dos
direitos das crianças e dos adolescentes, tão bem
resumidos na Convenção sobre os Direitos da
Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU a
20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal.
A Convenção reconhece que as crianças têm o
direito de crescer e de se desenvolver normalmente, sem limitações desnecessárias, e o direito à
protecção, os quais devem ser garantidos pelo
Estado através de medidas de vária ordem.
Portugal, tendo ratificado a Convenção em 1990,
está comprometido com a sua população infantil e
juvenil, e não poderá ignorar as suas responsabilidades. A sociedade portuguesa, de onde emana o
Estado, tem igualmente de assumir de forma global
a protecção da sua população infantil e juvenil.
2. Perspectiva dinâmica e inovadora
Os acidentes sempre acompanharam a vida dos
homens; e, se por um lado esse facto permitiu
acumular conhecimentos e experiências milenárias, conduziu, por outro, à aceitação dos
acidentes como parte da própria existência e à
interiorização do problema como algo de insondável e superior à força humana. Por outro lado,
as tentativas para os evitar, pecando talvez por
timidez mas condicionadas pelo ritmo humano,
foram rapidamente ultrapassadas pela extraordinária rapidez da evolução tecnológica e pelo
aparecimento de forças que, se bem que concebidas pela mente do Homem, se afastam da sua
própria escala – tenha-se em consideração a
velocidade dos automóveis, as alturas dos
prédios, a energia da electricidade e tantos outros
exemplos de como nos deslocamos, vivemos e
utilizamos dimensões e forças totalmente estranhas às nossas características biológicas e
mesmo psicológicas, com o consequente desfasamento entre as necessidades e capacidades, por
um lado, e a realidade, por outro.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção
Os próprios estilos de vida, geradores de
estresse e de uma vida "acelerada", contribuiram
para o aumento dos riscos e para uma maior
incapacidade de lidar com eles "a tempo e horas",
não havendo para muitos destes riscos, o
verdadeiro conhecimento da sua existência.
Assim, embora não se possa dizer que as crianças
e os jovens de sociedades anteriores à nossa
estivessem livres de sofrer TFLA – basta recordar
os ataques das feras na idade das cavernas ou o
trabalho infantil em condições precárias nos
tempos da revolução industrial – pode contudo
afirmar-se que as crianças e os adolescentes de
hoje estão mais expostos aos riscos, sendo
também provavelmente detentores de uma resiliência menor.
O estresse representa, assim, um factor
fundamental para a compreensão do problema
dos TFLA. Felizmente, nos últimos anos, muitos
autores têm dedicado tempo e reflexão ao estresse
e, principalmente, à gestão do estresse. Este
elemento tão importante, tão presente e tão
condicionante das opções de vida, ocupou durante muito tempo um lugar quase ridículo na
construção fisiopatológica dos TFLA, bem como
de muitas outras situações de doença ou de falta
de saúde. Importa analisar e sistematizar o
estresse e traçar os princípios mestres da sua boa
gestão e aproveitamento enquanto energia positiva e mobilizadora, transformando-o em factor
de resiliência em vez de factor de risco.
Com a evolução tecnológica e as consequentes
mudanças nos estilos de vida – designadamente a
entrada das crianças em massa no mundo dos
adultos desde idades muito precoces (inclusivamente no mundo laboral) e a ausência de um
espaço próprio infantil para crescerem -, os riscos
aumentaram ou pelo menos tornaram-se mais
"acessíveis" à maioria das crianças e dos adolescentes. Os acidentes passaram assim a fazer de tal
modo parte da nossa vida quotidiana que, por
impregnação e habituação, deixaram de nos tocar
no plano colectivo – só somos verdadeiramente
afectados se nos atingem directamente ou pelo
menos a quem nos está próximo.
Por outro lado, a própria palavra "acidente"
desencadeia mecanismos psicológicos adaptativos tendentes a integrar o conceito como associado a fatalismo, determinismo, um acontecimento
191
que existe devido a um acto incontrolável e
incontornável do destino, ou seja, que aconteceu
"por acidente". Quantas pessoas vacinam os
filhos, dão-lhes vitaminas e, afinal, olham para a
prevenção dos TFLA como algo desnecessário ou
pouco importante, considerando até as consequências do acidente como uma punição inevitável e “normal” para um erro que se cometeu?
Actualmente, a maioria das pessoas ao serem
questionadas sobre o que significa a palavra "acidente" responderão provavelmente: "serviço de
urgência". A esta resposta não será estranho o facto
de as consequências imediatas de um acidente
grave serem médicas. Contudo, o que fica
subvalorizado nesta atitude é a vertente preventiva
(ambiental), ignorada pela maioria, ao contrário do
que acontece com outros grandes problemas de
saúde pública como a hipertensão, a diabetes, a
obesidade (em que os termos evocarão ao cidadão
comum outros como “açúcar”, “sal”, “exercício
físico”, “gorduras” - afinal elementos inerentes à
actividade preventiva). A utilização da palavra
"acidente" para definir os eventos de que estamos a
falar é parcialmente responsável por esta atitude.
Não foi por acaso que os autores de língua
anglo-saxónica optaram pela palavra "injury" em
vez de "accident", pois esta escolha não só permite
fugir à noção fatalista da palavra "acidente", como
também concentrar as atenções sobre o principal
aspecto da questão e que importa enfatizar – as
lesões, os ferimentos e os traumatismos que
decorrem dos referidos acidentes. Por outras
palavras, se por absurdo (como nos filmes de
desenhos animados ou de super-heróis), um
indivíduo não fosse minimamente afectado
quando caísse do alto de um prédio ou quando
fosse atropelado por um camião, o acontecimento
em si – o "acidente" afinal –, deixaria de nos
interessar em termos de problema de saúde. As
suas consequências, ou seja, os traumatismos,
ferimentos e lesões resultantes da queda do
prédio ou do atropelamento é que representam a
fonte de preocupação e de interesse.
Infelizmente, a língua portuguesa não tem
uma palavra que expresse totalmente o que se
pretende. A palavra “ferimento”, por exemplo,
exprime mal as consequências de um afogamento.
“Traumatismo” não descreve bem o que se passa
no decurso de uma intoxicação. A palavra “lesão”
192
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
será pouco adequada para o que resulta da
introdução de um corpo estranho. Porém, o que
encontramos nos serviços de urgência, nas
consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são
traumatismos, ferimentos e lesões causados por
um agente ambiental.
Deveremos, pois, fazer um esforço para começar a usar, tanto quanto possível, uma terminologia mais correcta, com vista a reforçarmos e
simplificarmos a compreensão do cerne do
problema. A expressão "traumatismos, ferimentos
e lesões acidentais" parece a mais adequada aos
objectivos subjacentes às acções preventivas; e
poderá chegar o dia em que as pessoas, interrogadas sobre o significado da palavra "acidente",
respondam "cintos de segurança", "leis antiálcool", "protectores de tomadas", etc..
A maioria das definições enferma um erro
substancial: o carácter "não premeditado" ou
"inesperado" da situação, e a consequente falência
da "vontade humana" em a evitar. Isto seria
admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer
acção preventiva, o que não corresponde à verdade: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis,
já que os comportamentos das crianças e dos
jovens fazem parte integrante do seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo normal. Na
realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo
previsíveis e evitáveis.
Os próprios dados epidemiológicos mostram
que a tipologia dos acidentes corresponde a um
padrão estreitamente relacionado com os consecutivos estádios de desenvolvimento e com as
actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente.
Assim, sendo este padrão previsível, existem bases
para intervenção e para acções preventivas, quer
através de meios abstractos como a informação e
educação no sentido de melhorar comportamentos
individuais e padrões de comportamento colectivos
(nos quais se incluem as modas e a pressão social e
de grupo), quer sobretudo activamente, através da
construção de um ambiente seguro onde o
desenvolvimento normal possa ter lugar sem se
correrem riscos inaceitáveis.
3. Compreensão do desenvolvimento
e comportamento humanos
O ser humano, ao contrário de outros mamíferos,
nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de
vista de maturação neuro-sensorial sendo portanto muito dependente do meio que o rodeia e da
protecção da sociedade. O desenvolvimento do
sistema nervoso central, até atingir a soma
extraordinária de um bilião de sinapses, prolongase após o nascimento, fundamentalmente no primeiro quinquénio da vida. Por outro lado, para
além da estrutura neurológica há a construção da
personalidade, a qual vai depender muito do
ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita
relação, quer com o meio, quer interpares. Os
óptimos resultados da utilização das próprias
crianças como orientadoras do tráfego à saída de
uma escola demonstram bem o efeito estruturalizante positivo sobre os colegas, em contraponto
ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios
lançados também por colegas: "aposto que não és
capaz de fazer isto ou aquilo!".
É o ambiente que se deve adaptar à criança e
ao jovem e não o contrário.
Qualquer programa de prevenção dos TFLA
terá, assim, de tomar em consideração algumas
características básicas do desenvolvimento infantil, componentes indispensáveis para a compreensão das várias etapas "acidentais" da criança e
para, em termos de cuidados em antecipação, promover as indispensáveis modificações ambientais
para que os riscos possam ser minorados, designadamente.
• a descoberta progressiva de si próprio, dos
outros, do espaço e dos objectos que estão no
primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão
e da visão; depois dos que estão mais longe;
a seguir dos que estão escondidos para além
de outros objectos até ao mundo na sua
totalidade; esta evolução é acompanhada
por uma correspondente capacidade motora
e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de
pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e
um banco, etc);
• a curiosidade progressiva;
• o uso dos cinco sentidos para conhecer o
mundo, incluindo a necessidade imperiosa
de mexer nos objectos e de levar tudo à boca;
• as características associadas às outras idades
– escolar, adolescência –, associadas ao crescimento e à maturação, quer orgânica, quer
psicológica, emocional e da personalidade.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção
As limitações fisiológicas das capacidades da
criança, decorrentes dos estádios do seu desenvolvimento neuro-psíquico-sensório-comportamental, devem ser tidas muito em conta, como se
pode demonstrar através de alguns exemplos:
– uma criança de três anos que se debruça numa
varanda não tem a sensação da distância até ao
solo e atirar-se-á para os braços de alguém que,
lá de baixo, esteja a chamá-la;
– uma criança de dois anos não tem a sensação
da profundidade: verá uma escada na continuação directa e plana do corredor de onde
vem a correr;
– uma criança com menos de dez anos de idade poderá não ter ainda capacidade para
atravessar uma rua sozinha pois frequentemente não entende de onde vem o som, não
consegue calcular a velocidade dos automóveis nem a distância a que se encontram;
dificilmente será capaz de integrar a informação recebida quando olhar para a esquerda e a que seguidamente recebe quando olhar
para a direita sem esquecer a primeira; demorará mais tempo a efectuar qualquer tipo de
análise da situação em termos espaciais e
sensoriais, designadamente a exclusão de
estímulos inúteis para o objectivo em causa;
e, finalmente, distrair-se-á com estímulos que
para ela são mais atractivos, como um amigo,
uma bola ou qualquer outra coisa.
Incorporar na mentalidade dos pais e profissionais estes conceitos, cientificamente demonstrados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acresce que os comportamentos associados às diversas
características e etapas do desenvolvimento infantil não são passíveis de "correcção" substancial,
nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança verse-ia privada de elementos estimulantes da sua
criatividade, inteligência, capacidade de resolver
situações, de experimentar, numa palavra, de crescer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de
um dos seus mais elementares direitos - o de "ser
criança", no que isso implica de exploração do
mundo, de actividades lúdicas, de ausência de
responsabilidades não adequadas à idade. É assim
entre estes dois objectivos aparentemente contraditórios – a necessidade de aprender experimentalmente e a necessidade de ser protegido – que
teremos de desenvolver os programas de preven-
193
ção de acidentes, com a noção de que uma criança
não é um adulto em miniatura.2
Há que dar ao conceito de “exposição ao
risco” um lugar fundamental, embora se tenha de
admitir que o mesmo risco se pode expressar de
modo diferente conforme os casos. Só assim se
poderá explicar – através de um modelo comportamental – a maior frequência de acidentes nesta
ou naquela situação. Nos acidentes desportivos,
por exemplo, há maior envolvimento de rapazes,
à excepção dos TFLA sofridos na prática de
equitação, justamente porque este desporto é mais
praticado por raparigas.
A opção individual face aos diferentes riscos
é igualmente um elemento a considerar: sabe-se,
por exemplo, que para a mesma viagem o risco de
mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes superior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da
viagem de comboio. Obviamente que uma escolha
criteriosa e informada obrigará ao conhecimento
prévio dos diversos riscos e seus graus.
Ainda no que respeita aos comportamentos, na
adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou
menor grau comportamentos experimentais ou
condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis
e importantes em termos de integração no grupo e
de avaliação das próprias capacidades num corpo
que se transforma e num espírito que se autopropõe desafios constantes.
Outro aspecto a ter em linha de conta nos
jovens são os comportamentos para-suicidários,
ou seja, aqueles em que, por diversas razões de
ordem psicológica, numa idade em que podem
com maior frequência ocorrer momentos frágeis
ou de maior vulnerabilidade, mormente com
dificuldade na gestão do estresse, o risco é assumido de uma forma excessiva, através de comportamentos em que um dos resultados possíveis,
quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo
menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave.
Para compreender a génese dos acidentes juvenis,
designadamente os que ocorrem com veículos de
2. Um exemplo bem elucidativo do que não deve ser feito relata-se
em breves palavras: num parque de baloiços sueco, um rapaz caiu de
um escorrega e partiu uma perna apesar de o chão ser de areia. Após a
ocorrência, a associação de pais desenvolveu uma acção intensa para
que os escorregas e demais equipamentos fossem retirados do parque.
As entidades locais cederam às pressões e assim aconteceu.
Imediatamente as crianças começaram a brincar e a trepar para locais
muito mais perigosos, com consequências muito mais graves.
194
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
duas rodas, é necessário compreender estes comportamentos.
Todavia, convém não esquecer que os riscos
são úteis e têm mesmo uma função individual e
social – a abolição total das actividades de risco
significaria o fim de diversos desportos profissionais, da aviação civil, da profissão de bombeiro,
polícia e (porque não), se calhar mesmo, a de
médico.
De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si
próprio como tendo comportamentos menos
arriscados (ou por outras palavras, mais "ajuizados") do que a maioria das pessoas o que, a ser
verdade, levaria a um problema matemático
complicado, do todo ser superior à soma das
partes – se perguntarmos a cada um de nós como
classificamos o trânsito diremos que é caótico e
que as pessoas não respeitam as regras. Mas
diremos também que se isso acontece é porque
"nós" respeitamos as regras e os "outros" não. Os
outros responderão da mesma forma, o que levará
decerto o investigador a não saír da “estaca zero”.
Ao pretendermos estudar e equacionar o
comportamento das crianças urge também tomar
em consideração os comportamentos dos adultos,
designadamente:
• incumprimento de regras;
• estar-se convencido de que se cumpre
mesmo quando não se cumpre;
• má gestão do estresse;
• incapacidade de lidar simultaneamente com
todos os desafios para os quais se requer
atenção e acção;
• alterações comportamentais motivadas pelo
cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc..
Só assim se explica, por exemplo, a falência de
medidas que à primeira vista poderiam ser consideradas fáceis e ideais, como por exemplo dos
sinais avisadores da proximidade de uma escola,
de redução de velocidade ou as passadeiras e os
semáforos junto aos portões das escolas. Se as
determinações subjacentes fossem inteiramente
cumpridas, o problema dos atropelamentos estaria praticamente resolvido; mas a prática demonstra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder
uma parte essencial para a compreensão global do
problema.
Por outro lado, não se pode exigir de seres imperfeitos, como os seres humanos, análises de si-
tuações, atitudes e comportamentos perfeitos: um
condutor, por exemplo, é confrontado em cada
milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões.
Admitindo uma incidência perfeitamente razoável de um erro em cada quarenta decisões (2,5%),
tal corresponderia a um risco de um erro por cada
três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros
em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço
ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão
aumenta. Este tipo de análise é de grande interesse, não apenas porque demonstra a incerteza da
confiabilidade humana, repudiando a teoria de
que os "maus condutores" são “loucos”, “assassinos” ou ambas as coisas, mas também porque,
correlacionando este indicador com a velocidade,
pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h
ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80
km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se
adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar
sobre uma máquina de várias centenas de quilos,
que desloca uma massa de muitas toneladas, não
sentida por quem está confortavelmente sentado,
ouvindo música e à temperatura desejada, sem
ruído e com excelentes amortecedores, é facilmente compreensível o enorme risco que um condutor
tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que
quase se torna estranho não haver mais acidentes.
Mais: quantos condutores saberão, por exemplo,
que a 90 km/h a distância média de travagem é de
pelo menos 45 metros? E que, em caso de piso
molhado, esta distância sobe para praticamente o
dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a
noção do perigo até se travar (“distância de
reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos,
conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que,
portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não
se conseguiu travar a tempo é porque se circulava
a velocidade excessiva para as circunstâncias da
altura”? Poder-se-á quase perguntar: como é
possível autorizar-se a condução a indivíduos que
desconhecem a máquina que conduzem, os elementos que circulam e tantos outros indicadores
que eliminariam à partida a sua capacidade de
manobrar outras máquinas industriais? Poderá
jogar xadrez quem não conhece os nomes das peças, os seus movimentos e os objectivos e regras
do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou
anatomia ou utilizou um bisturi?
Só será possível gizar e aplicar efectivamente
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção
medidas de prevenção dos acidentes e consequentemente dos TFLA, se houver uma profunda compreensão das características do comportamento
humano, quer em termos de "laboratório", quer na
vida real, perante os estímulos de ordem vária e
perante o estresse.
4. O ambiente como factor
fundamental
Não nos podemos esquecer de que os agentes
envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legisladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos
educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à
espécie humana, são de "carne e osso" e, como tal,
comportam-se humanamente, quer no que toca à
riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das
suas falhas e lacunas.
Assim, sem eliminar completamente a responsabilidade individual – quer das crianças e
jovens, quer sobretudo das famílias – deve
atribuir-se o maior peso a outros factores.
Hugh De Haven, um piloto de aviões da I
Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do
avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão
pela qual algumas pessoas, sofrendo o mesmo tipo
de acidente (neste caso a queda), não sofriam
praticamente qualquer lesão enquanto outras
faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de
que não era a força da queda, per se, que infligia as
lesões, mas sim o ambiente estrutural que controlava a desaceleração da força e a sua distribuição pelo
corpo. De Haven concluiu então que "se não fosse
possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser
tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir
as pressões de modo a aumentar as hipóteses de
sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível
da aviação, quer do transporte em terra".
Hugh de Haven foi, assim, o primeiro investigador a compreender a importância dos limiares
traumáticos e a possibilidade de redistribuir e
redimensionar a energia dos impactes por forma a
torná-los menos agressivos para o corpo humano.
Este princípio serviu de base ao uso do cinto de
segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais
nas carrocerias e habitáculos dos automóveis. Ou
seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer
também ao domínio da biomecânica. Gibson, um
psicólogo experimental da Universidade de
195
Cornell, referiu que o homem interage com os
diversos fluxos de energia que o rodeiam –
gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos,
eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando
não equilibradas, podem causar traumatismos,
ferimentos e lesões. Assim, a melhor forma de
classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de
energia envolvida. O problema de classificação de
alguns tipos de acidentes que não se encaixavam
em nenhum destes tipos de energia – como os
afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi
resolvido por Haddon ao incluir o conceito de
"agentes negativos", os quais se explicariam pelo
défice de elementos energéticos essenciais como o
oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA.
Os estudos de Haddon constituem marcos
essenciais para a compreensão inovadora dos acidentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente
três fases (antes, durante e depois do acidente)
com quatro elementos verticais (hospedeiro, vector, ambiente físico e ambiente sócio-económico)
permite explicar os vários condicionalismos e factores que tornam cada acidente um caso diferente,
com resultados diferentes:
• na fase "antes" encontram-se os diversos factores que fazem com que o acidente vá
ocorrer – por exemplo, segundo os quatro
elementos verticais mencionados, o hospedeiro que está ébrio, os travões do carro que
funcionam mal, a estrada que tem uma
curva mal desenhada e a atitude permissiva
da sociedade perante o álcool e a condução;
• na segunda fase, "durante", estão os elementos que determinam se o acidente (que entretanto ocorreu) dá ou não origem a um
traumatismo, ferimento ou lesão – no exemplo vertente, e ainda segundo os quatro
parâmetros verticais: os ocupantes da viatura usam cinto de segurança?, o carro é pequeno ou é grande?, o carro bate numa
árvore ou num monte de feno? existe ou não
uma lei que reforce o uso de cintos?;
• a terceira fase ("depois") contém elementos
que determinam se a gravidade das consequências pode ser minorada: A hemorragia é
importante? Os primeiros socorros chegaram
rapidamente? Os cuidados intensivos são
eficientes? A sociedade investiu num sistema
de emergência médica?
196
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Para Haddon, modificando um ou alguns destes parâmetros teria implicações nas consequências de um acidente.
Através da legislação, da sua fiscalização, da
utilização das tecnologias para alterar a concepção e o fabrico dos produtos, os técnicos de diversas áreas têm como objectivo evitar o contacto
do ser humano com quantidades de energia que
lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí
a chave da prevenção dos TFLA.
Obviamente que não deve ser retirada ao ser
humano a sua quota parte da responsabilidade. Se
a energia de um impacte de um automóvel com
uma árvore, por exemplo, é independente do condutor e depende, sim, do cinto de segurança, da
estrutura do automóvel, da velocidade, do peso,
do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna
do volante ser colapsável ou não, etc., também
não restam dúvidas de que a atitude de o condutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de
colocar ou não o cinto de segurança, pode ser
decisiva para a sua ocorrência ou para as suas
consequências. Só que, em vez de uma acção "educativa" que é apenas informativa e muitas vezes
assustadora ou punitiva, as modificações no
sentido de actuar "pensando segurança" fazem-se
através de uma aprendizagem comportamental
que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e
que tem de se iniciar muito precocemente, tal
como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumprimentar os pais e os amigos. Daí a prioridade que
deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos
etários estes que estão numa fase eminentemente
formativa da sua vida. Só incorporando a segurança nos gestos banais e nos actos instintivos
poderá haver uma certa garantia de êxito. Não nos
podemos esquecer de que a larga maioria dos
acidentes ocorre, quer numa normalíssima situação do dia-a-dia, quer numa situação de estresse,
e que, em ambas, o "catálogo" das recomendações
de segurança não está presente na mente das
pessoas.
A educação para a prevenção dos acidentes
deverá, assim, privilegiar os meios mais adequados à interiorização das mensagens (e não apenas
o "bombardeamento" do alvo com mensagens)
para o que são indispensáveis a utilização das
técnicas de comunicação e de marketing, o contacto pessoal e a demonstração das alterações am-
bientais a efectuar, de preferência nos locais onde
elas devem ter lugar.
Daí a importância de, por exemplo, incrementar a visitação domiciliária para cuidados de
antecipação nesta área da prevenção, desde que os
agentes sejam preparados convenientemente.
Os meios de comunicação constituem, por
outro lado um poderosíssimo meio de transmissão de mensagens, de informação e de modelação
de comportamentos (bem como de criação de necessidades), nomeadamente através de programas
informativos, educativos, lúdicos ou de entretenimento.
5. Estratégias
A construção de um meio ambiente de qualidade
que permita o desenvolvimento harmonioso da
família e dos cidadãos é da responsabilidade de
todos nós, requerendo um trabalho multi – e
transdisciplinar.
A prevenção dos acidentes passa por um programa centrado na comunidade, de acção ambiental, no qual os médicos deverão, evidentemente, desempenhar um papel de relevo, sendo
que não se deverão considerar os detentores
exclusivos do protagonismo.
Alguns TFLA podem ser prevenidos através de
uma acção global, nacional ou internacional, como
certas intoxicações (se houver legislação e
cumprimento desta no que se refere às embalagens
de segurança), ou acidentes com a criança como
passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei
referente ao transporte correcto for cumprida).
Outros que têm a sua génese em inadequações
urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma
abordagem local (é o caso dos atropelamentos à
porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques
infantis, em quedas de varandas, afogamentos em
piscinas ou rios) e exigem transformações
ambientais de tipo estrutural.
Em alguns países, como a Suécia, foi possível
(graças a uma acção sistemática integrada, iniciada ainda na década de 50 que reuniu as
autoridades oficiais, organizações não governamentais, companhias de seguros e forças-vivas da
sociedade) uma redução muito significativa no
número de óbitos e na morbilidade por TFLA, até
a Suécia se tornar o país com indicadores mais
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção
baixos de todo o mundo industrializado. Curiosamente, o ponto de partida no final da década de
50, quando estas acções começaram a ter lugar, era
muito semelhante ao de outros países, designadamente de Portugal.
Para tal, é indispensável, como já referimos,
conhecer a situação com vista a identificar
prioridades, utilizando para tal a abordagem da
saúde pública, classificando os problemas segundo a sua prevalência/incidência, a sua transcendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às
diversas acções e medidas.
Será também indispensável fazer uma ampla
revisão da literatura e consultar peritos de várias
instituições para identificar quais as medidas e
acções que são verdadeiramente eficientes, separando-as das que, embora aparentemente eficazes, não se traduzem muitas vezes por uma
melhoria da situação.
Outro aspecto fundamental é não desenvolver
programas demasiado alargados. "Prevenir os
acidentes" é um conceito demasiado vago para ser
entendido em termos práticos e, novamente,
podendo desencadear a noção de falsa-segurança.
Em cada local haverá que identificar por ordem de
prioridade quais os tipos de acidentes que estão a
produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a
iniciar programas para os mais frequentes, mais
graves, com maior vulnerabilidade às medidas e
acções, com maior relação benefício/custo.
Será igualmente fundamental ampliar a informação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a
sensibilizar o público, designadamente sobre as
prioridades e as medidas propostas, a fim de obter
uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento
destes na definição do problema, em toda a sua
extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos
mas também como seres humanos com experiência acumulada, não só é fundamental como
representa o reconhecimento de um direito legítimo.
Para além disso, no sentido de produzir as
necessárias modificações ambientais: 1) há que
fazer um levantamento dos recursos materiais e
humanos; 2) analisar através da matriz de
Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada
TFLA, a fim de os "partir"; 3) redimensionar o
contacto entre a energia (agente + situação) e a
vítima.
197
O ponto 3) poderá ser concretizado com certas
medidas a saber:
A. Medidas com o objectivo de impedir a
troca de energia entre um e outro:
• evitar a situação ou abolir o agente (eliminar
um pesticida perigoso)
• separar o agente da criança (vedar uma
piscina)
• vigiar a criança para impedir o contacto,
apesar de não haver separação (acompanhar
uma criança de casa à escola)
• informar a criança dos riscos (educação para a
segurança)
B. Medidas que reduzem a troca de energia
ou melhoram a recepção da energia
• reduzir a quantidade ou a agressividade do
agente (reduzir a temperatura máxima da água
canalizada)
• modificar a situação e o agente (embalagens
de segurança)
• aumentar a resistência da criança (usar
cadeira de segurança no automóvel)
• treinar a criança para melhor enfrentar o
agente (aprender a nadar)
Para além destas, é essencial desencadear
também as medidas que, uma vez ocorrido o
TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e
terciária.
Notas importantes:
• algumas medidas devem ser tomadas “de
uma vez”, como a compra por exemplo de
um fogão no qual não haja aquecimento da
porta – é relativamente fácil concretizar este
grupo de medidas (consideradas evidentemente a acessibilidade, disponibilidade e outros factores);
• outras deverão ser repetidas todos os dias,
como colocar o cinto de segurança –
podendo, contudo ser estabelecidas desde
que se crie o hábito;
6. Legislação
A integração de Portugal na União Europeia
reforçou o naipe legislativo português, pela
transposição para o Direito Interno do nosso País,
198
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
das directivas e normas europeias. Poder-se-á
dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um
conjunto leis que, se levadas à prática, poderiam
contribuir para reduzir de forma muito evidente o
número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto,
alguns problemas que subsistem – a segurança no
transporte colectivo de crianças ou o uso do
capacete de bicicleta.
O problema principal no processo legislativo
reside no atraso registado na regulamentação das
leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade)
dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as
grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus
de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a
propósito, que as Câmaras Municipais e os Serviços de Saúde, designadamente, não dispõem
ainda de meios legais para controlar aspectos
essenciais relacionados com a construção de
edifícios e com o ambiente onde as crianças vão
viver.
Na Suécia, apesar de a utilização de
dispositivos para transporte de crianças ter tido
início quando Olof Palme era Ministro dos
Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos
pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e
existindo programas de aluguer e outros que
generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo
o grau de utilização de praticamente 100%), a
legislação só foi produzida em 1988, numa altura
em que qualquer pai ou mãe suecos já não
admitiriam a hipótese de transportar incorrectamente os filhos.
No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primeira vez, se levantou no Parlamento a questão do
uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada
a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei
foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este
lapso de tempo pode ser considerado grande e
levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA
evitáveis, por outro lado permite que, desde que
bem utilizado, o processo legislativo seja acompanhado pela população e o articulado legal
entendido e aceite.
A existência de Provedorias da Criança, com
tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos
aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no
capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do
Cidadão (designadamente nos direitos do consumidor) permitiu também em muitos países (enca-
beçados pelos nórdicos mas também na Holanda,
Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de
padrões sociais de exigência mesmo na ausência
de legislação na perspectiva do bem-estar da
população em idade pediátrica.
7. Consciencialização dos cidadãos
É imperioso aumentar o reconhecimento e a
consciencialização da população e de todos os níveis dos sectores público e privado relativamente
à necessidade do controlo de TFLA. A natural
lentidão do processo de interiorização de conceitos novos não deverá ser impedimento à transmissão de mensagens que são consideradas correctas,
pelo que as campanhas de educação para a saúde
e de chamada de atenção para os problemas,
deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de
prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabilitação). Claro está que, dadas as reticências que
actualmente são levantadas a estes processos,
designadamente no que se refere à sua eficácia e
eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com
extensa utilização das técnicas de comunicação
existentes e com uma noção clara do que será
importante transmitir.
Os profissionais estão frequentemente alheados
do problema ou das formas de o resolver. Quantos
arquitectos e engenheiros não conhecem ou não
utilizam a legislação existente relativa aos materiais
de construção e à segurança da construção?
Quantos médicos ignoram os ditames da segurança
no que toca aos medicamentos? Quantos tóxicos são
vendidos sem um alerta para as condições de utilização e armazenamento? etc.. O ensino/ aprendizagem da segurança deverá começar quando
começa o de outras áreas mas, dentro do percurso
de formação profissional, importa investir mais e
melhor, em quantidade e qualidade.
Em suma, os acidentes custam tantos ou mais
anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o
conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro.
Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um
pouco à margem da preocupação dos cidadãos.
BIBLIOGRAFIA
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INTOXICAÇÕES AGUDAS
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Definição e importância
do problema
Tremblay RE, Nagin DS, Seguin JR. Physical aggression during
early childhood: trajectories and predictors. Pediatrics
2004; 114: e 43-50
Intoxicação é definida como a acção exercida por
substância tóxica (veneno) no organismo e o conjunto de pertubações daí resultantes.
Na sua forma aguda, trata-se de situações classicamente abordadas no capítulo sobre Urgências e
Emergências. De acordo com estudos epidemiológicos, cerca de 3/4 dos casos surgem em
crianças com menos de 5 anos (de forma acidental) enquanto cerca 1/4 dos casos após a referida
idade (em geral de forma voluntária e intencional, sobretudo na pré-adolescência e adolescência).
As exposições acidentais, susceptíveis de prevenção através de educação cívica e campanhas
de esclarecimento, têm, na maioria dos casos,
consequências bem menos temíveis (1,4 % de
mortalidade) que as intoxicações de origem voluntária (6% de mortalidade) o que se justifica,
nesta última circunstância, pela exposição a
maior número de tóxicos e a doses mais elevadas
ingeridas.
Etiopatogénese e semiologia
Algumas particularidades caracterizam o risco na
criança mais jovem: maior susceptibilidade à
hipóxia e à falência respiratória (devido a taxas
metabólicas mais elevadas e a menores reservas
compensatórias), à desidratação por perdas insensíveis mais significativas, e à hipoglicémia devido
a escassez de reservas de glicogénio.
Na criança mais jovem a substância em causa é
mais facilmente identificável, embora a quantidade o seja menos (Quadro 1). Se mais do que
200
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Substâncias potencialmente tóxicas
Agentes frequentemente envolvidos
Paracetamol
Produtos de limpeza
Benzodiazepinas e antidepressivos
Álcool
Antiasmáticos
Anti-histamínicos
Anti-inflamatórios
Pesticidas
uma criança está envolvida, há que partir do
princípio de que cada uma tomou a quantidade
máxima possível e não o contrário. Na mais velha,
poderão não ser óbvios nem o(s) produto(s), nem
as quantidades, devendo ser investigadas todas as
hipóteses e circunstâncias, incluindo as drogas de
abuso. Em ingestões deliberadas deve fazer-se o
rastreio, não só dos tóxicos comuns, mas também
de outros menos óbvios que ponham em risco a
vida.
Manifestações clínicas
e exames complementares
O Quadro 2 discrimina um conjunto de sintomas
e sinais relacionáveis com a exposição a determinadas substâncias. Tais sinais e sintomas integram
determinadas síndromas (s) sendo que determinada sintomatologia obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com as situações assinaladas por
(DD).
A natureza, a quantidade e as circunstâncias
do contacto devem ser tomadas em conta, incluindo a possibilidade de abuso ou negligência.
Em todas as ingestões potencialmente tóxicas a
avaliação deve compreender, para além do exame
geral (que inclui o neurológico, da pele e mucosas,
pesquisa de ruídos intestinais e de sinais de
retenção vesical), uma atenção especial aos sinais
vitais dada a possibilidade de alterações respiratórias e cárdio-circulatórias.
A avaliação laboratorial compreenderá sempre
um painel bioquímico de base. Os restantes
exames deverão basear-se no padrão sintomatológico para confirmar ou excluir a situação clínica e guiar o tratamento.
Gases, fumos e vapores
Analgésicos e antipiréticos
Cáusticos
Antidepressivos
Tóxicos cardiovasculares
Drogas de abuso (adolescentes)
Abordagem terapêutica
A maioria da crianças apresenta-se assintomática
no serviço de urgência, sendo necessário um
período de observação determinado pela situação
clínica com que se depara. A metodologia de abordagem deve compreender:
1. Ressuscitação: a primeira preocupação deverá ser a estabilidade ventilatória (incluindo a protecção das vias aéreas) e circulatória. Aquando da
transferência para uma unidade de cuidados mais
diferenciados deverá acautelar-se essa estabilidade.
2. Descontaminação: na possibilidade de contaminação cutânea é imprescindível a lavagem
total, incluindo o cabelo e os olhos. Nas ingestões,
não é preconizada a administração de antieméticos e a lavagem gástrica não deve ser feita de rotina. Este último procedimento apenas tem indicação se a apresentação do caso fôr muito precoce, estando contraindicado nas ingestões de
corrosivos e substâncias voláteis (hidrocarbonetos). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas.
A administração de carvão activado (15-30
gramas “per os”) é útil na maioria das ingestões,
mas não deve ser feita se a mesma anular, por
adsorção, a acção de antídotos orais tais como a Nacetilcisteína.
3. Aumento da excreção - Doses repetidas de
carvão activado (0,5 g/Kg de 6/6 horas “per os”):
para carbamazepina, barbituratos, dapsone, quinino, teofilina, salicilatos, amanita phalloides,
preparações de libertação lenta, digitálicos, fenilbutazona, fenitoína, sotalol, piroxicam. É ineficaz para
álcoois, óleos de essências, ferro, lítio e lixívia.
– Alcalinização da urina com bicarbonato de
CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas
201
QUADRO 2 – Síntomas e sinais relacionáveis com intoxicações agudas e diagnóstico diferencial
Sindroma (S) ou
Sintomas e sinais
Causas
Hipersecreção exócrina, sede, rubor,
Alcalóides da beladona, alguns cogumelos,
midríase, hipertermia, retenção urinária,
anti-histamínicos, antidepressivos tricícli-
delírio, alucinações, taquicardia, insuficiên-
cos, escopolamina
diagnóstico diferencial
(DD) com
Anticolinérgica (S)
cia respiratória
Colinérgica (S)
Hipersecreção exócrina, incontinência
Insecticidas organofosforados e carbamatos,
(muscarínica e
urinária, náuseas, vómitos, diarreia, fascicu-
alguns cogumelos, tabaco, envenenamentos
nicotínica)
lações musculares, miose, fraqueza muscu-
por aranhas “viúvas negras”
lar ou paralisia, broncospasmo, taquicardia
ou bradicardia, convulsões, coma
Extrapiramidal (S)
Tremor, rigidez, opistótono, torcicolo, disfo-
Fenotiazidas, haloperidol, metoclopramida
nia, crises oculógiras,
Hipermetabólica (S)
Opióides (S)
Febre, taquicardia, hiperpneia, prostração,
Salicilatos, alguns fenóis, triatilina, clor-
convulsões, acidose metabólica
fenoxi-herbicidas
Depressão do SNC, hipotermia, hipotensão
Todos os opióides, propoxifeno, heroína
arterial, hipoventilação, miose
Simpaticomimética (S)
Excitação, psicose, convulsões, hipertensão
Anfetaminas, fenilciclina, cocaína, “crack”,
arterial, taquipneia, hipertermia, midríase
fenilpropanolamina, metilfenidato, teofilina, cafeína
Abstinência (S)
Cólicas abdominais, diarreia, lacrimejo,
Cessação de álcool, barbituratos, benzo-
sudação, “pele de galinha”, bocejos,
diazepinas e opióides
taquicardia, prostração, alucinações
MCAD, doença de
Colapso, hipoglicémia não cetótica
Etanol
Insuficiência hepática aguda
Paracetamol
Hiperglicémia, cetose, depressão do SNC
Acetona; teofilina
Convulsão febril (DD)
Depressão do SNC; tremor, febre
MDMA (“Ecstasy”)
Pneumopatia (DD)
Hipertermia, taquipneia, início súbito
Salicilatos
armazenamento de
glicogénio (DD)
Insuficiência hepática
idiopática (DD)
Cetoacidose diabética
(DD)
Abreviaturas: MCAD – Medium – Chain Acyl CoA Dehydrogenase; MDMA – Metileno- Dioxi – Metanfetamina; SNC – Sistema Nervoso Central
sódio a 8,4% (1-2 ml/kg/dia i.v. para manter pH
urinário> 7,5): para salicilatos, barbituratos, isoniazida, ácido diclorofenoacético.
– Irrigação intestinal completa (administração
entérica de uma solução electrolítica osmoticamente equilibrada de polietileno glicol – 30
ml/Kg/ hora – para induzir fezes líquidas,
continuando tratamento até que as emissões rectais sejam claras): para substâncias que não são
adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito
intestinal lento e apresentem risco de vida.
– Remoção do tóxico (em unidades de cuidados intensivos) por:
• Diálise: moléculas com baixo peso molecular
(para salicilatos, metanol, etilenoglicol, vancomicina, lítio, isopropranolol).
• Hemoperfusão: para tóxicos com solubilidade baixa na água, grande afinidade para o
adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos periféricos para o sangue e baixa afinidade para as
proteínas plasmáticas (carbamazepina, barbituratos e teofilina)
202
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Tóxicos e antídotos
Tóxico
Benzodiazepinas
-bloqueantes
Monóxido de Carbono
Tetracloreto de Carbono
Digoxina
Ferro
Isoniazida
Lítio
Metemoglobinémia
Metanol
Etilenoglicol
Metoclopramida
Opióides
Organofosforados
Paracetamol
Tiroxina
Anticolinérgicos
Sulfonilureias
Antidepressivos tricíclicos
• Hemofiltração: para remoção de moléculas
com grande peso molecular (aminoglicosídeos,
teofilina, ferro e lítio).
Nota: há substâncias que tornam inúteis as técnicas extracorporais: benzodiazepinas, antidepressivos tricíclicos, fenotiazidas, clorodiazepóxido e dextropropoxifeno.
4. Antídotos: a utilização dos antídotos
(Quadro 3) deve ser guiada pela suspeita específica e pode constituir prova terapêutica.
Prevenção
Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de
suporte conduzirem a uma recuperação na maioria das situações, torna-se obrigatório falar na prevenção e na abordagem psicossocial das intoxicações e acidentes em geral; todas as noções gerais
explanadas no capítulo sobre traumatismos, ferimentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento
no âmbito das intoxicações (capítulo 38).
BIBLIOGRAFIA
Barry JD. Diagnosis and management of the poisoned child.
Pediatr Ann 2005; 34: 937-946
Bryant S, Singer J. Management of toxic exposure in children.
Antídoto
Flumazenil
Adrenalina(infusão), glucagom
Oxigénio
N-acetilcisteína
Anticorpos antidigoxina
Desferroxamina
Piridoxina, bicarbonato de sódio
Substituição salina, dopamina
Azul de metileno
Etanol
Fomepizol
Prociclidina
Naloxona
Atropina, pralidoxina, toxogonina
N-acetilcisteína
Propranolol
Fisiostigmina
Octreotido
Bicarbonato de sódio
Emerg Med Clin North Am 2003; 21: 101-119
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CAPÍTULO 40 Viagens
40
VIAGENS
Luís Varandas
Importância do problema
Por ano partem da Europa e dos Estados Unidos
da América vários milhões de pessoas, tendo
como destino as regiões tropicais; de tal resulta
que muitas famílias se desloquem e residam por
períodos mais ou menos longos nos países em
desenvolvimento. Apesar de as crianças representarem uma pequena percentagem dos viajantes, os acidentes, doenças infecciosas cosmopolitas, e outras, próprias de regiões tropicais,
constituem de facto um risco para quem se desloca para essas regiões. Embora nalgumas situações
seja aconselhável o recurso a uma consulta de
aconselhamento pré-viagem a cargo de um médico ou equipa experiente em Medicina das Viagens,
na generalidade das situações o pediatra deve
estar apto a prestar esclarecimentos à família. No
Hospital Dona Estefânia existe desde 2002 uma
consulta de aconselhamento à criança e à família
que pretendam viajar para regiões tropicais. (Nota:
Uma vez que este capítulo contém matéria relacionada
com a Parte de Infecciologia, sugere-se ao leitor a
respectiva consulta).
Preparação da viagem
A viagem deverá ser preparada com o máximo
cuidado e com o conhecimento tão completo quanto possível do local de destino. Os pais deverão
estar esclarecidos antecipadamente sobre possíveis
problemas que possam ocorrer e estar preparados
para os resolver. Para a tradicional pergunta “e se?”
deverão ter a resposta preparada. Sempre que possível, a viagem deverá ser preparada com as crianças o que implica alteração das rotinas diárias discutidas previamente. Durante a viagem as mesmas
203
deverão andar sempre identificadas e saber o que
fazer no caso de se perderem.
No avião o barotrauma é mais frequente
durante a descida, ocorrendo otalgia numa pequena proporção (cerca de 15%). Aos lactentes poderá
ser oferecido um biberão enquanto as crianças mais
velhas poderão mascar pastilha elástica ou soprar
um balão. O uso de vasoconstritores nasais é controverso.
Os acidentes são a principal causa de morte
entre os viajantes. A utilização de cadeiras de
criança nos automóveis, os cintos de segurança e o
respeito pelas regras de trânsito contribuem para a
redução da morbilidade e mortalidade pelos acidentes de viação. O hotel ou a casa onde vão ficar
devem ser cuidadosamente inspeccionados para
identificar e corrigir possíveis causas de acidentes.
O contacto com animais deve ser evitado.
Os afogamentos são a segunda causa de morte
em crianças viajantes. Os banhos só deverão ser
autorizados em locais considerados seguros e de
fácil supervisão por parte dos pais. Só a água salgada e a água clorada das piscinas são consideradas seguras. A exposição solar nas horas de maior
calor e/ou prolongada deve ser evitada.
Alimentos e bebidas
A água deve ser sempre desinfectada [duas a quatro gotas de uma solução de cloro (hipoclorito de
sódio a 2-4% ou vulgar lixívia pura) por litro de
água], ou fervida durante três a cinco minutos;
pode optar-se pela engarrafada que é considerada
mais segura. As bebidas carbonatadas são de baixo
risco, mas não se deve adicionar gelo obtido a partir de água não tratada. A carne, o peixe e os vegetais devem ser bem cozinhados e ingeridos ainda
quentes. Os vegetais a comer crus devem ser lavados e mergulhados em soluções de iodo ou cloro
durante 20 minutos. Os frutos devem ser descascados de preferência pelo próprio.
Protecção contra insectos
Casas com ar condicionado, redes mosquiteiras nas
janelas e nas camas (de preferência impregnadas
com permetrina), insecticidas em “spray” ou de libertação lenta devem ser usados para protecção de
toda a família. As roupas de cor clara, facilitando a
204
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Precauções no uso de repelentes
• Aplicar apenas na pele exposta
• Não inalar, ingerir ou permitir o contacto com os olhos
• Não aplicar repelentes nas mãos das crianças, para
evitar contacto com a boca e com os olhos
• Usar calças e camisas de manga comprida aplicando
repelente na roupa
• Nunca aplicar repelentes em feridas ou na pele irritada
• Não os usar em excesso, pois aplicações muito frequentes não aumentam a eficácia (uma aplicação
exerce efeito durante 4-8 horas)
• Remover o repelente, ao regressar ao hotel/casa
visualização dos insectos, as camisas de manga
comprida e calças em detrimento dos calções, são
outras medidas de protecção individual contra a
picada dos insectos. As crianças podem ainda usar
repelentes. O mais eficaz e menos tóxico é o DEET
(N,N-dietil-meta-toluamida) em concentrações não
superiores a 30%. Para alguns autores, até aos 12
anos de idade, esta não deve ultrapassar os 10%; e
em crianças com idade inferior a dois anos deve ser
efectuada apenas uma aplicação diária. A sua
duração de acção é de quatro a oito horas. O
Quadro 1 resume algumas precauções a ter com os
repelentes.
Vacinas
No que respeita às vacinas do programa nacional
de vacinação (PNV), as anti poliomielite, tríplice e
anti Haemophilus influenzae tipo b podem anteciparse para as 6, 10 e 14 semanas ou completar-se a primovacinação com intervalos de quatro semanas.
A vacina anti-sarampo isolada ou, se não for
possível, combinada (sarampo, rubéola e paratodite) pode administrar-se a partir dos seis meses
de idade. Se administrada antes do ano de idade
deve manter-se o esquema habitual de vacinação
com mais duas doses.
A vacina conugada antimeningocócica do serogrupo C é recomendada do segundo modo: 2 doses
(aos 3 e 5 meses de idade) e reforço aos 15 meses. A
vacina anti-hepatite B pode ser administrada aos 0,
1, 2 com reforço aos 12 meses.
Das vacinas não incluídas no PNV (Quadro 2),
as, vacinas anti-encefalite japonesa, vacinas antifebre tifóide, meningocócica e rábica são, habitual-
QUADRO 2 – Vacinas não incluídas no PNV disponíveis em Portugal
Vacina
Cólera
(Dukoral®)
Encefalite japonesa
Febre amarela1
Febre tifóide
Hepatite A2 (Havrix® Júnior
e Adulto; Epaxal®)
Meningocócica polissacárida
Pneumocócica polissacárida
Pneumocócica conjugada
(Prevenar®)
Raiva
Rotavírus
Rotarix®
RotaTeq®
Varicela
(Varilrix®; Varivax®)
Esquema recomendado
0, 1-6 semanas (> 6 anos)
0, 1-6 sem, 1-6 semanas(2-6 anos)
0, 7, 21 a 28 dias, sc
Toma única, sc
Toma única, im
Inicio da eficácia
7 dias
10 a 14 dias
10 dias
7 a 10 dias
Reforço
3 anos
6 meses
1 - 4 anos
10 - 10 anos
2 - 3 anos
Toma única, im
Toma única, im
Toma única, im
2 - 4 semanas
15 dias
(?)
6 - 24 meses
3 - 5 anos
3 anos
2, 4, 6, 15-18 meses, im
0, 7, 21, 28 dias
(?)
após a 3ª dose
(?)
2 - 5 anos
2, 4 meses
2, 4, 6 meses
Toma únca (?) / Duas tomas
separadas, no mínimo, 4 semanas
(?)
(?)
(?)
Abreviatura: sc = subcutânea; im = intramuscular; ? = assunto em debate
Países que exigem a vacina a todos os viajantes: Angola, Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro Africana, Congo,República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Guiana Francesa, Gabão,
Gana, Libéria, Mali, Níger, Ruanda, S. Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Togo, Zimbabué; 2 pode ser administrada mesmo na véspera da partida.
1
CAPÍTULO 40 Viagens
mente recomendadas a quem permaneça por longos períodos em regiões endémicas.
A vacina antifebre amarela é recomendada a
todos os viajantes para as zonas endémicas de
África e América do Sul, podendo ser exigida pelas
autoridades locais. Está contraindicada nas crianças alérgicas ao ovo e imunocompremetidas.
A vacina anti-hepatite A é recomendada para
quem viaja para todas as regiões tropicais e subtropicais, independentemente da duração da estadia.
A vacina anticolérica (Dukoral‚) tem a vantagem de conferir protecção cruzada contra a diarreia do viajante causada por algumas estirpes de E
coli.
A vacina antipneumococo poderá ser recomendada a crianças viajantes para regiões com difícil
acesso aos serviços de saúde. Relativamente aos
dois tipos destas vacinas comercializadas em
Portugal, cabe salientar o seguinte: 1) A vacina com
polissacáridos contendo 23 serotipos está indicada
em crianças com idade superior a 2 anos (dose
única, 0,5 ml por via IM ou SC); 2) a vacina conjungada com 7 serotipos pode ser administrada a partir dos 2 meses de idade com intervalos de 4 a 8
semanas; às crianças com idades entre 1-2 anos são
recomendadas, apenas, 2 doses, sem reforço. A
vacina anti-rotavírus poderá ser administrada sempre que um lactente com idade inferior a 3 meses se
desloque para regiões tropicais. Com efeito, nas
regiões tropicais a infecção gastrintestinal ocorre
durante todo o ano, ao contrário do que acontece
nos países de clima temperado, com pico de incidência nos meses mais frios.
Em Portugal estão comercializadas duas marcas
de vacinas diferindo pelo número de serotipos,
respectivamente com cinco e dois, podendo coincidir a sua administração com as do PNV. A de 2
205
serotipos é administrada em duas doses e a de 5
serotipos em três doses; em ambas, com intervalo
mínimo de 4 semanas, a partir das seis semanas e,
somente até às 12 semanas de idade.
A vacina antivaricela não é recomendada como
rotina embora possa ser administrada nos casos de
viajantes de longa duração para áreas muito isoladas. Trata-se duma vacina de vírus vivo atenuado
indicada para crianças com idade superior a 12
meses de idade (2 doses com 4 semanas de intervalo (mínimo). (Quadro 2) (Consultar Parte referente
a Infecciologia).
Profilaxia da malária
Em áreas de sensibilidade à cloroquina (Resochina®‚)
(América Central, Caríbas, raras zonas da América
do Sul e Médio Oriente), esta mantém-se como
primeira escolha.
Nas áreas de resistência à cloroquina (África,
Sudoeste Asiático, Polinésia, bacia do Amazonas) o
fármaco de primeira escolha é a mefloquina
(Mephaquin®‚); como alternativa pode usar-se a
atovaquona/proguanil (Malarone®‚) e a doxiciclina
(Quadro 3).
A associação cloroquina (Resochina®‚) e
proguanil (Paludrina®‚) (o Savarine®‚ contém os
dois fármacos) pode ser usada em áreas sem resistência ou de resistência intermédia. O Malarone®‚ e
o Savarine®‚ encontram-se nalguns locais onde funcionam Consultas do Viajante; e o Malarone®‚
pediátrico, apenas, no Hospital de Dona Estefânia
em Lisboa.
Nenhum tratamento profiláctico é totalmente
seguro, razão pela qual o diagnóstico precoce e o
tratamento imediato e adequado são fundamentais
em caso de doença. Viagens que impliquem esta-
QUADRO 3 – Fármacos utilizados na profilaxia da malária
Fármaco
Atovaquona/proguanil
Cloroquina#
Doxiciclina§
Mefloquina*
Proguanil
Dose
3,1 a 5,7 mg/kg de atovaquona/dia
5 mg/kg de cloroquina base/semana
1,5 mg/kg/dia
5 mg/kg/semana
3 mg/kg/dia
Esquema de profilaxia
Um dia antes da partida até sete depois
Uma semana antes até quatro depois
Uma semana antes até quatro depois
Uma semana antes até quatro depois
Um dia antes até quatro semanas depois
# contraindicada na presença de deficiência de G-6-PD (deficiência de desidrogenase da glucose-6-fosfato), retinopatia, epilepsia, psicose e miastenia gravis; §contraindicadas em grávidas e crianças com
menos de oito anos de idade; *contraindicada em casos de epilepsia, perturbações psiquiátricas e distúrbios da condução cardíaca.
206
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Autotratamento da malária (OMS)
Profilaxia
Nenhuma
Cloroquina ou cloroquina/proguanil
Mefloquina
Doxiciclina
Autotratamento
Cloroquina (áreas de P vivax)
Mefloquina
Quinino
Atovaquona/proguanil
Artemether/lumefantrina*
Mefloquina
Quinino
Quinino**
Quinino+doxiciclina
Mefloquina
Quinino
* não disponível em Portugal; ** reiniciar profilaxia com mefloquina uma semana após a última dose de quinino
dias prolongadas em regiões isoladas e com deficientes cuidados de saúde poderão justificar o
autotratamento na suspeita de uma crise de
malária. Os fármacos a utilizar dependem da área
geográfica, da circustância de a criança estar já submetida a profilaxia e do respectivo fármaco
(Quadro 4). Não existe ainda experiência suficiente
sobre a utilização de atovaquona/proguanil e
artemether/ lumefantrina para autotratamento nos
casos em que a profilaxia está já em curso com outros antimaláricos.
Consulta após regresso da viagem
Esta consulta recomenda-se sempre que a estadia
tenha sido prolongada, sobretudo em meio rural,
ou se tenham registado algumas problemas de
saúde. A criança que regressa doente ou adoece
logo após o regresso deve ser avaliada, de imediato, independentemente da duração e do local da
estadia. Contudo, não deve ser esquecido que o
período de incubação das várias doenças é muito
variável (Quadro 5). O conhecimento da epidemi-
QUADRO 5 – Períodos de incubação médios de algumas doenças prevalentes em regiões tropicais
Curto
(< 1 semana)
Tripanosomose
(cancro de inoculação)
Chikungunya
Cólera
Dengue
Diarreia aguda
Ébola
Febre amarela
Febre recorrente
Legionelose
Peste
Salmonelose
Shigelose
Tétano
Intermédio
(1-4 semanas)
Amebose
Brucelose
Doença de Chagas
Febres hemorrágicas
Febre tifóide
Giardiose
Hepatite A
Hepatite E
Leptospirose
Malária
Riquetsioses
Shistosomose aguda
Estrongiloidose
Tripanossomose (rhodesiense)
Adaptado de Mahmoud AAF, ed. Tropical and Geographical Medicine. Singapore: McGrawHill, 1993.
Longo
(1 a 6 meses)
Ascaridose
Buba
Hepatite B
Hepatite C
Leishmaniose cutânea
Loiose
Malária
Pinta
Raiva
Teniose
Tracoma
Tricuriose
Muito Longo
(2 meses a anos)
Cisticercose
Equinococose
Fasciolose
Filariose
Leishmaniose vísceral
Lepra
Shistosomose
SIDA
Tripanossomose (gambiense)
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão
ologia e da clínica das doenças mais prevalentes
nos locais de estadia da criança permitirá estabelecer a lista de diagnósticos mais prováveis e a subsequente investigação laboratorial.
SÍTIOS A CONSULTAR NA INTERNET
(acesso 20/3/2008)
207
41
ACIDENTES DE SUBMERSÃO
• www.who.int.ith (World Health Organization)
• www.cdc.gov.travel (Centers for Disease Control and
José Ramos e Isabel Fernandes
Prevention, USA)
• www.istm.org (International Society of Travel Medicine)
• www.csih.org (Canadian Society for International Health)
• www.paho.org (Organização de Saúde Pan-Americana)
Definição e importância do problema
BIBLIOGRAFIA
O afogamento é a morte por asfixia nas primeiras
24 horas após submersão ou imersão em líquido.
No quase afogamento há sobrevivência por
mais de 24 horas após a submersão. Este tipo de
problema comporta elevado número de casos
fatais e de sequelas graves nos sobreviventes.
Salienta-se que a lesão neurológica devida a
hipóxia-isquémia constitui a causa principal de
mortalidade e de morbilidade a longo prazo.
Koren G, Matsui D, Bailey B. DEET-based insect repellents:
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Varandas L. Viajar com crianças para regiões tropicais. Lisboa:
GSK editora, 2007
De acordo com dados da OMS, estima-se que cerca
de 450.000 pessoas morrem anualmente em todo o
mundo (cerca de uma pessoa por minuto) o que o
que corresponde a uma taxa de mortalidade aproximada de 6,8/100.000. Na Europa a referida taxa
ronda 3-4/100.000; em Portugal a incidência estimada é 2-3/100.000. De facto, a incidência actual
não é perfeitamente conhecida na medida em que
muitos casos fatais não são notificados. Salienta-se,
a propósito, que as medidas de reanimação imediatas precoces por pessoal treinado antes da admissão hospitalar reduzem a mortalidade relacionada
com as consequências cardiorrespiratórias.
Fisiopatologia
Ocorrendo submersão todos os órgãos e tecidos
correm o risco de hipóxia-isquémia. Em minutos a
hipóxia-isquémia pode levar a paragem cardíaca a
que se poderá associar laringospasmo e aspiração
de água para a via respiratória, o que contribui
para agravar a hipóxia.
Seja por aspiração ou por laringospasmo surge
208
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
a hipoxémia com consequente morte celular. A
mortalidade e morbilidade estão, no essencial,
dependentes da duração da hipoxemia. No quase
afogamento são frequentes o aparecimento de
complicações multiorgânicas resultantes da hipoxémia, seja directamente relacionada com a submersão ou secundária a complicações, mais frequentamente pulmonares, cardíacas e as neurológicas.
A hipovolemia é frequente por perdas de líquidos relacionadas com as alterações de permeabilidade vascular secundária à hipóxia. E a hiponatremia, quando se desenvolve, está mais relacionada com os líquidos deglutidos do que com os
líquidos aspirados e eventualmente com a consequente síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIHAD).
A nível pulmonar, que por alteração do surfactante, quer por diluição do mesmo, o resultado é
uma acentuada diminuição da capacidade residual funcional, alteração na permeabilidade da
membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxémia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3
ml/Kg de líquido aspirado.
De referir o papel importante dos mediadores
inflamatórios, da hipersecreção nas vias respiratórias e da vasoconstrição no território da artéria
pulmonar originando hipertensão pulmonar.
A hipoxémia, a acidose metabólica, e a hiperpermeabilidade vascular condicionam o aparecimento de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a
breve trecho, hipotensão importante, muitas vezes
irreversível.
As tradicionais questões relativas à submersão
em água muito fria (<5º C), água fria e água quente
(>20º C), água doce e água salgada são de nula
relevância clínica. As alterações osmóticas surgem
acima de 22ml/kg aspirados, sendo que na maioria
dos afogamentos não são aspirados mais de 5ml/kg.
Avaliação
A história clínica é importante e inclui a eventualidade de existência de água perto da área do acidente, pais distraídos ou vigilantes ainda que momentaneamente, rapidez e silêncio.
Haverá que inquirir sobre antecedentes de
epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervicais e ingestão de álcool ou drogas.
Os sintomas e sinais habitualmente associados
são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos,
diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciência, paragem cardio-respiratória, morte. Haverá
que avaliar a estabilidade cervical pela probabilidade de acidentes com fractura das vértebras cervicais. Haverá igualmente que detectar eventuais
sinais de abuso e negligência.
Em função do contexto clínico, poderá haver
necessidade de proceder a:
a) Monitorização contínua cardio-respiratória,
da pressão arterial e da saturação O2-Hb
(oximetria de pulso), ECG.
b) Exames complementares: hemograma,
gasometria, ionograma, enzimas hepáticas,
glicémia, doseamento de drogas e álcool.
c) Estudos imagiológicos: radiografia do
tórax, do crânio e da coluna cervical, etc..
Procedimento
A actuação deve ser doseada de acordo com os
dados da história clínica e dosexames complementares.
• A medida prioritária é a administração de
oxigénio suplementar a 100%, sempre e em
primeiro lugar.
O uso de Ambú pode implicar a utilização de
pressões bastante superiores às habituais devido à
baixa distensibilidade pulmonar, resultante do
edema pulmonar.
• Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a
colocação de colar cervical.
Pacientes com breves momentos de submersão
e sem sintomatologia podem regressar a casa após
4 a 6 horas de observação.
Pacientes com sinais de disfunção respiratória,
hipoxémia, alterações do estado de consciência ou
suspeita de abuso/negligência devem ser transferidos para unidade de cuidados intensivos,
onde deverá proceder-se a:
• Entubação nasogástrica
• Expansão vascular (soro fisiológico: 20
ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxigenação, resolve quase sempre a acidose
metabólica.
• Entubação e ventilação mecânica se se verificar dificuldade respiratória, alteração do
sensório, paO2 < 60 torr ou pH < 7,20. É fre-
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão
quente a necessidade de PEEP (pressão positiva contínua no fim da expiração) elevada.
• Algaliação
• Cateterização venosa central
• Broncoscopia
Nota: Os doentes afogados em água muito fria,
< a 5ºC, devem ser observados com especial cuidado. Devem ser aquecidos até atingirem temperaturas normais ao mesmo tempo mantendo as
manobras de reanimação.
A monitorização da pressão intracraniana não
parece ser útil nem necessária.
Complicações
As complicações imediatas são as relacionadas
com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o
sistema cardiovascular, tendo em atenção a possibílidade de disritmias e, em particular, fibrilhação
ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for
muito grave o choque cardiogénico irreversível é
uma possibilidade.
As lesões do SNC dependem igualmente da
intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência
em estado vegetativo é uma complicação particularmente grave.
O quase afogamento associa-se muito frequentemente a pneumonia, e no caso da submersão em piscina, a pneumonite.
209
rança infantil – APSI morrem anualmente em
Portugal, por afogamento cerca de 30 crianças por
ano. Ocorrem predominantemente em rapazes de
1 a 4 anos e dos 15 a 19 anos. É importante notar
que por cada morte existirão cerca de 20 atendimentos em serviços de urgência e até 5 sobreviventes com alguma forma de deficiência.
Quase sempre acidentais, as situações de
afogamento podem ser prevenidas com medidas
simples de fácil aplicação prática.
• Bom senso e medidas simples: colocação de
portas de segurança, muros e redes, em
torno de poços, tanques, piscinas, etc..
• Mesmo sob vigia: as bóias devem ser evitadas.
• Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar
em caso de acidente.
• Banheiras, baldes e alguidares esvaziados
após utilização.
• Nunca nadar só ou sem vigilância
NB – Crianças que sabem nadar constituem as de
maior risco pela sensação de segurança que transmitem.
BIBLIOGRAFIA
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Prognóstico
Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics. Philadelphia:
O prognóstico está directamente relacionado com
a duração e magnitude da hipóxia e com a qualidade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes
que necessitam de ressuscitação cárdio-respiratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de
mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no
serviço de urgência). Dos sobreviventes, em 60 a
100% poderão registar-se sequelas neurológicas.
Nos doentes admitidos em estado vigil no
serviço de urgência o prognóstico depende de
eventuais complicações pulmonares.
Crianças em coma, continuam a ter um prognóstico reservado.
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Prevenção
Segundo a Associação para a Promoção da Segu-
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Norma-Capitel, 2003
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210
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
42
SÍNDROMA DA MORTE SÚBITA
DO LACTENTE
Hercília Guimarães
Definição e importância do problema
Em 1969 Beckwith e Bergman da Universidade de
Washington propuseram o nome de síndroma da
morte súbita do lactente (SMSL), (SIDS – sudden
infant death syndrome), que definiram como a
morte inesperada de qualquer recém-nascido ou
lactente, inexplicada pela história, exame físico,
autópsia e investigação da cena da morte.
De acordo com a definição deduz-se que se
torna indispensável proceder a exame necrópsico exaustivo em cada caso, pois trata-se de um
diagnóstico de exclusão, que só poderá ser considerado se o estudo realizado após a morte for
adequado.
A morte súbita de uma criança, é, sem dúvida
alguma, um acontecimento brutal e devastador
para os pais, família, profissionais de saúde e
comunidade.
A primeira referência escrita sobre morte súbita do lactente foi encontrada no Antigo Testamento. Posteriormente várias descrições surgiram, sendo a maioria das vezes interpretadas
como homicídio ou sufocação na cama dos pais.
Só no séc. XVIII se procurou distinguir entre
morte súbita acidental e homicídio, através de
uma investigação policial. Mais tarde, no séc. XIX,
surgiu um estudo escocês que, pela primeira vez,
se dedicou à epidemiologia destas mortes.
Aspectos epidemiológicos
A SMSL, a causa mais comum de morte em
lactentes nos países desenvolvidos, comparticipa
em cerca de 40 a 50% a taxa de mortalidade entre
1 mês e 1 ano de idade. Nos Estados Unidos a
SMSL ocorre em cerca 1,3/1000 nado-vivos.
Desconhece-se a sua verdadeira dimensão em
Portugal.
A ocorrência de morte súbita é rara no primeiro
mês de vida, aumenta até um valor máximo entre
os 2 e os 4 meses, sendo de referir que cerca de
95% dos casos surgem antes dos 6 meses de idade.
Acontece geralmente no domicílio, sendo o
lactente encontrado morto no leito.
As campanhas de sensibilização para colocar
os lactentes em decúbito dorsal no berço resultaram numa acentuada diminuição da incidência
da morte súbita em vários países, embora esta
ainda continue a ser a maior causa de mortalidade
nos lactentes após o período neonatal, como foi
acentuado.
Após esta redução, o peso da exposição ao
tabaco, como factor de risco, aumentou.
No nosso país, foi efectuado um estudo retrospectivo dos casos autopsiados de lactentes vítimas
de morte súbita, nos Institutos de Medicina Legal do
Porto e de Coimbra, entre 1979 e 1994, que mostrou
um aumento do número de casos de 1974 a 1990,
com decréscimo a partir de 1992. Verificou-se um
predomínio acentuado da síndroma da morte súbita
do lactente no sexo masculino, entre ao 1 e 4 meses,
nos meses de Dezembro a Março, nos fins-de-semana, no domicílio, em períodos de sono e à noite.
Etiopatogénese
Apesar de exaustiva investigação (laboratorial e
clínica) sobre a etiopatogénese da SMSL, esta continua desconhecida, o que também limita uma
adequada estratégia de intervenção.
A concepção actual de morte súbita do lactente
é a de um acidente multifactorial, no qual vários
aspectos serão considerados, tais como: 1) factores
genéticos/ constitucionais – maturação do controlo das funções vitais (ritmo cárdio-respiratório,
sono, imunidade, etc.), maturação essa, programada geneticamente, que se efectua nos primeiros
meses de vida, com importantes variações individuais; 2) factores desencadeantes – as patologias
habituais desta faixa etária, numerosas e variadas,
por vezes acumuladas, nomeadamente infecção,
refluxo gastro-esofágico, hipertonia vagal, hipertermia; 3) factores predisponentes ligados ao
211
CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente
ambiente do lactente, como sejam, condições
sócio-económico-culturais precárias, o tabagismo
e a posição de dormir no berço.
O Quadro 1 discrimina os factores ambientais
associados a risco elevado de SMSL.
Apesar da etiologia multifactorial deste problema, a disfunção do tronco cerebral é considerada o factor mais importante na génese da SMSL
(Figura 1). Todas as crianças acordam durante o
sono calmo em resposta à hipercápnia, mas as crianças normais acordam com uma pCO2 (pressão
parcial de CO2) significativamente mais baixa.
Nos exames necrópsicos das vítimas de SMSL
observa-se astrogliose focal, anomalias dendríticas e anomalias do desenvolvimento no tronco
cerebral, havendo evidência de asfixia crónica em
66 % dos casos.
Estudos recentes primitiram demonstrar caracQUADRO 1 – Factores de risco de SMSL
e ambiente
Factores maternos e pré-natais
• Restrição do crescimento intrauterino
• Intervalo curto intergravidezes
• Separação marital
• Idade mais jovem
• Estado sócio-económico precário
• Gravidez não vigiada
• Subnutrição
• Toxicodependência
• Tabagismo
• Alfa--fetoproteina sérica elevada no 2º trimestre da
gravidez.
Factores de risco do lactente
• Posição de dormir (decúbito ventral e lateral)
• Ausência de uso de chupeta
• Idade (2-4 meses)
• Sexo masculino
• Hipocrescimento
• Antecedentes de prematuridade
• Doença febril recente
• Exposição ao fumo do tabaco (pré e pós-natal)
• Colchão do berço mole
• Dormir na cama dos pais ou com outra pessoa
• Aquecimento exagerado do quarto
• Baixa temperartura do quarto / estação fria.
Disfunção /imaturidade do tronco cerebral
Sono/vigília
cárdio-respiratória
temperatura
Ritmo
circadiano
Apneia prolongada/ bradicardia
SMSL
FIG. 1
Hipótese do controlo cárdio-respiratório para a SMSL.
terísticas genéticas diferentes nas crianças vítimas
de SMSL em comparação com grupos de controle
(polimorfismos relacionandos com certos genes
designadamente nos implicados com o desenvolvimento do sistema nervoso autónomo, o
canais de sódio e potássio no miocárdio e com a
proteína transportadora da serotonina).
Sabe-se hoje que há características clínicas que
apontam para uma maior vulnerabilidade das
crianças que morrem súbita e inesperadamente, e
que são evidentes ao nascer, durante a vida e nas
24 horas antes de morrer.
Estas características são semelhantes nos doentes que morrem subitamente ou de SMSL, propriamente dita. São recém-nascidos/lactentes com um
alta prevalência de episódios de ameaça vital (ALTE
- apparent life threatening event), nos quais a avaliação
exaustiva em cada caso pode ajudar a identificar
casos em risco de morte súbita, particularmente nos
grupos de risco. ALTE em Português poderá ser
traduzido por “Acontecimento com aparente
ameaça de vida”: é definido como “episódio assustador para o observador, caracterizado por alguma
combinação de apneia (central ou ocasionalmente
obstrutiva), alteração da cor (cianose ou palidez,
ocasionalmente aspecto pletórico), alteração do
tono muscular (usualmente marcada hipotonia),
sufocação, ou engasgamento”.
Embora, em regra, constitua um achado isolado, esta ocorrência tem sido referida em diversas
pessoas na mesma família, o que sugere a hipótese
de uma base genética.
212
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O aumento da temperatura corporal e do
ambiente associa-se, também como foi referido, a
SMSL. Há interacções entre a regulação da temperatura, sensibilidade dos químio-receptores,
controlo cardíaco e o acordar.
Estudos realizados ao nivel dos neurotransmissores no nucleus arcuato identificaram anomalias nos respectivos receptores (défice de capacidade de captação/ligação) com implicações funcionais no que respeita ao controlo autonómico da
respiração e à capacidade de resposta a estímulos.
Nas crianças vítimas de SMSL foram encontrados níveis elevados de interleucina 1-beta (IL-1B)
no arcuato e nos núcleos vagais.
Uma percentagem pequena de casos de SMSL
tem como causa um prolongamento do intervalo
QT, o que sugere que a repolarização cardíaca
também está prolongada, podendo condicionar o
aparecimento de arritmia ventricular.
Cabe aos pediatras em especial o estudo exaustivo dos doentes dos grupos de risco, bem como o
correcto diagnóstico das causas de morte, com a
realização sistemática da autópsia anátomo-clínica ou médico-legal. Tivémos a oportunidade de
demonstrar que a autópsia modifica o diagnóstico
clínico da causa de morte, ou acrescenta algo a
este, em cerca de 30 % dos casos (dados não publicados).
Em suma, pode afirmar-se que o grande desafio no âmbito da investigação sobre SMSL é
procurar uma prova/exame complementar de
rastreio que permita identificar as crianças com
risco de morte por SMSL. Refira-se que os estudos
polissonográficos não têm especificidade nem
sensibilidade suficientes para serem recomendados por rotina na identificação de futuras vítimas
de SMSL (capítulo 28).
Prevenção
Coo foi referido, conhecem-se vários factores de
risco de SMSL, classificados em pré-natais, neonatais e pós-natais. De todos eles, o que mais tem
sido referido na literatura é a posição de dormir
no berço dos recém-nascidos e lactentes.
Está demonstrado actualmente que a posição
em decúbito ventral no berço constitui um factor
de risco (o risco relativo passa de 3,5 para 9,3) de
SMSL. Esta relação foi sugerida, pela primeira vez,
por Carpenter et al em 1965. Posteriormente vários
autores, têm-se dedicado ao estudo da relação
entre posição no berço e risco de morte súbita.
Estudos epidemiológicos demonstram que a
publicidade contra a posição ventral permitiu
reduções de SMSL entre 20 % e 67 %, sem aumento do número de mortes por aspiração de vómito.
Em Abril de 1992 a Academia Americana de
Pediatria, baseada na avaliação cuidadosa dos
estudos publicados, passou a recomendar o
decúbito dorsal para os lactentes. Esta recomendação foi também publicada no mesmo ano, em
Portugal, pela Direcção Geral da Saúde e consta
do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil.
Não obstante estas recomendações oficiais
nota-se ainda alguma relutância entre os profissionais de saúde em mudar a sua opinião.
Recentemente Angeline Chong et al, demonstraram que a posição em decúbito ventral tem um
efeito mensurável no controlo circulatório, com
redução do tono vasomotor resultando em vasodilatação periférica, aumento da temperatura
cutânea, hipotensão e taquicardia. Como o tono
vasomotor é fundamental no controlo circulatório,
o mesmo pode ser considerado um factor de risco
de morte súbita.
Numa era em que a chamada Medicina Baseada na Evidência assumiu um papel importante
valorizando os resultados de estudos epidemiológicos em situações em que a fisiopatologia não
permite ainda uma explicação de certos fenómenos, as provas acumuladas legitimam que nos
serviços e unidades assistenciais em que se prestam cuidados a recém-nascidos/lactentes , os mesmos sejam colocados no berço em decúbito dorsal.Torna-se lógico, pois, que tais recomendações
sejam feitas igualmente a pais e profissionais responsáveis pela assistência a essas crianças, incluindo no ambulatório.
Mas… na Medicina como no Amor nem sempre
nem nunca, e situações particulares existem em que
há controvérsias como é o caso dos doentes com
refluxo gastro-esofágico: o decúbito lateral direito
promove esvaziamento gástrico mais rápido e o
lateral esquerdo diminui significativamente o conteúdo gástrico refluído. Nesta situação, a
recomendação para a prevenção da morte súbita
consiste em usar um colchão não mole, firme, bem
adaptado às dimensões do berço, não cobrir
213
CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente
demasiado o lactente – a roupa não deve ultrapassar os ombros e evitar o sobreaquecimento. O tipo
de decúbito poderá, pois, ter prescrição médica
variável em situações específicas, como o RGE.
Em França, nas décadas de 80 e 90, com as campanhas realizadas contra a posição de decúbito
ventral, para dormir, assistiu-se a uma descida dos
casos de morte súbita de 1500 casos em 1987, para
500 em 1995, o que corresponde a uma diminuição
de 2 % para 0,5 % na taxa de mortalidade por
morte súbita.
Em Portugal, a divulgação dos conhecimentos
sobre morte súbita do lactente e a formação dos
profissionais e pais não adquiriu a dimensão que
decorreu das campanhas realizadas noutros países da Europa. No Boletim de Saúde Infantil é
referido, nos conselhos aos pais, que o bebé deve
ser colocado “preferencialmente de costas”. Este
aspecto, ainda motivo de admiração de muitos
pais, é confirmado muitas vezes nas consultas de
saúde infantil.
O decúbito dorsal, posição permite respirar o
ar ambiente normalmente; em caso de febre pode
facilmente libertar-se da roupa que o cobre, não
correndo o risco de se sufocar. Até aos 2 anos a
criança deve dormir sobre um colchão firme,
numa cama de grades para evitar que respire o ar
expirado, e sem almofada ou fralda na mão. A
temperatura do quarto deve ser entre 18º e 20ºC e,
em caso de febre a mesma deve ser despida
(arrefecimento físico). Os pais devem ser igualmente informados dos malefícios do fumo do
tabaco, que também está implicado como factor
de risco de SMSL. Sabe-se que um recém-nascido
ou lactente privado do sono é mais vulnerável,
pelo que o seu sono deve ser respeitado.
A monitorização no domicílio só terá lugar em
casos seleccionados, pois constitui um factor de
estresse para a família, e não permite a detecção
da apneia obstrutiva, porque a detecção é feita por
impedância torácica e não pelo débito nasal.
No Hospital de S. João, com o objectivo de conhecer a informação que os pais possuem relativamente à morte súbita do lactente, foram realizados 134 inquéritos a puérperas do Serviço de
Obstetrícia. Verificou-se um total desconhecimento desta entidade clínica em 28,5 % das mães,
sendo que 24 % consideravam que nada poderia
ser feito para evitar tal ocorrência. Apenas 35,8 %
das mães conhecia a associação da morte súbita
do lactente com a posição deste no berço, e 1,5 %,
com o consumo de tabaco pela grávida e/ou lactante. A posição de decúbito ventral no berço foi
referida como a mais indicada por 2,2 % das mães.
Em igual percentagem as mães agasalham os filhos em caso de febre, apenas 35 % afirmavam que
o lactente deve ser despido em caso de febre, e
14 % ministravam antipirético.
Este estudo mostra que continua a ser essencial a divulgação das recomendações sobre as estratégias de evicção dos factores de risco conhecidos. Esta é uma função de todos os profissionais
de saúde que devem dar informação e formação
aos pais, aproveitando o período de permanência
nas maternidades.
Em Portugal, assiste-se actualmente a uma
preocupação sobre esta problemática e será
necessário continuar: 1) a sensibilizar os médicos
para um registo adequado das causas de morte e
2) a levar a cabo Campanhas Nacionais de
Prevenção da Morte Súbita, no âmbito da educação para a saúde da população, que permitam, à
semelhança doutros países, uma diminuição do
número de casos.
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PARTE VIII
Clínica da Adolescência
216
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
43
ADOLESCÊNCIA,
CRESCIMENTO E
DESENVOLVIMENTO
Maria do Carmo Silva Pinto
O critério cronológico, porém, não é o mais
correcto para classificar adequadamente um
adolescente. As acentuadas mudanças que ocorrem nas áreas – biológica, cognitiva, afectiva, e
social, estão estreitamente ligadas entre si, embora
nem sempre decorram em simultâneo; exemplificando: um adolescente com crescimento e desenvolvimento físico em fase adiantada pode apresentar ainda características emocionais da faixa
etária anterior e vice-versa.
Por este motivo a adolescência corresponde a uma
fase da vida com grande vulnerabilidade em que se
manifestam dúvidas e problemas que, a não serem
devidamente resolvidos, podem deixar marcas
importantes de imaturidade na pessoa adulta.
Definição e importância do problema
Crescimento estaturo-ponderal
A adolescência (do latim adolescere, significando
crescer) corresponde a um período da vida caracterizado por um crescimento e desenvolvimento
biopsicossocial marcados, o qual decorre entre o
final do período de criança (~10 anos) e a adultícia.
Neste período ocorrem várias alterações a
diferentes níveis:
• biológico – correspondendo a grandes modificações anátomo-fisiológicas;
• psicológico – correspondendo à conquista da
identidade e à aquisição de autonomia;
• social – correspondendo à adaptação harmoniosa ao meio social.
A idade de início do amadurecimento físico,
bem como o intervalo de tempo decorrido até à
aquisição de maturidade psicossocial plena, é
variável de indivíduo para indivíduo, com
possibilidade de desfasamento, o que dificulta a
delimitação do começo e do fim da adolescência.
Contudo, quer por motivos científicos(por ex.
comparação de resultados de estudos), quer por
motivos burocrático-administrativos (por ex.
realização de trabalhos, programação de serviços,
etc.),torna-se indispensável estabelecer limites
cronológicos de idade para este grupo.
Assim, a OMS em 1965 definiu a adolescência
como o período que se estende aproximadamente
dos 10-20 anos, compreendendo três fases:
• dos 10 a 12 – adolescência precoce;
• dos 13 a 15 – adolescência média;
• dos 16 a 20 – adolescência tardia.
O ritmo acelerado de crescimento nesta fase é
consequência da secreção de hormona de crescimento e dos esteróides sexuais (estradiol e
testosterona).
A paragem do crescimento, evidenciada pelo
encerramento epifisário, é influenciada pela acção
das hormonas sexuais (testosterona e estrogénios),
parecendo ser os estrogénios os responsáveis pelo
encerramento das cartilagens de crescimento em
ambos os sexos.
À medida que o amadurecimento sexual
avança, a aceleração do crescimento diminui. Por
este motivo, na avaliação do crescimento do
adolescente, deve relacionar-se a sua altura e idade
com o seu estádio de desenvolvimento sexual e a
idade óssea, para se poder determinar a potencialidade de crescimento.
Assim, um jovem pré-adolescente de 12 anos,
com altura no percentil 3 (P3), mas sem manifestações pubertárias, tem maior potencialidade
de crescimento do que outro com a mesma altura,
mas desenvolvimento mais acentuado dos caracteres sexuais secundários.
O aumento estatural durante a adolescência
equivale a 20-25% da altura final do adulto; tal
resulta, em primeiro lugar, do crescimento dos
membros inferiores e, em segundo lugar, do
crescimento do tronco. Esta situação pode ser
traduzida ao estilo lúdico – pela verificação do
seguinte: começam por deixar de servir os sapatos,
depois as calças e, por fim, as camisolas.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento
Como resultado deste importante crescimento
do tronco, é frequente o aparecimento ou
agravamento de desvios da coluna – escoliose do
adolescente e cifose juvenil. Por este motivo, o
exame da coluna deve sempre fazer parte da observação
do adolescente.
As diferenças individuais no que respeita ao
crescimento em estatura, da sua normalidade, e da
forma como se relacionam com a maturação
sexual, devem ser transmitidas ao adolescente de
forma a reduzir ao mínimo as preocupações que
habitualmente surgem nesta fase de rápidas e
muito relevantes transformações corporais.
As preocupações com a altura surgem quando
o adolescente se compara com os seus pares no seu
grupo de referência, sendo mais frequente no
rapaz de estatura baixa e nas raparigas com
excesso de altura.
O ganho de peso corresponde a cerca de 50%
do peso adulto final.
O ritmo de aceleração do ganho em peso é
semelhante ao do ganho em altura, sendo que a
curva de velocidade de crescimento se inicia 1 ano
e meio mais precocemente e com menor intensidade na rapariga do que no rapaz.
O pico de velocidade máxima em ganho de
peso, ocorre cerca de 6 meses após o pico de
crescimento em estatura nas raparigas, enquanto
nos rapazes coincide no tempo.
No sexo masculino, a elevação ponderal pode
chegar aos 6,5 Kg – 12,5 Kg por ano, em média 9,5
Kg/ano, fazendo-se sobretudo à custa do aumento
da massa muscular. O número de células
musculares aumenta cerca de 14 vezes desde os 5
aos 16 anos, e as dimensões das células aumentam
até quase ao final da 3ª década de vida sob acção
dos androgénios. Por esta razão o homem tem, em
regra, mais 30% de massa muscular que a mulher.
O pico do crescimento muscular coincide com
o pico de velocidade máxima de peso e de altura.
No sexo feminino o aumento de peso é cerca
5,5 - 10,5 Kg/ano, em média 8,5 Kg/ano, fazendose fundamentalmente por deposição de gordura
sob a influência de estrogénios. Também se verifica
acréscimo da massa muscular, mas em menor grau
do que no sexo masculino. Este facto é devido ao
aumento do volume das células musculares, sem
aumento do número das mesmas.
A deposição de gordura subcutânea na fase
217
pré-adolescente ocorre lentamente nos dois sexos,
diminuindo na fase do pico de crescimento, e
chegando a ser praticamente nula no sexo masculino. Após esta fase, a deposição de gordura
volta a aumentar, sendo então mais acentuada nas
raparigas do que nos rapazes.
As preocupações com o peso surgem no
adolescente quando o mesmo estabelece comparação com os seus pares; nas raparigas é mais
frequente a preocupação com o excesso de peso
(sinto-me gorda…), enquanto nos rapazes com a
escassez de musculatura (tenho pouco músculo…).
Crescimento de órgãos e sistemas
Na adolescência verifica-se o crescimento de
vários órgãos, tais como coração, pulmões, fígado,
baço, rins, assim como de glândulas: pâncreas,
tiróide, suprarrenais, etc.; no tecido linfóide, por
outro lado, verifica-se involução.
Do crescimento do tecido ósseo resulta,em
diversas regiões:
– Aumento da estatura (o de maior magnitude)
– Aumento discreto dos ossos da cabeça e face,
com consequente modificação da expressão facial,
essencialmente devido à pneumatização dos seios
frontais;
– Crescimento do nariz e maxilar superior;
– Aumento da distância interescapular e do
diâmetro transversal do tronco, mais marcado no
sexo masculino, devido ao facto de as células
cartilagíneas das articulações do ombro responderem selectivamente ao aumento da testosterona;
– Aumento da distância intertrocanteriana no
sexo feminino (alargamento da cintura pélvica)
nas raparigas devido à maior sensibilidade das
células cartilagíneas da articulação coxo-femoral
ao aumento dos estrogénios.
Assim, verifica-se : 1) aspecto de ombros largos
tipicamente masculino, com relação diâmetro
biacromial/diâmetro bi-ilíaco mais acentuada no
rapaz; 2) aspecto de anca larga tipicamente
feminino com relação diâmetro biacromial/
diâmetro bi-ilíaco menos acentuada na rapariga.
No sistema nervoso central ocorre uma verdadeira reconstrução do cérebro. Do início da
puberdade até aos 15 anos desenvolvem-se sobretudo as regiões cerebrais ligadas à linguagem; este
período é, por isso, ideal para a aprendizagem de
218
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
línguas. O cérebro da rapariga amadurece mais
cedo do que o do rapaz. Os estrogénios têm um
papel importante nesta mudança.
No rapaz o amadurecimento é mais tardio, o
que é explicável pela síntese mais tardia dos
estrogénios a partir da testosterona. A maior parte
das alterações do cérebro ocorre no córtex préfrontal – área responsável pelo planeamento a
longo prazo, pelo controlo de emoções e pelo
sentido de responsabilidade. Esta área desenvolver-se-á até por volta dos 20-25 anos. Por este
motivo o adolescente na hora de tomar uma
decisão nem sempre está apto para entrar em conta
com as informações de que precisa para o fazer
correctamente. Não se trata, pois, duma simples
oposição aos pais, mas sim duma limitação biológica.
No que respeita aos olhos verifica-se um
aumento maior no seu eixo sagital, o que justifica
o desenvolvimento mais frequente da miopia
durante a fase de crescimento rápido pubertário.
Sob a influência da testosterona, a actividade
da eritropoietina aumenta, o que explica, no rapaz,
valores mais elevados do número de eritrócitos ,
do hematócrito e da concentração de hemoglobina.
A pressão arterial sofre um aumento consequente às alterações fisiológicas do sistema
cardiovascular próprias deste período, nomeadamente expansão do volume plasmático, aumento
do débito cardíaco e da resistência vascular
periférica, com estabilização da frequência cardíaca. A avaliação da pressão arterial deve constituir uma rotina da consulta de adolescentes de
modo a permitir um diagnóstico precoce de
hipertensão arterial.
Desenvolvimento biológico
À componente biológica das transformações
características da adolescência dá-se o nome de
puberdade. Assim, puberdade não é sinónimo de
adolescência, mas apenas uma parte integrante da
mesma; trata-se, pois, dum epifenómeno da adolescência, traduzido fundamentalmente pela
aquisição da capacidade de reprodução.
Caracteriza-se por:
1. desenvolvimento do aparelho reprodutor,
objectivado:
• pelo aparecimento de caracteres sexuais
secundários – botão mamário, aumento dos
testículos e pénis e desenvolvimento do pêlo
púbico e axilar e;
• pela conquista da capacidade reprodutora;
2. aceleração da velocidade de crescimento –
pico de crescimento pubertário
3. alterações da composição corporal resultantes:
• do desenvolvimento esquelético, muscular,
modificação da quantidade e da distribuição da
gordura corporal;
• do desenvolvimento dos diferentes órgãos e
sistemas, nomeadamente dos aparelhos respiratório e cardiocirculatório, com aumento da
força e resistência física.
De facto, não se sabe o que realmente desencadeia a puberdade. Num determinado momento
do amadurecimento global do organismo, o córtex
cerebral gradualmente começa a emitir estímulos
para receptores hipotalâmicos produtores de
polipéptidos – factores libertadores – os quais
promovem, ao nível da hipófise anterior, a
produção de gonadotrofinas hipofisárias. Estas,
pela via sanguínea, vão estimular as gónadas
femininas e masculinas com consequente produção de hormonas sexuais as quais, em conjunto
com os androgénios suprarrenais, vão promover
as diferentes alterações orgânicas, finalizando a
diferenciação sexual (iniciada in utero) e o crescimento estaturo-ponderal.
Nos últimos 100 anos, devido à melhoria das
condições de vida, nomeadamente no que se refere
à nutrição, tem-se verificado um aumento da
estatura final com antecipação da idade da menarca. A este fenómeno evolutivo , observado
principalmente a partir do início do século XIX,
chama-se aceleração secular do crescimento. Nas sociedades ditas desenvolvidas ou industrializadas
de hoje tal fenómeno parece ter terminado pois,
nas últimas décadas, não se têm observado
mudanças nos parâmetros de crescimento e de
maturação biológica.
A variabilidade individual e populacional
existente – não só na idade de início da puberdade,
mas também na duração, sequência, combinação e
dimensão das diferentes modificações corporais
– parece depender de vários factores, nomeadamente, carga genética, meio ambiente, nutrição,
padrão sócio-económico e estimulação sensorial.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento
No sexo feminino a puberdade pode ter início
entre os 10-13 anos (em média aos 11 anos). No
sexo masculino as alterações surgem mais tardiamente, começando entre os 11-14 anos (em
média aos 12 anos).
Enquanto alguns jovens têm o seu desenvolvimento completo em 2-3 anos, outros têm-no em
4-5 anos.
Assim, num grupo de adolescentes com a
mesma idade cronológica, pode haver:
– jovens em que ainda não se começou a verificar sinais de puberdade;
– jovens com amadurecimento sexual já iniciado, ou até mesmo completo.
O desconhecimento da normalidade desta
ocorrência pode causar grande ansiedade ao
adolescente e preocupação para a família, levando
a situações de instabilidade e desconforto psíquico.
Desenvolvimento
e maturação sexual
Na puberdade a maturação sexual inclui o desenvolvimento das gónadas, dos órgãos da reprodução e dos caracteres sexuais secundários.
A designação de gonadarca refere-se ao aumento
da glândula mamária, útero e ovários na rapariga,
e ao aumento dos genitais externos – testículos e
pénis no rapaz; tal se deve, respectivamente, à
elevação dos níveis dos estrogénios na rapariga, e
dos androgénios no rapaz. Na rapariga, a menarca
ou aparecimento da primeira menstruação constitui
um marco importante do desenvolvimento sexual.
O termo adrenarca refere-se ao aparecimento
de pelos púbicos, axilares e faciais devido ao
aumento dos androgénios suprarrenais.
Todos estes dois fenómenos estão interligados
verificando-se uma associação no seu tempo de
aparecimento.
No sexo feminino
A primeira manifestação da puberdade é o
aparecimento do botão mamário (cerca dos 9 anos)
ou telarca; inicialmente unilateral, o aparecimento
de tal transformação no lado oposto surge
geralmente cerca de seis meses depois; pode haver
dor local e, nalguns casos, a telarca pode ser
precedida de aumento da estatura. No mesmo
ano, em regra, aparece o pêlo púbico.
219
Nesta fase, a jovem muitas vezes interroga-se
acerca da sua nova imagem.
No que respeita ao desenvolvimento mamário,
cabe referir algumas possíveis alterações associadas sem significado patológico, tais como:
– Assimetria mamária
Considerada fisiológica no começo do desenvolvimento mamário, em cerca de 25% dos jovens
aquela mantém-se bem notória na idade adulta.
Havendo repercussão psicológica, está indicada a
terapêutica cirúrgica, mas somente após terminada a puberdade;
– Hipertrofia mamária
É muito frequente, podendo ser exuberante e
causar problemas físicos (dores no pescoço, defeito
postural, parestesias) e psíquicos. No final da
puberdade tende a diminuir; contudo, se os problemas psicológicos se mantiverem, com tendência para isolamento e diminuição da auto-estima,
estará também indicada a terapêutica cirúrgica
uma vez completado o crescimento.
– Hipoplasia mamária
O tamanho reduzido das mamas pode ser
constitucional, ou consequente a problemas nutricionais ou a défice hormonal. A terapêutica cirúrgica, quando indicada, também só deve ser
efectuada no final da puberdade.
Simultaneamente modificam-se útero, ovários,
trompa, vagina e vulva.
Os ovários crescem progressiva e lentamente
desde o nascimento, verificando-se um aumento
superior nos meses que antecedem a menarca.
Nesta fase, são várias as alterações dos genitais
externos da adolescente:
– O comprimento da vagina aumenta, com
espessamento, protrusão e enrugamento dos
pequenos lábios e desenvolvimento dos grandes
lábios.
– O pH da vagina diminui devido a produção
do ácido láctico pelos bacilos de Doderlein que, a
partir de agora passam a fazer parte da flora
vaginal normal.
– Surge o corrimento vaginal de cor clara e
cheiro inespecífico; trata-se da leucorreia fisiológica da adolescência, também resultado da
estimulação estrogénica, com maior secreção do
muco cervical e maior descamação das células da
mucosa vaginal.
A menarca é um acontecimento tardio da pu-
220
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
berdade feminina. Ela ocorre após o pico de
velocidade máxima de crescimento, já na fase de
desaceleração da curva de crescimento.
As adolescentes crescem em regra 3-4 cm nos
2-3 anos que se seguem à menarca.
O tempo que medeia entre o aparecimento do
botão mamário e a menarca varia entre 2-5 anos.
Os primeiros ciclos menstruais são anovulatórios, o que justifica a irregularidade menstrual
típica dos dois primeiros anos pós-menarca.
Após este período, na sequência do amadurecimento do eixo hipótalamo-hipofisário e maior
número de ciclos ovulatórios, os ciclos tendem a
tornar-se regulares.
O aparecimento do pêlo púbico surge cerca de
seis meses após a telarca. Os pêlos axilares aparecem mais tarde, acompanhados do desenvolvimento das glândulas sudoríparas e consequente
aparecimento do odor e da transpiração característica do adulto.
No sexo masculino
A primeira manifestação de puberdade no rapaz,
por vezes não perceptível, é o aumento do volume
testicular, seguindo-se o crescimento do pénis,
primeiro em comprimento e depois em diâmetro.
O aparecimento do pêlo púbico ocorre mais
tarde; e os pêlos axilares, faciais e do restante
corpo, aparecem depois.
A sequência habitualmente é:
– pêlo púbico, cerca dos 10-11 anos;
– pêlo axilar, mais ou menos aos 12-13 anos
– pêlo do restante corpo, mais ou menos aos 1415 anos.
A sequência do aparecimento dos pêlos faciais
é a seguinte: primeiramente nos lábios superiores
junto às comissuras e, posteriormente, em toda a
extensão da parte superior do lábio superior; posteriormente na porção central , debaixo do lábio
inferior; e, por fim, estendendo-se a toda região
mentoniana.
Tal como no sexo feminino, o desenvolvimento
das glândulas sudoríparas acompanha o crescimento do pêlo axilar.
A próstata, glândulas bulbo-ureterais e vesículas seminais também apresentam crescimento
acentuado na puberdade.
A espermarca – idade da 1ª ejaculação – ocorre
na fase de aceleração da curva de crescimento em
estatura, coincidindo com a fase ascendente da
curva.
A mudança de voz – típica do sexo masculino,
mas tardia ,surge como consequência do aumento
das dimensões da laringe por acção dos androgénios.
Ao nível da glândula mamária verifica-se um
aumento do diâmetro e da pigmentação da aréola
mamária. Contudo, numa proporção importante
de adolescentes (cerca de 1/3), verifica-se concomitantemente aumento do tecido mamário –tratase da ginecomastia pubertária; é bilateral e por
vezes dolorosa, restringindo-se ao aumento do
tecido mamário sub-areolar; mede geralmente 23 cm de diâmetro, no máximo 4 cm. Móvel e de
consistência firme, ocorre transitoriamente (meses)
na fase de crescimento estatural rápido, não sendo
aderente à pele nem ao tecido celular subcutâneo.
Deve-se ao aumento dos níveis dos androgénios
testiculares.
É importante tranquilizar o adolescente, informando-o a esse respeito.
A ginecomastia que não regride após 24 meses,
provavelmente permanecerá inalterada ao longo
dos anos.
O aumento da glândula mamária superior a 4
cm, designado macroginecomastia, tem frequentemente importantes repercussões fisiológicas no
adolescente, pois a mama adquire características
femininas. A regressão espontânea nestes casos é
rara, podendo estar indicada terapêutica cirúrgica.
O diagnóstico diferencial da ginecomastia fazse com:
– Adipomastia
Trata-se de aumento da mama por acumulação
de tecido adiposo sub-areolar. É comum em jovens
obesos pré-púberes ou púberes
– Ginecomastia patológica
Contrariamente à pubertária, é rara.
Deverá admitir-se situação patológica sempre
que a mesma ocorra antes do início da maturação
sexual, ou após o final da mesma. A anamnese
deve incluir um inquérito sobre a ingestão de
drogas; o exame físico deverá valorizar, designadamente, a palpação abdominal e os genitais
externos (fígado e testículos); para esclarecimento
da situação poderá haver necessidade de exames
complementares.
As principais causas de ginecomastia patológica são:
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento
221
FIG. 1
FIG. 2
Desenvolvimento Pubertário Feminino: Critérios de Tanner.
Desenvolvimento Pubertário Masculino: Critérios de Tanner.
– Drogas:
hormonas, fármacos psicoactivos, agentes cardiovasculares, antagonistas de testosterona, tuberculostáticos, citostáticos, drogas ilícitas,etc.;
– Doenças endocrinológicas:
hipogonadismo, hipotiroidismo, tumores da
hipófise, supra-renal, testículos, e do fígado.
– Doenças crónicas:
hepática (cirrose, hepatoma), renal (insuficência renal, tumor, etc.).
– Desenvolvimento mamário na rapariga (M)
– Desenvolvimento dos genitais externos no
rapaz (G)
– Desenvolvimento do pêlo púbico em ambos
os sexos (P).
Avaliação da maturação sexual
A sequência do desenvolvimento dos caracteres
sexuais secundários foi sistematizada por Tanner
(estádios de Tanner) entrando em conta com os
seguintes parâmetros:
A classificação compreende 5 estádios (correspondentes a outras tantas características) referentes a cada parâmetro (de 1 a 5), e designados como
se segue: M1 a M5, G1 a G5 e P1 a P5. As Figuras 1
e 2 são elucidativas. (DGS, 2002)
Por definição o estádio 1 corresponde à inexistência de desenvolvimento dos caracteres
sexuais secundários e o estádio M2/G2 ao aparecimento de botão mamário / aumento do volume
testicular > 4 ml (este último avaliado com o
chamado orquidómetro de Prader (conjunto de
222
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
esferas de volumes variáveis) e eixo maior do
testículo > 2,5 cm (medido com uma simples
régua).
Na rapariga, a menarca define o estádio P5. A
avaliação da maturação da glândula mamária, dos
genitais externos e do pêlo púbico deve ser feita
individualmente, pois poderá não se verificar
concordância entre estádios. Por exemplo: uma
jovem pode estar em estádio 3 da mama e 2 de pêlo
púbico – isto é M3 P2 e um rapaz pode estar em
estádio 2 de genitais externos e estádio 1 de pêlo
púbico – isto é G2 P1.
A classificação dos estádios de desenvolvimento mamário depende das características e não
do tamanho das mamas, o qual é determinado por
factores genéticos e nutricionais.
Habitualmente a avaliação é efectuada durante
o exame físico do jovem, em ambiente de privacidade e após prévio esclarecimento e consentimento do mesmo. Quando o adolescente recusar a
observação pode optar-se pela auto-avaliação, em
que o adolescente indica num esquema/figura o
estádio em que se encontra. Regra geral a correspondência entre a auto e a hetero-avaliação é boa,
excepto se se tratar das fases iniciais do desenvolvimento masculino.
De facto, os critérios de Tanner constituem um
instrumento de avaliação muito importante pelas
seguintes razões:
1. Existe uma relação directa entre determinado
estádio de maturação sexual e determinada fase de
crescimento e desenvolvi-mento, o que permite
avaliar de uma forma correcta toda a dinâmica do
crescimento na adolescência.
Exemplificando: no sexo feminino o pico de
crescimento inicia-se em M2, atinge a velocidade
máxima em M3, e desacelera-se em M4 ,fase em
que ocorre a menarca, parando o crescimento em
M5; no sexo masculino o pico de crescimento
começa em G3, atinge a velocidade máxima em G4
e desacelera em G5.
Assim, esta diferença temporal no pico de
crescimento associado ao facto de a velocidade de
crescimento máxima durante o pico pubertário ser
menor nas raparigas, explica a diferença média de
cerca de 13 cm, existente entre indivíduos do sexo
masculino e feminino.
Na prática clínica estes aspectos são importan-
tes, nomeadamente quando se pretende esclarecer
os jovens quanto a dúvidas ou problemas relacionados com prática desportiva – nomeadamente,
tipo de actividade desportiva mais aconselhada,
maior risco de lesões por exercício físico eventualmente excessivo e não adequado relativamente a
determinado período de crescimento.
2. Uma vez que a composição corporal do
adolescente varia em função da sua maturação
sexual, os estádios de Tanner devem ser utilizados,
não só para avaliar e monitorizar o desenvolvimento pubertário, o pico de velocidade de crescimento e a idade da menarca, mas também para
interpretar valores laboratoriais, como por exemplo, hemoglobina, hematócrito, ferritina e fosfastase alcalina.
3. Estando as necessidades nutricionais dos
adolescentes directamente relacionadas com o
crescimento e sua variação dentro da normalidade, as necessidades poderão variar significativamente de jovem para jovem. Durante o pico de
velocidade máxima de crescimento existe um
aumento das necessidades proteico-calóricas e
consequentemente do apetite, originando uma
maior ingestão alimentar.
Assim, o jovem do sexo masculino durante o
pico de crescimento – em estádio 3 e 4 – terá necessidade de maior suprimento proteico e energético,
do que um adolescente em estádio 1; neste último,
de acordo com os critérios de maturação sexual,
ainda não terá atingido fase a que corresponde o
pico de crescimento e as necessidades nutricionais
máximas.
No sexo feminino, se já tiver ocorrido a menarca , tal significa que a adolescente já está em
fase de desaceleração de crescimento, o que
implicará, por um lado, redução de alguns nutrientes indicados na fase de pico de crescimento e, por outro, aumento de ingestão de outros,
como por exemplo, ferro e ácido fólico, tendo em
conta as perdas relacionadas com a menstruação.
O médico pediatra, o médico de família e o
profissional de saúde em geral deverão reconhecer todas as alterações, suas variações dentro da
normalidade e respectivas implicações na saúde
do adolescente; deste modo, aqueles estarão em
condições de informar, esclarecer e ajudar o jovem
e seus familiares.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento
Desenvolvimento psicossocial
Generalidades
No adolescente, a par do desenvolvimento biológico, verifica-se igualmente evolução nas áreas
psicológica e social. É nesta fase que uma pessoa
se torna física e psiquicamente madura e capaz
de se tornar independente.
Embora alguns dados recentes demonstrem
que cerca de 75% dos adolescentes e suas famílias
têm uma experiência de transição considerada sem
problemas, muitos descrevem este período como
sendo um período de estresse e conflitos.
Embora as alterações biológicas que ocorrem
nesta fase da vida sejam universais, as modificações ligadas ao desenvolvimento psicossocial
são vividas de modo diferente de indivíduo para
indivíduo em função do tipo de família e de
sociedade em que os mesmos estão inseridos.
Nas sociedades primitivas a passagem da
infância para a idade adulta é facilitada pelos
rituais, definindo o momento a partir do qual o
adolescente fica capacitado para desempenhar o
papel de adulto.
Nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas
tecnicamente o amadurecimento biológico (tipificado por ex. com a idade cada vez mais precoce da
menarca), assim como o desenvolvimento intelectual, são atingidos cada vez mais cedo. Pelo
contrário, a maturidade social é alcançada cada vez
mais tarde; verifica-se mesmo uma tendência para
os jovens permanecerem na dependência paterna,
nomeadamente no que se refere ao apoio financeiro:
é o contexto da chamada geração canguru.
Nas regiões com desenvolvimento precário –
por vezes determinadas áreas de países desenvolvidos e altamente industrializados – quanto
mais baixo for o estrato sócio-económico do indivíduo, menor duração terá o período da adolescência, uma vez que, ao ser obrigado a trabalhar
para sobreviver, o adolescente se vê forçado a
assumir as obrigações da adultícia, mesmo antes
de ter terminado o seu desenvolvimento físico.
Etapas do desenvolvimento psicossocial
À semelhança do desenvolvimento da criança, o
adolescente também passa por etapas no desenvolvimento biopsicossocial.
Considerando a adolescência arbitrariamente
223
dividida em 3 etapas – precoce, média e tardia –
em cada uma delas podem ser consideradas,
respectivamente, as características de ordem psicológica e social em correspondência com as características de ordem física; salienta-se, a propósito,
que alguns autores consideram a divisão em
subgrupos etários, diversa da adoptada pela
(OMS) (Quadro 1).
Impacte da puberdade no adolescente
As mudanças físicas operadas são vividas pelos
jovens com ansiedade e, muitas vezes, e de uma
forma aparentemente desordenada, levando o
adolescente a perder a noção do seu esquema
corporal. Na prática fica como que desajeitado,
derrubando e pisando tudo e todos. Concomitantemente com estas alterações biológicas do pico
de crescimento, poderão surgir fadiga e hipersónia.
Os pais, nesta fase, deverão reconhecer que o
adolescente passa a ter necessidade de mais sono,
promovendo horas de deitar regulares, e tentando
reduzir ao mínimo distracções na cama (TV,
telemóveis, jogos de computador).
Nesta fase, uns crescem mais, outros menos,
parecendo que o corpo fica parado enquanto a
“cabeça vai amadurecendo” progressivamente.
Quanto menor a auto-estima, mais defeitos o
jovem assume e encontra em si próprio.
As raparigas têm mais tendência para partilhar
as suas preocupações, e os rapazes para passar por
uma fase de timidez que por vezes os leva ao
isolamento.
Tanto nos adolescentes “com maturação mais
precoce” como naqueles com “maturação mais
tardia” existe maior probabilidade de surgirem
perturbações da imagem corporal. Contudo, os
adolescentes “precoces” têm maior tendência para
problemas de saúde mental (depressão), início
mais precoce de actividade sexual, (nomeadamente relações sexuais com número variável de
parceiros) e para a marginalidade.
A rapariga quer ter o seu grupo de amigas,
sendo que a tendência poderá indiciar algo anómalo quanto a comportamento.
O rapaz, nesta fase, tipicamente “com muita
hormona e pouco cérebro”, apresenta mais modificações físicas do que comportamentais, fazendo
valer o seu ponto de vista, mesmo que ainda não
o tenha.
224
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Adolescência: características físicas, psicológicas e sociais
FÍSICAS
PSICOLÓGICAS
SOCIAIS
Precoce: 10-13A (F); 11-14A (M)
Média: 13-17A (F); 14-17A (M)
Tardia: 17-20 A (M e F)
– Mudanças biológicas
– Telarca
– Pubarca
– Caracteres sexuais
secundários
– Menarca
– Transformações corporais já
ocorridas
– Modificação de composição
corporal; incremento de
massa gorda e de massa
magra
– Término do crescimento e
maturação
– Atinge-se a composição
corporal final
Precoce
Média
Tardia
– Reformulação do esquema e
da imagem corporal
– Busca de identidade
– Tentativa de independência,
rebeldia
– Má aceitação dos conselhos
dos adultos
– Desenvolvimento do
pensamento formal
– Preocupação pela aparência
– Grande influência do exterior
– Continua o processo de
separação dos pais
– Desenvolvimento intelectual,
visão crítica da sociedade e
busca de novos valores
– Predomínio do pensamento
formal
– Consolida-se a identidade
– Separação final do núcleo
familiar
– Responsabilidades e papéis
de adulto asumidos
Precoce
Média
Tardia
– Interesse reduzido pelas
actividades paternas
– Relações interpessoais
sustentadas por grupos de
pares do mesmo sexo
– Sexualidade: comportamento
exploratório
– Ambivalência entre busca de
identidade e
responsabilidade
– Vinculação principal com o
grupo
– Comportamentos de risco
por necessidade de
experimentar o que é novo e
de desafiar o perigo
– Sexualidade: necessidade de
experimentação sexual;
relações mais estáveis
– Retoma do interesse pelas
actividades paternas
– Estabelecimento da
identidade sexual com
relação mais madura e
estável
– Momento de escolha
profissional
Abreviaturas: A = anos; M = sexo masculino; F = sexo feminino
As raparigas dão maior importância aos
relacionamentos e os rapazes ao desempenho; no
entanto, ambos se consideram omnipotentes e
invulneráveis.
Porém, ter capacidade física não significa ter
maturidade psíquica, o que se torna verdadeiramente problemático.
Com o aparecimento do primeiro amor – tipicamente de duração inversamente proporcional à
intensidade emocional – surge muitas vezes a
primeira desilusão e, posteriormente, o sentimento
depressivo transitório.
A expressão “estar apaixonado” nos dias de
hoje quase que ficou reduzida ao simples “fazer
amor”. Tendo a sexualidade sido alvo de repressão
e interdição, tornou-se nos nossos dias um aspecto
explorado e exibido.
Na fase de adolescência precoce e média em
que é fundamental a identificação com o grupo de
pares, o jovem tem necessidade de fazer o mesmo
que os outros, levando-o a praticar uma sexualidade realmente desprovida de afectos, bastantes
vezes “ensombrada” por gravidez ou doença
sexualmente transmissível (DST).Cabe referir, a
propósito, que cerca de 25% dos adolescentes que
se tornam sexualmente activos, adquirem DST.
De facto, nos dias de hoje, a actividade sexual
começa cada vez mais cedo, o que pode ser
explicado pelos seguintes factos:
• início mais precoce da puberdade contra-
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento
pondo-se à idade mais tardia da independência económica;
• ausência de família contentora, com regras,
valores e boas imagens de referência com as
quais o jovem se possa identificar
• características do próprio adolescente –
indestrutibilidade
• pressão do grupo – “se os outros fazem….”
• diferentes influências sócio-culturais
• influência dos meios de comunicação social
– com a difusão de imagens valorizando as
relações casuais, sem protecção e com vários
parceiros.
Importância da família e dos grupos de pares
As crianças e os adolescentes, aprendem com o que
vivem.
Assim, médico que cuida de adolescentes
deverá reconhecer a importância da compreensão
da dinâmica familiar e do potencial impacte dessa
dinâmica nos sintomas do adolescente. Este aspecto é particularmente importante quando o
médico está a avaliar o adolescente do ponto de
vista psicológico.
Nesta perspectiva é importante que o referido
médico caracterize o tipo de família: se se trata de
tradicional, com pai como único elemento de
sustento,ou com os dois, pai e mãe empregados,
fora de casa; ou se se trata duma família mono
parental, cabendo avaliar o papel do outro progenitor.
De facto, o problema do adolescente poderá ser
uma replicação do problema dos pais. O absentismo escolar pode , por ex., ser modelado pelos
hábitos laborais dum pai alcoólico com faltas
frequentes ao emprego. O adolescente obeso, poderá ter pais obesos, com pouco tempo ou interesse em providenciar em casa refeições adequadas e
programar actividades que envolvam exercício
físico.
O estrato socioeconómico e cultural da família
pode igualmente ajudar o médico a compreender
os meios de desenvolvimento do adolescente. Nas
classes mais elevadas os jovens viajam mais, têm
mais actividades culturais e comunitárias. Na
classe média os adolescentes têm mais actividades
desportivas e grupos de jovens. Nas classes mais
baixas o mais frequente é não terem qualquer tipo
de actividade estruturada.
225
No que respeita a diferentes culturas sabe-se
que nalgumas têm menos conflitos parentais ao
longo desta fase da vida; habitualmente nas culturas menos diferenciadas e menos tecnológicas
existem menos conflitos.
Nas primeiras fases do seu desenvolvimento, o
jovem procura, de uma forma natural, fora do
agregado, outras imagens ou figuras adultas de
referência. Grupos de voluntários, clubes desportivos, actividades recreativas e grupos religiosos são
meios sociais através dos quais os jovens têm a
possibilidade de desenvolver esses modelos de
identificação constituindo um bom factor protector no seu desenvolvimento psicossocial.
No que respeita ao estresse no seio familiar, a
presença do adolescente pode ser causadora do
mesmo, sendo que muitas vezes existem outras
fontes de tensão que deverão ser devidamente
valorizadas pelo clínico: problemas conjugais,
ausência frequente de um dos progenitores, insegurança no emprego, situação de doença, nomeadamente psiquiátrica, abuso de drogas, um
membro da família a cumprir pena de prisão;
todas estas situações podem ter, de facto, consequências graves na saúde mental do adolescente.
Para além da família, os pares constituem uma
importante influência para o adolescente, sendo
que na construção do relacionamento com os
pares, a maioria dos adolescentes não pretende, de
uma forma intencional, isolar-se dos pais.
Os jovens separando-se dos membros da sua
família (pais), em regra aproximam-se dos pares
do mesmo sexo. O adolescente precoce esforça-se
por ser aceite entre os seus grupos de pares os
quais exercem diariamente uma poderosa influência, não só quanto a comportamentos saudáveis,
mas também quanto aos não saudáveis; salientase que álcool, tabaco, uso de drogas ilícitas, são
inicialmente experimentados no contexto dos
grupos de pares.
Como se pode depreender, o decréscimo do
envolvimento dos pais, a sua falta de comunicação, de diálogo e a falta de disciplina, contribuem
para o grau de influência que os pares têm sobre
um jovem adolescente.
Os clínicos devem chamar a atenção dos pais
para a importância do seu papel em minorar a
influência negativa dos pares e encorajá-los, bem
como à família, a adoptar uma auto-imagem posi-
226
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tiva no adolescente através de reforço positivo,
elogio e de aceitação. O elogio deverá ser dirigido
não só ao adolescente, mas também a outras
pessoas que figuram na sua vida, tais como pares
e professores. Os jovens precisam de ouvir os pais,
e outros adultos a falar positivamente de outras
pessoas em geral, pois essa é uma forma de
aprendizagem da tolerância.
A presença de doença crónica durante a
adolescência pode, independentemente das manifestações próprias da doença, interferir directamente no comportamento dos jovens. Entre as
principais alterações observam-se: interrupção na
consolidação do processo de separação dos pais
comprometendo a aquisição de autonomia, modificação da imagem corporal, limitação das actividades com o grupo de pares e dificuldade no
desenvolvimento da identidade. Todos estes
aspectos podem manifestar-se através de comportamentos de risco devido à consequente baixa
auto-estima, segregação do grupo, absentismo
escolar, disfunção sexual e sintomas depressivos.
BIBLIOGRAFIA
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Art Reviews 2000; 11: 51-68
Tanner JM, Growth at Adolescence. Oxford, England: Blackwell
scientific Publications, 1962
44
ADOLESCÊNCIA
E COMPORTAMENTO:
ABORDAGEM CLÍNICA
Maria do Carmo Silva Pinto
Síndroma da adolescência normal
As manifestações exteriores do comportamento
dos adolescentes são diferentes conforme as
diversas culturas, mas as bases, bem como as
atitudes e ideias manifestas, são basicamente as
mesmas em todo o mundo. Daí a descrição da
chamada síndroma da adolescência normal a qual
integra as várias características psicológicas do
adolescente:
1. Busca da identidade e de si próprio
2. Separação progressiva dos pais
3. Necessidade de grupo
4. Desenvolvimento do pensamento formal
5. Vivência temporal singular
6. Flutuações do humor
7. Comportamento contraditório
8. Evolução da sexualidade
9. Crises religiosas
10. Atitude social reivindicativa
Esta perspectiva permite ao clínico o conhecimento do desenvolvimento psicossocial do adolescente e uma maior compreensão dos comportamentos que o mesmo evidencia, com implicações
práticas por permitir evitar diagnósticos errados
e, por vezes, preconceituosos. As referidas características são analisadas a seguir.
1. Busca de identidade e de si próprio
Com o início da puberdade, as transformações
corporais vão-se sucedendo. Vive a perda do corpo
de infância (luto do corpo infantil), tendo que
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica
reformular o seu novo esquema corporal, o qual
constitui a representação mental que o indivíduo
faz de si mesmo, conduzindo mais tarde ao
sentimento de identidade.
Nesta fase, em que se modificam as relações
com o corpo, o pudor que o adolescente exibe deve
ser devidamente respeitado. O mesmo passa
longas horas fechado na casa de banho, olhandose ao espelho e sentindo necessidade de se afastar
fisicamente dos pais; por vezes torna-se mesmo
agressivo, antipático e até mesmo rebelde.
Os pais deverão perceber que os seus filhos
precisam desta mudança para que o desenvolvimento se processe de forma harmoniosa.
2. Separação progressiva dos pais
A separação progressiva dos pais tem início no
nascimento, mas só se concretiza na adolescência.
Ao contrário da infância em que a relação de
dependência é a relação normal, desejável e habitual entre pais e filhos, na adolescência, os pais
outrora considerados como seres ideais e super
valorizados, vão ser alvo de críticas surgindo a
necessidade de um afastamento (luto dos pais da
infância) que leva a uma maior autonomia e,
consequentemente, à busca de outras pessoas que
constituam figuras de identificação.
Com o crescimento físico dos filhos e conquista
da sua independência, os pais sentem-se muitas
vezes afastados, excluídos e até mesmo menos úteis.
Para que tal não aconteça, o estabelecimento de
limites pelos pais é fundamental nesta fase, pois irá
permitir que o jovem compreenda a diferença entre
liberdade e permissividade, reduzindo substancialmente a tendência para comportamento de risco.
O clínico poderá ajudar os pais nesta fase da
vida dos seus filhos, esclarecendo-os de modo a
aceitarem a distância, mais física que psíquica.
3. Necessidade do grupo de pares
Na busca da sua individualidade, o adolescente
vai deslocar a dependência dos pais para o grupo
de companheiros e amigos no qual todos se identificam com cada um. O adolescente veste-se de
modo semelhante, tem gostos idênticos, pois a
aceitação revela-se na “obediência” a regras de
grupo. Esta saída do núcleo familiar e entrada para
o grupo com ulterior individualização é perfeitamente sadia, e até mesmo necessária, para um de-
227
senvolvimento harmonioso. Com efeito, a vinculação ao grupo pode favorecer o espírito de equipa
e o aparecimento de lideranças, o que será muito
saudável se persistir na idade adulta.
Nesta fase, a ambivalência dos familiares deve
ser evitada. Frases como “já estás suficientemente
crescido para…” seguidas de outras como “ainda
és muito criança para…” só contribuem para
tornar mais indefinidos os limites de actuação que
ajudam a promover uma autonomia responsável.
4. Desenvolvimento do pensamento formal
O desenvolvimento do pensamento formal (Piaget)
constitui, do ponto de vista cognitivo, uma das
características da adolescência.
O desenvolvimento intelectual fá-lo pensar,
pôr em causa e formular teorias. A capacidade de
intelectualização leva cada vez mais o adolescente
a preocupar-se com princípios éticos, problemas
sociais e a propor reformas que tornem o mundo
melhor.
Nesta fase ele sente muito a necessidade de ter
o seu próprio território (quarto, gaveta, armário,
diário), contribuindo para um reconhecimento da
sua identidade.
Neste período é importante o respeito pela
privacidade e confidencialidade, aspecto fundamental no atendimento e na relação médicodoente.
5. Vivência temporal singular
O critério tempo é muito peculiar na adolescência,
parecendo próximo o que é distante, e vice-versa.
Por exemplo, o adolescente ao ser alertado para
estudar para um exame no dia seguinte, é capaz de
responder – “ainda tenho muito tempo”, e contudo considerar “urgente ir comprar roupa nova
para levar à passagem de ano” daí a dois meses!
A esta característica, associa-se o imediatismo;
tal traduz uma incapacidade de conviver com a
frustração da espera a qual interfere com vários
factores da vida de relação e caracteriza a chamada
geração micro-ondas! Exemplifica-se com o que se
passa com a alimentação: preferência por alimentos prontos ou quase prontos, nem sempre os mais
adequados.
Esta forma singular de lidar com o tempo pode
interferir nas propostas terapêuticas. O jovem
obeso tem frequentemente tendência para desistir
228
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do plano terapêutico por este não ter resultados
rápidos e visíveis; interfere igualmente nas
propostas de prevenção – tomar atitudes hoje, para
prevenir coisas de amanhã – como por exemplo
anticonceptivos para evitar a gravidez –
praticamente impossível nesta fase da vida. Por
este motivo, a orientação preventiva é muito mais
eficaz quando envolve questões do presente – não
engravidar para não interromper todas as
actividades de que gosta (desporto, música, etc.) e,
sobretudo, o percurso saudável de adolescente.
6. Flutuações do humor
As flutuações do humor incluem múltiplas
variações de humor que vão desde crises depressivas, sentimentos de angústia, solidão
refugiando-se em si próprio, até às sensações de
euforia e sucesso, durante as quais o adolescente
se sente indestrutível, imortal e omnipresente.
É comum a adolescente, num dado momento,
encontrar-se triste e chorosa (após o terminar um
namoro ou uma nota má em exame) e momentos
depois já poder estar feliz, de conversa ao telefone,
falando com uma amiga, a planear novas
conquistas, tendo esquecido o episódio de insucesso escolar.
7 . Comportamento contraditório
A necessidade de o adolescente experimentar
diferentes papéis na busca da sua identidade de
adulto, faz com que, por vezes, tome atitudes profundamente contraditórias.Tal contradição é
considerada normal; contudo, adolescentes com
comportamentos rígidos permanentes deverão ser
alvo de preocupação, necessitando de acompanhamento. Nestes casos, o jovem poderá não estar a
beneficiar da liberdade necessária para experimentar e amadurecer de forma desejável.
8. Evolução da sexualidade
A sexualidade existe desde o início da vida intrauterina, na sua dimensão biológica, baseada em
genes, cromossomas, hormonas, gónadas,etc..
Na pré-adolescência a identidade de género
(sentido de feminilidade e masculinidade) já está
estabelecida.
Com o início da puberdade a energia sexual
transforma-se juntamente com as mudanças físicas
conduzindo à etapa genital adulta.
Na fase inicial da adolescência surgem os
caracteres sexuais secundários e, consequentemente a curiosidade acerca dessas mudanças.
É a fase das fantasias sexuais (paixões imaginárias,
sem contacto físico).
Na fase intermédia já está, em regra, completa a
maturação física. Aenergia sexual mais desenvolvida
leva ao maior interesse pelo contacto físico, sendo o
comportamento sexual de natureza exploratória. A
negação das consequências da actividade sexual é
típica e fruto da imaturidade, tornando esta fase a de
maior risco relativamente à probabilidade de ocorrência de doenças sexualmente transmitidas ou de
uma gravidez não desejada.
Na fase tardia o comportamento sexual tornase mais expressivo e estável, com relações íntimas
e trocas de afectos vividas com mais maturidade.
Na adolescência pode ocorrer transitoriamente
a proposta homossexual, a qual não é preditiva do
comportamento sexual futuro. Nem todos os
adolescentes que estão emocionalmente atraídos
por um indivíduo do mesmo género se envolvem
em actividade sexual. O jovem deverá ser informado da evolução que pode ter a sua identidade
sexual, de forma a podermos evitar, quer uma
auto-imagem negativa com risco de depressão e
suicídio, quer um sentimento de ansiedade
gerador de comportamentos anti-sociais (por ex.
uso de drogas).
Os pais deverão igualmente ser esclarecidos,
pois, na grande maioria reagem com vergonha e
não-aceitação, exibindo frequentemente casos de
psicossomatização.
9. Crises religiosas
Estas chamadas crises caracterizam-se por atitudes
de radicalismo, desde situações extremas de fé, até
ao ateísmo. O adolescente defende-as com grande
convicção, como se fossem realidades momentâneas. O confronto religioso está frequentemente
ligado à contestação de padrões vigentes no
momento. Muitos dos valores apregoados voltam
a ser reformulados já no final da adolescência,
persistindo depois na vida adulta.
10. Atitude social reivindicativa
Trata-se do conjunto de procedimentos ou atitudes
que o adolescente utiliza para reivindicar e contestar de forma a ser reconhecido por grupos de
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica
referência, como por exemplo, família, amigos,
escola e a própria sociedade.
Tais procedimentos ou atitudes são reforçados
por outras características do adolescente, já
descritas: tendência grupal, pensamento abstracto
e crítico, auto-afirmação e radicalismo.
A sociedade, por vezes sentindo como que
“uma ameaça”, um incómodo ou até mesmo uma
agressão, submete o adolescente a uma disciplina
e a um comportamento quase sempre ineficazes.
É importante que se tenha em consideração que o
jovem neste tipo de movimento não pretende
propriamente agredir, mas sim conquistar o seu lugar,
o que faz parte da sua caminhada para a adultícia.
Os adultos deverão, por conseguinte, ser mais
tolerantes, usando o diálogo e sabendo escutar a
opinião do adolescente como formas de diminuir
o conflito.
Abordagem clínica do adolescente
A abordagem clínica do adolescente, à semelhança
de outras áreas da Medicina, deve ser feita por
equipa multidisciplinar. Esta equipa deve ser
composta por médico – pediatra ou médico de
clínica geral, ginecologista, endocrinologista,
pedopsiquiatra, enfermeiro, dietista, assistente
social e outros profissionais (sociólogo, professor,
jurista,etc.). Não existindo equipa especialmente
criada para o efeito, o problema pode ser resolvido através duma boa parceria – menos formal –
entre especialistas e técnicos com a garantia de
manutenção de diálogo permanente.
Consulta do adolescente
O atendimento ao adolescente tem determinadas
particularidades:
– os pais deixam de ser os únicos interlocutores
– há necessidade de maior privacidade e confidencialidade como garantia de diálogo em
ambiente de confiança
– a consulta deve ser desburocratizada e de
fácil acessibilidade, e efectuada em espaço
próprio, separada da dos mais pequenos e
sem longas esperas.
A consulta propriamente dita contempla seis
etapas:
1ª – Entrevista com a família (anamnese)
229
2ª – Entrevista a sós com o adolescente
3ª – Exame físico do adolescente
4ª – Conversa com o adolescente
5ª – Nova entrevista com o adolescente e
família
6ª – Diagnóstico e actuação
A abordagem correcta do adolescente deve
englobar, para além dos dados da anamnese (incluindo anamnese psicossocial), o exame físico.
Nesta avaliação que, por este motivo se considera
global, deve ser estabelecida uma conversa aberta
durante a consulta de vigilância de saúde, de
forma a identificar, não só problemas de saúde,
mas também factores de risco.
Se a anamnese psicossocial não for realizada
existirá maior dificuldade na identificação precoce
de problemas, o que tem implicações na redução
da morbilidade.
Cabe referir que a doença, qundo ocorre, é
relacionada frequentemente com comportamentos
de risco. O comportamento de risco pode, com
efeito, trazer consequências trágicas. A causa mais
frequente de mortalidade na adolescência é
constituída pelos acidentes de viação os quais
estão, em cerca de metade dos casos, relacionados
com o consumo de álcool e drogas.
Como causas de morbilidade são referidas
síndromas relacionadas com o estresse e depressão, doenças do comportamento alimentar e elevadas taxas de doenças sexualmente transmissíveis.
Pode depreender-se que todos estes problemas
não são facilmente abordáveis no âmbito duma
“consulta de rotina”.
A entrevista deverá ser reservada para uma
ocasião em que o adolescente evidencie estado de
aparente estabilidade emocional (i.e. esteja “relativamente bem”), com o objectivo de obtenção do
máximo de informação com o mínimo de estresse.
A forma como se começa contribui de forma
decisiva para o resultado final. Sempre que
necessário, poderá realizar-se em mais que uma
consulta, para assim se obter melhor colaboração.
Contudo, se o jovem evidenciar situação de
crise quando se apresenta na consulta, ele deverá
ser atendido de forma a sentir-se à vontade para
falar sobre o problema que o inquieta.
Pais, outros membros da família ou acom-
230
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
panhantes não deverão estar presentes a não ser
que o adolescente o solicite expressamente ou dê
autorização. Se os pais estiverem presentes, antes
de iniciar a entrevista, o clínico deverá apresentarse sempre em primeiro lugar ao adolescente; este
gesto, valorizando de sobremaneira a pessoa do
jovem, corresponde a um claro sinal de que o
médico está disponível para estabelecer empatia
com abertura e sem tecer juízos de valor.
Confidencialidade
Todo o adolescente deve ser informado acerca da
confidencialidade garantida pelo clínico no início
da entrevista e, posteriormente, antes de serem
QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial
Home / Casa
• Com quem vives? Onde? Tens quarto próprio?
• Como é o ambiente em casa?
• Qual a profissão dos pais?
• Vives em instituição? Em qual? Tentaste fugir? Porque
motivo?
• Mudaste de casa recentemente?
• Tens pessoas novas com quem coabitas?
• Com quem tens confidências? Em quem confias?
Education / Escola
• Que escola frequentas?
• Em que ano estás?
• Mudaste recentemente de escola?
• Tiveste experiências marcantes no passado?
• Disciplinas preferidas?
• Disciplinas de que menos gostas; e que notas ?
• Alguma vez reprovaste e em que anos?
• Já foste suspenso? E expulso? Abandono escolar?
• No futuro: planos de emprego ou profissionalização? E
que objectivos?
• Tiveste ou tens emprego?
• Relacionamento com os colegas, professores e outros
elementos da escola/ou colegas de trabalho?
• Mudança de escola? Quantas escolas frequentaste nos
últimos 4 anos?
Eating disorders / Alimentação
• Quantas refeições habitualmente fazes por dia?
• Nos fins-de-semana? Quando sais com os amigos?
• Quando praticas desporto?
• Alimentos preferidos? De quais menos gostas?
• Alguma vez fizeste dietas? Porquê? Com que duração?
• Quantas refeições fazes em família? E fora de casa ou na
escola?
Activities / Actividades
• Com os pares (Que fazes com os teus amigos nos
tempos livres? Onde, quando e com quem?)
• Tens grupo de amigos? Melhor amigo/a? Mudaste de
amigos recentemente?
• Em casa? Em associações?
• Desporto – praticas com regularidade?
• Actividades religiosas; recreativas? Quais? Onde?
• Actividades preferidas (hobbies)
• Tens hábitos de leitura? De que tipo?
• Músicas preferidas
• Tens viatura própria?
• Estiveste envolvido em problemas com as autoridades?
Porquê? Quais as consequências?
Drugs / Drogas
• Os teus amigos consomem drogas? E tu, já experimentaste? (inclusive álcool e tabaco)
• Sabes se alguém na família consome? (inclusivé álcool e
tabaco)
• E tu, que quantidade consomes? Com que frequência?
Que tipo de utilização (esporádica/habitual)?
• Que fonte? Como costumas pagar?
• Conduzes quando consomes?
Security/Segurança
• Quando conduzes usas cinto de segurança ou capacete?
• Quando tens relações sexuais sabes que tipo de
prevenção deves ter? Qual costumas utilizar?
Sexuality / Sexualidade
• Orientação? Estás apaixonado? Por quem?
• Grau e tipos de actividade sexual e relações sexuais?
• Número de parceiros?
• Doenças sexualmente transmissíveis: Sabes sobre esta
questão?Como as prevines?
• Contracepção? Frequência, uso?
• Conforto, prazer com a actividade sexual?
• História de abuso psíquico ou físico?
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica
231
QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial (cont.)
Suicidal Ideation / Ideação suicida
1. Perturbação do sono – problemas na indução, interrupção frequente no início, hipersónia e queixas de fadiga
progressiva?
2. Perturbações do comportamento alimentar ou do apetite?
3. Sentimentos de aborrecimento, tristeza?
4. Explosões emocionais e comportamento altamente impulsivo?
5. História de afastamento/isolamento?
6. Sentimentos de desespero/abandono?
7. História de depressão, tentativa de suicídio?
8. História de depressão, tentativa de suicídio na família ou pares?
9. História de abuso de álcool, drogas, inaproveitamento e abandono escolares ou crimes?
10. História de acidentes graves recorrentes?
11. Sintomatologia psicossomática?
12. Ideação suicida (incluindo perdas significativas actuais ou no passado)?
13. Desinteresse na entrevista evitando encarar de frente o entrevistador– postura depressiva?
14. Preocupação com a morte (roupa, música, meios de comunicação social, arte)?
colocadas as questões relacionadas com sexualidade e consumo de drogas. Deve, entretanto,
explicar-se que poderá haver alguns limites éticos
e legais relativamente à confidencialidade; eis um
exemplo prático:
“Nesta entrevista vou colocar-te algumas
questões que são pessoais, de forma a poder
conhecer-te melhor. As respostas que tu deres
podem ser importantes para a tua saúde. Mas,
como as questões são pessoais e delicadas,
prometo-te que serão confidenciais, o que quer
dizer que ficarão só entre mim e ti Não revelarei
aos teus pais, professores, ou outras autoridades
nada do que me contares, a não ser que me
autorizes. Uma única excepção: no caso de tu ou
outra pessoa estarem em risco de vida, ou no caso
de haver implicações médico-legais. O que
conversarmos ficará entre nós até que digas o
contrário, ou a não ser que algum outro médico
precise de saber de ti, para poder cuidar do teu
caso na minha ausência, garantindo de igual
forma a confidencialidade.”
Avaliação psicossocial/HEADSSS
Desenvolvida por Harvey Berman (1972) e reformulada mais tarde por Cohen e Goldenring, a
metodologia de abordagem da história psicossocial do adolescente é conhecia pelo acrónimo
HEADSS que significa (Quadro 1):
H – Home – Casa/família
E – Education – Ensino/projectos Eating
Disorders – Distúrbios alimentares/ alimentação
A – Activities – Actividades de lazer, desporto,
amigos, grupos, trabalho
D – Drugs – Drogas (álcool, tabaco, etc.)
S – Security – Segurança
S – Sexuality – Sexualidade
S – Suicidal ideation – Ideação suicida
A ordem pela qual as questões são colocadas é
aleatória devendo, contudo, ser deixadas para o
final as que envolvem maior privacidade.
A experiência e a sensibilidade do médico são
fundamentais para o sucesso da avaliação
psicossocial e consequentemente, da investigação
de comportamentos de risco.
Perguntas mal elaboradas, baseadas em termos
técnicos ou colocadas de forma insegura por parte
do entrevistador, podem gerar respostas (falsamente) negativas por parte do jovem, levando ao
encerramento precoce do diálogo.
As perguntas devem ser feitas com clareza,
ainda que seja necessário repeti-las ou formular de
novo a questão, explicando o porquê da pergunta
e as vantagens em saber-se a resposta; efectivamente o adolescente pode sentir-se “intimidado”, ansioso, envergonhado ou assustado com
a possibilidade de revelar a sua intimidade.
232
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A qualidade do vínculo estabelecido entre o
médico e o adolescente será determinante para que
sejam abordadas questões mais pessoais e inclusive para uma melhor aceitação de esclarecimentos e doutras questões muitas vezes não
consideradas importantes pelo jovem.
Um dos principais objectivos da entrevista
psicossocial é procurar identificar elementos que
se relacionem com a ansiedade e depressão, frequentes precursores do suicídio nos adolescentes.
Na avaliação de risco, mais do que estabelecer
um diagnóstico de perturbação de saúde mental,
é fundamental que seja identificada a suspeita ou
perturbação de comportamento para que o adolescente possa ser correctamente orientado e posteriormente acompanhado .
Por vezes acontece ser o profissional de saúde
o único adulto que interage repetida e confidencialmente com o adolescente ao longo do seu
desenvolvimento.
Compete, pois, àquele saber atender e entender de forma integral o referido adolescente, procurando reconhecer as suas necessidades específicas de acordo com a idade e contexto (familiar,
social e religioso) em que está inserido.
BIBLIOGRAFIA
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Lippincott Williams & Wilkins, 2004
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pais e educadores. Lisboa: Editorial Presença, 2002
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Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York:
McGraw-Hill, 2002
PARTE IX
Aspectos da Relação entre Medicina
Pediátrica e Medicina do Adulto
234
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
45
DOENÇAS DA IDADE PEDIÁTRICA COM REPERCUSSÃO NO
ADULTO – GENERALIDADES
João M. Videira Amaral
“Em ciência, o importante é mudar as ideias à
medida que a ciência progride”
Claude Bernard, 1877
Introdução
O ser humano, desde a concepção até ao termo da
adolescência, cresce e desenvolve-se modelado
pela interacção de factores genéticos e ambientais.
Muitas vezes, estes últimos constituem verdadeiras
agressões (físicas, químicas, estresse, nutricionais,
hipóxicas, etc.), sendo a resistência do concepto a
tais eventos, (que podem incidir na fase pré-natal
e/ou na fase pós-natal do desenvolvimento) condicionada, quer pelo património genético, quer
pelas condições do ambiente nas suas diversas vertentes (ambiente intra-uterino ou micro-ambiente,
ambiente constituído pelo organismo materno ou
matro-ambiente e ambiente extra-uterino). O resultado final, cuja expressão clínica se poderá verificar apenas na idade adulta depende, designadamente, do tipo de agente agressor, da intensidade
da sua acção e do momento em que actua.
Neste capítulo são analisados alguns problemas clínicos que têm expressão na idade adulta
na perspectiva da sua relação com eventos surgidos no período pré-natal e na idade pediátrica,
com importância em saúde pública.
Importância do problema
A relação entre certas doenças do feto e criança e
doenças do adulto constitui um tópico de grande
actualidade, o que é fundamentado em numerosos estudos epidemiológicos na sequência de múltiplas investigações, cabendo destacar o pioneirismo do grupo de Barker no Reino Unido.
A realização dum congresso mundial reunindo
especialistas de diversas áreas , pediatras e não
pediatras, sobre “doenças do adulto com origem no
feto” em 2001 em Bombaim, Índia , traduz , em
certa medida, a importância dum problema em
saúde pública que foi identificado.
Nesse mesmo congresso, tendo sido dada
ênfase ao papel do pediatra e do perinatologista
num conjunto de intervenções para inverter tendências de incremento de certo tipo de morbilidade , um dos tópicos discutido foi o panorama
da saúde na Índia em que a coronariopatia e a diabetes mellitus de tipo 2 alcançaram proporções
epidémicas, em associação a uma das mais elevadas prevalências de baixo peso de nascimento
em todo o mundo – cerca de 30%. Debateu-se
igualmente a associação entre obesidade, urbanismo e doenças cardiovasculares , estas últimas a
principal causa de mortalidade em todo o
mundo, correspondendo mais de metade desta
parcela aos países em desenvolvimento.
O papel da Genética
Tratar de determinado tema com objectivo pedagógico obriga, por vezes, a compartimentações
algo artificiais. De facto, às influências de diversos
factores ambientais intervenientes em muitas situações a abordar, sobrepõe-se a predisposição
genética, ambas condicionando variantes quanto
às manifestações clínicas e ao período da vida em
que estas emergem.
Feita esta ressalva, torna-se obrigatório mencionar, tendo como base o tema em análise, um
conjunto de situações clínicas clássicas, de tipo
hereditário poligénico, cuja manifestação poderá
ocorrer em diversas fases da vida, incluindo a
idade adulta. Actualmente, com os avanços tecnológicos e as novas atitudes de antecipação, é
possível fazer-se a sua identificação cada vez mais
precocemente. Como exemplos podem citar-se:
– Doenças cardiovasculares: aterosclerose,
doença isquémica do miocárdio, hipertensão
arterial, doença reumática.
– Doenças do foro imunoalérgico: atopia, asma,
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto
eczema, enxaqueca, colite ulcerosa, etc..
– Doenças acompanhadas de obesidade.
– Determinadas doenças renais.
– Determinadas anomalias congénitas (por ex.
luxação congénita da anca , etc.).
– Doenças cardiovasculares: aterosclerose,
doença isquémica do miocárdio, hipertensão
arterial, doença reumática, etc..
Calcula-se que mais de 400 genes estejam
implicados na regulação de muitos preocessos tais
como função endotelial, inflamação, e metabolismo. Relativamente aos processos metabólicos, o
relacionamento com as lipoproteínas é seguramente o mais conhecido, sendo que foram identificados muitos genes relacionados com a doença
aterosclerótica (por ex. gene do receptor das LDL,
gene da LPL, gene da apolipoproteína e com variantes) e a hipertensão( por ex. genes do sistema
renina-angiotensina – evidenciando polimorfismos – com papel na regulação da pressão arterial
e da homeostasia do sódio, e explicando certas
formas de hipertensão com graus diversos de sensibilidade ao sal.
Conceito de programação
Para compreendermos o papel de certos eventos
durante a gravidez no desenvolvimento de doenças no adulto, será importante reter a noção de
“influência programada” (com o significado do
“efeito de certas noxas que deixam marca ou registo – “programming”na língua inglesa), a qual
está ligada ao fenómeno de adaptação e tem as
suas raízes na biologia. Com efeito, tal como se
comprovou em certas espécies animais, a ocorrência de determinados estímulos ou insultos relacionados com o ambiente, actuando numa fase
precoce do desenvolvimento humano (na vida
fetal ou na infância) tem efeitos variáveis a longo
prazo na estrutura ou na função de determinados
órgãos (programação) se os mesmos tiverem lugar
nos chamados períodos sensíveis ou críticos. Por
conseguinte, se o mesmo insulto se verificar fora
de tal período crítico, provalvelmente não surgirá
o efeito.
É importante referir que, sob o ponto de vista
teleológico, a capacidade de resposta do organismo a determinado insulto corresponde, na maior
parte das vezes, a um mecanismo de adaptação no
235
sentido de manutenção do equilíbrio biológico.
No entanto, determinados insultos ou factores
ambientais poderão originar efeitos adversos no
organismo, não sendo , nesta circunstância , considerados adaptativos.
O feto e doenças do adulto
Doença cardiovascular e doença metabólica
De acordo com dados epidemiológicos, considerando o cômputo geral de recém-nascidos
(RN) de peso inferior a 2500 gramas ou de baixo
peso (BP) em todo o mundo, a proporção dos mesmos com restrição de crescimento intra-uterino
ou RCIU (peso inferior ao correspondente ao percentil 10 nas curvas de Lubchenco, para qualquer
idade gestacional) é muito maior nos países em
desenvolvimento (cerca de 75%) em comparação
com a que ocorre nos países desenvolvidos (cerca
de 25%).
A nutrição do feto e, por consequência, o
respectivo peso, depende do suprimento em
nutrientes através da circulação materno-placentar-fetal, por sua vez em relação com a nutrição
materna e o metabolismo e função placentares. A
regulação da transferência de nutrientes para o
feto depende não só do próprio suprimento , mas
também da insulina fetal e do factor de crescimento designado por IGF-I (sigla de “insulin-like
growth factor I) (IGF-I).
Barker, baseado em estudos anteriores, descreveu três padrões de hipocrescimento fetal correspondentes a outros tantos mecanismos de subnutrição actuando em diferentes fases do crescimento
fetal com implicações futuras em termos de manifestação de problemas clínicos na idade adulta:
a) a subnutrição na fase precoce da gravidez
(período de hiperplasia entre as 4-20 semanas
caracterizado por mitose activa e aumento do conteúdo de DNA) que origina baixo peso de nascimento com uma relação harmónica, simétrica ou
bem proporcionada entre peso, comprimento e
perímetro cefálico. Este fenotipo corresponde à
forma de restrição de crescimento intra-uterino
inicialmente descrita por Clifford como “crónica” e
afectando os tecidos moles, o esqueleto e o crânio.
A este perfil somatométrico associou-se deficiente incremento ponderal no primeiro ano de
vida, e risco elevado de subsequente desenvolvi-
236
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mento de hipertensão arterial e de acidente vascular cerebral na idade adulta;
b) a subnutrição, entre as 20-28 semanas, (período caracterizado por hiperplasia e hipertrofia)
condicionando baixo peso de nascimento com um
baixo índice ponderal (relação peso em gramas x
100/ comprimento em centímetros elevado ao
cubo), inferior a 2.32.
Neste grupo verificou-se risco ulterior, na
idade adulta, de hipertensão arterial, de coronariopatia e de diabetes não insulinodependente;
c) a subnutrição no final da gravidez, após as
28 semanas; é a fase da hipertrofia em que, em
condições normais se acumula tecido adiposo e
ocorre aumento das dimensões celulares.
A forma clínica resultante é designada por
RCIU assimétrica ou desarmónica (sub-aguda na
nomenclatura de Clifford) com crescimento relativamente mantido da cabeça , tronco e esqueleto ,
mas hipotrofia das massas musculares e do tecido
celular subcutâneo.
A este fenótipo associou-se o risco, na vida
adulta, de hipertensão, de dislipidémias (sobretudo hipercolesterolémia à custa das lipoproteínas
de baixa densidade – LDL), doença coronária e
acidente vascular cerebral. (consultar capítulo 47 e
parte XI)
Este modelo proposto por Barker foi questionado por outros investigadores concluindo que:
no sexo masculino foi o peso ao 1 ano e não o
baixo peso ao nascer que se associou a coronariopatia; no sexo feminino, pelo contrário, verificou-se associação entre o baixo peso ao nascer e
coronariopatia, intolerância à glucose e colesterol
-LDL elevado, mas não com outros factores como
hipertensão arterial e hiperfibrinogenémia).
A evidência da associação entre baixo peso de
nascimento (com ou sem RCIU) e determinados
problemas metabólicos (essencialmente diabetes
de tipo 2 e obesidade de tipo central) e/ou coronariopatia na idade adulta, levaram à criação do
conceito de “fenotipo da “ poupança” ou da “frugalidade” cuja fisiopatologia deverá ser entendida
de modo dinâmico e numa perspectiva teleológica: as alterações neuro-endócrino-metabólicas
(mediadas através de alterações do eixo hipotálamo-hipofisário, e surgidas como resposta de
adaptação à subnutrição fetal), mantêm-se na vida
extra-uterina influenciando ulteriormente a secre-
ção de insulina e promovendo alterações morfofuncionais ao nível da parede vascular. As referidas alterações são consideradas benéficas se a
escassez nutricional se mantiver após o nascimento. No entanto, se na vida extra-uterina a alimentação for abundante, as referidas alterações
endócrino-metabólicas podem predispor a obesidade ou a peso excessivo e a anomalias da tolerância à glucose. Esta associação constitui, na
actualidade um problema importante de saúde
pública na Índia, onde têm sido realizados numerosos estudos. Admite-se hoje que os genes que
permitem a sobrevivência em situação de fome,
são os mesmos que podem conduzir à obesidade e
diabetes em ambiente de abundância.
Relacionando ainda o peso de nascimento com
problemas na idade adulta, cabe referir a associação entre baixo peso de nascimento e hipocrescimento no primeiro ano de vida, com osteoporose
e diminuição da massa óssea no adulto, e risco de
fractura do colo do fémur na idade avançada.
Com efeito, foi estabelecida uma correlação entre
baixo peso de nascimento no sexo feminino e conteúdo mineral ósseo e densidade mineral óssea
deficitários 70 anos mais tarde.
Outro aspecto merece ser realçado – o que se refere à acumulação de gordura intra-abdominal profunda, nos casos de RCIU a maior acumulação de
gordura intra-abdominal (detectável e quantificada
por RMN) relaciona-se com eventos adversos
durante a gravidez e com ulterior resistência à
insulina; não se verificando eventos adversos há
maior tendência para acumulação de gordura subcutânea em vez de abdominal, o que condicionada
melhor prognóstico em termos metabólicos futuros.
Relação feto/placenta e hipertensão arterial
Barker e colaboradores verificaram maior prevalência de hipertensão arterial em adultos com
antecedentes perinatais de RCIU e/ou BP e discordância com o tamanho e peso da placenta (placenta de grandes dimensões).
Por outro lado, estudos experimentais demonstraram que, como resultado da hipóxia fetal, há
redistribuição de sangue favorecendo a perfusão
do encéfalo. Nas situações com placenta de
maiores dimensões verificou-se diminuição da
relação comprimento/perímetro cefálico, podendo
explicar-se tal desproporção por um desvio de
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto
sangue do tronco para o encéfalo. A discordância
entre o peso fetal (deficiente ou baixo) e o tamanho
(grande) da placenta pode conduzir a fenómeno
de adaptação circulatória no feto, com alteração
estrutural progressiva das grandes artérias na
criança, traduzida por alterações nas escleroproteínas com repercussão na distensibilidade e consequente hipertensão arterial na idade adulta.
Diabetes mellitus gestacional
e doença metabólica
O peso elevado de nascimento (superior a 4000 gramas ou macrossomia) relacionado com diversos factores etiopatogénicos incluindo a diabetes mellitus
gestacional (DMG), comporta risco elevado de peso
excessivo na adolescência e idade adulta. De acordo
com os estudos do grupo de Gillman a DMG reflecte
um ambiente fetal alterado em termos de relação:
metabolismo da glucose mãe – feto. Reportandonos ao conceito de programação, a DMG actuaria
como um factor predisponente em relação a determinados insultos que poderão conduzir à obesidade, e não como factor causal directo.
Nutrição materna, feto e doença metabólica
Os efeitos da nutrição materna na gravidez sobre
o feto a longo prazo constituem matéria de controvérsia dada a grande variabilidade de resultados
traduzindo heterogeneidade das populações estudadas e diversidade das metodologias aplicadas.
Estudos epidemiológicos em populações humanas demonstraram que a composição corporal
da grávida influencia o desenvolvimento fetal
com implicações futuras em termos de risco de
doenças cardiovasculares no produto de concepção na idade adulta. Mães magras tendem a ter
filhos magros com tendência para ulterior insulino-resistência; e mães obesas ou com peso excessivo tendem a ter filhos gordos/pesados que
poderão ser ter insulinodeficiência.
Demonstrou-se também que o regime alimentar
durante a gravidez pode ter efeitos permanentes,
influenciando de modo programado o metabolismo do feto, nomeadamente em termos de sensibilidade à insulina. Cabe citar, a propósito, um interessante trabalho realizado numa zona rural da Índia
em que se verificou relação directamente proporcional entre peso ao nascer e teor de suprimento
em lípidos, legumes verdes e em frutos.
237
Doença neoplásica
Diversos estudos prospectivos observacionais
têm demonstrado uma associação positiva entre
peso de nascimento elevado e risco subsequente
de diversos tipos de neoplasias na idade adulta.
1. Cancro da mama
Em 1990, Trichopoulos admitiu a hipótese de o
cancro da mama poder ter a sua origem in utero.
Num estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, envolvendo 5358 mulheres, verificou-se uma
associação a risco de cancro da mama antes dos 50
anos 3,5 vezes superior nos casos de antecedentes
de macrossomia ao nascer (peso igual ou superior
a 4000 gramas), em relação aos casos com idêntica
idade gestacional, mas peso de nascimento inferior a 3000 gramas.
De acordo com diversas investigações demonstrou-se o papel da elevada concentração de
estrogénios endógenos nas mulheres com cancro
da mama em idades pós-menopausa. Nos casos de
associação entre macrossomia e ulterior cancro da
mama em idade pré-menopáusica, demonstrou-se
que havia elevadas concentrações de IGF-I (insulinlike growth factor) comprovada nos casos que
evoluiram para cancro da mama pré-menopáusica.
2. Cancro colo-rectal
Relativamente a este tipo de cancro encontrou-se
uma incidência maior nos casos associados a
antecedentes de macrossomia fetal. Embora a base
etiopatogénica não esteja ainda perfeitamente esclarecida, admite-se que a sequência de eventos biológicos associados (macrossomia com hiperinsulinémia) tenham papel importante na carcinogénese
colo-rectal. Com efeito, a IGF- I e as suas proteínas
de ligação influenciam o crescimento fetal, podendo
a insulina comparticipar a carcinogénese através da
interferência nos níveis de IGF-I circulante.
Doença respiratória
Na investigação de Barker, estudando a função pulmonar de 825 homens nascidos entre 1911 e 1930,
concluiu-se que o volume expiratório forçado em 1
segundo (FEV 1) era tanto maior quanto menor
tinha sido o peso de nascimento. Este achado, interpretado como resultado dos efeitos a longo prazo
do ambiente pré-natal adverso durante um período
crítico de rápido desenvolvimento pulmonar in
238
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
útero, está de acordo com os resultados de estudos
experimentais em ratos. Verificou-se, com efeito,
que o estado de má- nutrição provocado em período anterior ao parto ou no final da gravidez, reduz
permanentemente as dimensões pulmonares e o
conteúdo de DNA pulmonar.
Mais recentemente diversos estudos têm avaliado se o peso de nascimento influencia o aparecimento de manifestações de asma em idade
pediátrica e no adulto. Estudos realizados no
Canadá demonstraram que o peso de nascimento
elevado, sobretudo a partir de 4500 gramas, se
associou a maior risco de asma na adolescência e
no adulto. O mecanismo etiopatogénico desta
associação parece ser multifactorial relacionandose com a maior tendência para obesidade infantil,
juvenil e na idade adulta em indivíduos com
antecedentes de macrossomia ao nascer.
Com efeito, a adiposidade interfere adversamente na função pulmonar, nomeadamente no
que respeita ao débito expiratório, ao calibre das
vias aéreas e à função dos músculos respiratórios.
Demonstrou-se também que os adipocitos
têm um papel regulador na produção de várias
citocinas pró-inflamatórias (leptina, interleucina
6, factor de necrose tumoral alfa); tais citocinas
comparticipam, por isso, a inflamação da vias
aéreas e a activação dos mastocitos predispondo
ao broncospasmo.
Aparentemente os resultados do estudo canadiano estão em desacordo com os de Barker anteriormente mencionados, em que se associou
maior incidência de asma no adulto e adolescência ao baixo peso de nascimento. De facto, a população de RN de BP estudada por Barker incluia
casos de RN pré-termo (idade gestacional inferior
a 37 semanas). Em estudos mais recentes, a associação BP de nascimento a maior incidência de asma
no adolescente e adulto, demonstrou-se apenas
nos casos com antecedentes de BP de nascimento
acompanhados de prematuridade e não nos exRN de BP não pré-termo.
A criança, o adolescente
e doenças do adulto
Aleitamento materno e perfil lipídico
Estudos de há duas décadas demonstraram que o
tipo de leite utilizado nas primeiros dois anos de
vida e a idade do desmame podem ter influência
permanente no perfil lipoproteico sérico (com especial realce para o teor do colesterol – LDL) com
repercussões futuras em termos de risco de morte
por coronariopatia no adulto.
O grupo de Barker avaliou adultos que pertenceram a uma época em que era habitual o
aleitamento materno exclusivo mais prolongado e
o prolongamento deste para além de 1 ano de
idade. Comprovou que o aleitamento materno
prolongado para além de 1 ano conduziu na idade adulta a elevadas concentrações de colesterolLDL e a maiores taxas de mortalidade por doença
isquémica do miocárdio independentemente dos
valores doutros parâmetros lipoproteicos; e que o
efeito era semelhante ao que se obtinha com leite
industrial dado exclusivamente durante o primeiro ano de vida. Pelo contrário, os valores de colesterol-LDL eram mais baixos nos casos de aleitamento materno exclusivo apenas até ao 1 ano de
vida.
Face a estes resultados, poderá argumentar-se
que o regime alimentar realizado durante o período pós-desmame e na idade adulta tenha influenciado o perfil lipoproteico no adulto. No entanto,
Barker demonstrou que todos os grupos estudados
evolutivamente com regimes alimentares diferentes até à idade do desmame, eram homogéneos
sob o ponto de vista de classe social, de regimes
alimentares pós-desmame, assim como de factores
de risco cardiovascular, incluindo o índice de
massa corporal e a concentração do factor de
coagulação VII.
O mecanismo desta evidência não está completamente esclarecido, mas poderá eventualmente extrapolar-se com base na análise doutros
parâmetros. Com efeito, demonstrou-se que a
pressão sanguínea, os valores de fibrinogénio,
de factor VII, de glucose são parcialmente determinados ou programados durante determinados
períodos críticos da vida fetal e da primeira
infância. Embora existam dados incompletos
que exigem ulterior investigação, cabe referir
que: o período crítico poderá ser diferente de
variável para variável relacionando-se respectivamente com períodos de crescimento rápido
dos vasos sanguíneos, do fígado e do pâncreas
exócrino; e que a regulação das concentrações
dos lípidos e das lipoproteínas no soro envolve
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto
vários tecidos, com especial destaque para o
fígado e o intestino.
A este propósito, estudos experimentais em
diversas espécies animais demonstraram que a
manipulação de dietas no recém-nascido e em animais recém – desmamados pode produzir aumentos a longo prazo das concentrações de lípidos,
lipoproteínas e apolipoproteínas, e assim com alterações da actividade da redutase da HMGCoA
(hidroxi-metil-glutaril coenzima A) com papel na
síntese do colesterol, e da 7-alfa –hidroxilase (síntese dos ácidos biliares).
Outro mecanismo implicado poderá estar relacionado com o facto de o leite materno conter
diversas hormonas (tiroideias e esteróides) e factores de crescimento, os quais podem influenciar
o metabolismo dos lípidos.
Embora o efeito destas hormonas maternas
sobre o lactente seja desconhecido, estudos experimentais em babuínos demonstraram diferentes
níveis de tri-iodo-tironina e de cortisol conforme
alimentados com leite materno ou com leite
industrial. Reportando-nos aos estudos de Barker,
os lactentes alimentados com leite materno para
além da idade de 1 ano, continuaram , por isso, a
ser submetidos por mais tempo ao efeito das hormonas maternas e doutros componentes.
Alimentação com leite materno, leite industrial, hipertensão arterial e esclerose múltipla
A etiopatogénese da hipertensão arterial no adulto é de tipo multifactorial englobando um componente importante que diz respeito aos hábitos alimentares em relação com o consumo elevado de
sódio, e baixo de cálcio e potássio.
Num estudo realizado pelo grupo de Singhal
incidindo sobre 926 crianças com antecedentes de
prematuridade e com regimes diferentes de alimentação láctea no primeiro mês de vida (comparando fórmula de pré-termo com fórmula para
RN de termo, e fórmula para pré-termo com leite
humano de mistura de diversas dadoras), e
seguidas até aos 16 anos de idade, verificou-se
associação de valores mais baixos de pressão arterial nos indivíduoas alimentados no período de
estudo com leite humano. Na análise estatística
dos resultados foram ponderados diversos factores de possível interferência, tais como o teor em
sódio dos diversos leites.
239
Este efeito foi atribuído não só ao possível
papel de hormonas e de substâncias tróficas que
fazem parte da composição do leite humano, mas
sobretudo aos ácidos gordos poli-insaturados de
cadeia longa (LC-PUFA) do leite humano.
São hoje atribuídas diversas acções aos LCPUFA, cujas reservas são deficitárias no RN prétermo. Tais ácidos gordos são preferencialmente
incorporados nas membranas das células neurais,
o que influencia o desenvolvimento visual e
cognitivo. Os mesmos LCPUFAs também são
incorporados nas membranas doutras células
como as dos endotélios vasculares, o que poderá
explicar o seu efeito na distensibilidade da parede
das artérias.Efectivamente, foi demonstrado que
em adultos hipertensos o regime alimentar suplementado com n-3 LCPUFA é susceptível de
reduzir os valores tensionais em comparação com
os que não são suplementados.
Tendo como base a noção de que as crianças
alimentadas com leite materno têm valores mais
baixos de pressão arterial que as alimentadas com
fórmulas industriais (não suplementadas com
LCPUFAs) verificou-se que da suplementação
com tais ácidos gordos n-3 LCPUFA resultam
valores mais baixos de pressão arterial na infância, o que tem implicações na prática clínica tendo
em conta a tendência para os referidos valores se
manterem até à idade adulta; desconhece-se, até
ao momento se, tal influência dependerá do
tempo que durou o tipo de alimentação.
De referir ainda estudos que levantaram a
hipótese de o défice de LCPUFAs na alimentação
da primeira infância , condicionando disfunção
da membranas celular e da barreira hematoencefálica, facilitar a entrada de determinados
agentes infecciosos promovendo a degradação
acelerada da mielina e a génese do quadro de
esclerose múltipla. (consultar parte sobre Nutrição)
Dislipoproteinémias em idade
pediátrica e doenças cardiovasculares
Constituindo as doenças cardiovasculares um
problema de saúde pública em todos os países,
nomeadamente nos industrializados, e tendo em
consideração que os factores de risco, ocorrendo
muitas vezes associados em “constelações”, estão
já presentes em idade pediátrica e são preditivos
240
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de risco cardiovascular no adulto, justifica-se a
sua identificação precoce na perspectiva de medidas específicas de intervenção em idade pediátrica sobre os factores relacionados com o ambiente.
De acentuar que as lesões arteriais poderão ser
já detectadas no feto, tendo a dislipoproteinémia
materna mantida durante a gravidez importância
na patogénese.
Entre diversos estudos de correspondência de
perfil lipoproteico idade pediátrica – adulto,
valerá a pena citar o Fels Longitudinal Study em
que se demonstrou que o perfil aos 9-11 anos era
preditivo do perfil aos 19-21 anos, nomeadamente
em relação ao parâmetro colesterol total e colesterol-LDL. De acordo com a nossa experiência,
numa amostra de 50 crianças entre 4-5 anos,
encontrámos um coeficiente de correspondência
de 0.8 relativamente aos marcadores colesterol
total, colesterol- LDL, Apo A, Apo B e Lp(a) num
intervalo de tempo de 8-9 anos (dados não publicados).
Hipertensão arterial
Admite-se hoje que a hipertensão essencial tem a
sua origem na infância sendo a sua patogénese
relacionada com factores hereditários, estresse,
suprimento em sal e obesidade.
Gillman procedeu ao estudo evolutivo seriado
de uma população de indivíduos entre os 8 anos e
os 26 anos de idade, tendo encontrado um coeficiente de correlação com referência àqueles limites
de idades, de 0.55 para a pressão sistólica e de 0.44
para a pressão diastólica.
Este tópico é pormenorizado no capítulo 46.
Infecções respiratórias na infância e bronquite
crónica no adulto
Em diversos estudos incidindo sobre crianças hospitalizadas por infecções das vias respiratórias
inferiores (peumonias e bronquiolites por vírus
sincicial respiratório-VSR) verificou-se na idade
adulta uma proporção significativa de hiperreactividade brônquica e de anomalias da função respiratória em relação aos casos-controlo.
Tal tipo de evolução atribui-se ao papel da
infecção do tracto respiratório (com especial relevância para a infecção por VSR que pode originar
alterações ultra-estruturais), sobretudo se houver
antecedentes de atopia.
Doenças da nutrição
1. Má nutrição energético-proteica (MNEP) e
o ciclo de gerações
Nos países em desenvolvimento, as adolescentes com MNEP em idade reprodutiva(em
relação a adolescentes sem MNEP) têm um risco
de mortalidade cerca de 5 vezes superior por complicações relacionadas, quer com a gravidez, quer
com o próprio parto. Tratando-se de parturientes
com baixo peso(inferior a 45 kg) e com baixa estatura (inferior a 145 cm), criam-se condições para
desproporção feto-pélvica, nomeadamente. Como
consequência do défice de progressão ponderal, de
infecção associada e de anemia durante a gravidez,
surge um quadro de RCIU e/ou BP de nascimento.
Relativamente ao BP e à RCIU já foram abordados
tópicos que relacionam esta situação com outros
problemas manifestados no adulto.
2. Carências nutricionais específicas de expressão tardia
O suprimento inadequado de determinados
nutrientes à criança pode originar mais que uma
doença por mecanismos diversos.
Tais doenças, associadas a carências específicas
manifestam-se classicamente em idade pediátrica,
ou seja, após um período curto de latência uma
vez verificada a situação biológica de carência,
não sendo de excluir predisposição genética. São
exemplos as seguintes associações, algumas das
quais têm elevada prevalência nos países em
desenvolvimento: tiamina-béri-béri, niacina-pelagra, vitamina D-raquitismo, iodo-bócio, vitamina
C-escorbuto, vitamina A – xeroftalmia e ceratomalácia, ácido fólico e ou/ vitamina B12 – anemia
megaloblástica, fluor-cárie dentária, ferro-anemia
ferripriva.
Embora cada micronutriente tenha um papel –
chave no metabolismo de diversos tecidos, a manifestação que diz respeito à doença considerada
clássica ou “index”, traduz a maior vulnerabilidade de determinado tecido.
Em confronto com o conceito de doenças de
carência nutricional manifestando-se após um
período de latência curto, cabe referir um conjunto doutros problemas igualmente de tipo carencial, mas de manifestação após um período de
latência longo, atingindo a idade adulta.
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto
São citados três exemplos:
a) Cálcio: foi descrito um mecanismo associando a carência em cálcio a uma elevação “paradoxal” de cálcio ionizado intracelular e a uma
diminuição da capacidade de ligação ácidos gordos – ácidos biliares; este achado biológico é relacionado com cancro do cólon na idade adulta.
b) Vitamina D: um dos efeitos do calcitriol –
para o qual existem receptores em muitos tecidosé induzir a diferenciação e regular a proliferação
celulares. O seu défice tecidual (que poderá coincidir com valores séricos normais) poderá ter , por
isso, efeito oncogénico pelo défice da regulação
exercida sobre a proliferação celular. A este
respeito, cabe referir que existem investigações
demonstrando uma associação entre níveis baixos
de calcitriol e mais elevada incidência de cancro
da próstata.
c) Ácido fólico: na doença – index (anemia
megaloblástica e defeitos do tubo neural no feto
em situações de carência na gravidez), o efeito da
carência é explicado pela alteração da síntese de
DNA; no caso dos defeitos do tubo neural intervém igualmente a hiper-homocisteinémia secundária ao défice de ácido fólico. Em termos de
expressão da doença após longo período de latência, comprovou-se que a homocisteína tem um
papel importante na degradação das proteínas de
tecido elástico, conduzindo a um processo degenerativo do tecido conectivo com repercussão em
vários territórios: sistema ocular (ectopia lentis),
tecido ósseo (osteoporose), sistema vascular (doença vascular oclusiva), sistema nervoso central
(demência). De salientar que a homocisteína, cujos
níveis séricos se elevam com suprimento abudante
em proteínas, tem uma acção pró-oxidante e prócoagulante ao nível do endotélio vascular, favorecendo a aterogénese. (consultar parte sobre
Nutrição).
3. Obesidade
A obesidade na infância e adolescência constitui na actualidade a doença nutricional de maior
prevalência em todo o mundo(segundo alguns “a
nova síndroma mundial”), assumindo nalgumas
regiões as características de verdadeira epidemia.
Portugal, juntamente com a Irlanda e EUA detêm
elevadas taxas de excesso de peso , situação que
antecede a obesidade.
241
A estabilidade ou tendência para manutenção
da obesidade (tracking) da infância para a adolescência é baixa, sendo, no entanto, elevada da
adolescência para a idade adulta. A probabilidade
de uma criança obesa ser um adulto obeso é tanto
menor quanto maior o tempo decorrido entre o
início da obesidade na criança e o início da idade
adulta; e tal probabilidade aumenta se a obesidade tiver início na adolescência e se existirem
antecedentes familiares de obesidade, nomeadamente na mãe. (Capítulo 57).
Implicações na prevenção
e controvérsias
As investigações de Barker e do seu grupo chamaram a atenção para a origem fetal de muitas afecções que têm expressão no adulto. Este novo paradigma , que tem implicações práticas preventivas
na prática clínica, está em perfeita sintonia com o
conceito genuíno de Pediatria como medicina
integral de um grupo etário desde a concepção até
ao fim da adolescência.
Daí a grande responsabilidade do pediatra e
do médico que cuida de crianças a cujo desempenho sempre se ligou uma forte vertente preventiva; e agora, numa nova perspectiva face a novos
paradigmas, cada vez mais partilhada pelo perinatologista .
Os tópicos abordados levantam questões interessantes. Muitos dos resultados de investigações
nem sempre são coincidentes; por vezes são contraditórios, procedendo os autores a especulações
etiopatogénicas, o que gera polémica.
Analisemos o parâmetro “peso de nascimento”, um dos pontos de partida nas investigações
de Barker. Sorensen e Seidman, separadamente, concluiram que baixo peso de nascimento e restrição
de crescimento intra-uterino são factores de risco
preditivos, não de obesidade, mas sim de coronariopatia, de acidente vascular cerebral e de diabetes.
Oken e Gillman chamaram a atenção para o que
foi designado por fenómeno paradoxal do aumento da adiposidade central na idade adulta relacionável, quer com baixo peso, quer com peso elevado de nascimento.
Reportando-nos ainda ao parâmetro peso de
nascimento, será interessante analisar outro acha-
242
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do curioso: enquanto o baixo peso de nascimento
foi correlacionado com risco elevado de coronariopatia, o peso elevado associou-se a maior risco
de cancro da mama.
Alguns resultados discrepantes poderão explicar-se pela diversidade metodológica (dimensão das amostras, factores de interferência residuais, etc.) e pela interacção de factores genéticos e
ambientais cujo peso relativo por vezes é de difícil
determinação. Gillman, a este propósito , pôs duas
questões muito pertinentes: Os genes com influência no baixo peso de nascimento são os mesmos
que determinam a doença cardiovascular? Qual o
efeito dos vários nutrientes sobre a embriogénese e
sobre o crescimento fetal?
Em 2003, em San Diego (EUA), num congresso
organizado pela Society for International Nutrition
Research foi retomado o debate sobre as origens
das doenças do adulto, revisitando muitos dos
tópicos discutidos dois anos antes em Mumbai,
Índia.
Novos contributos de investigações mais
recentes levaram a questionar alguns princípios
defendidos por Barker e a confirmar outros.
Eis alguns dos temas que tiveram maior
impacte em tal evento mais recente:
a) a modificação dos hábitos alimentares nas zonas
urbanas dos países em desenvolvimento
O fenómeno actual da epidemia da obesidade
está a atingir actualmente as zonas urbanas dos
países em desenvolvimento como a Índia e Brasil,
o que contribuirá em futuras gerações e após
vários ciclos de mais adequada nutrição para que
mais mulheres, melhor nutridas, com peso e
altura progressivamente mais elevados, com
úteros cada vez de maiores dimensões, venham a
ter filhos de peso progressivamente mais elevado,
reduzindo progressivamente a taxa de RCIU, mas
com risco metabólico crescente.
b) Os dilemas da intervenção nutricional no período pré-natal.
As intervenções nutricionais ditas agressivas
na grávida subnutrida tentando reverter o quadro
de má-nutrição fetal conduziram na Índia, ao fenómeno do bébé magro-gordo com incremento rápido
da massa gorda. Como consequência, de acordo
com as investigações de Yajnik, começaram a surgir casos de resistência à insulina em crianças,
adolescentes e adultos jovens.
O mesmo grupo comprovou que a má-nutrição fetal com microssomia é explicada por défice
predominante de massa muscular e não de massa
gorda, o que poderá conduzir na idade adulta, se
houver excesso alimentar, a obesidade central
coincidindo com incremento deficitário da massa
muscular.
c) O dilema da intervenção nutricional pós-natal
Em termos de estratégias nutricionais, outro
dilema é posto hoje em dia aos neonatologistas
nos casos de RCIU com BP. De facto , demonstrouse que um suprimento mais “agressivo”, propiciando maior quociente energético e maior incremento ponderal a curto prazo, comporta maior
risco metabólico e cardiovascular a curto e médio
prazo. A este propósito, considerou-se da maior
importância a noção de “crescimento rápido no
primeiro ano de vida , preditivo de maior risco
metabólico e cardiovascular”. (consultar parte
Neonatologia)
d) Outros aspectos
Em Portugal no ano de 2003 registaram-se
106690 óbitos, correspondendo 38% a doença cardiovascular, 20% a doença cerebrovascular cerebral(DCV) e 9% a enfarte do miocárdio. No
mesmo ano a prevalência de hipertensão arterial,
o principal factor de risco de DCV, foi 43%. Dados
recentes do INE (2008) apontam para o facto de a
hipercolesterolémia na população portuguesa
afectar cerca de 3,9 milhões em todas as idades
(mais de 25%).
Com a aplicação do conhecimento científico na
actualidade, está provado que é possível evitar
50% dos óbitos por DCV, sendo de referir que
parte importante das estratégias exequíveis para
atingir tal objectivo têm ponto de partida no período perinatal e em idade pediátrica com extensão ao adulto: nutrição adequada (rica em fibra
evitando excesso de sal e o regime hipercalórico) e
estilo de vida saudável dos progenitores para evitar a obesidade, vigilância pré-natal no sentido de
promover crescimento adequado do feto para prevenir quer o baixo peso, quer o peso excessivo do
recém-nascido, promoção do aleitamento materno
até aos 6 meses, exames de saúde em idade infantil e juvenil incluindo vigilância da pressão arterial a partir dos 3-4 anos (ou antes em situações
específicas), nutrição adequada e estilo de vida
saudável. Trata-se, portanto de estratégias que,
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto
para serem efectivas, terão que ser aplicadas de
geração em geração.
Afigura-se, pois, importante desenvolver no
futuro, diversas linhas de investigação no âmbito
da genética molecular e da nutrição pré-natal
englobando designadamente o estudo evolutivo
da relação massa gorda – massa magra desde o
período pré-natal até ao fim da adolescência e a
avaliação imagiológica da gordura abdominal
interior, preditiva de risco cardiovascular.
243
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244
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
46
HIPERTENSÃO ARTERIAL EM
SAÚDE INFANTIL E JUVENIL
João M. Videira Amaral
Definição
Considera-se hipertensão arterial (HTA) a situação clínica acompanhada de valores de pressão
arterial sistólica ou diastólica correspondendo ao
percentil 95 ou percentil >95 para a idade e o sexo,
em 3 ocasiões diferentes.
A chamda HTA limite corresponde às situações em que os valores da pressão arterial sistólica ou distólica correspondem ao intervalo entre os
percentis 90 e 95 para a idade e sexo.
A pressão arterial será considerada normal se
os valores da pressão arterial sistólica e diastólica
forem inferiores aos do percentil 90 para a idade e
sexo. (ver parte Nefrologia).
Os valores detectados deverão ser interpretados com base nos valores das tabelas de percentis
(Quadros 1, 2, 3, 4).
Aspectos epidemiológicos
A hipertensão arterial (HTA)constitui um factor
de risco idependente e importante para doença
crónica do adulto, em especial para a DCV e para
a doença vascular cerebral. Com efeito, a elevação
de apenas 5mmHg na pressão diastólica resulta,
respectivamente, em aumento de risco de DCV da
ordem de 20% e de 35% para a doença vascular
cerebral. Por sua vez, a HTA constitui ainda um
factor de risco para doença renal terminal na
idade adulta.
Relativamente a dados epidemiológicos relacionados com este problema, cabe dizer que afecta mais de 60 milhões de de pessoas nos EUA e
cerca de 1 milhão em Portugal.
Em décadas anteriores a HTA em idade
pediátrica era abordada apenas nas suas formas
secundárias relacionadas com patologia renal,
cardíaca ou endócrina. No entanto, estudos epidemiológicos recentes em várias regiões do globo,
demonstraram que a chamada HTA designada
por “essencial” ou não secundária é mais frequente que a secundária atingindo cerca de 2% da
população pediátrica.
Como a HTA essencial na criança e adolescente
é habitualmente assintomática uma vez que os
níveis tensionais se encontram apenas moderadamente elevados embora acima do percentil 95
para o grupo etário, o seu reconhecimento só é
feito se a medição da pressão arterial passar a
constituir um procedimento de rotina no âmbito
do exame clínico de rotina ou exame de saúde.
É importante acentuar que a HTA não reconhecida em idade pediátrica e, consequentemente não
tratada, manifesta tendência para se manter
durante a idade adulta; ou seja, a noção de estabilidade, ou tendência para a manutenção (tracking)
aplicada às dislipoproteinémias em idade pediátrica aplica-se também a este problema clínico.
Factores etiopatogénicos
Admite-se hoje que a HTA essencial tem a sua
origem na infância, sendo a sua etiopatogénese
relacionada com factores hereditários,estresse,
suprimento em sal e obesidade.
A obesidade, por exemplo, é reconhecida como
um dos mais importantes e idependentes factores
de risco para a HTA em crianças a partir dos 5
anos, e com maior relevância a partir da adolescência.
Outro factor de ordem ambiental implicado
diz respeito à ingestão de sal na alimentação; de
referir, a propósito, alguns estudos intervenção
alimentar: a restrição de sal durante os primeiros
6 meses promove a descida dos valores de pressão
sistólica.
O potássio também actua na regulação da
pressão arterial através da indução da natriurese e
da acção sobre a renina, suprimindo a sua produção e libertação.
Dados preliminares também constituem argumento para uma correlação inversa entre suprimento de cálcio no regime alimentar e pressão ar-
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil
245
QUADRO 1 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)
Idade
(anos)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
Percentil
Pressão arterial*
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
5%
97
101
99
102
100
104
101
105
103
107
104
108
106
110
108
112
110
114
112
116
114
118
116
120
118
121
119
123
121
124
122
125
122
126
Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg**
10%
25%
50%
75%
90%
95%
98
99
100
102
103
104
102
103
104
105
107
107
99
100
102
103
104
105
103
104
105
107
108
109
100
102
103
104
105
106
104
105
107
108
109
110
102
103
104
106
107
108
106
107
108
109
111
111
103
104
106
107
108
109
107
108
110
111
112
113
105
106
107
109
110
111
109
110
111
112
114
114
107
108
109
110
112
112
110
112
113
114
115
116
109
110
111
112
113
114
112
113
115
116
117
118
110
112
113
114
115
116
114
115
117
118
119
120
112
114
115
116
117
118
116
117
119
120
121
122
114
116
117
118
119
120
118
119
121
122
123
124
116
118
119
120
121
122
120
121
123
124
125
126
118
119
121
122
123
124
122
123
125
126
127
128
120
121
122
124
125
126
124
125
126
128
129
130
121
122
124
125
126
127
125
126
128
129
130
131
122
123
125
126
127
128
126
127
128
130
131
132
123
124
125
126
128
128
126
127
129
130
131
132
* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
Nota importante: Em clínica pediátrica é necessário dispor de braçadeiras/garrotes de diversas larguras a aplicar no
braço em função da idade:
– Lactentes: 2,5 cm; 1 - 4 anos: 5,6 cm; 5 - 8 anos: 9 cm; > 8 anos: 12 cm
No que respeita ao comprimento da braçadeira, o mesmo deverá ser suficiente para envolver completamente o braço. Se
a pressão arterial for determinada no membro inferior (coxa), pode utilizar-se a mesma braçadeira com o respectivo bordo
inferior a 3-5 cm do cavado popliteu.
246
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)
Idade
(anos)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
Percentil
Pressão arterial*
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg**
5%
10%
25%
50%
75%
90%
53
53
53
54
55
56
57
57
57
58
59
60
57
57
58
58
59
60
61
61
62
62
63
64
61
61
61
62
63
63
65
65
65
66
67
67
63
63
64
65
65
66
67
65
69
67
71
69
73
70
74
71
75
73
77
74
78
75
79
76
80
77
81
78
82
79
83
79
83
67
66
70
67
71
69
73
70
74
72
76
73
77
74
78
75
79
76
80
77
81
78
82
79
83
79
83
68
66
70
68
72
69
73
71
75
72
76
73
77
75
79
76
80
77
81
78
82
79
83
79
83
79
83
69
67
71
69
73
70
74
71
75
73
77
74
78
75
79
76
80
78
82
79
83
79
83
80
84
80
84
69
68
72
69
73
71
75
72
76
74
78
75
79
76
80
77
81
78
82
79
83
80
84
81
85
81
85
70
68
72
70
74
72
76
73
77
74
78
76
80
77
81
78
82
79
83
80
84
81
85
82
86
82
86
95%
56
60
61
65
64
68
67
71
69
73
71
75
72
76
74
78
75
79
76
80
77
81
78
78
80
84
81
85
82
86
82
86
82
86
* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
247
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil
QUADRO 3 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)
Idade
(anos)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
Percentil
Pressão arterial*
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg**
5%
10%
25%
50%
75%
90%
94
95
97
98
100
102
98
99
101
102
104
106
98
99
100
102
104
105
101
102
104
106
108
109
100
101
103
105
107
108
104
105
107
109
111
112
102
103
105
107
109
110
106
104
108
105
109
106
110
107
111
109
113
110
114
112
116
115
119
117
121
120
124
123
127
125
129
128
132
107
105
109
106
110
107
111
108
112
110
114
112
115
113
117
116
120
118
122
121
125
124
128
126
130
129
133
109
106
110
108
112
109
113
110
114
112
116
113
117
115
119
117
121
120
124
123
127
125
129
128
132
131
135
111
108
112
110
114
111
115
112
116
113
117
115
119
117
121
119
123
122
126
125
128
127
131
130
134
133
136
113
110
114
111
115
113
116
114
118
115
119
117
121
119
123
121
125
124
128
126
130
129
133
132
136
134
138
114
112
115
113
117
114
118
115
119
117
121
118
122
120
124
123
126
125
129
128
132
131
134
133
137
136
140
95%
102
106
106
110
109
113
111
115
112
116
114
117
115
119
116
120
117
121
119
123
121
125
123
127
126
130
128
132
131
135
134
138
136
140
* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
248
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)
Idade
(anos)
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
Percentil
Pressão arterial*
90
95
90
95
90
95
90
5%
50
55
55
59
59
63
62
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
90
95
66
65
69
67
72
69
74
71
75
72
76
73
77
74
78
75
79
75
79
76
80
77
81
79
83
81
85
Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg**
10%
25%
50%
75%
90%
95%
51
52
53
54
54
55
55
56
57
58
59
59
55
56
57
58
59
59
59
60
61
62
63
63
59
60
61
62
63
63
63
64
65
66
67
67
62
63
64
65
66
66
67
65
70
68
72
70
74
71
76
73
77
74
78
74
79
75
79
76
80
76
81
77
82
79
83
81
85
67
66
70
69
73
71
75
72
76
73
78
74
79
75
79
76
80
76
81
77
81
78
83
80
84
82
86
68
67
71
70
74
72
76
73
77
74
79
75
80
76
80
77
81
77
82
78
82
79
83
81
85
83
87
69
68
72
70
75
72
77
74
78
75
80
76
80
77
81
78
82
78
83
79
83
80
84
82
86
84
88
70
69
73
71
76
73
78
75
79
76
80
77
81
78
82
78
83
79
83
80
84
81
85
82
87
85
89
71
69
74
72
76
74
78
75
80
77
81
78
82
78
83
79
83
80
84
80
85
81
86
83
87
85
89
* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil
249
terial: tal suprimento, conduzindo a maior teor em
cálcio intracelular, tem influência na dimi-nuição
do tono vascular e na resistência arteriolar.
Outro aspecto – abordado no capítulo 45 – diz
respeito à relação entre baixo peso de nascimento
e HTA na vida adulta.
Lurbe E, Sorof JM, Daniels SR. Clinical and research of ambu-
Actuação
Newman WP 3rd, Freedman DS, Voors AW, et al. Relation of
latory blood pressure monitoring in children. J Pediatr
2004; 144: 7-16
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favourable lipoprotein profile. Circulation 2001; 103: 15461550
serum lipoprotein levels and systolic blood pressure to
O Programa –Tipo de Actuação em Saúde Infantil
e Juvenil da Direcção Geral da Saúde recomenda a
medição da pressão arterial a partir dos 4 anos, e
a Academia Americana de Pediatria a partir dos 3
anos . Tal medição deverá ser levada a cabo com
técnica e equipamentos adequados, tendo em
conta, nomeadamente, a aferição dos aparelhos e
a largura da braçadeira, esta útima devendo ser
adaptada para cada idade.
Em complemento do que é referido nas partes
sobre Nefrologia e Nutrição cuja consulta se sugere, acentuam-se os seguintes pontos que fazem
parte da actuação preventida.
– restrição de sal no regime alimentar
– prevenir e combater a obesidade
– estimular o consumo de alimentos ricos em
potássio
– promover a actividade física
– prevenir o baixo peso de nascimento
BIBLIOGRAFIA
Bartosh SM, Aronson AJ. Childhood Hypertension. An update
on etiology, diagnosis, and treatment. Pediatr Clin North
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Direcção Geral da Saúde. Saúde Infantil e Juvenil. Programa –
Tipo de Actuação nº12. Lisboa: DGS, 2002
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atherosclerotic cardiovascular disease beginning in childhood. J Pediatr 2003; 142: 368- 372
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Med 1986; 314: 138-144
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York:
Mc Graw - Hill, 2002
250
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
47
DOENÇA ATEROSCLERÓTICA
João M. Videira Amaral
Importância do problema
No âmbito das doenças degenerativas (DD), a
doença cardiovascular (DCV) constitui a principal
representante e, simultaneamente, a principal
causa de morte no mundo, seguida da doença
neoplásica e da doença vascular cerebral.
Nos Estados Unidos da América(EUA) cerca
de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido
a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de
americanos vivem com alguma forma de DCV.
A principal representante da DCV é a doença
coronária cardíaca(DCC), clinicamente manifestada como angor pectoris, enfarte do miocárdio ou
morte súbita.Outras formas de manifestação da
DCV incluem a doença vascular cerebral e as vasculopatias renais e periféricas A causa básica é a
aterosclerose.
Em Portugal, no ano de 2003, registaram-se
106690 óbitos, correspondendo 38% dos mesmos a
DCV, 20% a doença vascular cerebral e 9% a
enfarte do miocárdio.
As repercussões económicas deste tipo de patologia são preocupantes tendo em conta, designadamente, o seu elevado custo e o aumento
crescente da sua incidência. Com efeito, no que
respeita à prevenção e controle da mesma, não
tem sido possível obter resultados tão bons como
aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se
pode explicar pela complexidade dos respectivos
factores etiopatógenicos.
De acentuar que os melhores resultados obtidos se relacionam com programas de intervenção
incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de
hábitos alimentares como sejam: combate ao
sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em
gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos
hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto
mais eficaz quanto mais precocemente tiver início.
Tendo em conta que o estilo de vida e os
hábitos alimentares se adquirem na infância,
conclui-se que o pediatra (ou o clínico que presta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem
uma grande responsabilidade na redução do
impacte.
Aterosclerose
A aterosclerose é um processo crónico degenerativo e progressivo, caracterizado por depósito lipídico na íntima das artérias, de modo mais acentuado
nas de calibre grande ou médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferiores, aorta,etc.).
Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão
endotelial vascular englobando, sob o ponto de
vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas
provocadas pela acumulação de gordura, precursoras das chamadas placas fibrosas que aparecem
mais tarde.
Tais lesões originam fenómenos obstrutivos
vasculares com consequente isquémia nos territórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões
renais, doença isquémica dos membros inferiores
podendo evoluir para gangrena) manifestando-se
na idade adulta; é igualmente possível o desprendimento de trombos de lesões vasculares ulceradas
e/ou hemorrágicas.
As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipoproteins na sua forma oxidada desempenham
papel primordial na génese das estrias gordas, as
quais poderão ser já evidentes em exames postmortem na íntima da aorta desde a infância.
Stary encontrou também em exames postmortem lesões coronárias em 20% de crianças falecidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de
soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia
há décadas, foram detectadas lesões do tipo
descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%.
Recentemente, em estudos realizados em adolescentes com valores elevados de colesterol no
sangue,através de exames ecográficos foi possível
demonstrar sinais de placas fibrosas nas carótidas
em 10% dos casos.
Mais recentemente, no âmbito dos estudos de
Bogalusa em 1992, e no estudo PDAY (Pathobio-
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica
logical Determinants of Atherosclerosis in Youth) em
2002, foram detectadas lesões ateroscleróticas na
aorta a partir dos 3 anos de idade e nas coronárias
na segunda década da vida, tendo sido possível
relacionar o maior grau de défice da função
endotelial com o mais baixo peso de nascimento.
Actualmente chama-se a atenção para a importância das células progenitoras ou estaminais endoteliais que se formam na medula óssea, as quais
têm potencialidades para reparar a parede endotelial quando esta é lesada.
Através de técnicas especiais é hoje possível
proceder à determinação quantitativa de tais células progenitoras, sendo de referir que indivíduos
com mais elevado número de células progenitoras, em presença de factores de risco, têm maior
probabilidade de manter a normalidade da função
endotelial cardiovascular.
Todos estes achados fundamentam, com consistência, a noção de que a aterosclerose é uma
doença que tem início na idade pediátrica, apesar de habitualmente só ter expressão clínica na
idade do adulto. Por consequência, a prevenção
da aterosclerose e das suas complicações deve iniciar-se desde a idade pediátrica.
Factores de risco
Considerando factores de risco (noção decorrente
de estudos epidemiológicos) as características
identificáveis que, quando presentes, se associam
a mais elevada incidência da doença, relativamente à aterosclerose foram estabelecidos os discriminados no Quadro 1 englobados, numa perspectiva prática, em factores modificáveis e não
modificáveis; noutra perspectiva, a referida lista
engloba factores genéticos e factores ambientais,
interagindo entre si.
Nem todas as crianças, com estrias gordas apenas, desenvolvem aterosclerose na idade adulta,
do que resulta o papel de conjugação de outros
factores. De facto, para além dos factores de risco
clássicos, influências de tipo metabólico, infecção,
inflamação, assim como a influência programada
desde a vida fetal podem afectar a função
endotelial vascular e o consequente desenvolvimento de aterosclerose.
Serão abordadas, a seguir, as questões fundamentais relacionadas com os referidos factores
251
QUADRO 1 – Factores de risco de
aterosclerose
Não Modificáveis
Hereditariedade
Género
Idade
Raça
Modificáveis
Dislipoproteinémias
Hipertenão arterial
Tabagismo
Obesidade
Sedentarismo
Estresse
Diabetes
Baixo peso de nascimento
tendo em vista a intervenção aplicável na idade
pediátrica susceptível de redução do impacte.
Dislipoproteinémias
As dislipoproteinémias são situações clínicas caracterizados por alterações do nível plasmático de
colesterol total, (CT), triglicéridos, e das lipoproteínas habitualmente determinadas: LDL, VLDL,
HDL, apo A, apo B, Lp (a).
Os valores elevados de colesterol, principalmente do transportado pelas proteínas de baixa
densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão associados a patogénese das estrias gordas e placas
fibrosas (placa de ateroma).
Diversos estudos epidemiológicos, experimentais, clínicos e de anatomia patológica, demonstraram uma relação entre coronariopatia, enfarte
do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais
elevados de colesterol, por sua vez em relação
com suprimentos alimentares mais elevados de
gorduras saturadas.
Inversamente, foi demonstrado que os indivíduos com doença aterosclerótica e coronariopatia
melhoravam com a diminuição dos valores de
colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela
comprovação de regressão do ateroma e da diminuição da mortalidade em 2% por coronariopatia,
reduzindo em 1% o valor da colesterolémia,
segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP).
Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente
agudo relacionado com caronariopatia de base é
da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com
valores elevados de colesterolémia (total > 300
mg/dl e colesterol LDL > 240 mg/dl), aumentan-
252
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do o risco para 50% aos 50 anos (consultar parte
sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo).
Noutros estudos concluiu- se que a redução
em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40
anos se traduziu numa diminuição da incidência
coronariopatia na ordem dos 50%.
Acontece que as lipoproteínas circulantes na
idade pediátrica tendem a manter-se com idênticos
valores na idade adulta. É esta a noção de estabilidade ou de “tracking” empregando a terminologia
muito corrente da língua inglesa. Nos estudos de
Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) os valores
de colesterolémia aferidos aos 20 anos constituem
um factor preditivo de risco de coronariopatia entre
os 50 e 60 anos; 2) 50% das crianças com valores de
colesterolémia acima do percentil 75 evidenciavam
hipercolestrolémia 10 a 15 anos mais tarde; 3) entre
as crianças com valores baixos de colesterol HDL
pelos 10-14 anos, cerca de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos mais tarde.
No conjunto das dislipoproteinémias primárias, a
capacidade aterogénica é variável entre as mesmas.
1. Rastreios
Classicamente, em idade pediátrica, com o objectivo de identificar através do perfil lipoproteico os
casos com maior risco de DCV, são descritos dois
tipos de rastreio: o rastreio universal e o rastreio
selectivo.
– Rastreio universal
Este tipo de rastreio está hoje abandonado. Era
feito anteriormente nalguns países acompanhando o exame de saúde na data de entrada para a
escola, entre os 4-7 anos, e não antes, tendo em
conta as variações do colesterol total nos primeiros anos de vida. Valores de colesterolémia total >
200 mg/dl implicavam a determinação do perfil
lipoproteico completo.
Actualmente recomenda-se que em todos os
indivíduos após os 18 anos de idade seja realizado
o estudo do perfil lipídico.
– Rastreio selectivo
Neste tipo de rastreio procede- se à colheita
de sangue em circunstâncias específicas discriminadas no Quadro 2 nas crianças a partir dos 2-5
anos conforme diversas escolas.
Em geral, como primeira análise após jejum de
12 horas, determina- se a colesterolémia total; se
os valores ultrapassarem 200 mg/dl, deverá pro-
QUADRO 2 – Rastreio selectivo
de dislipoproteinémias
História familiar de:
– Coronariopatia ou doença cerebrovascular antes dos
55 anos em progenitor ou avô
– Hipercolesterolémia > 240 mg/dl em progenitor
– Dislipoproteinémia primária em progenitor ou familiar
– Morte súbita
– História familiar desconhecida e/ou factores de risco
associados
Estilo de vida de risco da criança/adolescente:
– Hábitos tabágicos
– Sedentarismo
– Obesidade
– Hipertensão arterial
– Fármacos com efeito dislipoproteinémico
ceder-se ao estudo doutros parâmetros, designadamende colesterol LDL e colesterol HDL, triglicéridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp(a).
Se valor de colesterol-LDL(C-LDL) for < 110
mg/dl a análise deverá ser repetida em função do
contexto clínico, em geral 4-5 anos depois.
Se C-LDL entre 110-130 mg/dl, a análise deverá ser repetida em função do contexto clínico para
reavaliação.
Se C-LDL > 130 mg/dl, está indicado regime
alimentar restritivo e eventual farmacoterapia em
função do contexto clínico conforme está especificado na parte XXXII.
Nos casos com anomalias bioquímicas detectadas deverá ser estabelecido um esquema de
vigilância periódica incluindo determinações do
perfil lipoproteico cada 2 a 3 anos para além do
esquema alimentar restritivo quanto a suprimento
de gorduras e doutros tipos de intervenção referidos na parte Nutrição.
A propósito do rastreio selectivo, cabe dizer
que pelo critério “antecedentes familiares “ deixam de ser rastreadas 50% de crianças portadoras
de dislipoproteinémias.
Nos casos de hipercolesterolémia familiar
homozigótica está indicado o rastreio no recémnascido (sangue do cordão umbilical).
2. Intervenção e recomendações
Nos primeiros 2 anos não está indicada a restrição
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica
253
QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco
Idades
12-24 M
> 2-4 A
5-9 A
10-14 A
15-18 A
Nº
23
57
83
59
10
Colesterol Total
Média (DP)
185 (15)
173 (28)
174 (31)
180 (28)
172 (25)
Colesterol LDL
Média (DP)
102 (29)
97 (25)
102 (23)
103 (25)
99 (12)
Triglicéridos
Média (DP)
89 (33)
76 (32)
67 (22)
71 (44)
64 (32)
Valores em mg/dl; DP = desvio-padrão
A= anos; M= meses
(JMV Amaral, 2005)
no suprimento em colesterol tendo em consideração o crescimento rápido do sistema nervosos
central e o facto de os lípidos constituirem o substrato essencial para a mielinização.
Após este período etário há que respeitar as
recomendações de consenso international publicadas por diversos organismos: (American Heart
Association, American Academy of Pediatrics,
ESPGHAN, etc.) referidas na parte Nutrição.
De acordo com normas de actuação de consenso internacional são considerados ideais valores de
colesterolémia total (CT) < 170 mg/dl e de C-LDL
< 110 mg/dl, C-HDL > 35 mg/dl ( relação C-LDL/
C-HDL < 3.0 ) e de triglicéridos < 125 mg/dl.
Reiterando o que foi já explanado são mencionadas as seguintes medidas dietéticas que interferem nos níveis plasmáticos de lipoproteínas:
– As fibras, além de diminuirem a absorção do
colesterol e de ácidos gordos saturados, competem com a síntese hepática de LDL;
– As frutas e os vegetais, possuindo propriedades
antioxidantes e preservando a estrutura e
função do endotélio vascular, contribuem para
prevenir a formação de placas de ateroma.
Relativamente ao estilo de vida, deverão ser
promovidas a actividade física de forma regular e
contínua(30 minutos diários, pelo menos 5 dias
por semana), a prevenção do consumo de álcool e
de tabaco nos adolescentes como formas de prevenir e controlar as dislipoproteinémias.
Os fármacos (estativas, colestiramina, etc.) são
abordados a propósito das Doenças Hereditárias
do Metabolismo.
colaboração laboratorial do Departamento de
Bioquímica da FCM/UNL em crianças da clínica
privada e da consulta externa do Hospital Dona
Estefânia (amostras de sangue obtidas na circunstância de existir prioritariamente a indicação de
outros exames analíticos do sangue), foi encontrada uma prevalência de dislipoproteinémias primárias da ordem de 5%, na sua maioria hipercolesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203
crianças aparentemente saudáveis); havia antecedentes familiares de hipercolesterolémia em um
dos progenitores em 26% dos casos.
Noutra amostra constituída por 232 crianças
aparentemente saudáveis de idade compreendida
entre 12 meses e 18 anos e sem factores de risco
cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, CLDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3
sobreponíveis aos valores de referência obtidos
por outros autores.
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PARTE X
Fluidos e Electrólitos
256
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
48
EQUILÍBRIO
HIDROELECTROLÍTICO
E ÁCIDO-BASE
Maria do Carmo Vale, João Estrada
e João M. Videira Amaral
Homeostase da água, líquidos
e electrólitos
Líquidos corporais, compartimentos e osmoles
O organismo humano necessita de água e electrólitos para manter a sua actividade metabólica.
Ao nascer , a água corresponde a cerca de 7580% do peso corporal, diminuido esta percentagem
ao longo do primeiro ano de vida até 55% a 60%,
semelhante à do adulto.
A totalidade da água corporal distribui-se
principalmente por dois espaços (E) ou compartimentos: o intracelular (contendo LIC ou líquido
intracelular) e o extracelular (LEC).
Ao nascer o LEC corresponde aproximadamente
a 45% do peso corporal e o LIC a cerca de 35%.
O LEC diminui rapidamente a partir da data
do nascimento, ao contrário do LIC que vai
aumentando, o que é relacionável com o crescimento celular; atingida a idade de 1 ano, a relação
entre estes dois compartimentos, semelhante à
que se verifica no adulto, passa a ser a seguinte:
LEC 20% a 25% do peso corporal, e LIC 30 a 40%
do peso corporal.
O LEC compreende a água do plasma (cerca de
5% do peso corporal ) e o líquido intersticial (cerca
de 15% do peso corporal). O volume de sangue
(volémia) na criança em geral, sendo o hematócrito de de 40%, corresponde a cerca de 8% do
peso corporal (ou 80 ml x peso corporal em kg);
em termos comparativos, no recém-nascido prétermo e ou de peso inferior a 1500 gramas, a
volémia corresponde a cerca de 10% do peso corporal.
O LEC e o LIC têm composições diferentes.
No LEC, entre os catiões predomina o sódio
(Na+: cerca de 140 mEq/L), seguindo-se quantitativamente o potássio (K+: cerca de 4 mEq/L) ;
entre os aniões predominam o cloro (Cl–: cerca de
104 mEq/L), seguindo-se o bicarbonato (HCO3–:
cerca de 24 mEq/L), e as proteínas ou aniões
orgânicos (Prot–: cerca de 14 mEq/L).
No plasma a soma de catiões (154 mEq/L)
deve ser igual à soma de aniões (154 mEq/L) para
que seja mantida a neutralidade eléctrica.
A este propósito é importante abordar sucintamente a noção de hiato iónico (aniões GAP) com
implicação prática importante na interpretação de
certas alterações do equilíbrio ácido-base; hiato
iónico é a diferença entre o valor medido do catião
Na+ e os aniões Cl– e HCO3–.
Hiato Iónico = Na+ - [(Cl–) + (HCO–3)]
(Normal: 4-11)
Hiato iónico é igualmente a diferença entre
catiões não medidos (k+, Ca++, Mg++) e aniões não
medidos (albumina, fosfato, urato, sulfato).
A situação de acidose metabólica (ver adiante)
pode estar associada ou não a hiato iónico alterado, considerando valores normais os compreendidos entre 4 e 11.
No LIC entre os catiões predomina o potássio
(K+, cerca de 155 mEq/L) e entre os aniões (orgânicos): o fosfato (P–: cerca de 95 mEq/L) e as proteínas (Prot–: cerca de 65 mEq/L) (Quadro 1).
Os dois subcompartimentos do EEC (de acordo com referido atrás o componente intravascular
e o espaço intersticial), estão separados pela membrana capilar; esta possui características dialíticas,
permitindo a livre passagem de água e solutos,
permanecendo impermeável às substâncias de
elevado peso molecular (proteínas). Estas localizam-se no espaço intravascular sem passar para o
interstício, fixando a água e condicionando a distribuição de líquidos de acordo com a pressão
oncótica e as leis de Starling.
No que respeita à diferença de composição
entre LEC e LIC quanto aos catiões K+ e Na+ , tal
é explicável pela actividade energética duma
bomba ATPase que promove, respectivamente, a
entrada de potássio para o espaço intracelular e a
saída de sódio para o espaço extracelular. Relati-
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base
257
QUADRO 1 – Iões e compartimentos coporais
Osmolalidade efectiva = 2 x [Na] + [Glucose]/18
Plasma
Em situações de hiperglicémia, a qual é
responsável por elevação da osmolalidade plasmática, ocorre movimento de água do espaço intracelular (IC) para o extracelular (EC) o que pode
levar a hiponatrémia (de diluição).
A magnitude deste efeito pode ser calculada
através da fórmula:
Catiões (mEq/L)
Na+
K+
Ca++
Mg++
Aniões (mEq/L)
Cl–
HCO3–
Proteínas
Ác. Orgânicos
HPO4=
SO4=
Plasma
Líquido
Líquido
intersticial intracelular
140
5
5
4
138
8
8
6
9
155
4
32
100
26
19
6
2
1
119
26
7
6
1
1
5
10
65
–
95
2
vamente aos restantes iões, as diferenças relacionam-se com permeabilidade ou impermeabilidade da membrana celular aos mesmos.
Como exemplos de situações que alteram o
volume da água do plasma citam-se os que ocorrem mais frequentemente na prática clínica: desidratação, osmolalidade anormal do plasma, policitémia, anemia, insuficiência cardíaca, hipoalbuminémia, etc..
Como exemplos de situações que contribuem
para aumentar o líquido intersticial, citam-se
doenças acompanhadas de edema de diversas
etiopatogenias: síndroma nefrótica, enteropatia
com perda de proteínas, insuficiência cardíaca,
insuficiência hepática, etc..
Existem diversos mecanismos que regulam a
normal mautenção, quer da volémia, quer da
composição dos LIC e LEC em electrólitos , quer
da osmolalidade do plasma a qual deverá oscilar
entre 285 e 295 mOsm/L. Tal corresponderá a densidade urinária de cerca de 1.010 ou osmolalidade
urinária de 280- 310 mOsm/L (urina isotónica)*.
A chamada osmolalidade efectiva (que corresponde à força osmótica que determina o movimento de água entre o espaço EC e o espaço IC)
calcula-se através da fórmula:
Conceitos fundamentais:
• Osmolalidade – concentração de partículas osmoticamente activas
existentes numa solução, expressa em osmoles por kg (ou por kg de água).
• Osmolaridade – tensão osmótica expressa pela quantidade de
moléculas-grama existentes num litro de solução.
[Na] corrigido = [Na] valor laboratorial + 1.6 x ([Glucose] - 100
mg/dL)/100
O valor de [Na] corrigido constitui um achado mais
representativo da verdadeira concentração de Na
plasmático.
Habitualmente a diferença entre a osmolalidade medida laboratorialmente e a calculada pela
fórmula atrás referida não ultrapassa 10 mOsm/L;
tal diferença permite definir o conceito de hiato
(GAP) osmolar.
Se o valor do hiato ultrapassar 10 mOsm/L
existirá a possibilidade interferência de osmóis presentes “não medidos”; é o que acontece, por exemplo na intoxicação pelo metanol ou etilenoglicol.
Os mecanismos homeostáticos que dizem respeito aos movimentos da água entre a célula e o espaço extracelular são regulados pela intervenção
dum conjunto de processos integrando hormonas
e outros componentes de características hormonais, os quais têm particularidades e limitações no
recém-nascido (RN).
Em tais mecanismos intervêm essencialmente:
o rim e o sistema renina-angiotensina, o péptido
natriurético e a hormona antidiurética (HAD).
O rim e o sistema renina – angiotensina
De modo sucinto, pode afirmar-se que o rim tem a
capacidade de alterar a percentagem de sódio filtrado no glomérulo em função da taxa de reabsorção tubular. Com efeito, o aparelho justaglomerular produz renina como resposta à diminuição do volume intravascular; os estímulos da
secreção da renina são: diminuição da pressão de
perfusão ao nível da arteríola aferente do glomérulo, diminução do teor em sódio que atinge o
túbulo distal, e a elevação do nível de agonistas
beta-adrenérgicos como reacção à hipovolémia.
A renina, enzima proteolítica, produz uma cli-
258
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
vagem da angiotensina, do que resulta o composto designado por angiotensina I que, por acção da
enzima de conversão da angiotensina, se transforma em angiotensina II.
A angiotensina II tem duas acções principais:
estimulação da reabsorção proximal tubular de
sódio e da secreção de aldosterona pela supararrenal; esta última, por sua vez, aumenta a reabsorção de sódio ao nível do túbulo distal.
Péptido natriurético
Este péptido, produzido no miocárdio auricular
sempre que se verifica distensão da cavidade auricular, tem as seguintes acções: aumento da taxa de
filtração glomerular, inibição da reabsorção tubular de sódio, o que tem como consequência facilitar o aumento da excreção urinária de sódio.
Hormona antidiurética (HAD)
A secreção da HAD aumenta como reacção à
osmolalidade plasmática elevada; a consequência
é maior reabsorção tubular de água e diminução
do débito urinário. Em situações de diminuição
acentuada da volémia verifica-se estimulação da
HAD e da sede independentemente osmolalidade
plasmática.
Relativamente à manutenção da volémia, considerando que o sódio constitui o principal catião
extracelular, praticamente confinado a este compartimento(LEC), pode inferir-se que, para a
manutenção da volémia, se torna absolutamente
necessário o suprimento em sódio dentro de determinados limites.
Perdas e necessidades de fluidos
(Manutenção)
Na perspectiva da administração de água e electrólitos (fluidoterapia) e da garantia de manutenção das condições fisiológicas (homeostase),
torna-se fundamental conhecer as respectivas
necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas) e
anormais. É igualmente importante reter as
seguintes noções:
1 – o movimento e renovação (turnover) de água
no organismo (entrada/suprimento e saídas/perdas) são, relativamente ao peso,
tanto maiores e mais rápidos quando menor
a idade a velocidade do crescimento; deduz-
se que esta particularidade cria maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desequilíbrio em crianças mais pequenas;
2 – a água é fundamental para o crescimento;
3 – como resultado dos processos metabólicos
produz-se água endógena;
4 – ao falar-se em necessidades em fluidos em
termos gerais a noção de fluido (ou líquido) engloba igualmente os lípidos; de facto,
se falarmos em necessidades hídricas (em
água) os lípidos, que são anidros, ficam
excluídos, tendo no entanto, impacte na
volémia e hemodinâmica; este aspecto é
importante em nutrição parentérica.
Perdas
As perdas habituais ou fisiológicas verificam-se
principalmente através da pele e aparelho respiratório (perdas de água sem electrólitos por evaporação ou perdas insensíveis), urina (perdas
urinárias) e fezes (perdas fecais).
Em circunstâncias anómalas, para além destas
perdas, há ainda que contar: com as chamadas
perdas para o terceiro espaço (desvio de líquidos
do espaço intravascular para o espaço intersticial);
e com as perdas através de tubos de drenagem
(por exemplo, torácicos, abdominais).
Saliente-se que as perdas através da sudação
não são consideradas perdas insensíveis: as perdas de água por evaporação não contêm electrólititos enquanto as perdas por sudação contêm água
e electólitos.
Sistematizando, apontam-se os seguintes valores:
perdas insensíveis
• 30 ml/kg/dia no lactente(valores superiores
no recém-nascido, sobretudo se de muito
baixo peso(inferior a 1500 gramas).
• 12 ml/kg/dia na criança maior
Como regra prática em função do contexto
clínico: 0,5 a 1 ml/kg/hora.
Situações como temperatura ambiente elevada
(incremento de 12% por cada grau acima de 38ºC),
taquipneia, traqueostomia, febre, fototerapia, etc.
aumentam as perdas insensíveis; outras, como
ambiente em incubadora com humidade relativa
aumentada, diminuem tais perdas.
Refira-se que as queimaduras aumentam as
perdas, não só de água , mas de electrólitos.
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base
QUADRO 2 – Composição aproximada de
fluidos orgânicos em electrólitos
Proveniência
Suco Gástrico
Suco
Pancreático
Intestino
Delgado
Bílis
Fezes
de Diarreia
Normal
Suor Fibrose
quística
Queimaduras
冦
Na+
mEq/L
20-80
120-140
K+
mEq/L
5-20
5-15
Cl–
mEq/L
100-150
90-120
100-140
5-15
90-130
120-140
5-15
80-120
10-90
10-30
10-80
3-10
10-110
10-35
50-130
110-140
5-25
50-110
110-140
perdas urinárias
• 2 ml//kg/hora (1 a 3 ml/kg/hora); cerca do
1 ano de idade: 400-500 ml/dia).
perdas fecais
• 5ml/kg/dia
Em situações de diarreia tais perdas de água e
de electrólitos aumentam significativamente.
As perdas para o chamado “terceiro espaço”
são difíceis de quantificar. Manifestam-se por
edema e/ou ascite, podendo o clínico confrontarse com uma situação especial: sinais de hipovolémia e aumento do peso explicado pelo edema.
O Quadro 2 discrimina o conteúdo em electrólitos de vários líquidos orgânicos, a considerar
em caso de perdas anormais
Líquidos de manutenção
Tendo em consideração as perdas atrás referidas (perdas ordinárias), em condições de normalidade– criança apirética, em estado de normovolémia, sem que seja necessária compensação
renal atrás descrita, produzindo urina isotónica
(densidade ~1.010), as mesmas deverão ser compensadas (para que não se gere desequilíbrio)
através do suprimento de líquidos e electrólitos
(líquidos de manutenção).
Para melhor compreensão do problema da
fluidoterapia a realizar nos casos de desequilíbrio
259
(desidratação ou outros problemas), opta-se por
considerarar a modalidade de manutenção de
líquidos por via endovenosa .
Para o cálculo do volume de líquidos de manutenção há que atender também ao consumo energético no pressuposto de que existe uma fonte
endógena de água – a água resultante dos processos de oxidação celular) (ver parte Nutrição).
Na prática, para atingir o referido equilíbrio,
utiliza-se habitualmente a tabela de correspondência de Holiday e Segar em termos de necessidades em volume de líquidos de manutenção na
base de 100 mL de água exógena por cada 100 kcal
de energia despendida. O objectivo principal é
manter a normovolémia. (Quadro 3).
Por exemplo, no caso de uma criança que pese
14 kg, o cálculo será: 1000 mL para os primeiros
10 kg+ 50 mL/kg para os restantes 4 kg, ou seja,
200mL. O total será, pois, 1200 mL para um dispêndio energético de 1200 kcal/dia.
Composição em electrólitos
Com base em estudos empíricos, as necessidades
em electrólitos a veicular em função do volume de
líquidos atrás definido são assim estabelecidas:
Por cada 100 mL de líquido administrado/ por
100 kcal despendidas:
• Na: 2 a 4 mEq (em média, 3 mEq)
• Cl: 2 a 4 mEq
• K: 2 mEq
À água que serve de veículo acrescenta-se 5
gramas de dextrose por cada 100 mL (dextrose a
5%), o que permite suprimento calórico suficiente
para impedir o catabolismo proteico e a cetose.
Em situações especiais utiliza-se a 10 %.
Em suma, o modelo recomendado de solução a
administrar por via endovenosa para a manutenção contém: quer Cl, quer Na → 20 a 40 mEq/L
QUADRO 3 – Necessidades em volume
de líquidos de manutenção
Peso (kg) kcal ou mL/kg/dia
1-10
100
11-20
1000+50x(Peso Kg-10)
21-80
1500+20x(Peso Kg-20)
mL/kg/hora
~4
40+2x(Peso Kg-10)
60+1x(Peso Kg-20)
(100 mL/100 kcal despendidas)
260
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
(média 30 mEq/L); K→ 20 mEq/L; dextrose → 50
gramas/L.
Na prática, trata-se dum soluto de “soro” fisiológico diluído a 1/5 (SF a 1/5) acrescentado de 20
mEq/L de cloreto de potássio(KCl).
Uma vez que o Cl é também veiculado pelo
“soro”, ou melhor, soluto fisiológico(NaCl a
9/1000 ou SF-isotónico), o conteúdo de Cl excede,
de facto as necessidades; na prática, tal excesso
face aos cálculos efectuados é irrelevante,sem
qualquer implicação.
O Quadro 4 resume vários tipos de solutos utilizados em fluidoterapia endovenosa.
A obtenção de “soros” a 1/2, 1/3, etc., pode alcançar-se por simples mistura “soro” salino fisiológico a “soro” glicosado ou dextrosado a 5 ou a
10%. Por ser mais prático, utilizamos o soluto de
cloreto de sódio a 20%, que adicionamos nas
quantidades referidas ao soro glicosado. Assim:
– Para obter soro a 1/2: adicionar a um litro de
dextrose a 5% (ou 10%) 22ml de soluto de
cloreto de sódio a 20%
– Para obter soro a 1/3: adicionar a um litro de
dextrose a 5% (ou 10%) 15ml de soluto de
cloreto de sódio a 20%
- Para obter soro a 1/5: adicionar a um litro de
dextrose a 5% (ou 10%) 9ml de soluto de
cloreto de sódio a 20%.
Equilíbrio Ácido – Base
Fisiopatologia (Noções fundamentais)
Tendo em conta o papel importante do pulmão e
do rim na regulação do equilíbrio ácido-base, é
importante recordar:
– O conceito básico de pH: número que exprime o logaritmo do inverso da concentração
QUADRO 4 – Composição de solutos utilizados
em fluidoterapia endovenosa
Na+ Cl– K+ Ca++ Lactato Osmolaridade
SF
154 154 –
–
–
308
SF a 1/2
77 77 –
–
–
154
SF a 1/5
34 34 –
–
–
~60
Lactato de
Ringer
130 109 4
3
28
271
Electrólitos e lactato em mEq /L; Osmolaridade em mOsm/L
hidrogeniónica em hidrogeniões – grama/litro.
(pH= log 1/[H+])
– O conceito de reacção de equilíbrio (anidrase
carbónica)
C02 + H20 ← → H2C03 → H+ +HCO–3
(A maior parte do C02 é transportado pelo
sangue sob a forma de HCO–3, havendo apenas uma
pequena porção de C02 livre dissolvido no plasma.
– A equação do Henderson – Hasselbalch: pH =
pH + log [H C0–3]/[PC02]
O pH do sangue depende, em cada momento,
da quantidade de base (HC0–3) e de C02 livre
– As funções do túbulo renal
• Proximal
Reabsorção passiva da maior parte da água filtrada, do sódio, do potássio e do bicarbonato
• Distal
Reabsorção activa do sódio
Concentração da urina
Excreção de [iões H+] e acidificação da urina
O pulmão, eliminando através da respiração o
CO2, impede a acumulação de CO2 produzido pelo
metabolismo normal do organismo.
Assim, a hiperventilação promove a eliminação de CO2, assim como a hipoventilação contribui para diminuir a eliminação de CO2 aumentando a sua acumulação no organismo.
Enquanto o pulmão regula o CO2, o rim regula
a concentração de bicarbonato sérico por um processo em que simultaneamente, por um lado, os
túbulos renais reabsorbem o bicarbonato que é filtrado no glomérulo e, por outro, os túbulos excretam hidrogeniões.
Por sua vez, a excreção urinária de hidrogeniões gera bicarbonato que vai neutralizar a
produção ácido endógeno.
Assim, o aumento de CO2 (acidose respiratória) conduz ao aumento da reabsorção tubular
proximal de bicarbonato, enquanto a redução de
CO2 (alcalose respiratória) diminui a reabsorção
tubular proximal de bicarbonato.
Por outro lado, a perda excessiva de bicarbonatos
pelas fezes em caso de diarreia pode condicionar acidose metabólica, secundariamente compensada por
uma eliminação de CO2 (acidose metabólica compensada respiratoriamente). Neste caso a redução do
pH sérico aumenta a frequência respiratória causando descida de CO2, condicionando, por outro lado,
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base
subida compensadora de pH sérico.
A subida de CO2 pode, assim, ser devida a uma
alcalose respiratória primária, ou secundária a
compensação respiratória por acidose metabólica.
Por sua vez a compensação respiratória de uma
alcalose metabólica primária traduz-se pela retenção respiratória de CO2.
Num processo respiratório primário há uma
compensação renal; com efeito, se se verificar acidose respiratória (hipoventilação), o rim aumenta
a produção de bicarbonatos, enquanto numa
situação de alcalose respiratória (hiperventilação),
por ansiedade ou crise asmática ligeira, o rim excreta maior quantidade de bicarbonatos, reduzindo a concentração sérica de bicarbonatos durante
cerca de 72 a 96 horas.
Comparativamente, cabe referir que a compressão respiratória de processos metabólicos
decorre em tempo mais curto: 12 a 20 horas.
Na maior parte das situações surgem alterações de tipo misto; são exemplos a criança com
displasia broncopulmonar, em que podem coexistir acidose respiratória (pela patologia pulmonar
crónica) e alcalose metabólica iatrogénica secundária à utilização de furosemido (por falência cardíaca direita).
Outro exemplo é o da sépsis, situação emergente, em que podem coexistir acidemia e acidose
metabólica grave por acidose láctica devido a
hipoperfusão, bem como, acidose respiratória por
falência respiratória.
Define-se acidose metabólica como diminuição
do pH sérico (< 7.35) secundária a um aumento de
hidrogeniões.
Define-se alcalose metabólica como elevação do
pH sérico (>7.42) secundária a excesso de bases.
Os termos acidémia e alcalémia referem-se a
anomalia bioquímica do pH em contraposição,
respectivamente, a acidose e alcalose que traduzem o processo fisiopatológico subjacente. Por
exemplo: a acidémia é sempre acompanhada de
acidose; contudo, determinado doente pode apresentar acidose com pH normal se se tiver processado a compensação respiratória.
Valores de referência no sangue (equilíbrio
ácido-base,PCO2 e PO2).
São descritos seguidamente os valores dos parâmetros classicamente considerados:
261
– Défice de base:
RN: (-10) a (-2) mmol/L
Lactente: (-7) a (-1) mmol/L
Criança/adolescente: (-4) a (+3) mmol/L
– Bicarbonato:
21 a 28 mmol/L (sangue arterial)
22 a 29 mmol/L(sangue venoso)
– PCO2: 32 a 48 mmHg
– PaO2 (sangue arterial):
RN (1 hora - 1 dia): 55 a 95 mmHg
Após período neonatal: 80 a 108 mmHg
– pH: 7.34 a 7.46
262
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
49
DESIDRATAÇÃO AGUDA
Mária do Carmo Vale, João Estrada
e João M. Videira Amaral
Etiopatogénese e manifestações
clínicas
Condições anómalas podem causar perda aguda
excessiva para o exterior, ou desvio para espaço
não funcional, de água e electrólitos, em proporções variadas (desidratação aguda).
Exemplos: diarreia, vómitos, fibrose quística,
golpe de calor, queimaduras, peritonite, ascite, etc..
De todas as etiologias referidas a mais frequente é
a causada por diarreia.
Para calcular o défice hidro-electrolítico a corrigir, ou o valor das perdas, é necessário avaliar o
grau de desidratação de acordo com a semiologia
clínica e a perda de peso (%):
• Desidratação ligeira (3-5%) – frequência
cardíaca normal ou aumentada, diminuição
do débito urinário, secreção lacrimal mantida, observação clínica normal.
• Desidratação moderada (6-10%) – taquicardia, diurese escassa ou ausente, olhos encovados e fontanela deprimida, diminuição de
lágrimas, mucosas secas, prega cutânea
moderada, pele fria e pálida, tempo de recoloração capilar aumentado e letargia ou irritabilidade.
• Desidratação grave (> 10%) – pulso rápido e
filiforme, pressão arterial diminuida, ausência de débito urinário, olhos e fontanela
muito deprimidos, ausência de lágrimas,
mucosas muito secas, prega cutânea marcada, pele fria e marmoreada (choque).
Para o cálculo deste défice é, pois, fundamental, em primeiro lugar proceder à anamnese e ao
exame objectivo; em casos especiais de interpretação mais difícil, de gravidade comprovada e/ou
em regime hospitalar realizam-se determinados
exames complementares. Saliente-se, no entanto,
que a experiência clínica e a observação cuidadosa
atendendo à valorização de determinados sinais
clínicos poderá tornar dispensáveis os exames
complementares, referidos adiante.
A proporção relativa da perda de electrólitos e
de água determina o tipo de défice e de desidratação. Este aspecto é importante, pois em função
do referido tipo são adoptados procedimentos
diversos relacionados com a composição dos solutos e a velocidade de administração:
Hipotónica
Na desidratação hipotónica há um desvio de água
do compartimento extracelular EEC (intravascular) para o EIC, o que condiciona um agravamento da depleção intravascular e clínica exuberante de desidratação.
Neste tipo o sódio sérico é inferior a 130
mEq/L e a osmolalidade sérica é inferior a 270).
Os sinais clínicos são sobreponíveis aos da desidratação isotónica, embora mais notórios. Na
hipotónica e na isotónica a desidratação é predominantemente extracelular. (Quadro 1).
Hipertónica
Pelo contrário, na desidratação hipertónica há
um desvio de água do EIC para o EEC com a
consequente preservação de volume intravascular, quadro clínico de desidratação menos exuberante, manutenção do débito urinário e
pressão arterial até estádios mais avançados de
desidratação.
Neste tipo, a natrémia é superior a 150 mEq/L
(osmolalidade sérica superior a 310), chamandose a atenção para os sinais clínicos diversos dos
da desidratação hipotónica.
Trata-se duma desidratação predominantemente intracelular com elevada morbilidade na
ausência de tratamento correcto por exempo: trombose, hemorragia intracraniana, etc.. (Quadro 1)
Isotónica
Neste tipo, caracterizado pelos sinais e sintomas
resumidos no Quadro 1 o sódio sérico encontra-se
dentro dos limites da normalidade (Na+ : 130- 150
mEq/L) explicável por perda proporcional de
água e de electrólitos. A osmolalidade sérica varia
CAPÍTULO 49 Desidratação aguda
263
QUADRO 1 – Sinais e sintomas de desidratação
Desidratação hipertónica
Desidratação hipotónica
Desidratação isotónica
Perda acentuada de peso
Irritabilidade
Hipertonia / convulsões
Meningismo
Pele quente
Fontanela deprimida/normal
Língua muito seca (~”lixa”)
Sede intensa
Olhos pouco encovados
Febre
Perda de turgor ligeira
Prega abdominal +
Oligúria
Escleredema
Pressão arterial +/-mantida
Respiração de Kussmaul
Perda de Peso
Prostração
Perda de Peso
Prostração
Hipotonia muscular
Pele acinzentada e fria
Fontanela deprimida
Língua pastosa
Ausência de sede
Olhos encovados
Febre inconstante
Perda de turgor acentuada
Prega abdominal ++++
Oligúria
Taquicardia
Hipotensão acentuada
Respiração de Kussmaul
Choque
Hipotonia muscular
Pele pálida e fria
Fontanela deprimida
Língua seca
Sede moderada
Olhos encovados
Febre inconstante
Perda de turgor acentuada
Prega abdominal +++
Oligúria
Taquicardia
Hipotensão
Respiração de Kussmaul
Choque
N. B.
Nos casos de obesidade é mais frequente a desidratação hipertónica:
São importantes os sinais a pesquisar:
– Olhos encovados
– Mucosas secas
– Turgor mantido (o tecido adiposo tem menor quantidade de água)
Nos casos de subnutrição são importantes os seguintes sinais de desidratação:
– Taquicardia (o subnutrido hidratado tem habitualmente bradicárdia)
– Fontanela deprimida
– Mucosas secas
– Olhos encovados
– Prega abdominal
entre 270-300). Trata-se do tipo mais frequente
(cerca de 85% dos casos).
Na desidratação isotónica ambos os mecanismos descritos atrás estão presentes.
De referir que a concentração de sódio sérico e
a osmolalidade de sérica permitem, em princípio,
determinar o tipo de desidratação.
No entanto, se este facto se verifica na maior
parte das patologias, tal não acontece nalgumas
situações (por exemplo na cetoacidose diabética)
em que ocorre desidratação hipertónica hiponatrémica (a hipertonia ou hiperosmolalidade é
condicionada pela hiperglicémia e não pela hiper-
natrémia). Este aspecto foi já focado anteriormente a propósito do papel dos osmoles. Outro
exemplo é a insuficiência renal aguda em que se
observa desidratação iso/hiponatrémica hipertónica condicionada pelos elevados níveis séricos de
ureia.
264
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
50
REIDRATAÇÃO
João M Videira Amaral, Maria do Carmo Vale
e João Estrada
Aspectos gerais
O esquema terapêutico da desidratação (ou reidratação) é um processo dinâmico que implica
vigilância constante ou frequente “à cabeceira do
doente”, devendo, pois ser individualizado.
A reidratação pode ser levada a cabo por via
oral, por via endovenosa ou pelas duas vias em
combinação.
Em muitos casos poderá haver necessidade de
modificação de estratégias inicialmente planeadas
face à evolução clínica, o que é explicável: pelos
mecanismos de compensação do organismo que
variam em função da gravidade; pela possibilidade de, a partir de determinada fase, o doente
passar a tolerar a administração de solutos por via
oral (nos casos de ser ter iniciado a correção por
via endovenosa), ou o contrário (nos casos em que
a correção iniciada por via oral passar a ser inviável por diversos motivos).
Numa primeira fase haverá que calcular o
valor das perdas, ou seja, o défice em líquidos.
Os exames complementares considerados
essenciais são: ionograma sérico, (prioritário)
determinação de ureia e creatinina no sangue, pH
e gases no sangue, análise sumária de urina (densidade e osmolalidade) e hematócrito. Em casos
especiais pode estar indicado o ionograma urinário de 12 ou 24 horas.
Quantificação do défice
Quantificando a desidratação pela percentagem
de perda de peso relacionada com os sinais e sintomas atrás apontados são adoptados os seguintes
procedimentos para reposição do défice:
Défice entre 3- 5%
Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via oral e em regime ambulatório mantendo o
regime alimentar habitual com algumas restrições
(ver parte Gastrenterologia)
Défice entre 6-10%
Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via endovenosa inicialmente, seguindo-se a administração ulterior de solutos por via oral, dependendo da tolerância digestiva (vómitos ou não).
Défice superior a 10%
Nesta situação acompanhada ou não de choque, há indicação de fluidoterapia endovenosa e
de seguimento inicial no hospital.
Para melhor compreensão do problema é descrita primeiramente, como modelo, a correcção
por via endovenosa.
Reidratação endovenosa
1ª Fase: reposição da volémia em situação de
défice > 10-15% (choque)
Trata-se duma actuação prioritária tendo em vista
a preservação da função cardiovascular para garantia de eficaz da perfusão dos órgãos, com especial relevância para o encéfalo e rins.
Actuação prática: solução isotónica (em geral
“soro” fisiológico ou lactato de Ringer) ao ritmo
de 10-30 mL/kg/hora; a duração desta fase, (entre
1 a 2 horas ) variará em função do contexto clínico, grau de desidratação e resposta inicial.
No caso de se tratar de situação com predomínio de vómitos (por exemplo estenose hipertrófica do piloro com perdas de conteúdo gástrico, ácido), dada a probabilidade de surgir alcalose
metabólica, não está indicado o lactato de Ringer
que pode exacerbar esta última.
2ª Fase: reposição do défice de líquidos e
electrólitos
O plano de reposição do défice implica a obediência a um conjunto de princípios: administração
concomitante, nesta fase, dos líquidos e electrólitos para a manutenção; reposição do défice em
tempo a determinar, variando em função do tipo
de desidratação; relativamente ao catião potássio
(K+), predominantemente intracelular, a compensação / reposição das perdas não pode ser imediata pelos perigos que tal envolve: somente deverá
265
CAPÍTULO 50 Reidratação
ser incorporado no soluto de manutenção após
comprovação de diurese mantida respeitando certos limites no suprimento (não exceder 40
mEq/litro de solução nem 0,5 mEq/kg/hora).
Tipo de solução
Na prática utiliza-se soluto salino fisiológico
(SF ou NaCl a 0,9%) diluído a 1/2 (o chamado
“soro a 1/2”) contendo 77 mEq de Na e 77 mEq de
Cl).
Planos
I) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes
com peso < 25 kg
– SF diluído a 1/2 em dextrose a 5%
– Volume: correspondente ao défice(por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, será
1000 mL );
– Débito ou “velocidade” de administração: 68 horas (chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da
resposta do doente e, eventualmente, modificação
da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o défice; planeando para 8 horas, o débito será
125mL/hora;
– Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao
soluto na proporção, em regra empírica, de 20
mEq/L de solução após o doente ter tido duas
micções;
Notas importantes:
a) Este plano implicando, administração de
“grande volume” de soluto em ritmo relativamente
rápido não é aplicável em doentes com mais de 25
kg, adolescentes, desidratação com défice/perda
de peso superior a 10%, com cetoacidose diabética
nem com desidratação hipernatrémica.
b) Com este plano, está implícita a estratégia
de considerar a contabilização da necessidades
de manutenção somente após a correcção do
défice (no exemplo atrás referido, somente após
as 6-8 horas, corrigido o défice após administração
de 1000 mL);
c) Na desidratação hiponatrémica poderá
haver necessidade de administrar sódio extra (a
acrescentar à solução atrás referida (SF diluído a
1/2) em função da natrémia entretanto determinada, aplicando a fórmula:
Défice em sódio = (130 - Na sérico) x 0,6 x
peso (em kg).
Em lactentes com perdas de carácter grave, os
défices prováveis, por Kg peso, são os descritos no
Quadro 1.
II) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes
com peso ≥ 25 kg
Como particularidade nesta situação, está
implícita a estratégia de reposição do défice mais
lenta, e de contabilização concomitante, já nesta
fase, das necessidades de manutenção.
– SF diluído a 1/2 em dextrose a 5%
– Volume: correspondente a metade do défice
acrescentado das necessidades de manutenção (por
exemplo doente de 26 kg e desidratação <> 10%,
será 2600 mL + 1620 mL ) (consultar Quadro 3 do
capítulo 48);
– Débito ou “velocidade” de administração: 68 horas(chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da
resposta do doente e , eventualmente, modificação
da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o
défice; assim, o débito nas primeiras 8 horas será
metade de 2600 mL, isto é 1300 mL, acrescentando-se, para as 16 horas seguintes (ou 24 horas
menos 8 horas = 16 horas) os restantes 1300 mL
aos cálculos da manutenção: (ou seja, 1300 mL +
1620 mL = 2920 mL) o que corresponde a um
ritmo ou débito de 182 ml /hora.
QUADRO 1 – Défices prováveis / kg de peso em lactentes com quadro de desidratação grave
Desidratação
Isótónica
Hipertónica
Hipotónica
Vómitos
(Estenose do piloro)
H2O(mL)
100 – 120
100 – 120
100 – 120
Na (mEq)
8 – 10
2–4
10 – 12
K (mEq)
8 – 10
0–4
8 – 10
Cl (mEq)
5 – 10
(-2) a (-6)
10 – 12
100 – 120
8 – 10
10 – 12
10 – 12
266
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Alguns autores contabilizam o volume calculado para as 24 horas seguintes; no exemplo citado,
para o volume calculado o débito seria, então
121,6 mL/hora.
– Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao
soluto na proporção, em regra empírica de 20
mEq/L de solução após o doente ter tido duas
micções;
Notas importantes:
Quer o plano I , quer o plano II poderão ser
aplicados em casos de doentes com desidratação
hipotónica ou isotónica em geral, mas não em
crianças e lactentes com quadro de desidratação
hipertónica.
III) Desidratação hipertónica
No caso da desidratação hipertónica a reposição do défice de líquidos e electrólitos tem particularidades relacionadas essencialmente com a
necessidade de duração superior à referida para
a forma iso-hipotónica;por outro lado, a particularidade de manifestação dos sinais subestima
muitas vezes a gravidade da situação.
Tratando- se duma forma de desidratação em
que há predomínio de perda de água em relação
ao sódio(Na) com consequentes hipernatrémia e
hiperosmolaridade séricas, para a correcção não
deverão ser utilizados solutos hipotónicos pelo
risco de passagem rápida de água para o espaço
intracelular, e de edema celular com implicações
graves ao nível do sistema nervoso central (edema
cerebral podendo originar, por exemplo, convulsões). Com efeito, neste tipo de desidratação predominantemente intracelular o encéfalo “gera”
osmoles idiogénicos para manter o volume celular; assim, a correcção do défice deve ser realizada de modo muito lento.
Na prática, e não existindo sinais de choque
(cujo tratamento é prioritário e semelhante ao que
foi referido noutras formas de desidratação), procede-se do seguinte modo:
– Soluto: SF diluído a 1/2 em dextrose a 5%
– Débito ou “velocidade” de administração
sempre superior a 24 horas, dependendo da
natrémia(Na em mEq/L):
145-157 → em 24 horas;
158- 170 → em 48 horas;
> 170 mEq/L → superior a 48 horas.
(Salienta-se que mais importante do que a com-
posição do soluto é a lentidão da correcção do
défice).
– Volume inicial: correspondente a metade do
défice, acrescentado das necessidades de manutenção (por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, com valor de natrémia de 160
mEq/L implicando reposição do défice em 48
horas, será :
→ 500 mL (metade do défice para as primeiras
24 horas + 1000 mL de soluto de manutenção);
→ a restante metade do défice nas restantes 24
horas (ou os restantes 500 mL do défice) + 1000 mL
de soluto de manutenção (consultar Quadro 3 do
capítulo 48);
– Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar
segundo a regra empírica de 20 mEq/L de solução
após o doente ter tido duas micções (diurese >
1ml/kg/hora);
Complicações que podem ocorrer no contexto da desidratação hipernatrémica/hipertónica:
– hipocalcémia; se fôr sintomática, deve proceder-se à sua correcção administrando gluconato
de cálcio por via endovenosa com monitorização
cardíaca (ver tratamento da hipocalcémia) sendo
que na solução de gluconato de cálcio (Ca) a 10%:
1 mL <> 100 mg de gluconato de cálcio e 9 mg de
Ca elemento <> 0,45 mEq de Ca++ ionizado;
– acidose metabólica (ver tratamento da acidose);
– hiperglicémia (relacionada com défice de
secreção de insulina e diminuição da sensibilidade
dos receptores celulares à mesma). Ao avaliar a taxa
de declínio da natrémia, há que entrar em linha de
conta com o efeito da hiperglicémia; ou seja, o valor
de Na sérico/natrémia determinado é mais baixo
que a “verdadeira natrémia” em cerca de 1,6
mEq/L por cada 100 mg/dL de glicémia acima de
100 mg/dL. Exemplificando: o valor de uma
natrémia de 170 mEq/L determinada em situação
de glicémia de 600 mg/dL corresponde, de facto, a
um valor real de 178 mEq/L de Na sérico.
Monitorização
Sendo a reidratação um processo dinâmico,
chama-se a atenção para a necessidade de vigilância permanente com avaliação dos seguintes
parâmetros:
– sinais vitais (frequência cardíaca/pulso, frequência respiratória, pressão arterial)
CAPÍTULO 50 Reidratação
– peso
– temperatura corporal
– balanço com registo de suprimento e de “saídas” de líquidos (fezes, urina, perdas insensíveis,
líquidos de drenagem, perdas para o “terceiro
espaço”)
– natrémia, osmolalidade sérica, densidade
urinária (elevada inicialmente entre 1020 e 1030)
– eventualmente: azotémia, creatinina e hematócrito, etc..
Estes procedimentos têm em vista possível
reajustamento do débito e do volume em cada 8,
12 horas e 24 horas em função do tipo de resposta do doente.
O débito de administração deve ser ajustado
de modo que se verifique diminuição da natrémia
ao ritmo aproximado de 0,5 mEq/L/hora ou 12
mEq/L/dia (caso específico da desidratação
hipertónica hipernatrémica).
Em cada 24 horas, no mínimo, deverá proceder-se a nova programação de débito e de volume
contabilizando as necessidades de manutenção.
Concretizando com várias hipóteses:
a) se o doente evidenciar taquicardia persistente mantendo-se os sinais de desidratação, o
grau de desidratação poderá ter sido subavaliado
inicialmente ou poderá haver perdas superiores às
inicialmente previstas.Em tais circunstâncias o
débito da administração deverá ser aumentado;
b) se o doente melhorar rapidamente e a densidade urinária diminuir progressivamente, a fase
da reposição do défice poderá ser encurtada, passando-se para 3ª fase. (ver adiante)
c) se a natrémia (Na) diminuir rapidamente,
diminuir o débito ou aumentar a concentração de
Na no soluto;
d) se o Na diminuir muito lentamente (<
12mEq/L/dia ou < 0,5 mEq/L/hora), diminuir a
concentração de Na do soluto, ou aumentar o
débito do mesmo.
Salienta-se que as perdas, entretanto verificadas, deverão ser sempre contabilizadas ao longo
do processo de correcção do défice.
3ª Fase: manutenção
A abordagem desta fase considerada separadamente, por razões de melhor compreensão, da
fase de reposição do défice, é aplicável nas situações de desidratação iso-hipotónica (plano I)
267
pois, de facto já foi feita referência à mesma a propósito das situações de desidratação hipernatrémica e de desidratação em casos de peso igual
ou superior a 25 kg de peso.
– Débito ou “velocidade” de administração: os
cálculos são feitos tendo como base as necessidades em líquidos para 24 horas, contabilizando
também, tanto quanto possível, as perdas para o
“terceiro espaço”.
– Soluto: soluto de manutenção (SF diluído a
1/5) em volume discriminado no Quadro 3 do capítulo 48, acrescentado de KCl na dose de 20 mEq/L
desde que haja garantia de diurese mantida.
– Duração: em função da situação clínica, iniciando-se, logo que possível em concomitância, a
reidratação oral (ver adiante).
– Particularidades: se as perdas para o terceiro
espaço forem significativas e prolongadas, deverse-á determinar a composição em electrólitos das
mesmas sendo necessário proceder à compensação em volume e em composição.
Reidratação oral
Indicações
A reidratação com solutos por via oral está indicada nos casos de desidratação ligeira a moderada
por diarreia aguda (desidratação correspondente
a perda de menos de 10% do peso); por vezes, se a
situação o permitir, poderá ser levada a cabo concomitantemente com a reidratação por via endovenosa, contabilizando com rigor o suprimento
dos respectivos solutos.
Contraindicações
Esta modalidade de reidratação está contraindicada nas seguintes situações: desequilíbrios hidroelectrolíticos importantes, choque, sépsis, íleo
paralítico, vómitos incoercíveis, perdas fecais
superiores a 10 mL/kg/ hora, disfunção renal,
alterações da consciência, idade inferior a 3 meses
e falência de reidratação oral prévia.
Fundamentação
A base fisiológica que legitima a administração
de soluções (água e electrólitos) por via oral relaciona-se com a verificação de que a absorção de
água e sódio por via intestinal pode ser rendibilizada com a adição de glucose.
268
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
De acordo com estudos realizados demonstrou-se que as soluções de reidratação oral (SRO)
podem corrigir com maior segurança a desidratação hipernatrémica do que os solutos por via
endovenosa, havendo menor risco de convulsões.
Preparados comerciais
Existe grande variedade de preparados comerciais
de soluções para reidratação oral (sigla ORS em
inglês).
A composição por litro (/L) é a seguinte: glicose /hidrato de carbono → 20 a 30 gramas; Na →
45 a 50 mEq; Cl → 35 a 80 mEq; k → 20 a 25 mEq;
citrato → 30 a 34 mEq; e 200 a 330 mOsm; (ver
parte XVI – Gastrenterologia, capítulo 107)
Como particularidades há a salientar diferença
entre a solução tipo OMS/UNICEF (cuja relação
Na/K em mEq/L é 90/20) e a solução tipo
ESPGHAN em que a mesma relação é 60/20. O
soluto OMS/UNICEF foi inicialmente concebido
para o tratamento de situações de cólera em África
e países em desenvolvimento; daí o seu teor superior em sódio.
No nosso meio (Portugal e países desenvolvidos sem aquele problema) estão mais indicadas as
SRO com teor mais baixo em sódio; com efeito, a
diarreia fora daquela situação é constituída por
líquido hipotónico.
Procedimento
Na prática:
– desidratação ligeira → alternar SRO com alimentação;
– desidratação moderada → SRO na dose de
15-25 ml/kg/hora (1 a 2 colheres das de chá de 5
em 5 minutos) durante 4 horas, tentando realimentar por via oral (com leite materno ou fórmula) logo que possível.
Em regra considera-se necessário o suprimento de cerca de 10 mL/kg por cada dejecção.
Situações especiais
Seguidamente são sintetizados aspectos semiológicos e os procedimentos a realizar perante as
alterações mais frequentes do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base associadas, por vezes, a
quadros clínicos de desidratação.
Acidose metabólica na desidratação (hipertónica
ou iso-hipotónica)
Substituir parcialmente o soro fisiológico (Na Cl
0,9% em que 1 ml=0,154 mEq de Cl e 0,154mEq de
Na+) por bicarbonato de sódio a 8,4% em que 1
ml=1 mEq de H– CO3 e 1 mEq de Na+).
Aplicar as fórmulas:
nº de mEq de H– CO3 a administrar: peso em
Kg x Défice de Base x 0,3 (ou 0,5 se se tratar de
recém – nascido).
Se pH < 7.2: administrar 1/2 da dose calculada em injecção intravenosa (i.v). directa diluída
como se referiu atrás e 1/2 em perfusão lenta a
juntar à perfusão prescrita.
Se pH > 7.2: 1/3 da dose em injecção i.v. directa diluída, e 2/3 da dose na perfusão que está a
correr
N.B.
– Após correcção da acidose, administrar Ca++
(0,5 mEq/Kg/dia a dividir por 3 doses)=1
ml/Kg/dia de gluconato de cálcio a 10%
– Nunca juntar no mesmo frasco bicarbonato
de sódio com gluconato de cálcio a 10%.
– O défice de base de 0 a 5 não necessita de correcção
– A acidose metabólica pode ser acompanhada
ou não de hiato aniónico alterado.
– Na hipótese de hiato aniónico > 11 com
clorémia normal há que admitir a possibilidade de acumulação de compostos tóxicos
ácidos (por ex. ácidos orgânicos e respectivos
metabolitos, ou de lactato e corpos cetónicos).
– Na hipótese de hiato aniónico entre 4 e11
associado a pH urinário alcalino (na ausência
de ácido láctico aumentado e de hipogliémia,
há que admitir a probabilidade de acidose
tubular renal.
– Na hipótese de acidose metabólica não completamente esclarecida e acompanhada de
hiato aniónico > 11, há que admitir a probabilidade de erro inato do metabolismo.
Hiponatrémia (Na+ inferior a 130 mEq/l)
a) de depleção (protidémia e hematócrito normais
ou aumentados); perda de Na+ por: vómitos e/ou
diarreia; pelo rim (causa renal – tubulopatia; – ou
suprarrenal); ou pela administração de NH4 Cl.
Sinais de desidratação.
Procedimento: Para elevar a natrémia (Na
CAPÍTULO 50 Reidratação
QUADRO 2 – Diagnóstico de Síndroma de
Secreção Inapropriada de
Hormona Antidiurética (SIADH)
• Osmolalidade urinária > 100 mOsm/Kg (em geral
superior à sérica)
• Osmolalidade sérica < 280 mOsm/Kg
• Natrémia < 135 mEq/L
• Natriúria < 25 mEq/L
Ausência de insuficiência renal, suprarrenal,
hipotiroidismo, insuficiência cardíaca, síndroma
nefrótica, cirrose, ingestão de diuréticos, desidratação
ordem dos 10 mEq): P em Kg x0,6x10=nº de mEq
de NaCl a administrar.
b) de diluição (protidémia e hematócrito
diminuídos); intoxicação pela água ou SIADH
(síndroma de secreção inapropriada de hormona
antidiurética) (Quadro 2).
• SIADH: coma, ausência de sinais de
desidratação, convulsões ou letargia, ausência de
edema); (intoxicação pela água: salivação,
secreção lacrimal, vómitos, edema, convulsões).
• Procedimento na SIADH: restringir líquidos;
administrar sódio, sob a forma de NaCl isotónico
(ou hipertónico se houver coma ou convulsões
segundo a fórmula e esquema referido antes).
• Procedimento na intoxicação aquosa: a)
Manitol a 10%:10ml/Kg que pode ser repetido; b)
Administrar Na+ segundo a fórmula atrás referida;
em caso de convulsões, administrar NaCl a 3%,
1ml/min. até máximo de 12ml ou até que cessem
as convulsões.
Hipernatrémia sem sinais de desidratação ou
intoxicação salina (Na+ superior a 150 mEq/L)
Procedimentos: a) Diuréticos (Furosemido 0,51mg/Kg); b) Perfusão i.v. de dextrose a 5%; c)
Administração de sais de potássio (K+); d) Eventualmente diálise peritoneal para natrémias superiores a 175 mEq/L.
Hiperpotassémia (K+ superior a 6 mEq/L)
As etiologias mais frequentes relacionam-se com:
insuficiência suprarrenal (hiperplasia SR), suprimento em excesso, hemólise, hipotermia, acidose, etc.).
Sinais: apatia, bradicárdia colapso, ondas T pontiagudas (Quadros 3 e 4). O procedimento é o seguinte:
269
• Lutar contra o choque hipovolémico quando
presente;
• Alcalinização rápida (Preferir HNa CO3
M/2, em que 1 ml=0,5 mEq de bicarbonato),
dando 2 a 4 mEq/Kg/em 1 hora;
• Dextrose a 30% - (40 a 50 ml em 1/2 hora) +
Hidrocortisona (1 mg por cada grama de
dextrose) + Insulina (I U. I. Por cada 5 gramas de dextrose);
• Aspiração gástrica;
• Resinas permutadoras;
• Diálise peritoneal. N.B. No caso de estar em
causa insuficiência suprarrenal, dar NaCl:
1g/Kg/dia + Hidrocortisona: 10mg/Kg/dia.
Hipotassémia (K+ inferior a 3,5 mEq/L; grave se
inferior a 2,5 mEq/L)
As etiologias mais frequentes são: vómitos e/ou
diarreia, tubulopatias, coma diabético, administração excessiva de fluidos endovenosos promovendo diurese excessiva e arrastando K+)
(Quadros 3 e 4).
• O aspecto clínico mais relevante da hipotassémia iatrogénica é a inoperância duma reidratação aparentemente correcta com persistência do
desequilíbrio hidroelectrolítico.
• Sinais de alerta: hipotonia, íleo paralítico,
dispneia, taquicárdia, poliúria, diminuição da
QUADRO 3 – Manifestações clínicas da hiper e
hipotassémia
Hiperpotassémia
Apatia, torpor, obnubilação
Formigueiros
Pele pálida e fria
Bradicárdia e arritmia
Colapso periférico com tons cardíacos apagados
Paralisia flácida dos membros (raramente)
Síncope cardíaca
Hipopotassémia
Hipotonia muscular ou paralisia
Dispneia e cianose
Taquicardia
Distensão abdominal, náuseas e vómitos
Dilatação cardíaca, tensão venosa elevada
Síncope cardíaca
270
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Alterações electrocardiográficas
da hipo e da hiperpotassémia
Hiperpotassémia ( > 6 mEq/L)
Onda T pontiaguda
Intervalo P-R alargado
Ausência de onda P
Alargamento do QRS
Fibrilhação ventricular terminal
Hipopotassémia ( < 3,5 mEq/L)
Onda T de baixa voltagem
Presença da onda U
Depressão de S-T
Achatamento da onda T com onda U proeminente
Paragem cardíaca terminal
amplitude até ao desaparecimento das ondas T,
depressão negativa de ST, ondas U.
• Procedimento: A correcção deve ser lenta,
podendo durar 3 – 4 dias; a finalidade será obter
potassémias de segurança (3,5 mEq/L), com vigilância seriada dos sinais do ECG.
• Podem ser adoptados dois esquemas práticos:
→ Administrar K+ (KCl) na dose de 4 – 5
mEq/Kg/dia (ou 0,2 – 0,3mEq/Kg/hora em perfusão i.v. não ultrapassando 50 mEq/litro);
abstenção de injecções directas de KCl com
seringa.
No caso de existir acidose hiperclorémica,
optar por outro sal de K, v.g. acetato ou lactato de
K; ou
→Aplicar a fórmula seguinte para calcular a
dose de KCl a administrar:
KCl (em mg)=74,6 x (3,5 – potassémia do
doente) x volémia
Volémia = 80 ml x peso em Kg
1 mEq de K+ = 74,6mg de K
N. B. – A hipotassémia impede a manifestação
de tetania, inclusivamente com valores baixos de
Ca++; o mesmo acontece em relação à acidose.
Acidose respiratória
O tratamento da acidose respiratória será primordialmente o da anomalia respiratória casual.
Alcalose respiratória
Não precisa de correcção por ser auto – limitada.
Alcalose metabólica (pH > 7,5 e paCO2 entre 3050mmHg)
• A substância acidificante mais utilizada é o
NH4 Cl (solução a 9% (1/6 M) que contém 167
mEq de Cl– e de NH+4. Cada 1 ml/Kg faz baixar o
bicarbonato de 0,5 mEq/L, e cada 2 ml elevam o
Cl– plasmático em 1 mEq/L.
• Precauções: contraindicação na insuficiência
hepática; aumenta as perdas de K+; evitar que o Cl–
ultrapasse 85-90 mEq/L.
• Como alternativa ao NH4Cl pode empregarse KCl (3-5 mEq/Kg), até se obter urina alcalina
(dado que na situação a corrigir existe acidúria
paradoxal).
Hipocalcémia pós – acidótica (convulsões,
colapso, apneia, etc.). A normalização da acidose
diminui a fracção ionizada do cálcio, o que determina a chamada “tetania pós – acidótica”
• Tratamento de emergência: KCl (200-400
mg/Kg) e gluconato de cálcio a 10%, na dose de (2
ml/Kg) i.v. em 10 minutos; excepcionalmente, 5
ml de gluconato de cálcio a 10% + 5 ml de dextrose
a 5% , i.v. directo, ao ritmo de 1 ml/minuto, com
vigilância de ECG.
• Dose de manutenção: 700 - 800 mg de gluconato de cálcio/kg/dia.
• ECG nas hipocalcémias: aRat/RR superior a
0,50 (referências: vértices de R e de T).
Aspectos importantes a considerar
no tratamento da desidratação
– No decurso duma desidratação é frequente verificar-se alteração transitória da função renal;
assim, são frequentes os achados de hiperazotémia, albuminúria, glicosúria, etc..
– Se surgir hipo-osmolalidade urinária (traduzida por densidade inferior a 1005) associada a
hipernatrémia (Na+ superior a 150 mEq/L), há que
admitir poliúria insípida.
– Admitir síndromas de perda de sal se natrémia inferior a 130 mEq/L com:
• Natriúria superior a 20 mEq/L, pH urinário
superior a 6, pH sanguíneo inferior a 7.2 (acidose) → provável uropatia/tubulopatia.
• Natriúria inferior a 10 mEq/L, associada a
hipotassémia → provável causa supra –
renal.
CAPÍTULO 50 Reidratação
QUADRO 5 – Factores de Conversão
Fósforo
Magnésio
Cálcio
Unidade
mg/dl
mg/dl
mEq/L
mg/dl
mg/dl
mEq/L
mg/dl
Factor
0,32
0,41
0,50
0,82
0,25
0,50
0,50
Unidade
mmol/L
mmol/L
mmol/L
mEq/L
mmol/L
mmol/L
mEq/L
Nota: Os valores em unidades da coluna da esquerda
são convertidos em unidades da coluna da direita multiplicando-os pelo factor de conversão; os valores em
unidades da coluna da direita são convertidos em
unidades da coluna da esquerda dividindo-os pelo factor de conversão.
NB • A perda de sal de causa suprarrenal é
mais frequente nos primeiros meses.
• A perda de sal de causa renal é mais frequente após os primeiros meses,
excepção feita para o chamado pseudo
– hipo-aldosteronismo congénito.
O Quadro 5 elucida de modo prático sobre a conversão de unidades mg/dl – mEq/L – mmol/L,
relativamente ao cálcio, fósforo e magnésio.
BIBLIOGRAFIA (capítulos 48 a 50)
Berman S. Pediatric Decision Making. St Louis: Mosby, 2003
Burg FD, Polin RA, Ingelfinger JR, Gershon AA. Gellis&
Kagan’s Current Pediatric Therapy. Philadelphia: Saunders,
2002
Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics.
Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea.
Current Paediatrics 2003; 13:95-100
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds).
Nelson Texbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders
Elsevier, 2007
Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE (eds).
Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
Saunders, 2006
Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics.
Edinburg: Mosby Elsevier, 2007
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolphs’s. Pediatrics. New York:
McGraw-EHill, 2002
271
PARTE XI
Nutrição
274
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
51
NUTRIENTES
Ignacio Villa Elizaga
Importância do problema
Considera-se alimentação adequada aquela que
propicia os nutrientes que promovem o crescimento e o desenvolvimento adequados, nomeadamente do sistema nervoso, o que constitui garantia para a saúde e bem-estar da criança, adolescente e futuro adulto.
O termo nutriente refere-se ao componente
nutritivo do alimento, sendo este último definido
como o composto ingerido; o alimento engloba,
por sua vez, elementos nutritivos e não nutritivos.
São consideradas sete categorias principais de
nutrientes: 1. água; 2. energia; 3. proteínas; 4. hidratos de carbono; 5. gorduras; 6. vitaminas; 7.
minerais (minerais major e oligoelementos )
O termo nutrição diz respeito ao conjunto de
trocas que se verficam entre o organismo vivo e o
meio que o rodeia.
Com efeito, as crianças são mais vulneráveis
aos estados de subnutrição do que os adultos por
três razões fundamentais: a) mais baixas reservas
de nutrientes, (e tanto mais quanto mais baixos
forem o peso corporal e a idade) pelo risco de mais
rápido esgotamento; b)maiores necessidades para
o crescimento que é mais rápido, sobretudo no
primeiro ano de vida (período em que o peso de
nascimento triplica e o comprimento aumenta
50%); c) rápido desenvolvimento neuronal durante o último trimestre da gravidez e nos primeiros
dois anos de vida pós-natal, sendo de salientar
que a complexidade das conexões neuronais é
extremamente vulnerável à subnutrição
Os princípios da nutrição na actualidade
repousam ainda numa certa base de empirismo e
de hábitos transmitidos de geração em geração.
De facto, é difícil ainda avaliar as possibilidades
de adaptação e de compensação do organismo em
desenvolvimento (regulada geneticamente) quanto à absorção, metabolismo e excreção de determinados nutrientes face à carência de outros.
Por outro lado, as chamadas “curvas ou tabelas “ de crescimento concebidas matematicamente
com base nos dados colhidos em grande número
de indivíduos de determinada população e região,
poderão não se aplicar com rigor noutra população com características e padrão nutricional diversos para avaliação da “normalidade” dos incrementos em peso, altura e outros parâmetros, o
que constitui uma limitação.
Talvez, num futuro próximo, os progressos da
biologia molecular ajudem a compreender melhor
a grande variabilidade dos mecanismos homeostáticos do metabolismo que expliquem, nomeadamente, as variações de susceptibilidade e de tolerância a carências e a excessos de nutrientes.
Critérios para o cálculo de nutrientes
As necessidades em macronutrientes (hidratos de
carbono, lípidos, prótidos) e em micronutrientes
(minerais e vitaminas) variam de indivíduo para
indivíduo em função da idade, velocidade de
crescimento, grau de actividade física e de factores
genéticos interagindo com factores ambientais.
O Food and Nutrition Board, a National Academy
of Sciences e o National Research Council, produzindo ao longo dos anos um acervo de dados científicos sobre nutrição, determinaram as necessidades
nutricionais adequadas de algumas substâncias
susceptíveis de originarem, quando em défice,
estados carenciais; de referir que os valores estabelecidos são periodicamente revistos.
O mesmo Food and Nutrition Board publicou
em 2004 os chamados “ valores de referência a utilizar para o cálculo do regime alimentar” (Dietary
Reference Intakes ou DRI) relativos ao cálcio, fósforo, magnésio, vitamina D, flúor, folato e vitaminas do complexo B, restantes nutrientes, água e
electrólitos e fibras.
No conceito de DRI são abrangidos os seguintes parâmetros:
• EAR (Estimated Average Requirement) – “necessidade média ou valor quantitativo estimado” significando o suprimento de determinado nutriente que satisfaz as necessi-
CAPÍTULO 51 Nutrientes
dades de 50% da população considerada
saudável em relação aos critérios utilizados
como referência. Dum modo geral são considerados os valores diários durante uma
semana ou durante uma etapa concreta da
vida.
• RDA (Recommended Dietary Allowance) ou
“suprimento nutricional recomendado” significando o valor quantitativo de determinado nutriente que satisfaz as necessidades da
maioria 97% – 98% da população saudável.
A relação quantitativa entre RDA e EAR é
estabelecida pela seguinte equação: RDA =
EAR + 2 DP(desvios-padrão).
• AI (Adequate Intake) ou “suprimento adequado”.
Nos casos em que não se dispõe de dados suficientes para calcular o EAR, emprega-se a AI para
determinar o consumo médio de nutrientes (por
ex., nos recém-nascidos a AI baseia-se no consumo
diário de nutrientes de um lactente saudável
nascido de termo e alimentado exclusivamente
com leite materno); globalmente pode afirmar- se
que a AI se baseia no suprimento diário de determinado nutriente em indivíduos saudáveis.
De acordo com os peritos do organismo anteriormente referido foi recomendado que se
empreguem as AI para todos os nutrientes em
crianças com menos de 1 ano, e, para o cálcio, vitamina D e flúor, em todas as etapas da vida.
• ULs (Tolerable Upper Limits) ou “limite superior tolerável“ do nutriente que não comporta risco de efeitos adversos em indivíduos
saudáveis; ou seja, o risco de efeitos adversos
e de toxicidade aumenta com o aumento de
consumo do nutriente acima de tal limite.
É provável que, com o desenvolvimento de
estudos e o conhecimento de mais resultados, os EAR venham a substituir os RDA.
• UL (Tolerable Upper Intake Level) ou “suprimento máximo tolerável“ significando o
suprimento máximo diário de determinado
nutriente que não origina efeitos adversos na
quase totalidade de um grupo da população
saudável.
De acordo com as recomendações dos peritos
internacionais em nutrição em idade pediátrica
dos organismos atrás referidos assim como doutros (American Academy of Pediatrics/AAP, Food and
275
Agriculture Organization/FAO da Organização Mundial
de Saúde), European Society for Pediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition/ESPGHAN) abrangendo estudos populacionais representativos de
todas as partes do globo, na prática é recomendado que se utilizem quanto aos suprimentos em
nutrientes, os critérios DRI ou RDA.
Dado que para algumas substâncias essenciais
ainda não se conhecem estes dados, poderá admitir-se que um regime alimentar variado seja a
única forma prudente de as fornecer após o período da lactação. O leite humano parece fornecer
todos os elementos essenciais durante um período
prolongado. Ainda que alguns nutrientes essenciais devam ser incluídos no regime alimentar
diário, outros são armazenados pelo organismo,
podendo, por consequência ser administrados
periodicamente.
Necessidades nutricionais
e recomendações
1. Água
A água (o solvente do nosso organismo) é essencial para a existência, surgindo a morte por carência absoluta em número variável de dias. O conteúdo em água é maior nas crianças mais pequenas em relação às maiores e aos adultos - cerca de
75-80% do peso corporal nos recém-nascidos (RN)
contra 55-60% nos adultos.
A água corporal total distribui-se pelos
seguintes compartimentos: intracelular(IC) e
extracelular (EC); o EC, por sua vez, compreende
o interstício e o plasma.
No adulto as respectivas proporções são as
seguintes: IC <> 2/3;EC<> 1/3. No EC: 3/4 <> ao
interstício e 1/4 <> ao plasma.
Na criança a água corporal está diferentemente
distribuída. No recém- nascido o EC <> 45% do
peso corporal e o IC<> 35%. Com a idade a proporção do IC vai aumentando e a do EC diminuindo, atingindo-se os valores semelhantes aos do
adulto quando é atingido o peso de 15 kg (Ec<>
20-25%; IC<>30-40%.
Embora os líquidos administrados constituam
o principal suprimento em água, parte desta
obtém-se da oxidação dos alimentos (os regimes
alimentares mistos fornecem aproximadamente
12 gramas de H2O/100 Kcal) e, em caso de neces-
276
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
sidade, dos próprios tecidos corporais (fonte
endógena: cerca de 5-10 ml/kg/dia).
A oxidação de 100 gramas de gordura, de
hidratos de carbono e de proteínas produz respectivamente 107, 55 e 41 gramas de água
As necessidades de água dos seres humanos
dependem do consumo de energia (calorias), das
perdas globais de líquidos incluindo as perdas
insensíveis, e do funcionamento renal, o que pode
ser avaliado de modo sumário e fora de situações
patológicas, pela densidade urinária.
O valor de RDA para a água actualmente não
está determinado, esperando- se no futuro que o
Food and Nutrition Board defina o DRI.
O Quadro 1 resume globalmente as necessidades em água no grupo etário pediátrico.
O Quadro 2 resume as necessidades diárias de
manutenção em líquidos aplicáveis na idade
pediátrica.
Recorda-se, a propósito, o que foi referido no
capítulo 48 a propósito da terminologia água/hídrico versus fluidos/líquidos, assumindo relevância
quando se trata de administração por via IV.
O consumo diário de líquidos por parte do RN
saudável equivale a 10-15% do peso corporal, em
comparação com 2-4% no adulto. De referir que o
alimento habitual dos recém-nascidos e crianças
mais pequenas (o leite) tem um grande conteúdo
em água (cerca de 89%) o qual aumenta para 95%
como resultado da oxidação a que atrás nos referimos; a maior parte dos alimentos sólidos do
regime alimentar duma criança contém cerca de
60-70% de água e, muitas das verduras e frutas
cerca de 90%.
A água absorve-se, em grau variável, em todo
o trajecto do tubo intestinal. A quantidade de água
que existe no compartimento intersticial muda
com facilidade para manter o equilíbrio homeostático entre os compartimentos intracelular e vascular. As trocas de água entre estes compartimentos dependem das respectivas concentrações de
proteínas e de electrólitos. Em função da velocidade de crescimento, fica “retida” no organismo
um percentagem variável do suprimento em líquidos (entre 0.5-3%). Num “lactente de referência do
sexo masculino”, a retenção de água varia entre 925 mL/24 horas durante o primeiro ano de vida.
O equilíbrio hídrico depende de variáveis tais
como o conteúdo de proteínas e minerais no
QUADRO 1 – Necessidades de água
Idade
3d
10 d
3m
6m
9m
12 m
2a
4a
6a
10 a
14 a
18 a
Peso médio(kg)
3,0
3,2
5,4
7,3
8,6
9,5
11,8
16,2
20,0
28,7
45,0
54,0
Água (ml/kg/24 horas)
80-100
125-150
140-160
130-155
125-145
120-135
115-125
100-110
90-100
70-85
50-60
40-50
d= dias; m= meses; a= anos
QUADRO 2 – Necessidades de líquidos
/Líquidos de manutenção
1- 10 kg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 ml/kg
11-20 kg . . . . . . . .100 ml + 50 ml / cada kg acima de 10
21 kg e mais . . . 1500 ml + 20 ml / cada kg acima de 20
regime alimentar o qual, por sua vez, determina a
carga de solutos a ser submetida a excreção renal,
as taxas metabólica e respiratória, e a temperatura
corporal.
A osmolaridade do plasma traduz a osmolaridade do organismo a qual é mantida em valores
da ordem de 287mOsm/L para que o volume
celular se mantenha constante.
O RN consome quantidades de água por
unidade de peso corporal muito maiores que o
adulto; contudo, fazendo os cálculos por unidade
de ingestão calórica, as quantidades necessárias
são quase idênticas . Como regra geral pode estabelecer-se que as necessidades são 60 ml/kg no
primeiro dia de vida, atingindo-se 125-150
ml/kg/dia no 7º dia.
No RN de muito baixo peso (RNBP ou de peso
inferior a 2500 gramas) e idade gestacional
inferior a 37 semanas em circunstâncias consideradas de estabilidade clínica, em crescimento, e de
ambiente de termoneutralidade com uma humidade entre 50-80%, as necessidades oscilam entre
130- 180 ml/kg/dia para um suprimento energético de 130 kcal/kg/dia (ver adiante).
CAPÍTULO 51 Nutrientes
No período de recém- nascido as perdas fecais
são escassas(5-10 ml/kg/dia) e as perdas insensíveis entre 30-60 ml/kg/dia.
Por outro lado, mantendo o rim o equilíbrio
hidro- electrolítico do organismo, o mesmo promove a excreção renal de água da ordem de 90
ml/kg/dia, variando a concentração osmolar e o
volume de urina. A osmolaridade urinária máxima no RN é 600-700 mOsm/L, mais limitada que
na criança maior.
De referir que as necessidades de água para o
crescimento nesta fase da vida são 10 ml/kg/dia,
estabelecendo- se a relação de 1,5 ml de H2O por
kcal consumida.
2.Energia
Em metabolismo, a unidade de calor é a caloria
grande ou kilocaloria (1 Cal= 1 Kcal); esta medida
emprega-se para nos referirmos ao conteúdo
energético dos alimentos. Uma kilocaloria definese como a quantidade de calor necessária para elevar a temperatura de 1 kg de água, de 14.5ºC para
15.5 ºC. A produção de calor por oxidação varia
com os distintos alimentos. Ora, medindo-se a
quantidade de O2 consumido, ou os produtos
finais da oxidação (CO2+H2O), são obtidos valores
sobreponíveis aos obtidos por calorimetria directa.
O kilojoule é outra medida utilizada com a
seguinte correspondência: 1 kilojoule = 4,2 kcalorias.
As necessidades energéticas das crianças variam
muito com as distintas idades e circunstâncias.
Cerca de 50% da energia fornecida pelos
nutrientes é destinada a cobrir as necessidades do
metabolismo basal.
Por cerca de 100 kcal ingeridas são produzidos
cerca de 100 ml de água(água metabólica de acordo com o conceito atrás descrito).
O crescimento origina um consumo de energia
da ordem de 20-30 % da energia disponível. Tal
consumo é directamente proporcional à velocidade de crescimento (mais elevado no primeiro
ano de vida e, mais tarde, na adolescência) .
A actividade física, em regra mais elevada na
criança que no adulto, despende cerca de 10 a 25%
da energia. No pequeno lactente o choro corresponde a um tipo de actividade física.
A acção dinâmica específica (ADE) ou incremento do metabolismo por dispêndio de energia
277
acima dos valores basais originado pela ingestão,
digestão e transporte dos nutrientes até à sua conversão final em ATP, corresponde a valores entre 5
a 10% da energia disponível. A ADE é mais elevada para as proteínas do que para as gorduras e
mais elevada para estas do que para os hidratos
de carbono.
As perdas fecais correspondem a cerca de 8%
da energia, fundamentalmente como gordura não
absorvida.
O metabolismo basal mede-se à temperatura
ambiente (20ºC) entre 10 e 14 horas após uma
refeição, com o indivíduo física e emocionalmente
tranquilo. Para cada grau centígrado de temperatura o metabolismo basal aumenta aproximadamente 10%.
Nos RN as necessidades basais correspondem
aproximadamente a 55 kcal/kg/24 horas, diminuindo progressivamente para 25-30 kcal/kg/24
horas à medida que avança o processo de maturação.
A digestão de proteínas pode elevar o metabolismo até 30% acima do nível basal excepto quando se verifica a sua deposição nos tecidos; por
outro lado, as gorduras e os hidratos de carbono
têm um efeito de “poupança” sobre a ADE das
proteínas, produzindo incrementos mais discretos
daquela, respectivamente 4% e 6 %.
Nos RN a ADE corresponde a cerca de 7-8% do
suprimento calórico, e a 5% nos lactentes e crianças maiores.
O cálculo da energia necessária para formar
tecido corporal (crescimento) obtém-se calculando
a diferença entre as calorias ingeridas e as utilizadas para outros fins.
Estudos populacionais realizados pela OMS/
FAO e outros peritos estabeleceram a seguinte
relação de gasto ou consumo energético para o
crescimento: 4,8 kcal – 5,6 kcal /grama de incremento de peso.
As necessidades médias para a actividade física
são cerca de 15-25 kcal/kg/24 horas com máximos até 50-80 kcal/kg/24 horas durante períodos
curtos.
Ainda que seja mais rigoroso calcular as necessidades calóricas a partir da superfície corporal do
que em relação ao peso e à idade, o critério final
para avaliar as necessidades na criança depende
do modelo de crescimento, da sensação de bemestar que se verifique, e da saciedade.
278
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Relação de necessidades
energéticas em kcal/kg/dia
Idade
0-1 m
2-3 m
4-5 m
6-9 m
10-12 m
1-3 a
4-6 a
7-9 a
10-12 a
13-18 a
adulto
Suprimento energético
(Kcal/kg/dia) recomendado (RDI) (*)
80-125 (110-165 no RN pré-termo)
90-116
84-103
84-95
93-101
90-110
80-90
70-80
45-70
40-60
40-50
m= meses; a= anos; RN= recém nascido
(*) Em função da actividade (ligeira ou moderada) o coeficiente de variação é +- 20%
De acordo com a OMS/FAO e estudos de peritos internacionais as necessidades energéticas em
kcal/kg/dia são resumidas no Quadro 3.
Globalmente, pode afirmar-se que as necessidades diárias após o primeiro ano de vida diminuem cerca de 10 kcal/kg por cada três anos.
Nos períodos de crescimento e desenvolvimento rápidos em torno da puberdade, haverá
que incrementar o consumo de calorias.
Como regra geral é estabelecido que, por cada
100 kcal, devem ser fornecidos 120 ml de água.
O Quadro 4 relaciona estados mórbidos diversos com variação das necessidades calóricas.
A distribuição calórica de proteínas, gorduras
e hidratos de carbono(percentagem do valor
calórico total ou % VCT) no leite humano é semelhante à que se verifica na maioria dos leites industriais para lactentes num regime alimentar
considerado equilibrado.
Assim, considera-se regime equilibrado aquele
em que cerca de 7-15% das calorias derivam das
proteínas, 35-55% dos hidratos de carbono, e 3055% das gorduras.
Na criança maior, 10-15% das calorias devem
proceder das proteínas, 55-60% dos hidratos de
carbono e, aproximadamente 30%, das gorduras.
Cada grama de proteína ou hidrato de carbono
ingerido proporciona 4 kcal. Um grama de ácidos
gordos de cadeia curta proporciona 5.3 kcal; um
grama de ácidos gordos de cadeia média gera 8.3
QUADRO 4 – Relação entre estados mórbidos
diversos e variação
das necessidades calóricas
Estado mórbido
Variação das necessidades
calóricas
Inanição
-20 a + 20%
Estado pós-operatório
+10 a + 20%
Fracturas/politraumatismo
+ 7 a + 25%
Infecção sistémica grave
+15 a + 50%
Queimaduras do 3º grau com
>20% de área da pele afectada
+35 a + 100%
kcal e 1 grama de ácidos gordos de cadeia longa, 9
kcal. Um suprimento calórico continuado superior ou inferior ao consumo do organismo conduzirá a que a gordura corporal aumente ou diminua. Em geral, um desequilíbrio calórico constante de 500 kcal/dia modifica o peso corporal na
proporção de cerca de 450 gramas /semana.
De referir que no primeiro ano de vida as curvas de referência baseadas em estudos de lactentes alimentados com leite materno exclusivo nos
primeiros 6 meses de vida não se sobrepõem às
baseadas em estudos de lactentes alimentados
com leite industrial no mesmo período da vida,
concluindo-se que as necessidades energéticas no
primeiro caso-alimentação com leite materno- são
inferiores (menos 10-25 kcal/kg/dia).
3.Proteínas
As proteínas, (moléculas que contêm azoto e constituídas por unidades básicas chamadas aminoácidos) correspondem aproximadamente a 20% do
peso corporal do adulto.
Na idade pediátrica o processo de síntese e de
proteólise estão aumentados, sendo que o processo de síntese predomina sobre o de proteólise com
consequente acréscimo de proteínas que se traduz
em crescimento e em balanço azotado positivo.
Um dos mecanismos de regulação do metabolismo proteico depende da insulina que tem papel
anabolisante contribuindo para o incremento de
peso.
No adulto saudável o balanço de azoto é nulo.
Foram identificados 24 aminoácidos que são
utilizados na síntese das proteínas; destes, 9 são
essenciais (isto é, não sintetizados pelo organismo,
CAPÍTULO 51 Nutrientes
o que obriga ao respectivo suprimento no regime
alimentar): treonina, valina, isoleucina, leucina,
lisina, triptofana, fenilalanina, metionina e histidina .Para além destes, a arginina, a cistina, a taurina, a glicina e a tirosina são também essenciais
para os recém-nascidos pré-termo.
Como funções essenciais das proteínas cabe
citar o seu papel no incremento ou formação de
novos tecidos (massa magra), na função imunitária e no desenvolvimento de capacidades relacionadas com o comportamento.
De salientar que não se pode formar tecido
novo se todos os aminoácidos essenciais não estiverem presentes no regime alimentar ao mesmo
tempo; ou seja, a ausência ou défice de apenas um
aminoácido essencial condiciona um balanço
nitrogenado negativo.
As proteínas desdobram-se durante o processo
digestivo em oligopéptidos e aminoácidos. O
ácido clorídrico do estômago propicia o pH óptimo para a cisão dos péptidos através da acção da
pepsina. A quimiosina transforma a caseína do
leite em paracaseína a qual é hidrolisada pela
pepsina juntamente com outras proteínas. As
diversas proteases têm maior apetência para
uniões peptídicas específicas; algumas provocam
rupturas de uniões no interior da cadeia peptídica, e outras actuam em zonas de ligações mais terminais .
No meio alcalino do intestino, a tripsina, a
quimiotripsina e a carboxipeptidase do pâncreas
hidrolisam estas proteínas e peptonas em péptidos e em alguns aminoácidos; outras peptidases
dos sucos intestinais promovem a digestão até à
fase de aminoácidos.
Embora quantidades mínimas de certas proteínas se possam absorver “intactas” com é demonstrado através das reacções imunitárias, em
condições ditas normais de maturidade do tubo
digestivo, ou na ausência de patologia, são os produtos hidrolisados (aminoácidos) e alguns péptidos que se absorvem através da mucosa intestinal
com a intervenção de transportadores específicos.
Os oligopéptidos, de maiores dimensões, podem
absorver-se durante os primeiros meses de vida
ou na sequência de episódios de gastrenterite.
Os aminoácidos são transportados ao fígado
pela circulação portal e, a partir daí, são distribuídos pelos diversos tecidos. Os mesmos reorgani-
279
zam-se em forma de proteínas humanas funcionais (por ex. albumina, hemoglobina, hormonas) sendo que as porções nitrogenadas dos
aminoácidos excedentários se convertem em ureia
no fígado e se excretam pelo rim.
A oxidação do carbono dos aminoácidos é
muito semelhante à dos hidratos de carbono e à
das gorduras, sendo alguns glucogénicos e outros
cetogénicos.
As proteínas não se podem armazenar de forma
eficaz. Nas situações de carência proteica as proteínas dos músculos são destruídas para servirem de
fonte de aminoácidos para utilização em zonas do
organismo consideradas mais importantes, como o
cérebro, ou para a síntese enzimática.
As anomalias do metabolismo das proteínas e
dos aminoácidos, que serão abordados noutro
capítulo, constituem uma parte importante das
entidades patológicas conhecidas vulgarmente
por erros inatos do metabolismo.
O suprimento nutricional recomendado para
as proteínas em diversas idades tendo como base
o teor em proteínas no leite humano, é inferior aos
anteriormente divulgados pela OMS/FAO, com
especial realce para o 1º ano de vida.
De acordo com dados da National Academy of
Sciences (NAS) foram etabelecidas em 2004 os
seguintes valores em gramas/dia: 0-6 meses→
9,1g/dia (AI) ou 1,5g/kg/dia; 7-12 meses →
11g/dia (RDA); 1-3 anos → 13g/dia (RDA); 4-8
anos → 19g/dia (RDA); 9-13 anos → 34g/dia
(RDA); 14-18 anos→ 52g/dia (M) (RDA); →
46g/dia (F) (RDA).
Quanto à EAR foram estabelecidos os seguintes
valores: 7-12meses → 0,98g/kg/dia; 1-3 anos →
0,86g/kg/dia; 4-8 anos → 0,76g/kg/dia.
Admitindo-se um coeficiente de variação de 12%,
os valores referentes a RDA são obtidos
multiplicando os de EAR por 1,24.
A justificação para os valores mais baixos de
proteínas actualmente recomendados tem a ver
com o facto de ter sido demonstrado que nem
todo o azoto não proteico é utilizado na síntese
proteica, sendo de referir que o leite materno é
muito rico em azoto não proteico. Por outro lado,
também se demonstrou que se pode obter idêntica
eficiência da utilização das proteínas do regime
alimentar com suprimentos mais baixos que os
anteriormente recomendados.
280
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O chamado “valor biológico”(VB) ou “qualidade”
das proteínas relaciona- se com o perfil de
aminoácidos que as constituem. O mesmo indica a
eficácia da sua utilização. Uma proteína de elevado VB deve conter, além dos aminoácidos não
essenciais, todos os nove aminoácidos essenciais
em proporção aproximada à existente em proteínas de referência (do ovo e do leite humano). Esta
característica permite sintetizar, de novo, tecidos
corporais com mínimo de resíduos de acordo com
os estudos do balanço nitrogenado.
Compreende-se, assim, que os suprimentos
recomendados para o lactente alimentado com
leite industrial (segundo a ESPGHAN: 1,8-2,8 g/
100 kcal) sejam superiores aos que se verificam no
lactente alimentado com leite materno.
Nos países desenvolvidos o suprimento em
proteínas é abundante, ao contrário dos países
com escassos recursos; por conseguinte, da
ingestão inadequada de proteínas em qualidade e
quantidade poderão surgir diversos quadro clínicos patológicos.
4. Hidratos de carbono (ou glúcidos)
Os hidratos de carbono dividem-se em dois
grandes grupos: digeríveis e não digeríveis.
Os hidratos de carbono digeríveis, para além
de fornecerem a massa necessária para o regime
alimentar, proporcionam a maior parte da energia
necessária para o organismo. Na sua ausência, o
organismo utiliza as proteínas e gorduras para
obter energia. No entanto, a energia fornecida
pelos hidratos de carbono a médio e longo prazo
não pode ser substituída por energia obtida apenas através das fontes de gorduras e de proteínas.
Na sua maioria de origem vegetal, com excepção da lactose, são armazenados fundamentalmente como glicogénio no fígado e nos músculos;
provavelmente os hidratos de carbono não constituem mais do que 1% do peso corporal.
Os hidratos de carbono oxidam-se sob a forma
de glucose (dextrose), mas consomem-se de diversos modos: monossacáridos (glucose, frutose,
galactose), dissacáridos (sacarose, lactose, maltose, isomaltose) e polissacáridos (amidos, dextrinas, glicogénio, gomas, celulose). As pentoses
absorvem-se deficientemente.
Mediante uma série de reacções enzimáticas e
químicas no tubo digestivo, os hidratos de car-
bono complexos são desdobrados em estruturas
mais simples. As amilases salivar e pancreática
desempenham um papel fundamental na decomposição do amido em oligossacáridos (dextrinas) e
dissacáridos (fundamentalmente maltose). A amilase intestinal pode estar diminuída durante os
primeiros quatro meses de vida. Os dissacáridos
absorvem-se intactos através das células intestinais da “bordadura em escova” por acção das dissacaridases das microvilosidades as quais completam a hidrólise até monossacáridos: uma molécula de maltose transforma-se em duas moléculas de
glucose; a sacarose, em glucose e frutose; a lactose
em glucose e galactose.
Os monossacáridos absorvem-se rapidamente;
a glucose e a galactose são absorvidas em função
de gradientes de concentração, enquanto a
absorção da frutose é passiva. Durante a absorção,
os radicais “transportadores” de ácido fosfórico
unem-se às hexoses na mucosa intestinal para
atravessar a membrana celular. Quando a concentração extra-intestinal de açúcar é baixa, é
necessário que haja sódio para que continue a
absorção. Estes fosfatos de hexoses voltam a separar-se nos seus componentes, permitindo que o
açúcar se difunda na circulação sanguínea portal.
Parte da glucose pode ser oxidada directamente, como ocorre no cérebro e no coração. A
maior parte do açúcar absorvido converte-se em
glicogénio, ainda que noutros tecidos também se
verifique a glicogénese. Até cerca de 15% do peso
do fígado e 3% da massa muscular podem ser
constituídos por glicogénio, encontrando-se
pequenas quantidades, inferiores àquelas, em
todos os órgãos.
A glicogenólise, que tem lugar no fígado, produz glicose como principal produto, ao passo que
a decomposição do glicogénio nos músculos gera
ácido láctico. A oxidação global da glucose tem
duas fases: a anaeróbia(glucólise) e a aeróbia(ciclo
dos ácidos tricarboxílicos). Na primeira, a glucose
decompõe-se em ácido pirúvico; na segunda, o
ácido pirúvico é completamente oxidado em CO2
e H2O. De referir que neste processo participam a
insulina, e as hormonas hipofisárias e suprarrenais; nas reacções enzimáticas participam igualmente o ácido nicotínico, a tiamina, a riboflavina e
o ácido pantoténico.
Os hidratos de crbono que não se oxidam nem
CAPÍTULO 51 Nutrientes
se armazenam como glucose são convertidos em
gordura. Os não digeríveis ou fibras alimentares
(constituídos por polissacáridos e lenhinas) estão
presentes nas paredes celulares de todas as plantas. Podem ser solúveis (por ex. pectinas, gomas,
mucilagens, algumas hemiceluloses, farelo de
aveia, cevada, legumes, etc.) e insolúveis (cuja
principal fonte é constituída pelo invólucro dos
grãos de sementes de cereais).
Os chamados SCFAs (short chain fatty acids ou
ácidos gordos de cadeia curta) são subprodutos da
fermentação de hidratos de carbono não digeríveis que, ao nível do cólon estimulam a absorção
de fluidos e electrólitos(sobretudo sódio); foi
demonstrada uma acção trófica (através de factor
de crescimento) ao nível do cólon.
As principais anomalias do metabolismo dos
hidratos de carbono (abordadas noutros capítulos) são a diabetes mellitus, as doenças por
depósito de glicogénio(glicogenoses), a galactosémia, a intolerância à frutose e a intolerância à
glucose.
As situações clínicas associadas a défices de
enzimas que promovem a degradação de açúcares
no intestino(lactase, maltase, isomaltase) associamse a diarreia e má absorção, secundárias ao efeito
osmótico do açúcar não absorvido, do que resulta
fermentação dos hidratos de carbono pelas bactérias intestinais. (parte Gastrenterologia). O
Quadro 5 discrimina as DRI para os hidratos de
carbono em gramas/dia.
5.Gorduras
As gorduras ou seus produtos metabólicos, eficientes reservas de energia, constituem parte integrante das membranas celulares cuja permeabilidade e fluidez depende das primeiras . Tais nutrientes dão sabor aos alimentos e servem de veículo para as vitaminas lipossolúveis como por exemplo a vitamina K. Aproximadamente 98% das gorduras naturais encontram-se na forma de glicéridos (ou seja, conjunto de três ácidos gordos naturais combinados com o glicerol). A parcela restante de 2% é formada pelos ácidos gordos livres, os
monoglicéridos, os diglicéridos, o colesterol e outros compostos lipídicos como lecitina, cefalina,
esfingomielina e cerebrósidos.
As gorduras da natureza contêm ácidos gordos de cadeia linear, saturados e insaturados, com
281
QUADRO 5 – Suprimento de hidratos
de carbono (gramas/dia)
0-6 m
7-12 m
1-3 a
4-8 a
9-13 a
M
F
14-18 a
M
F
60 (AI)
95 (AI)
130 (RDA)
130 (RDA)
130 (RDA)
130 (RDA)
130 (RDA)
130 (RDA)
m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)
um comprimento em função do número de átomos de carbono, variando entre 4 e 24. O coeficiente de absorção parece depender do ponto de
fusão, do grau de insaturação e da posição dos ácidos gordos na molécula de glicerol; ela é directamente proporcional ao número de duplas ligações
(grau de insaturação) e inversamente proporcional ao número de átomos de carbono da sua
cadeia.
Os triglicéridos ingeridos são parcialmente
hidrolisados pela lipase lingual e emulsionados
no estômago. No duodeno a lipase pancreática
promove a hidrólise dos triglicéridos formando
monoglicéridos e ácidos gordos os quais, juntamente com os sais biliares constituem micelas, o
que aumenta a solubilidade das gorduras. Os
triglicéridos (e os diglicéridos) não cindidos são
insolúveis.
Como particularidade no recém-nascido de
baixo peso refere-se a diminuição da quantidade
de bílis e mais baixa taxa de absorção de gorduras.
Provavelmente, os ácidos gordos de cadeia
longa (ou long chain poly unsaturated fatty acids ou
LC-PUFA) e os monoglicéridos (com mais de 10
átomos de carbono), convertidos em micelas, são
absorvidos para o interior das células da mucosa
intestinal por difusão. Para o transporte através
da célula, estes ácidos gordos terão de ser esterificados de novo (ácidos gordos e monoglicéridos,
em triglicéridos). Constituem-se, assim, depois, os
quilomicrons, composto lipídico com uma parte
interna com um invólucro membranoso. A parte
interna inclui predominantemente triglicéridos e
282
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
pequenas porções de colesterol livre e esterificado,vitaminas lipossolúveis e outras substâncias
lipossolúveis; o invólucro membranoso contém
sobretudo fosfolípidos e proteínas designadas
apoproteínas.
Os quilomicrons sofrem processo de exocitose
para o sistema linfático intestinal em direcção à
circulação venosa por intermédio do canal torácico. As proteínas de transporte são proteínas de
muito baixa densidade (VLDL – “very low density
lipoproteins”, baixa densidade (LDL – “low density
lipoproteins” e alta densidade (HDL – “high density
lipoproteins”, sintetizadas no fígado.
Os triglicéridos de cadeia curta e média seguem
outro caminho; a lipase pancreática hidrolisa-os rapidamente para ácidos gordos livres os quais são
transportados através da célula intestinal. De acentuar que quando a hidrólise no lume intestinal é inadequada por défice de lipase pancreática ou de sais biliares, estas gorduras são absorvidas e hidrolisadas
para ácidos gordos livres dentro da célula por acção
da lipase da mucosa. Estes ácidos gordos livres não
são esterificados nem formam de seguida quilomicrons; outrossim entram directamente nas veias
intestinais em direcção ao fígado pela via porta.
Esta via alternativa para os triglicéridos de
cadeia curta e média é aproveitada na administração de preparados a crianças com graves problemas de absorção.
Há a salientar que ao nível do lume intestinal
existe uma interacção entre cálcio e gorduras:
maiores quantidades de cálcio comprometem a
absorção de gorduras e vice- versa, pelo facto de
se formarem sabões insolúveis.
Constituindo o leite materno um modelo
nutricional contendo cerca de 40-55% de lípidos
como parcela do VCT, com um coeficiente de
absorção de cerca de 90%, no primeiro ano de vida
o suprimento recomendado em lípidos deverá
contemplar aquela percentagem.
De acordo com a National Academy of Sciences
2004 apenas foi determinado o suprimento (AI) de
gorduras em gramas/dia até aos 12 meses: 0-6
meses → 31g/dia; 7-12 meses → 30g/dia.
Far-se-á uma referência especial aos ácidos
gordos essenciais e aos ácidos gordos trans.
5.1 Ácidos gordos essenciais
Os ácidos gordos poli-insaturados (sigla interna-
cional: PUFA ou poly-unsaturated fatty acids)
denominam-se conforme a posição das duplas
ligações. O átomo de carbono mais afastado do
grupo carboxilo é o carbono omega ou n. Em nutrição infantil assumem grande importância os
ácidos ácidos gordos omega ou n6 e omega ou n3
pelo facto de não serem sintetizados pelo organismo humano, obrigando ao seu fornecimento
no regime alimentar (ácidos gordos essenciais).
O ácido linoleico, o ácido araquidónico e o
ácido docosapentanóico pertencem à série omega
ou n6. O ácido linolénico, o ácido eicosapentanóico e o ácido docosa-hexanóico pertencem à série
omega ou n3.
O ácido araquidónico, que tem como precursor
o ácido linoleico, é um importante constituinte
dos fosfolípidos das membranas celulares e um
precursor das prostaglandinas, prostaciclina,
tromboxanos e leucotrienos.
O ácido docosa-hexanóico é componente dos
fosfolípidos das membranas celulares, dos fotorreceptores da retina e da substância cinzenta cerebral.
Dum modo geral os ácidos gordos essenciais
têm acção importante nos fenómenos de neurotransmissão, sendo necessários para o crescimento,
o desenvolvimento cognitivo, a integridade da pele
e do cabelo e a regulação do metabolismo do colesterol, diminuindo a adesividade das plaquetas.
De acordo com as recomendações da
ESPGHAN, para RN de termo não alimentados
com leite materno, o suprimento em ácido linoleico deve constituir 4,5- 10,8% do VCT e o de ácido
linolénico 0,5% do mesmo VCT, para garantir uma
relação ácido linoleico/ácido linolénico média de
10/1 (com limites entre 5/1 e 15/1)
É também recomendada a adjunção de LC (long
chain) PUFA ou ácidos gordos poli-insaturados de
cadeia longa tendo como modelo o leite materno
respeitando a relação n-6/n-3 de 2/1 ou, respectivamente, 1%/0,5% do total de ácidos gordos.
Nos regimes alimentares em que a % do VCT
de ácido linoleico é inferior a 1-2% será necessário
fornecer maior número de calorias totais para se
obter crescimento comparável aos dos regimes
com aquela percentagem superior.
De referir que o excesso de ácidos insaturados
aumenta a peroxidação, do que poderá resultar
destruição das membranas celulares.
283
CAPÍTULO 51 Nutrientes
Nos lactentes pequenos em fase de crescimento rápido submetidos a regimes com baixo conteúdo em ácido linoleico verifica-se o aparecimento de sinais cutâneos (intertrigo, secura e descamação na pele). O Quadro 6 discrimina as AI para
o ácido linoleico e alfa-linolénico.
5.2 Ácidos gordos trans
Os ácidos gordos trans formam-se como resultado
da hidrogenação parcial dos óleos vegetais; desta
transformação resulta modificação das características físicas (maior consistência). A isomerização trans dos ácidos gordos não saturados confere-lhes características semelhantes aos saturados; daí as suas desvantagens e riscos em termos
de maior predisposição para aterogénese.
6. Minerais
No recém-nascido o conteúdo mineral corresponde aproximadamente a 3% do peso corporal,
aumentando ao longo da infância. Por cada grama
de proteína retida armazena-se 0.3 gramas de
matéria mineral. No fim da adolescência tal conteúdo corresponde a 4.3% do peso corporal distribuído, sobretudo, pelo esqueleto (cerca de 83%)
e pelo músculo (cerca de 10%).
O cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio
constituem os principais catiões. O cloro, o fósforo e o enxofre constituem os aniões mais importantes. O ferro, o cobalto e o iodo formam importantes complexos orgânicos.
Quanto a oligoelementos (por definição elementos cujo conteúdo no organismo constitui
menos de 0.01% do peso corporal), destacam-se o
zinco, flúor, manganês, cobre, cobalto, cromo (ou
crómio), selénio e molibdénio com funções
importantes em diversos processos metabólicos;
com efeito, os mesmos são componentes de sistemas enzimáticos ou actuam como componentes
de metaloenzimas, ou como cofactores de deter-
QUADRO 6 – Suprimento de ácidos gordos
essenciais (AI) (gramas/dia)
Ácido Linoleico
0-6 m
7-12 m
1-3 a
4-8 a
9-13 a
M
F
14-18 a
M
F
4,4
4,6
7
10
Ácido Alfa-Linolénico
0,5
0,5
0,7
0,9
12
10
1,2
1
16
11
1,6
1,1
m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)
minadas enzimas. (Quadro 7)
Nesta alínea referente a minerais será dada
ênfase especial ao cálcio, fósforo, magnésio, ferro
e flúor discriminando-se por fim, em quadro
sinóptico, os principais sinais e sintomas de situações em que se verificam carências ou excessos de
minerais. Relativamente ao cloro, sódio e potássio
o Quadro 8 resume as RDA estabelecidas em
mg/dia no primeiro ano de vida.
6.1 Cálcio
A absorção de cálcio, que pode variar de 20 a 70%
da quantidade ingerida, relaciona-se fundamentalmente com os níveis de vitamina D e de paratormona, podendo ser facilitada por certos factores como a presença de lactose, lisina, arginina e
ácido ascórbico no regime alimentar, e pela acção
dos sais biliares.
Pelo contrário, a absorção pode diminuir com
o suprimento excessivo de fosfato, oxalatos, e
fibra, assim como em situações em que existe
défice de absorção de gorduras.
QUADRO 7 – Doses recomendadas de alguns oligoelementos*
Idade
Ferro
(meses)
(mg)
0-6
0,27 (AI)
7-12
10 (RDA)
mg= miligrama; mcg= micrograma
* Segundo a NAS, 2004
Zinco
(mg)
2 (AI)
5 (RDA)
Iodo
(mcg)
110 (AI)
130 (AI)
Selénio
(mg)
15 (AI)
20 (AI)
Cobre
(mcg)
200 (AI)
220 (AI)
Manganês
(mg)
0,003 (AI)
0,6 (AI)
Crómio
(mcg)
0,2 (AI)
5,5 (AI)
Molibdénio Flúor
(mcg)
(mg)
2 (AI)
0,01 (AI)
3 (AI)
0,25 (AI)
284
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 8 – Sódio, potássio e cloro (RDA
em mg/dia)
Idade
(0-6 meses)
(6-12 meses)
Sódio
120
200
Potássio
500
700
Cloro
180
300
O leite materno fornece cerca de 300 mg de cálcio /dia com uma taxa de absorção de 75%; nos
lactentes alimentados com leites industriais (fórmulas) tal absorção é inferior :cerca de 20-50%.
De acordo com a NAS, 2004 a dose (AI)
recomendada de cálcio a ingerir é 210 mg /dia no
primeiro semestre e 270 mg/dia no segundo
semestre. Entre o 1 ano e 9 anos as doses aumentam respectivamente de 500 mg para 700 mg e de
900 para 1000 mg dos 10 aos 16 anos.
Em todas as idades não devem ser ultrapassadas as doses de 2500 mg/dia.
6.2 Fósforo
Relativamente ao fósforo, as doses (AI) recomendadas pela NAS, 2004 são: 150 mg/dia dos 0-6
meses e 275 mg/dia dos 5-12 meses.
A ESPGHAN (European Society for Pediatric
Gastroenterology-Hepatology and Nutrition) recomenda suprimentos de 30 mg/100 kcal(20
mg/100 ml) e um máximo de 50 mg/100 kcal com
uma relação Ca/P entre 1.2 e 2.
Entre o 1 ano e 16 anos as doses sobem progressivamente para valores entre 300 mg/dia e
850 mg/dia.
Os lactentes alimentados com fórmulas de alto
conteúdo em fósforo, superior ao do leite materno(15 mg/100 ml), excretam grande parte deste
mineral pela urina com consequente aumento da
osmolalidade urinária.
Por outro lado, um excesso de fósforo pode
conduzir a hiperfosfatémia e, secundariamente, a
hipocalcémia.
6.3 Magnésio
As doses recomendadas de magnésio (AI) pela
NAS, 2004 no primeiro ano de vida oscilam entre
30 mg/dia(0-6 meses) e 75 mg/dia (7-12
meses).Até aos 16 anos as doses (RDA) sobem
progressivamente até 200 mg/dia.
Salienta-se que, relativamente ao cálcio, fós-
foro e magnésio, a inexistência até aos 12 meses de
dados seguros quanto aos suprimentos RDA conduziu à substituição por suprimento AI.
Após os 12 meses de idade apenas existem dados
sobre RDA relativamente ao fosfro e magnésio.
6.4 Ferro
Embora o leite humano e o leite de vaca contenham um fraco teor em ferro(respectivamente
0.50 mg/litro versus 0.25-0.75 mg/litro) a sua taxa
de absorção é cerca de 50% no caso do leite
humano, muito superior à que se verifica com o
leite de vaca(7-15%).
O leite humano pode cobrir as necessidades
nas primeiras oito semanas de vida após gravidez
de termo. No recém-nascido pré-termo há que ter
em conta as reservas deficitárias que se esgotam
quando duplica o peso de nascimento.
Os lactentes entre os 4-12 meses absorvem, em
geral, 0.8 mg/dia.
Entre os 0-6 meses a criança necessita aproximadamente de 0,27 mg/dia (AI) (Quadro 7). Entre
os 14 e 18 anos as doses recomendadas oscilam
entre 10 e 12 mg/ dia. (RDA)
6.5 Flúor
As DRI estabelecem a ingestão adequada (AI) baseando-se em quantidades que diminuem a incidência de cárie dentária e o suprimento máximo tolerável (UL) em quantidades que evitem a fluorose.
Actualmente aconselha-se a suplementação
em flúor nas doses indicadas no Quadro 9 tendo
em conta a necessidade de ajustar as doses em
função da água de consumo que é bebida na zona
onde a criança vive. (ver parte – Estomatologia)
6.6 Zinco, Iodo, Selénio, Cobre, Manganês,
Crómio e Molibdénio
O Quadro 7 resume as doses recomendadas de
ingestão (RDA e AI) destes minerais no primeiro
ano de vida tendo como base o conteúdo dos mesmos no leite humano.
6.7 Carência e excesso de minerais
O Quadro 10 resume os principais sinais e sintomas de carência e de excesso de minerais
7. Vitaminas
As vitaminas são substâncias indispensáveis ao
CAPÍTULO 51 Nutrientes
285
QUADRO 9 – Suplementação de flúor (mg/dia) de acordo com a idade e o teor em flúor na água de
consumo público na zona onde a criança vive (ppm= partes por milhão)
Idade
6 m-3 anos
> 3-6 anos
> 6-16 anos
< 0,3 ppm
0,25
0,50
1,00
0,3-0,6 ppm
0
0,25
0,50
> 0,6 ppm
0
0
0
Obs.: 2,2 mg de fluoreto de sódio contém 1 mg de flúor.
crescimento e ao funcionamento dos órgãos, fornecidas, na sua maior parte, em pequena quantidade pela alimentação, que o organismo não é
capaz de sintetizar. Com actividades muito diversas, actuam em doses mínimas, participando
como cofactores no metabolismo celular, na elaboração de hormonas e de enzimas,quer favorecendo
a sua produção,quer entrando directamente na sua
composição química.
As vitaminas de origem alimentar classificam-se
como: vitaminas lipossolúveis (A,D,E,K) e
hidrossolúveis (vitaminas do grupo B e vitamina C).
As necessidades de vitaminas foram estabelecidas no Codex Alimentarius.
O Food and Nutrition Board, através das RDA
(Recommended Dietary Allowances) em 1998 modificou as doses de ingestão respeitantes a vitaminas
hidrossolúveis e vitamina D.
Antes duma abordagem sucinta sobre as vitaminas hidrossolúveis e lipossolúveis é importante
referir três noções importantes em Nutrição na
idade pediátrica:
• o leite materno é deficitário em vitamina D e
em vitamina K nos primeiros dias;
• a modalidade de fórmula adaptada (tópico a
analisar em mais pormenor no capítulo 53)
cobre as necessidades se o lactente receber
como mínimo 750 ml por dia;
• os suplementos vitamínicos são desnecessários a partir do primeiro ano de vida completo no pressuposto de que a alimentação
variada cobre todas as necessidades.
7.1 Vitaminas lipossolúveis
Vitamina D
As principais acções bioquímicas (de tipo hormonal) são: a formação de uma proteína de ligação e de transporte do cálcio nas células epiteliais
da mucosa duodenal; absorção do fósforo e a reab-
QUADRO 10 – Sintomas e sinais de carência
e de excesso de minerais
– Alumínio (excesso: alterações do sistema nervoso central)
– Boro (deficiência: anomalias de calcificação)
– Cálcio (deficiência: tetania, osteomalácia; excesso: obstipação, bloqueio cardíaco)
– Cloro (deficiência: alcalose)
– Crómio (deficiência: diabetes em animais)
– Cobalto (deficiência: carência de vitamina B12 e hipotiroidismo; excesso: cardiomiopatia)
– Cobre (deficiência: anemia,osteoporose; excesso:cirrose)
– Iodo (deficiência e carência: bócio)
– Ferro (deficiência:anemia, alterações do comportamento; excesso: hemossiderose)
– Chumbo (excesso: neuropatia)
– Magnésio (deficiência:hipocalcémia, hipocaliémia)
– Molibdénio (pouco conhecidos os efeitos de excesso ou
de de deficiência)
– Fósforo (deficiência: raquitismo; excesso: carência em
cálcio)
– Potássio (deficiência: fraqueza muscular; excesso: bloqueio cardíaco)
– Selénio (deficiência: cardiomiopatia; excesso: alterações
das unhas e cabelo, odor a alho)
– Sódio (deficiência: hipotensão; excesso: edema)
– Enxofre (deficiência: hipocrescimento; excesso: desconhecido)
– Zinco (deficiência: hipocrescimento, dermatite; excesso:
gastrenterite)
sorção óssea. Estas acções dependem da paratormona e da ingestão de cálcio.
De acordo com a NAS, 2004 foi estabelecida a
ingestão recomendada (AI) de 200 UI/dia (5
mcg/dia de colecalciferol)) no pressuposto de que é
insuficiente, ou se desconhece, ou não existe
exposição à luz solar. O nível máximo foi estabelecido em 1000 UI /dia (25 mcg/dia de colecalciferol).
286
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A maioria das fórmulas contêm 1.5 mcg(60 UI)
de vitamina D por 100 kcal (ou 10 mcg/Litro)
Vitamina A
A vitamina A (retinol,axeroftalmol) é um álcool de
cadeia pesada que se encontra na natureza essencialmente sob a forma de ésteres de ácidos gordos;
pode apresentar- se sob 16 formas isómeras;
destas, o chamado retinol “all trans” é a forma biologicamente mais activa.
A vitamina A somente se encontra em produtos de origem animal (óleo de fígado de peixes
como pescada, bacalhau, atum, etc.). As pró-vitaminas(ou carotenóides, cujo representante principal é o beta-caroteno) encontram-se, sobretudo,
em vegetais (cenouras, espinafres,couves), mas
também em órgãos (como rim, fígado, baço). A
bílis é indispensável para a sua absorção.
A vitamina A desempenha um papel importante: na manutenção da integridade dos epitélios
favorecendo a síntese de mucopolissacáridos e a
secreção de muco; como indutor enzimático com
especial relevância ao nível dos microssomas
hepáticos; e na formação da púrpura retiniana ou
rodopsina, receptor da luz para a visão de fracas
intensidades(visão crepuscular). A dose diária
recomendada de vitamina A (que é armazenada
no fígado e requerendo uma proteína de ligação
para circular )é 60 mcg de equivalentes de retinol
(EAR) por 100 kcal (200 UI), sendo de referir que 1
mcg de retinol corresponde a 3.31 UI.
Na prática considera-se: dos 0-12 meses → 400500 mcg/dia (AI); entre 1 e 18 anos → 300-900
mcg/dia (RDA).
Vitamina K (naftoquinonas)
Tem papel fundamental na coagulação do sangue
contribuindo para a formação dos factores II, VII,
IX, X, e das proteínas C, Z, S. Sintetizada pelas
bactérias intestinais, a bílis é indispensável para a
sua absorção.
Ao contrário doutras vitaminas, as reservas e
os níveis séricos de vitamina K dos recém-nascidos
de mães bem nutridas são baixos. Nesta conformidade, constitui rotina a administração de vitamina
K a todos os recém-nascidos no pós-parto (0.5-1
mg) para prevenção da doença hemorrágica do
recém-nascido. Posteriormente aconselham-se
doses (AI) de 2 mcg/dia até aos 6 meses e 2.5
mcg/dia até ao 1 ano. A partir desta idade as doses
sobem progressivamente entre 30 e 75 mcg/dia até
ao final da adolescência e idade adulta.
A vitamina K está presente na maioria das fórmulas, não necessitando o lactente de suplemento.
De referir que o teor em vitamina K no leite materno é inferior ao das fórmulas infantis. (ver capítulo 52).
Vitamina E (tocoferol)
É um vitamina antioxidante com papel importante na estabilização das membranas biológicas
prevenindo a peroxidação dos ácidos gordos poliinsaturados. A sua absorção depende da acção da
bílis e do suco pancreático.
Os lactentes de termo requerem aproximadamente 0.7 UI de acetato de alfa-tocoferol (sendo 1
UI = 1 mg) por 100 kcal. As necessidades aumentam com a a administração de grandes quantidades de ácidos gordos poli-insaturados. Entre os
0-12 meses as doses (AI) oscilam entre 4 e 5
mg/dia. Entre o 1 ano e a idade adulta as doses
(RDA) sobem proporcionalmente à idade entre 6 e
10 mg/dia.
A vitamina está largamente distribuída nos
óleos vegetais e nas sementes de cereais.
7.2 Vitaminas hidrossolúveis
As necessidades em vitaminas hidrossolúveis
(complexo B e colina) são resumidas no Quadro
11.
Dum modo geral pode afirmar-se que as
carências em vitaminas hidrossolúveis são raras
em crianças alimentadas, quer com leite materno,
quer com fórmulas.
As vitaminas do complexo B são essenciais
para o metabolismo das proteínas, gorduras e
hidratos de carbono; actuam igualmente nas
reacções de oxidação-redução, transaminação,
descarboxilação, glicólise e hematopoiese.
A vitamina C é absorvida por simples difusão.
Quanto às acções bioquímicas, desconhecem-se os
mecanismos exactos, sendo de salientar o seu
papel no metabolismo da folacina, na biossíntese
do colagénio, na absorção e transporte do ferro, e
no metabolismo da tirosina.
No leite materno existe quantidade de vitamina
C necessária para cobrir as necessidades da criança
durante o período de aleitamento exclusivo.
287
CAPÍTULO 51 Nutrientes
QUADRO 11 – Suprimento diário (RDA) e (AI) de vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina)
Idade
Tiamina Riboflavina Niacina
(meses)
(mg)
0-6 (AI)
0,2
> 6-12 (AI)
0,3
(anos)
1-18 (RDA) 0,4-1,1
Vit. B6
Folato
Vit. B12
(mg)
0,3
0,4
(mg)
2
4
(mg)
0,1
0,3
(mcg)
65
80
(mcg)
0,4
0,5
0,5-1,3
5-15
0,5-1,3
150-400
0,9-2,4
Ácido
Biotina
pantoténico
(mg)
(mcg)
1,7
5
1,9
6
2-5 (AI)
Colina
(mg)
125
150
8-30 (AI) 200-400 (AI)
(NAS, 2004)
Tendo em conta que o teor em vitamina C
varia com o regime alimentar da mãe, é recomendado o suplemento de 35 mg/dia, durante o primeiro ano de vida e ulteriormente;saliente-se que
as doses recomendadas para o adulto são cerca de
70 mg/dia (RDA/AI).
Uma chamada de atenção para os riscos da
ingestão de doses exageradas de vitamina C (500
mg–1500 mg) nos adultos (eventualmente extrapoláveis para a idade pediátrica) durante período
superior a duas semanas: risco de nefrolitíase e de
compromisso da absorção de vitamina B12, entre
outros.
8. Carência e excesso de vitaminas
O Quadro 12 resume os principais sintomas e
sinais de carência e de excesso de vitaminas.
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ESPGHAN Committee on Nutrition. Comment on the compo-
QUADRO 12 – Sintomas e sinais de carência
ou excesso de vitaminas
Vitamina A (carência: pele áspera, xeroftalmia, cegueira,
predisposição para infecções; excesso: dores ósseas,
pseudo tumor cerebri)
Vitamina D (carência: raquitismo, desmineralização
óssea; excesso: obstipação, hipercalcémia, calcificações
renais, insuficiência renal)
Vitamina E (carência: hemólise no recém-nascido prétermo, neuropatia; excesso: interferência com o metabolismo da vitamina K predispondo a hemorragias)
Vitamina K (carência: hipoprotrombinémia, hemorragias, hematomas; excesso: hemólise)
Tiamina / vitamina B1 (carência : ataxia, beribéri)
Riboflavina / vitamina B2 (carência: queilose, seborreia)
Niacina / vitamina B3 ou PP (carência: pelagra ; excesso: rubor)
Piridoxina / vitamina B6 (carência: convulsões, anemia;
excesso: neuropatia)
Biotina / vitamina B8 ou H (carência: dermatite)
Folato (carência:anemia megaloblástica)
Vitamina B12 / cianocobalamina (carência: anemia
megaloblástica, acidúria metilmalónica)
Vitamina C / ácido ascórbico (carência: escorbuto, gengivite ulcerosa, hemorragia subperióstica, rosário condrocostal, hematúria, etc.; excesso: nefrolitíase, compromisso da absorção da vitamina B12)
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288
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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2006.
52
ALIMENTAÇÃO COM LEITE
MATERNO
João M. Videira Amaral
“O leite de mulher tem uma composição ideal:
fornece cerca de 180 elementos em equilíbrio perfeito, fundamentais para o crescimento e desenvolvimento harmoniosos nos primeiros seis meses
de vida”
(Applebaum RM,1975)
Importância do problema
O aleitamento materno é uma função biológica que
tem a mesma idade da própria Humanidade. Até aos
finais do século XIX todas as mães amamentavam e
a sobrevivência da criança estava na dependência
absoluta deste tipo de alimentação natural; e, se a criança não tinha a possibilidade de sugar no peito da
mãe ou da “ama”- como no caso da prematuridade
extrema- era considerada inviável.
Embora haja documentos comprovativos do
uso de recipientes para alimentação com leite de
outras espécies animais desde a antiguidade
(História Egípcia, 2500 anos AC), a alimentação
infantil com leite heterólogo teve pouco sucesso
até ao fim do séc. XIX pela elevada incidência de
infecções gastrintestinais e de perturbações nutricionais que comportava.
A partir das duas primeiras décadas do séc.
XX, coincidindo com enorme surto de desenvolvimento industrial e de tecnologias que permitiram,
de modo progressivo, “imitar” quantitativamente
a composição do leite humano a partir de modificações do leite de vaca, começou a verificar-se
uma mudança radical no modo tradicional de alimentar a criança nos primeiros meses explicada
pelo número crescente de mulheres trabalhadoras
fora de casa. No entanto, a partir da década de 70
do séc. passado a situação em Portugal (e no
289
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno
mundo) inverteu-se por circunstâncias diversasdesignadamente pela legislação produzida propiciando maior disponibilidade da mãe por força da
licença de parto, por campanhas a favor do aleitamento materno, e pelo papel desempenhado pelos
profissionais de saúde chamando a atenção para
as vantagens do leite materno, cada vez mais fundamentadas por estudos científicos.
No estado actual dos conhecimentos considera-se situação ideal a que permite que o bebé seja
amamentado exclusivamente nos primeiros 6
meses de vida; caso tal não seja possível, pelo
menos nos primeiros 4 meses.
Composição do leite materno
Não cabe no âmbito deste livro uma análise pormenorizada da composição do leite humano; no
entanto, de modo sucinto, pela observação do
Quadro 1 pode concluir-se que existem diferenças
qualitativas e qualificativas relativamente ao leite
de vaca. Globalmente, o teor em proteínas e em
minerais é superior no leite de vaca e o de hidratos
de carbono é inferior. Por outro lado, é importante
notar que a composição é variável desde o início ao
fim da mamada e que existem também diferenças
de composição comparando o leite da mãe que
teve o parto de termo com a que o teve pré – termo.
Com efeito, o leite materno pré-termo tem uma
carga energética superior, teor superior em proteínas, sódio, cloro, e teor inferior em lactose relativamente ao leite materno de termo ou “maturo”.
Embora tais diferenças que persistem durante o
primeiro mês pós-parto sejam consideradas benéficas para todas as crianças nascidas prematuramente, após este período o referido leite humano
pré-termo não satisfaz completamente as necessidades dos lactentes pré-termo em crescimento,
nomeadamente no que respeita a proteínas, cálcio,
fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vitaminas. Daí a necessidade de, em tais circunstâncias, o leite materno ser suplementado com “alimentos de reforço” ou “fortificantes.
Para além dos nutrientes mencionados, deve
salientar-se a presença doutros componentes
como probióticos (sintetizando ácidos gordos
ómega 3 com acção na função imunitária), prébióticos(induzindo a proliferação de bífidobactérias e de lactobacilos os quais bloqueiam a
QUADRO 1 – Composição em nutrientes por
litro
Leite Humano
Energia (Kcal)
670-740
Proteínas (g)
9
Gorduras (g)
45
Hidratos de carbono (g)
68
Lactose (g)
68
Minerais
Cálcio (mg)
340
Fósforo (mg)
140
Sódio (mEq)
7
Potássio (mEq)
13
Cloro (mEq)
11
Ferro (mg)
5
Vitaminas
A (UI)
1898
Tiamina (µg)
160
Ribofiavina (µg)
360
Niacina (mg)
1,5
Piridoxina (µg)
100
Ácido fólico (µg)
52
B 12 (µg)
0,3
C (mg)
43
D (UI)
22
E (UI)
2
K (µg)
15
Leite de Vaca
600-880
35
37
49
49
1170
920
22
35
29
5
1025
440
1750
0,9
640
55
4
11
14
0,4
60
Adaptado de Hambraeus L, 1977
adesão de bactérias patogénicas às células do
endotélio intestinal), macrófagos, linfócitos, lactoferrina (com acção anti-infecciosa fúngica, vírica e
bacteriana, antioxidante e antiproteases), lisozima, imunoglobulinas, factores de crescimento,
hormonas, etc.. Muitos destes componentes têm,
para além do efeito anti-inflamatório, de bloqueio
de toxinas e de agentes microbianos, acção na
modulação do desenvolvimento imunológico e na
homeostase de tipo metabólico(por exemplo
manutenção da euglicémia no lactente amamentado cujo risco de hipoglicémia nos intrevalos e
entre refeições é vinte vezes menor do que nos
lactentes alimentados com fórmulas).
Vantagens
O Quadro 2 é suficientemente elucidativo. De
facto, não é apenas o aspecto nutricional que deve
290
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ser valorizado mas outros não menos importantes: está provado que a incidência de infecções
e de problemas alérgicos, pelo menos enquanto a
criança está a ser amamentada é, significativamente menor relativamente àquela alimentada
com leite industrial.
De salientar que o aleitamento materno constitui uma das quatro estratégias mais importantes
da Organização Mundial de Saúde para melhorar
a sobrevivência, sobretudo no primeiro ano de
vida, com implicações óbvias nos países em
desenvolvimento
As vantagens do leite materno em relação aos
leites industriais são mais difíceis de demonstrar
nos países desenvolvidos, por um lado dada a
impossibbilidade de levar a cabo estudos aleatorizados e, por outro, dada a existência dos chamados factores de confusão interferindo no significado dos resultados como a classe social, o nível
educacional e os hábitos de tabagismo.
Outro aspecto relacionado com as vantagens
diz respeito ao desenvolvimento psicomotor e
sensorial, sobretudo nas crianças com antecedentes de prematuridade tendo em conta o papel crucial dos ácidos gordos PUFA.
A alimentação natural, por outro lado, associase a menor incidência futura de doença inflamatória intestinal e de diabetes mellitus, e de cancro da mama na lactante.
As hipóteses de redução da incidência de
transtornos alérgicos a longo prazo e de síndroma
de morte súbita no lactente(SMSL) não se confirmaram em estudos realizados.
Período pré-natal
O acto de amamentar é um processo activo integrando dois participantes. Para que a alimentação
ao peito venha a ter sucesso é fundamental que a
mãe tenha sido motivada (e educada desde os bancos de escola) e não coagida. É igualmente de
grande utilidade que a mulher neo – lactante obtenha os conselhos e apoio doutras mães com experiência para a resolução das primeiras dificuldades.
Idealmente, a decisão de amamentar deverá
ser tomada numa fase precoce da gravidez, período de extraordinária sensibilidade, pressupondose um esclarecimento prévio por parte do obstetra
e outros profissionais desde a primeira consulta
QUADRO 2 – Vantagens do aleitamento
materno
• Reforço da ligação afectiva mãe – filho (vinculação)
• Menor incidência de infecções nomeadamente gastrintestinais (protecção imunitária)
• Menor incidência de enterocolite necrosante e de
doença inflamatória intestinal
• Menor incidência de diabetes mellitus
• Desenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental mais adequados
• Maior economia
• Condições de higiene mais seguras
pré-natal e, se possível, antecedendo a gravidez.
Idealmente, a decisão não deverá ser deixada para
o período pós – parto.
Tomada a decisão de amamentar, é fundamental realizar o exame das glândulas mamárias com o
objectivo de detectar eventuais anomalias como
por exemplo, mamilos invertidos ou retrácteis ou
sinais de técnicas cirúrgicas já levadas a cabo anteriormente (como a mamiloplastia que poderá ter
comprometido, quer as estruturas ductulares, quer
as nervosas) as quais poderão contribuir para o
insucesso da lactação.
Embora ao pediatra, e médico de família não
esteja classicamente cometido este papel, eles
poderão de algum modo motivar, o obstetra, no
sentido de o referido exame se concretizar, de modo
sistematizado.
Como deverá, então, ser feita a preparação do
mamilo?
Existem várias técnicas que poderão ser ensinadas à grávida; as mais práticas incluem:
a) rolar os mamilos entre o polegar e indicador
algumas vezes durante o dia;
b) expor ao ar os mamilos durante alguns minutos;
c) expressão diária de algumas gotas de
colostro durante o último trimestre.
Tais manipulações contribuem para alongar e
tornar mais elástico o mamilo, constituindo implicitamente um treino da técnica de expressão manual que poderá ser usada mais tarde.
Está desaconselhado o uso de tópicos irritantes
como sabão e álcool que contribuem para secar a
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno
pele e para o aparecimento de fissuras. A partir do
2º trimestre o sutiã deverá ser mole e confortável.
É importante que o profissional de saúde incuta na futura mãe a noção de que o tratamento da
mama não tem qualquer relação com a capacidade
de amamentar.
Caso tenham sido detectados no período pré –
natal mamilos invertidos, há um certo número de
medidas que poderão ser tomadas. As mais fáceis
de executar constituem a chamada “manobra de
Hoffman” que consiste em colocar dois dedos diametralmente opostos sobre as margens da aréola
exercendo, depois tracção no sentido centrífugo,
alternadamente, segundo os diâmetros vertical e
horizontal.
O objectivo desta manobra, a executar várias
vezes por dia, e que poderá ser intensificada no 3º
trimestre da gravidez, é desfazer as aderências da
base do mamilo que contribuem para a sua
umbilicação.
Período intraparto
O sucesso ou insucesso do aleitamento materno
depende dum certo número de factores que estão
discriminados no Quadro 3.
Os factores que influenciam de modo mais
negativo a amamentação são a rigidez de horários
e a administração intempestiva de leite para
lactentes(leite industrial/fórmula).
Nesta fase, mais uma vez o profissional de
saúde desempenha papel primordial quanto ao
apoio e confiança que pode transmitir à mãe. Dado
que os verdadeiros estímulos da secreção láctea são
a sucção vigorosa e frequente, e o esvaziamento
completo da glândula mamária, assume particular
importância a aplicação da norma de rotina, em
todas as maternidades de “pôr o RN ao peito, logo
na sala de partos”, “ pele com pele”.
De facto, essa atitude de a mãe ver e sentir o
seu filho desde as primeiras horas estimula não
só o vínculo mãe – filho, mas também permite
uma ingestão mais precoce do colostro, facilitando a “subida do leite” e a eliminação do
mecónio.
Técnicas da mamada
A posição (de conforto e de descontracção) que a
291
QUADRO 3 – Factores de sucesso e insucesso
Factores de insucesso
– Separação mãe – filho (pós parto e depois)
– Horário rígido
– Suplementos de leite industrial (intempestivos)
– Biberão de noite
– Oferta de leite industrial (amostras) antes da alta
– Não esclarecimento prévio da mãe
– Não respeito pela opção da mãe; a mãe poderá eventualmente(e raramente) não desejar amamentar;
haverá que respeitar tal opção
Factores de sucesso
– Técnica correcta de amamentação
– Transmissão de confiança à mãe
– RN ao peito na sala de partos (pele com pele)
– Verdadeiros estímulos: sucção vigorosa e frequente/
esvaziamento da glândula mamária
– Horário livre
mãe deve adoptar durante a mamada é a seguinte:
sentada sobre almofada mole e estável, apoiando
os pés num pequeno banco a poucos centímetros
do chão.
O braço que sustem a cabeça da criança deve
também assentar sobre uma superfície mole (por
exemplo, uma pequena almofada).
A cabeça da criança deve ficar no alinhamento
da glândula mamária com a face voltada para a
mãe. Com a mão livre, a mãe comprime com dois
dedos o bordo da aréola procurando tornar o
mamilo mais procidente de forma que a criança
introduza na boca(bem aberta com o lábio inferior
dobrado bem para fora) não só o mamilo mas também a aréola. A posição da boca da criança deve
ser tal que a porção superior da aréola deve ficar
mais visível que a sua porção inferior.
Assim sendo, as fossas nasais ficarão livres do
contacto com a pela da mama e a respiração
processar-se-á normalmente.
Para desencadear o reflexo da sucção a mãe
deve passar o mamilo sobre os lábios do bebé
procurando não o introduzir bruscamente na boca.
Durante a estadia na maternidade a mãe
poderá dar de mamar deitada, colocando-se em
decúbito lateral; a posição da mãe e bebé dverá ser
ajustada de modo que a criança e peito do mesmo
lado fiquem em plano superior.
292
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
No fim da mamada (e ainda com o mamilo +
aréola dentro da boca da criança) neutralizar de
modo progressivo o vácuo bucal criado; contribuindo para que se evite o traumatismo do mamilo por repuxamento brusco e intempestivo do
mesmo no fim da mamada.
As alterações do mamilo, nomeadamente do
mamilo invertido impedindo a penetração deste e
da aréola na boca, dificultam a sucção e provocam
ingurgitamento dos seios com maior probalidade
de fissuras por traumatismo.
Esquema de amamentação
O Quadro 4 resume os aspectos fundamentais do
esquema prático da amamentação.
Nunca será de mais repetir:
a) que o horário rígido deve ser desencorajado
e que a preocupação inicial no pós – parto é, não
propiciar calorias, mas estimular a sucção;
b) que o RN deve estar sempre junto da mãe
Classicamente aconselha-se “dar” em cada
mamada os dois peitos, começando de um lado e
terminando no outro; na mamada seguinte o peito
a ser dado em primeiro lugar será o que foi último
na mamada anterior.
São desaconselhadas as mamadas prolongadas
que contribuem para maceração do mamilo e formação de fissuras.
Após a “subida do leite”, está provado, nos
bebés de termo, saudáveis e vigorosos, que a
sucção a ritmo rápido(de 1 sucção por segundo),
em 5 – 7 minutos permite a extracção de leite para
as necessidades, por cada mamada. Desaconselha-se a mamada de duração total superior a 20 minutos pela probabilidade crescente à medida que
se desenrola a mamada, de o bebé “perder” a
força de sucção e passar a deglutir mais ar do que
leite, o que contribui para meteorismo.
Avaliação do aleitamento
O papel do profissional de saúde (médico, enfermeiro ou outro) é fundamental nos primeiros dias
após o parto no sentido de manter confiança da
mãe, tentando diminuir-lhe a ansiedade e o receio
pela eventual insuficiência do leite.
Em regra, no 5º dia de vida já haverá uma ideia
sobre a evolução do aleitamento tendo sempre em
QUADRO 4 – Actuação prática
RN com a mãe
(alojamento conjunto ou “rooming – in”)
– Primeira mamada na sala de partos (se possível na 1ª
hora pós-parto)
– 2º dia: 2 – 5 minutos de cada lado (alternar) – colostro
– 2º dia e seguintes: no máximo: 10 minutos em cada
lado (alternar)
• Frequência: horário livre; sempre que “chore com
fome”; respeitar o “apetite”; em regra o lactente saudável não pré-termo necessita entre 6-8 mamadas/24
horas; quanto mais curtas forem as mamadas, maior a
probabilidade de maior número de mamadas. Não é
consensual a rotina de acordar o bébé saudável e de
termo, de noite para mamar; determinados factores de
crescimento no leite materno garantem a estabilização da
glicémia.
• Limites a respeitar:
– intervalo mínimo entre mamadas: 1 hora
– duração máxima (total) da mamada: 20 minutos
• Precaução – lavagem da aréola e mamilo com água
fervida no fim da mamada; secagem antes de tapar a
mama. A aplicação do próprio leite materno no mamilo-aréola previne as fissuras, dado o efeito cicatrizante
do mesmo (recordar os factores de crescimento anteriormente referidos)
– a vigilância da glicémia apenas está indicada nos casos
de dificuldades na lactação e/ou suspeita de hipogalactia, baixo peso de nascimento, macrossomia, etc.
• Êxito da lactogénese se: estímulo da sucção; esvaziamento mamário completo
• Nota importante:
O choro (estímulo sonoro) da criança junto da mãe, antecipando a mamada, estimulando o hipotálamo e a hipófise,
promove a secreção da ocitocina (contracção do útero e
esvaziamento da glândula) e da prolactina (estímulo da
secreção láctea).
conta o decrescimo fisiológico no peso de nascimento que por vezes, é cerca de 5-7%, por isso,
torna-se fundamental que haja uma comunicação
com a mãe. Por outro lado, há também que desdramatizar o problema da evolução ponderal.
Refira- se que, dum modo geral, a evolução ponderal nos lactentes alimentados ao peito é mais
discreta do que nos alimentados com leite industrial(argumento positivo, pois a probabilidade de
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno
obesidade nas crianças alimentadas com leite
materno é menor).
Reitera-se que a mãe deverá ser informada de
que, em condições fisiológicas, existe sempre
perda de peso inicial, e que se poderá considerar
satisfatório se houver recuperação do peso de
nascimento pelo 8º-12º dia.
Desaconselha-se a pesagem diária pela ansiedade
que origina na mãe; em geral e em condições normais será suficiente, nas primeiras semanas a verificação semanal do peso. A chupeta é desaconselhada.
Fármacos e aleitamento materno
Nos casos em que a mãe lactante está submetida a
determinados tratamentos com fármacos, há que
atender a que os mesmos podem ser transferidos
para o leite, quer por difusão passiva, quer por
transporte activo, variando a concentração do
medicamento no leite de diversos factores tais
como a concentração sanguínea materna e o
tempo decorrido entre a administração e a mamada. Na prática, são raras as situações em que se
deverá interromper o aleitamento.
Nesta perspectiva, os clínicos responsáveis
pela assistência à lactante e ao lactente deverão
consultar as normas de actuação que consideram
essencialmente três tipos de fármacos:
1 – Fármacos que não devem ser administrados à lactante:
Atropina, anticoagulantes, antitiroideus, citostáticos, di-hidro-taquiferol, iodetos, narcóticos,
substâncias radioactivas, brometos, tetraciclinas,
metronidazol, cimetidina.
2 – Fármacos que obrigam a vigilância do
lactente no caso de a lactante os tomar,
não sendo necessária a suspensão da amamentação:
Corticóides, diuréticos, contraceptivos orais,
ácido nalidíxico, sulfonamidas, carbonato de lítio,
reserpina, difenil-hidantoína, barbitúricos, cumarinas, heparina, tiroxina.
3 – Fármacos ou substâncias sem qualquer
efeito sobre o lactente:
Insulina, epinefrina, administração ocasional
de paracetamol ou ácido acetil-salicílico, uso
moderado de álcool, cafeína, chá.
293
Infecção e aleitamento materno
Embora o leite materno tenha um papel crucial na
profilaxia das infecções, há que referir, no entanto
algumas infecções maternas raras que são limitativas da amamentação. Trata-se essencialmente,
(para citar as principais) das infecções pelo vírus
da imunodeficiência humana (VIH), pelo vírus
humano da leucemia de células T (VHLT tipos I e
II), de infecções mamárias pelo vírus herpes, da
varicela materna, de formas de tuberculose materna evolutiva, e de situações de serologia positiva
materna (IgG) para o citomegalovírus (CMV).
Casos especiais
É importante chamar a atenção para dois pontos:
a) a administração de soluto glucosado, designadamente no pós-parto, antes da subida do
leite, dum modo geral não deverá ser fomentado.
De facto, a técnica de administração de soluto
adocicado poderá desmotivar o bebé para receber
o colostro que tem sabor “salgado”;
b) a mãe deve ser ensinada a dar eventual
suplemento se se justificar, à colher, e sempre
depois da mamada, pelo facto de o biberão exigir
menos esforço, o que poderá também contribuir
para a ulterior recusa do peito.
c) a mãe deve ser esclarecida que, durante a
primeira semana, de adaptação do bebé, as necessidades calóricas e em líquidos são inferiores
àquelas a partir do 8º-10º dia.
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Importância do problema
Apesar da grande variabilidade entre espécies, os
leites proporcionam um adequado crescimento e
desenvolvimento do recém-nascido até à aquisição de uma capacidade própria de alimentação e
de sobrevivência na ausência da sua mãe. A composição do leite varia de espécie para espécie de
mamíferos.
Os leites dos mamíferos em geral, e o leite de
mulher em particular, contêm todos os nutrientes
necessários ao crescimento dos seus recém – nascidos, bem como todos os mediadores de crescimento e de diferenciação celular e ainda múltiplos
factores de defesa contra antigénios e agentes infecciosos. O leite de cada espécie veicula igualmente hormonas, enzimas e oligossacáridos.
O leite materno, tal como foi referido no capítulo 52, constitui assim, sem qualquer dúvida, o
alimento ideal nos primeiros meses de vida,
fornecendo nas proporções adequadas todos os
nutrientes necessários, nomeadamente proteínas,
gorduras, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e água. Reconhece-se, contudo, que muitos
dos constituintes nutricionais ou imunológicos do
leite materno se encontram ainda por estudar, ou
mesmo por descobrir.
Quando não é possível o aleitamento materno,
dispõe-se hoje de alternativas de outros leites e
das chamadas fórmulas, sendo que a composição
do leite materno constitui um guia importante
para a composição das referidas fórmulas. Os
indicadores de referência são o crescimento
somático, bem como marcadores biológicos, proteicos e lipídicos entre outros, relativamente a
lactentes saudáveis alimentados exclusivamente
com leite materno (4 – 6 meses).
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis
Neste capítulo procede-se a uma abordagem
das fórmulas infantis disponíveis no mercado.
Classificalçao dos leites
e fórmulas infantis
Tendo por base a lei interna do país, e de acordo
com as Directivas Comunitárias, são estabelecidas
algumas definições consideradas importantes
para uma correcta compreensão e prescrição.
A fonte proteica deverá estar claramente
definida. A classificação de “Leite” ou “Fórmula”
depende do facto de a fonte proteica estar respectivamente na dependência exclusiva do leite de
vaca ou não.
Existem actualmente três grandes grupos de
leites: os leites para lactentes, os leites de transição
e os leites de continuação. Incluídos nestas categorias dispomos de vários tipos de leites, adequados
a diversas situações clínicas.
Leites e Fórmulas para lactentes: géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas,
destinados a lactentes durante os primeiros 4 a 6
meses de vida e que satisfaçam as necessidades
nutricionais deste grupo etário.
Leites e Fórmulas de transição: géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas,
destinados a crianças entre os 4 a 6 meses, e 12
meses (e eventualmente até aos 3 anos) que constituam o componente líquido principal de um
regime progressivamente diversificado deste
grupo etário.
As fórmulas para lactentes recomendadas
desde o nascimento podem também ser satisfatoriamente utilizadas em lactentes até aos 12 meses,
desde que sejam enriquecidas com ferro. As fórmulas de transição podem ser utilizadas em crianças dos 12 aos 36 meses, como parte de um
regime alimentar diversificado.
Todos os leites e fórmulas têm uma composição relativa em macro e micro nutrientes que
respeita os valores mínimos e máximos recomendados pela União Europeia (EU) para os diferentes grupos de leites (Legislação CEE 1999 e
2000). Para além da Comissão da Comunidade
Europeia, também o Comité de Nutrição da
European Society of Paediatric Gastroenterology
Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) tem publicadas as recomendações respeitantes à com-
295
posição das fórmulas para lactentes e das fórmulas de transição, quer relativamente aos nutrientes
em geral, quer a referente à composição de um
nutriente específico.
Quer para as fórmulas para lactente, quer para
as de transição o valor energético estabelecido
oscila entre 60 e 70 Kcal / 100 ml.
Preparações à base de proteínas
do leite de vaca
Proteínas
O teor proteico oscila entre 1,8 e 3,0 g / 100kcal,
com uma relação caseína/proteínas solúveis inferior a 1 e, portanto, similar à observada no leite
maduro de mulher (45/55).
Desde há bastante tempo que se tem alertado
para o teor excessivo de proteínas nas fórmulas
para lactentes. Na realidade, a utilização de leites
para lactentes com um baixo teor proteico (1,8 g /
100 Kcal), resulta em indicadores plasmáticos do
metabolismo proteico mais próximos dos registados em lactentes alimentados com leite materno,
independentemente da relação caseína / lactoproteínas do soro.
Importa lembrar que o perfil de aminoácidos
da proteína bovina é claramente diferente do da
proteína humana. Tais diferenças repercutem-se
nos níveis de aminoácidos em lactentes alimentados com leites com predomínio de proteínas do
soro (treonina, valina, leucina, isoleucina, metionina) ou de caseína (tirosina, fenilalanina, valina,
metionina) com valores superiores aos registados
em lactentes alimentados com leite materno. A
indústria tem procurado corrigir estes desequilíbrios ajustando a composição dos leites naqueles
aminoácidos.
Também o aminoacidograma e a relação entre
aminoácidos essenciais e aminoácidos totais de
lactentes alimentados com leite de baixo teor proteico são similares ao observado nos alimentados
com leite materno. No entanto, apesar destas
similitudes, registam-se algumas diferenças relativas ao teor plasmático de alguns aminoácidos,
quer por excesso (fenilalanina, metionina, isoleucina e citrulina), quer por defeito (triptofano, taurina). Tais diferenças estão também dependentes
da relação entre a caseína e as lactoproteínas do
soro naquelas fórmulas, bem como do perfil quali-
296
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tativo destas, o que tem levado a indústria a
reduzir o teor de β-lactoglobulina e a aumentar o
conteúdo em α-lactalbumina, de modo a ultrapassar alguns desequilíbrios no perfil plasmático de
aminoácidos, o que permitiu aumentar o teor de
triptofano, precursor da serotonina, importante
neurotransmissor com papel importante nos sistemas de alternância fome/saciedade, e de
sono/estado de vigília.
Leites com teores ainda mais reduzidos de proteínas (< 1,8 g / 100Kcal) têm também sido ensaiados, alertando-se, no entanto, para o risco nutricional que tais fórmulas acarretam.
Desde há alguns anos que alguns leites têm
nucleótidos incorporados nas suas composições.
Os nucleótidos representam 0,1 a 0,15 % do conteúdo de nitrogénio do leite materno e, ainda que
os estudos não sejam consensuais, para além do
seu papel na síntese de DNA e RNA, têm-lhes sido
atribuídas algumas funções benéficas, nomeadamente a nível imunológico, promovendo a maturação dos linfócitos T.
Outras vantagens descritas dependentes da
inclusão de nucleótidos nas fórmulas (aumento da
biodisponibilidade do ferro, modificação da flora
intestinal, mais favorável metabolismo das
lipoproteínas e melhor aproveitamento metabólico dos ácidos gordos poli-insaturados de cadeia
longa – AGP-CL, ou LC PUFA na nomenclatura
inglesa), ainda não estão amplamente comprovadas.
Hidratos de carbono e pré-bióticos
Relativamente aos hidratos de carbono, estes leites
podem ser compostos exclusivamente por lactose
ou por uma associação de vários açúcares.
Têm também surgido leites para lactentes e de
transição que incluem oligossacáridos (pré-bióticos) na sua composição com provavel efeito benéfico. Concluiu-se recentemente que não há
objecções à inclusão até 0,8 g/100 ml, de galactooligossacáridos (GOS – 90%) e fruto-oligossacáridos (FOS – 10%) às fórmulas para lactentes e de
transição. Refira-se que o leite materno tem teores
elevados de oligossacáridos (2,2 e 1,2 g/dl respectivamente no colostro e no leite maduro).
Lípidos
Dada a limitada capacidade de síntese de AGP-CL
pelo lactente nas primeiras semanas de vida, as
diferenças entre o suprimento naqueles ácidos
gordos nos alimentados com leite materno relativamente aos alimentados com leite convencional
sem AGP-CL, reflectem-se na composição dos
lípidos plasmáticos, da membrana do eritrócito,
da retina e do cérebro. Estes resultados sugerem a
necessidade de suplementação dos leites para
lactentes em AGP-CL; de acordo com alguns peritos, os leites para lactentes deverão incluir ácido
araquidónico (AA) e ácido docosa-hexanóico
(DHA) nas porporções, respectivamente, de pelo
menos 0,35 e 0,2 do teor total de ácidos gordos.
A inclusão nos leites, de triglicéridos incorporando o ácido palmítico, predominantemente na
posição β do glicerol, parece ter efeitos benéficos
significativos relativos à absorção de gordura e
cálcio em recém-nascidos de termo saudáveis.
Minerais
Nos leites e fórmulas para lactentes, o teor de
sódio e de outros minerais é inferior ao teor existente nos leites e fórmulas de transição. Refira-se
ainda que são muito inferiores as necessidades em
ferro no primeiro semestre de vida em lactentes
nascidos de termo, pelo que é suficiente um baixo
suplemento em ferro nos leites para lactentes.
Alguns leites têm sido suplementados com
selénio, um importante oligoelemento envolvido
em sistemas enzimáticos com acção antioxidante.
Tal reforço, particularmente importante nos leites
para recém-nascidos pré-termo, é feita sob a forma
de selenito ou de selenato, com similar taxa de
retenção de selénio pelo organismo.
Vitaminas
Também o beta-caroteno, susceptível de ser
metabolizado em vitamina A e com importante
acção antioxidante, tem sido incluído nalguns
leites. Este e outros carotenóides existem no leite
materno; os seus níveis plasmáticos decrescem
rapidamente após o parto em recém-nascidos alimentados com leites não suplementados.
Probióticos
Recentemente surgiram no mercado leites para
lactentes com a adição de probióticos (micro
organismos vivos que melhoram o equilíbrio da
flora intestinal).
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis
Trata-se de espécies bacterianas particulares não
patogénicas, produtoras de ácido láctico, com grande
afinidade para a membrana apical do epitélio intestinal e com alguns efeitos benéficos para a saúde.
Entre estes destacam-se efeitos a nível imunofisiológico intestinal com repercussão favorável nalgumas patologias infecciosas e alérgicas, bem como a
nível da biodisponibilidade de minerais, e ainda, a
nível sistémico, sobre o metabolismo lipídico, pressão arterial e patologia neoplásica. (capítulo 54).
Fórmulas à base de proteínas de soja
De acordo com estudos de peritos em nutrição
não é aconselhada a sua utilização na prevenção
de patologia alérgica.
Relativamente à sua composição, e no que
respeita aos glúcidos, estas fórmulas são isentas de
lactose e incluem uma mistura de açúcares, preferencialmente polímeros de glicose. De forma a
melhorar o seu valor nutricional, estas fórmulas
são enriquecidas em metionina e L-carnitina,
devendo esta última estar presente em valor superior a 7,5mmol/100kcal. A composição relativamente aos restantes nutrientes segue as mesmas
directivas definidas para os leites para lactentes.
Aponte-se que o teor de fitato das fórmulas de
soja, ou a sua relação molar com o zinco, interfere
com a absorção deste oligoelemento, sendo, por
isso, desejável a remoção total de fitato destas fórmulas. A suplementação das fórmulas de soja com
selénio proporciona concentrações plasmáticas e
eritrocitárias no lactente mais adequadas que as
ocorridas com fórmulas não suplementadas.
Existe no mercado uma fórmula hidrolisada à
base de proteína de soja que contém, para além
daquela fonte de proteína vegetal, uma fonte de
proteína animal, o colagénio de porco. Trata-se na
realidade de hidrolisados de soja e colagénio.
Estudos realizados registaram diferenças quanto
à eficácia nutricional de diferentes fórmulas
hidrolisadas de proteínas do leite de vaca e de
soja: valores superiores de aminoácidos não
essenciais, como a glicina e a hidroxiprolina ao 1
mês de vida, em lactentes alimentados com hidrolisado de soja.
Mais estudos serão, pois, necessários para
chegar a conclusões definitivas relativas à segurança nutricional destas fórmulas.
297
Leites de transição
Diferem do leite de vaca essencialmente no conteúdo proteico e em ferro (20 vezes superior), gordura,
hidratos de carbono, outros minerais e vitaminas.
Contêm, de uma forma geral, um teor mais elevado
de proteínas, cálcio e calorias que as fórmulas e
leites para lactentes. Sublinhe-se todavia que, de
acordo com o Scientific Committec on food - SCF, foi
reduzido o teor proteico mínimo destas fórmulas
para 1,8 g/ 100 kcal, valor idêntico ao anteriormente
já estabelecido para os leites para lactentes. A sua
riqueza em ferro e ácidos gordos essenciais justifica,
por si só, a sua utilização, pelo menos, até ao final
do primeiro ano de vida. Têm, no entanto, o inconveniente de conter ainda um elevado teor proteico
condicionando uma sobrecarga metabólica.
A relação caseína/lactoproteínas do soro é
superior a um, e próxima da do leite de vaca
(80/20). O seu maior teor em caseína, ao condicionar um esvaziamento gástrico mais lento, permite uma maior saciedade.
Não é exagero realçar a total inadequação da
utilização do leite de vaca inteiro nesta idade,
prática ainda frequente entre nós e noutros países
europeus. Na realidade, o suprimento proteico
médio de lactentes alimentados com leite de vaca
é 20 a 100% superior à de lactentes alimentados
com leites para lactentes ou com leites de transição, e é 2 a 3 vezes superior ao definido como
“nível de segurança da ingestão proteica”.
Por outro lado, a utilização do leite de vaca na
alimentação do lactente é um factor de risco
importante de anemia por carência de ferro, situação ainda frequente mesmo nos países mais
industrializados. Por seu turno, os leites para
lactentes, como oportunamente referido, podem
ser utilizados até aos 12 meses, desde que sejam
adequadamente enriquecidos em ferro.
Alguns leites de transição, são enriquecidos com
probióticos; outros há que são também suplementados em selénio, em β-caroteno e em nucleótidos.
Leites “de crescimento”
ou de continuação
Os chamados leites de “crescimento” ou de continuação, qualitativamente sobreponíveis aos leites
de transição, são destinados a crianças na faixa
298
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
etária dos 1 aos 3 anos. Estes leites oferecem relativamente ao leite de vaca claras vantagens nutricionais, dado o seu menor teor proteico e um
maior valor relativamente a alguns oligoelementos (ferro e zinco), ácidos gordos essenciais e algumas vitaminas, nomeadamente vitamina D.
Outros leites
Leites acidificados
O aparecimento da flora no tubo digestivo do
recém-nascido depende essencialmente das bactérias procedentes da mãe e do meio ambiente. No
lactente alimentado com leite materno, após um
período inicial de predominio de colibacilos, as
bifidobactérias passam a predominar, contrariamente ao que ocorre em lactentes alimentados
com leite/fórmula, em que a flora é mais heterogénea. Mais do que a composição da preparação, parece ser o pH e o poder tampão do leite/
fórmula e das fezes que determinam a composição
da coproflora, sendo o escasso poder tampão do
leite materno o responsável pela criação de um
meio intestinal ácido favorável ao crescimento de
bifidobactétrias, e desfavorável aos germes potencialmente patogénicos.
Sendo a sua composição muito parecida com a
do leite para lactentes, tais leites são caracterizados pelo facto de serem enriquecidos em bífidus, e
de na sua composição entrarem fermentos lácticos, factores que favorecem a presença de bifidobacterias na flora intestinal do lactente. Por
outro lado, esta acidificação tem a vantagem de
acelerar a digestão das proteínas, aumentar a
acção da pepsina, favorecer a absorção do cálcio e,
transformando a lactose restante em ácido láctico,
criar condições para o desenvolvimento de uma
flora com bifidobactérias predominantes.
Embora se trate de leites com baixo teor de lactose e com fermentos lácteos, não estão, no entanto,
especificamente indicados no decurso das diarreias.
Leites parcialmente hidrolisados
Estudos prospectivos estimam em 2-3% a incidência de alergia às proteínas do leite de vaca durante
a infância; contudo, a mesma pode ocorrer,
mesmo em lactentes amamentados exclusivamente com leite materno, com uma incidência,
menor (cerca de 0,5%).
Os leites parcialmente hidrolisados, correntemente designados de hipo-alergénicos (HA), são
leites em que as proteínas, embora hidrolisadas,
contêm ainda fragmentos de dimensão suficiente
para induzir reacção alérgica em crianças sensibilizadas. As proteínas são parcialmente hidrolisadas pela acção combinada da hidrólise enzimática
e do tratamento térmico a altas temperaturas, permitindo a degradação dos péptidos até um peso
molecular de 5.000 Daltons. A sua composição
relativamente aos restantes nutrientes é muito
semelhante à do leite com proteínas não modificadas.
Estes leites não são, de facto, verdadeiramente
hipo-alergénicos já que não garantem ausência de
reacções em, pelo menos, em 90 % dos lactentes ou
crianças que os tomam, com comprovada alergia
às proteínas do leite de vaca.
Salienta-se que a Directiva 96/4/EC de 16 de
Fevereiro de 1996 exige dados objectivos e cientificamente comprovados da redução do risco de
alergia às proteínas do leite, para que seja utilizada a terminologia de fórmulas lácteas hipoalergénicas (ou hipo-antigénicas).
Não sendo possível o aleitamento materno,
segundo as recomendações da European Society for
Paediatric Allergology and Clinical Immunology
(ESPACI) e a European Society for Paediatric
Gastroenterology, Hepatology and Nutrition
(ESPGHAN), para a prevenção das reacções
adversas às proteínas do leite de vaca em lactentes
com risco hereditário documentado de atopia
(progenitor ou irmão) é recomendada a alimentação com uma fórmula de mais reduzida alergenicidade do que aquela que é conferida pelos
leites HA (parcialmente hidrolisados). De facto,
alguns estudos evidenciaram a eficácia dos leites
parcialmente hidrolisados na prevenção da
doença atópica e alergia alimentar; de referir, no
entanto, que a eficácia da prevenção da doença
atópica em lactentes com história familiar positiva
parece depender não apenas do grau de hidrólise,
como também do tipo das proteínas hidrolisadas.
Dietas baseadas em proteínas não modificadas
do leite de outras espécies (ex. cabra e ovelha), não
devem ser utilizados no tratamento da alergia às
proteínas do leite de vaca.
De acordo com estudos realizados, em termos
ideais, as fórmulas lácteas hidrolisadas devem
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis
conter péptidos tão curtos quanto possível para
diminuir a alergenicidade das proteínas, e tão longos quanto possível para melhorar o seu valor
nutricional (consultar parte Imunoalergologia).
Leites extensamente hidrolisados
Trata-se de alimentos desprovidos de proteínas
alergizantes, pelo que as proteínas do leite de vaca
são extensamente hidrolisadas por tecnologia
complexa (a maior parte do nitrogénio encontrase na forma de aminoácidos e péptidos inferiores
a 1500 Daltons). Assim, é reduzida marcadamente
a alergenicidade, embora não totalmente eliminada, dado que existem certos antigénios de pesos
moleculares <3 000 D que são resistentes às técnicas aplicadas. As principais indicações destes
leites já foram definidas na alínea anterior.
“Dieta” semi-elementar
Em lactentes com alergia às proteínas do leite de
vaca ou com reacções adversas a outras proteínas
alimentares e sindromas de má-absorsão, deve
utilizar-se uma fórmula extensamente hidrolisada
(ou mistura de aminoácidos), sem lactose e com
triglicérideos de cadeia média; é este o conceito de
“dieta” semi-elementar.
Excepcionalmente certas crianças podem apresentar alergia a estes hidrolisados, ou mesmo
intolerâncias a múltiplas proteínas da dieta, preconizando-se nestes casos uma fórmula contendo
aminoácidos livres.
Leites anti-regurgitação
O tratamento médico do refluxo inclui entre outras medidas a utilização de fórmulas lácteas
industrialmente espessadas.
A composição destes leites aproxima-se globalmente da dos leites para lactente ou de transição,
residindo a diferença na sua composição glucídica. O objectivo é atribuir-lhe a capacidade de
espessamento, o que é conseguido com a adição
de amido de milho, ou amido de batata ou farinha
de semente de alfarroba. A farinha de alfarroba
(polímeros de glúcidos não metabolizáveis),
acalórica, é resistente à hidrólise digestiva, podendo ocasionalmente provocar sintomatologia dispéptica, tal como diarreia, cólicas e flatulência.
Os amidos de milho, de arroz ou de batata,
relativamente fluidos em pH neutro, tornam-se
299
extremamente viscosos em pH ácido a 37ºC (proporcionado pelo meio gástrico), sendo bem tolerados.
O teor mais elevado destes leites em hidratos
de carbono, e menor em gordura, acelera o
esvaziamento gástrico, o que também contribui
para a diminuição dos episódios de refluxo.
Para além da eficácia anti-refluxo importa também que estes leites sejam seguros do ponto de
vista nutricional. Tem sido discutida a interferência dos diferentes espessantes utilizados pelas fórmulas anti-refluxo com a biodisponibilidade dos
principais macro e microminerais. A biodisponibilidade do cálcio, ferro e zinco parece superior
nas fórmulas espessadas com hidratos de carbono
digeríveis comparativamente às espessadas com
hidratos de carbono não digeríveis. Regista-se
também uma diminuição mais evidente da
absorção de minerais por fibras solúveis nos leites
com predomínio de caseína relativamente às lactoproteínas do soro.
Alguns destes leites são suplementados em
selénio, em β-caroteno e em nucleótidos.
Leites para recém-nascidos
pré-termo (PT) ou de baixo
peso (BP), com ou sem restrição
de crescimento intra-uterino (RCIU)
O recém-nascido (RN) pré-termo PT é caracterizado por imaturidade das suas funções vitais e dos
sistemas reguladores (enzimáticos, excretores,
etc.) o que o torna muito mais sensível a situações
de carência ou de sobrecarga. O perfil de crescimento é claramente diferente do registado no
recém-nascido de termo, verificando-se um crescimento de recuperação particularmente evidente
nos primeiros 2-3 meses de vida.
Na ausência de leite materno, os leites para
recém-nascidos pré-termo ou recém-nascidos de
baixo peso deveriam garantir um crescimento
semelhante ao ocorrido in útero. Trata-se duma
questão polémica. O teor proteico dos referidos
leites é mais elevado do que o observado nos leites
para lactentes (cerca de 3,0 g/100 Kcal), ocupando
as proteínas solúveis um lugar maioritário de
forma a ser obtido o melhor coeficiente de utilização digestiva possível.
O leite de mãe de RN pré-termo, embora adap-
300
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tado às necessidades destes recém-nascidos, dado
ser mais rico em proteínas e minerais que o leite
de mãe de recém-nascido de termo, necessita
todavia de ser suplementado.
Têm sido utilizados leites para recém-nascidos
pré-termo (RNPT) com proteína parcialmente
hidrolisada ou extensamente hidrolisada. Embora
não dispondo de resultados de estudos prospectivos suficientemente prolongados, os resultados
de algumas investigações têm apontado no sentido de não se registarem diferenças relativamente
ao crescimento, marcadores do metabolismo proteico e perfil plasmático de aminoácidos entre
RNPT alimentados com fórmula hidrolisada, com
fórmula convencional para PT e com leite materno
suplementado ou enriquecido. Todavia estes
resultados não são totalmente consensuais.
Nos RNPT e nos com RCIU as reservas de
ácido araquidónico (AA) e de ácido docosa-hexanóico (DHA) são muito reduzidas. Acresce ainda
o facto de aqueles recém-nascidos não terem
capacidade enzimática para a “elongação” e
dessaturação dos ácidos linoleico e alfa-linolénico
naqueles ácidos gordos poli-insaturados de cadeia
longa (AA e DHA). De acordo com as recomendações de um grupo de peritos, as fórmulas para
RNPT devem incluir, pelo menos, 0,35 % de DHA
e 0,4 % de AA relativamente ao teor total de ácidos
gordos.
A suplementação dos leites para RNPT com
aqueles ácidos, na proporção da existente no leite
materno, resulta num perfil plasmático e na incorporação daqueles ácidos nos fosfolípidos da membrana celular, semelhante ao registado com
lactentes alimentados com leite materno.
A adição de AGP-CL aos leites aumenta o risco
potencial de agressão oxidante não apenas aos
restantes componentes do leite como também aos
próprios lactentes com ele alimentados. Sendo a
vitamina E o principal antioxidante biológico,
torna-se vital a existência de um teor adequado
daquela vitamina nas fórmulas lácteas. Aquele
valor é, assim, definido tendo por base o teor de
ácidos gordos poli-insaturados dos leites. O
respeito por este pressuposto poderá justificar a
ausência de efeitos adversos relativamente à
biodisponibilidade dos aminoácidos de leites
enriquecidos com AGP-CL.
De igual modo, um teor equilibrado em AA e
DHA e uma adequada protecção antioxidante,
não interfere com o crescimento nem tem outros
efeitos adversos.
Cerca de 20% do seu teor lipídico deverá ser
suprido sob a forma de triglicéridos de cadeia
média (TCM) que são rapidamente metabolizados
e preferencialmente utilizados como fonte
energética.
Tendo em conta a limitada actividade lactásica
nos RNPT, parte da lactose destes leites é substituída por polímeros de glicose (5 a 10 moléculas
de glicose) que são clivados por acção da maltase
ou glucoamilase, esta última com uma elevada
actividade já pelas 28 semanas de gestação.
O conteúdo em minerais está aumentado, nomeadamente em sódio, fósforo e cálcio, permitindo assim uma maior retenção cálcica e uma melhor absorção das gorduras.
Tem sido advogado o uso de fórmulas especiais para lactentes com antecedentes de baixo
peso de nascimento e destinados ao período que
se segue à alta hospitalar: as chamadas PDF ou
“Post-Discharge Formula”. São fórmulas com
uma densidade proteica mais elevada e com um
maior teor em macrominerais, nomeadamente em
cálcio. Embora em alguns estudos se tenha registado um efeito benéfico no crescimento, particularmente nos primeiros meses de vida, os estudos
não são consensuais no tocante, quer ao crescimento estaturo-ponderal, quer à composição corporal nos primeiros 18 meses de vida. De igual
modo não se observaram diferenças relativamente
a nível comportamental e de desenvolvimento
psicomotor registados também até aos 18 meses
em lactentes com fórmulas PDF relativamente a
fórmulas convencionais. A análise dos resultados
conhecidos permitiu concluir que os dados até à
data são limitados e não ligitimam a recomendação de fórmulas com elevado teor proteicoenergético relativamente às fórmulas convencionais no momento da alta em RNBP (Ver capítulo 45).
Leites sem lactose
A lactose é um dissacárido formado por glicose e
galactose, necessitando de ser enzimaticamente
degradado nos seus açúcares simples para ser
absorvido. A dissacaridase, lactase existente nas
microvilosidades dos enterócitos maduros das vi-
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis
losidades intestinais, pode ser deficitária por imaturidade, ou por destruição dos enterócitos maduros no decurso de uma gastrenterite aguda.
Leites sem lactose, constituídos a partir do leite
de vaca, apresentam apenas uma modificação da
fracção glucídica, em que a lactose é substituída
por glicose ou por dextrinomaltose. Estão indicados prioritariamente em situações de défice
primário de lactase, e em situações de diarreia
aguda. Salienta-se uma menor osmolaridade
quando comparados com os leites para lactentes e
de transição, sendo qualitativamente adequados
às necessidades do lactente, e eficazes e seguros
em termos nutricionais. Alguns são suplementados com nucleótidos e com β-carotenos.
Aspectos práticos relacionados com a
alimentação com leite não materno
301
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O numero de refeições diárias desde o nascimento
até os 12 meses varia entre 6-8 ou mais (de início)
até somente 3 ou 4 quando o bebé completa 1 ano.
O intervalo entre refeições varia de bebé para
bebé (3-5 horas, média 4 horas).
Nos primeiros 2 meses de vida as refeições são
tomadas ao longo das 24 horas; ulteriormente, à
medida que o volume por refeição aumenta, a
criança, adaptando-se aos hábitos da família,
manifesta tendência para dormir mais horas
seguidas de noite, período em que somente se alimenta se acordar.
No que respeita à quantidade de leite por
biberões, sendo prescrito o volume de água em
função das necessidades e procedendo à mistura
do “leite” em pó com a água (concentração padrão
de uma medida rasa para 30ml de água ou ~15%),
em geral não se ultrapassa 210-240 ml/biberão.
Após o início da alimentação deversificada os
cálculos em volume total/ 24 horas contemplam a
ingestão de leite acrescida da ingestão de alimentos semi-sólidos
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A microflora intestinal, o alvo principal destes
produtos que fazem parte do leite materno e de
algumas fórmulas, é constituida por microrganismos cujo habitat é o lume e a mucosa intestinal do
homem e de outros mamíferos. O chamado complexo probiótico é formado por mais de 400 espécies bacterianas, na maioria comensais, algumas
com potencialidades patogénicas, e muitas com
benefício para o organismo do hospedeiro. Estas
últimas encontram-se sobretudo no cólon em que
98% da microflora é formada por 30-40 espécies,
com predomínio de bactérias anaeróbias; parte
importante das mesmas tem influência no estado
de saúde do homem.
Bactérias consideradas benéficas, por exemplo
os lactobacilos e as bifidobactérias, produtoras de
ácido láctico, fazem parte de probióticos.
Outros produtos chamados pre-bióticos são
ingredientes alimentares não digeriveis que estimulam selectivamente o crescimento e a actividade das espécies bacterianas benéficas. Os produtos chamados simbióticos são uma combinação
dos probióticos e dos pré-bióticos; o uso de microrganismos vivos em combinação com os seu
substratos específicos tem efeito sinérgico para a
saúde através da alimentação. A estes produtos
dá-se genericamente o nome de alimentos funcionais.
Recorda-se, a propósito, que a colonização do
intestino do recém-nascido pelas bactérias começa
na altura do parto; e a flora intestinal materna é a
única fonte natural de bactérias benéficas para o
intestino. O desenvolvimento da microflora intes-
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos
tinal dos lactentes alimentados com fórmulas
padrão é diferente da dos lactentes amamentados,
particularmente, no que diz respeito a progressão
das bifidobactérias que nestes últimos se tornam
os microrganismos dominantes.
A este propósito cabe referir alguns factos
históricos sobre alimentos funcionais.
O iogurte e os leites fermentados foram os
primeiros produtos considerados alimentos funcionais. Reza a história que o iogurte mais antigo
era egípcio (3500 AC).
Hipócrates descreveu as propriedades benéficas do iogurte. Só muito mais tarde na Bulgária e
na Turquia se vulgarizou o seu consumo. Uma das
bactérias usadas na sua fermentação recebeu o
nome científico de Lactobacillus bulgaricus, e foi da
tradição oral destes povos que nos chegou o nome
de “iogurte” que “contribuiu” para a enorme
longevidade dos seus habitantes.
Em 1919, Isaac Carasso, fundador da Danone,
começou a produzir industrialmente o iogurte
que nessa época, por ser considerado um medicamento, era vendido nas farmácias. Posteriormente, por conter bactérias cujo principal alvo era a
microflora intestinal com efeitos benéficos para a
saúde do hospedeiro, passou a ser considerado
um alimento funcional, salientando-se o estudo
científico de Metchinikoff no Instituto Pasteur de
Paris.
Hoje em dia a área dos Alimentos Funcionais
constitui uma área promissora das Ciências da
Nutrição.
Probióticos
A designação de probióticos é conhecida desde
1965 (Lilley & Stilwell), mas foi Fuller que em
1989, definiu probióticos como alimentos suplementados com microrganismos que produzem
efeitos benéficos no hospedeiro através da melhoria do balanço microbiano da sua microflora intestinal.
Os probióticos, pelo seu interesse, constituem
um motivo de investigação actual em varias áreas
de medicina, em veterenária e na industria alimentar. Por isso, em 1999 foi elaborado pela
Comunidade Europeia um documento de consenso que define probiótico como um alimento que
incorpora microrganismos vivos (lactobacilos,
303
bifidobactérias) o qual, consumido em quantidades suficientes, produz efeitos benéficos para a
saúde e para o bem-estar, para além dos efeitos
nutricionais. Alguns produtos considerados como
probióticos são constituídos por lisados bacterianos ou produtos inactivados pelo calor que,
quando ingeridos, também exercem efeitos benéficos para a saúde do hospedeiro pela capacidade
de inibir a adesividade de bactérias patogénicas às
células da mucosa intestinal, melhorando o equilíbrio microbiano intestinal do hospedeiro.
Os microganismos que fazem parte dos probióticos mais utilizados são:
• Bactérias vivas produtoras de ácido láctico
– Lactobacillus (bulgaricus, acidophilus, casei, GG
rhamnosus, plantarium), componentes importantes
da microflora intestinal e dominantes no intestino
delgado.
– Bifidobacterium (lactis, longum, bifidus), que
são dominantes no cólon, e também componentes
importantes da microflora intestinal. Predominam
no intestino dos recém-nascidos e dos lactentes
alimentados com leite materno. As bifidobactérias
são germes anaeróbios e utilizam uma via específica para metabolizar a lactose da alimentação
produzindo acido láctico, (como outros probióticos), mas também acido acético com maior efeito
bacteriostático.
– Streptoccocus (thermophilus, lactis, salibarius)
que têm uma forte actividade lactásica e que pela
sua resistência à hidrólise, chegam em grandes
quantidades ao intestino.
• Leveduras, células vivas
– Saccharomyces (boulardii, cerevisiae), resistente
aos antibióticos.
Um preparado probiótico pode conter uma ou
mais estirpes de microrganismos. Os probióticos
mais utilizados na alimentação humana são estirpes de bactérias produtoras de ácido láctico como
os Lactobacillus e as Bifidobacteria que preenchem
as condições efectivas de probiótico. O Saccharomyces boulardii é outro probiótico também utilizado com frequência.
O principal objectivo da utilização dos probióticos é o de aumentar o número e a actividade
dos microrganismos intestinais com propriedades
úteis ao hospedeiro. Assim, as condições a que
deve obedecer um probiótico são:
304
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
a - resistência à acidez gástrica, à bílis e às
enzimas pancreáticas;
b - boa adesividade às células da mucosa
intestinal;
c - boa capacidade de colonização;
d - tolerância imunológica com as bactérias
autóctones;
e - ausência de translocação;
f - modulação do trânsito intestinal ajudando
a evitar obstipação;
g - melhor digestibilidade dos nutrientes
aumentando o seu valor nutricional;
h - comprovados efeitos benéficos para a saúde.
Os mecanismos de acção dos probióticos não
estão totalmente esclarecidos, o que implica ulterior investigação básica e clínica, actualmente em
desenvolvimento. Os possíveis mecanismos ao
nível intestinal e sistémico são:
a - actividade antimicrobiana contra as bactérias patogénicas: pela inibição do crescimento bacteriano competindo com o consumo de nutrientes; pela síntese de peptidos e outras substâncias bactericidas; pelo
impedimento da sua adesividade às células da mucosa intestinal, pela inactivação
de toxinas (E. coli, V cholorae, C difficille).
b - aumento da secreção de mucina com
diminuição da permeabilidade intestinal ;
daí o efeito barreira contra as bactérias
patogénicas (E.coli).
c - acidificação do pH intestinal pela produção
de ácidos gordos de cadeia curta e consequente menor pH fecal (fezes mais ácidas).
d - Inibição da actividade enzimática bacteriana no cólon e aumento da actividade de
algumas enzimas intestinais (lactase, maltase e sacarase); também melhor absorção
de cálcio e ferro evitando a sua utilização
pelas bactérias patogénicas.
e - Imunomodulação do sistema imunitário
intestinal com (estímulo da fagocitose contra os agentes patogénicos) e efeito antialérgico aos alimentos.
f - Melhoria da circulação entero-hepática e da
desagregação dos ácidos biliares o que
reduz os níveis sanguíneos de amónia em
doentes com hepatopatia.
Os probióticos têm efeitos na prevenção e
tratamento de várias situações patológicas:
Intolerância à lactose e a outros dissacáridos
Será provavelmente uma das utilizações mais
antigas dos probióticos, pois desde há muito se
sabe que o iogurte é muito melhor tolerado que o
leite pelos indivíduos intolerantes à lactose. Esta
melhor tolerância tem sido atribuída à redução do
conteúdo em lactose no iogurte devido à fermentação pelas bactérias produtoras de ácido láctico, à
actividade lactásica das próprias bactérias, e também à menor velocidade de esvaziamento gástrico
do iogurte em relação ao leite. Tal como sucede
com a intolerância à lactose, a administração de
um probiótico como o Saccharomyces boulardii melhora a sintomatologia em indivíduos com défice
em sacarase-isomaltase.
Diarreia aguda infecciosa
O maior número de estudos com probióticos tem
incidido, quer na prevenção, quer no tratamento
da diarreia aguda infecciosa.
Em ensaios preventivos verificou-se nas crianças que ingeriam leite enriquecido com a estirpe
de Bifidobacterium lactis, uma diminuição significativa da incidência de diarreia bem como de fezes
duras, e de dermatite de fraldas.
Nos ensaios terapêuticos o conjunto dos resultados aponta para diferenças significativas a favor
dos grupos com probióticos no que respeita a
intensidade e duração da diarreia, ao número de
dias de internamento e aos dias em que os vírus
são eliminados pelas fezes, particularmente no
caso da diarreia por rotavírus. Entre as possíveis
explicações encontram-se as propriedades imunológicas conferidas pelas estirpes probióticas, a
redução de produtos de putrefacção e o equilibrio
ecológico da flora intestinal.
Tendo em conta que a diarreia é uma causa
importante de mortalidade nos paises em desenvolvimento, sobretudo em crianças com má-nutrição e, nos países desenvolvidos, causa de
evicção escolar e de hospitalização, os probióticos,
pela sua eficácia preventiva e terapêutica, são
uteis em saúde pública. Em doses muito elevadas,
a diarreia provocada pelo VIH parece beneficiar
sua utilização.
Diarreia associada a antibióticos
Vários estudos têm comprovado a eficácia dos
probióticos na prevenção e no tratamento da diar-
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos
reia associada a antibioticoterapia. Os mais utilizados têm sido as Bifidobacteria, os Lactobacillus e
o Saccharomyces boulardii.
Diarreia do viajante
A diarreia do viajante é a doença mais comum
durante a visita às regiões tropicais. O efeito preventivo dos probióticos em tal contexto não está suficientemente demonstrado e os estudos são contraditórios. No entanto, alguns ensaios clínicos referem
uma redução de incidência da diarreia, variando
consoante as regiões visitadas e as doses utilizadas.
Síndroma do cólon irritável
Está referida a diminuição de dor abdominal e da
diarreia nesta patologia frequente nas consultas
de gastrenterologia.
Doença inflamatória crónica do intestino
e outras situações gastrenterológicas
Parece bastante promissor o uso de probióticos,
especialmente de Saccharomyces boulardii e do
Lactobacillus casei, na doença de Crohn, na colite
ulcerosa e na inflamação crónica da bolsa ileal,
pela influencia benéfica na microflora intestinal.
Têm sido referidos resultados animadores com
a utilização de probióticos na síndroma do intestino curto e em casos de alergia alimentar, provavelmente pela diminuição da permeabilidade intestinal e da imunomodulação. Está referida a eficácia
dos probióticos (L. casei e S. boulardii) no tratamento e a profilaxia de recidivas da colite pseudomembranosa induzida pelo Clostridium difficile.
Dislipidémias e hipertensão arterial
Uma das propriedades das bifidobactérias é a sua
influencia no metabolismo lipídico. Alguns estudos
clínicos apresentam como resultado de utilização
dos probióticos reduções significativas dos níveis
do colesterol total pela diminuição do colesterolLDL, enquanto os níveis de colesterol-HDL aumentam ligeiramente. O efeito hipocolesterolemiante
das bifidobactérias resulta da diminuição da
absorção e do transporte do colesterol alimentar
para o fígado (via quilomicrones) e, por outro lado,
pela desconjugação dos sais biliares com menor
absorção do colesterol pelo intestino. A niacina formada pelas bifidobactérias reduz o fluxo de ácidos
gordos livres que, ao diminuir a biossíntese da
305
lipoproteína VLDL, contribui para a redução dos
níveis plasmáticos dos triglicéridos.
Além da acção sobre o colesterol, as bifidobactérias produzem um conjunto de tripéptidos que
foram identificados como efectivos na redução da
angiotensina e, consequentemente, na hipertensão
arterial.
Estes efeitos benéficos de combate aos factores
de risco das doenças cardiovasculares levam a
fomentar a inclusão de alimentos funcionais com
probióticos no regime preventivo.
Outras situações clínicas
Embora com resultados ainda mal definidos, os
probióticos estão a ser utilizados na candidíase
mucocutânea, na fibrose quística, nas infecções
urogenitais e nas vaginites, tendo em conta a sua
acção imunostimulante, inibição da actividade
enzimática bacteriana e recolonização do tracto
vaginal com lactobacilos.
Quanto à tolerância, uma extensa revisão de
ensaios com probióticos contendo Lactobacillus,
Bifidobacterium, Streptococcus thermophilus, Saccharomyces boulardii não evidencia quaisquer efeitos
indesejáveis. Não estão também referidos quaisquer efeitos adversos em lactentes alimentados
com fórmulas incorporando probióticos.
Centenas de anos de experiência com o uso de
productos lácteos fermentados e do iogurte atestam a sua inocuidade. A administração controlada
de probióticos pode ser muito útil para reduzir o
potencial patogénico da microflora intestinal.
Assim os probióticos pelos seus efeitos na prevenção dos factores de risco e no tratamento de
algumas situações patológicas, representam um
contributo promissor para a Saúde pela Nutrição.
Pré-bióticos
Os pré-bióticos são fibras solúveis ou glúcidos complexos não digeríveis e não metabolizados no intestino delgado funcionando como substâncias de escolha para o desenvolvimento de um certo número de
bactérias endógenas benéficas do intestino, sobretudo do cólon, particularmente das bifidobactérias e
dos lactobacilos. Estimulando o crescimento e a
actividade das bactérias benéficas da microflora
intestinal, os pré-bióticos podem contribuir para
melhorar a saúde do hospedeiro.
306
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Os pré-bióticos mais utilizados nas fórmulas
resultam do estudo intensivo dos oligossacáridos
do leite materno em lactentes com a flora intestinal em que predominam bifidobactérias e lactobacilos; tal levou ao desenvolvimento de uma
mistura de fibras solúveis e não digeríveis no
intestino delgado com oligossacáridos neutros:
• Galacto-oligossacáridos (oligo-galactose) –
GOS – de baixo peso molecular
• Fruto-oligossacáridos (oligo-frutose) – FOS –
de elevado peso molecular
Estes oligossacáridos têm efeitos comparáveis
a alguns oligossacáridos do leite humano que
estimulam o desenvolvimento da microflora
intestinal bifidogénica. Os glicoconjugados com
proteína têm algumas propriedades semelhantes.
(Figura 1)
O leite materno é muito rico oligossacáridos
complexos que são o seu componente maioritário
depois da lactose e dos lípidos, e em quantidades
similares às das proteínas. Ao contrário, o leite de
vaca contém uma quantidade inferior de oligossacáridos complexos, e os seus isómeros são diferentes do leite materno.
Os oligossacáridos do leite materno, estimulando o desenvolvimento de bifidobactérias e lactobacilos, modificam as condições do meio intestinal, sobretudo no que diz respeito a colonização
pelas bactérias patogénicas e a permeabilidade da
mucosa intestinal, o que diminui o risco de
infecções e de atopias.
Estudos duplamente cegos, aleatórios e multi-
Cadeias qlicosídicas, principalmente β (1-4) e β (1-6) de galactose ligadas, com terminal glucose
-2 a 7 monómeros
Cadeias qlicosídicas β -1, 2 de frutose ligadas com/sem terminal de glucose – 5 a 60
monómeros
FIG. 1
Estrutura química de oligossacáridos pré-bióticos.
cêntricos (Rigo e col., Schmelze e col., Knoll e col.,
Moro e col.) permitiram, a partir de 2000, demonstrar na mistura GOS/FOS as seguintes propriedades:
a) efeito bifidogénico rápido e estável com
aumento significativo no número de bifidobactérias
na flora fecal e diminuição de bactérias putrefactivas; efeito selectivo das bactérias benéficas estimulando o seu crescimento e o desenvolvimento na
microflora intestinal;
b) eficácia nutricional avaliada por antropometria: crescimento similar ao dos lactentes amamentados, mesmo nos recém-nascidos pré-termo;
c) consistência das fezes idêntica à dos lactentes alimentados com leite materno;
d) resistência à hidrólise na saliva e no tracto
gastrintestinal e hidrólise somente no intestino
distal, o que dá origem ao substrato ideal para o
desenvolvimento das bifidobactérias dificultando
o crescimento da flora patogénica;
e) bloqueio da adesividade das bactérias exógenas aos enterocitos e participação nos sistemas
de defesa contra as infecções;
f) regulação da motilidade intestinal, melhoria
de absorção de alguns minerais (Ca, Mg) e diminuição de enzimas redutoras;
g) oligossacáridos como fonte de monossacáridos como a fucose e o ácido siálico, utilizados na
síntese de glicoproteínas e de glicolípidos cerebrais;
h) boa tolerância, sem efeitos adversos, particularmente no respeitante ao balanço azotado.
Estes estudos permitiram, nalguns centros de
investigação em nutrição infantil, o desenvolvimento de uma mistura destas fíbras GOS/FOS
como pré-bióticos para enriquecer as fórmulas de
continuação para lactentes com 0,8gr/dl de
oligossacáridos (90% de GOS+10% de FOS).
A Comissão Científica dos Alimentos da
Comissão Europeia aceitou em Dezembro de 2001
a utilização de GOS/FOS como ingredientes nas
fórmulas de continuação, numa concentração até
0,8gr/100ml do produto final.
A eficácia pré-biótica está relacionada com a
maior ou menor capacidade de estimular o crescimento de estirpes benéficas para a microflora
intestinal, sobretudo do cólon, em detrimento de
outras potencialmente patogénicas.
O leite materno contém uma complexa mistu-
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos
ra de mais de 100 oligossacáridos que, além de
outras funções, servem como substratos para o
desenvolvimento de uma microflora intestinal
benéfica pelo alto conteúdo em bifidobactérias.
Quanto à tolerância dos pré-bióticos existem
diversos estudos que demonstram a inocuidade
de oligossacáridos GOS/FOS em doses recomendadas e o normal crescimento e desenvolvimento
de lactentes alimentados com fórmulas com este
tipo de suplemento funcional.
Simbióticos
A combinação de probióticos e de pré-bióticos
origina o que se designa por simbióticos. Assim,
as fórmulas de continuação com simbióticos contêm:
– Um inóculo de bactérias produtoras de ácido
láctico e leveduras que chegam ao intestino delgado
e ao cólon onde desenvolvem uma interacção benéfica com a microflora intestinal – é o probiótico.
– Um substrato não digerível nem metabolizável de oligossacáridos neutros que serve de
nutriente para certos microrganismos benéficos
da microflora intestinal, sobretudo para as bifidobactérias e para os lactobacilos, promovendo o
crescimento dos mesmos – é o pré-biótico.
Desta combinação resulta uma fórmula com
simbiótico. O simbiótico fornece, assim, microrganismos benéficos para uma microflora intestinal mais saudável e, simultaneamente, os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento e
actividade.
Neste momento, gera-se a dúvida sobre o que
será mais importante:
a) se reforçar a microflora intestinal benéfica,
introduzindo através da fórmula os microrganismos benéficos como as bifidobactérias,
os lactobacilos e as leveduras;
b) se fornecer oligossacáridos naturais que,
servindo de nutrientes, estimulam o desenvolvimento daqueles microrganismos benéficos da microflora intestinal;
c) se combinar o probiótico e o pré-biótico para
obter um simbiótico com efeito sinérgico e
consequente aumento da eficácia das bifidobactérias e dos lactobacilos.
Os conhecimentos relativos ao mecanismo de
acção dos probióticos e dos pré-bióticos, embora
307
bastante avançados, são ainda restritos. São
necessários mais estudos com rigor científico para
determinar a sua verdadeira eficácia e segurança.
Em suma, a possibilidade de aumentar a eficácia dos probióticos pela sua associação aos prebióticos parece vantajosa, mas deve ser mais
averiguada. A suplementação das fórmulas com
os mesmos tem sido proposta como meio de
reconstituição da microflora intestinal e, assim,
recriar o estado ecológico protector do intestino
tanto quanto possivel próximo do dos bebés alimentados ao peito.
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55
ALIMENTAÇÃO DIVERSIFICADA
NO PRIMEIRO ANO DE VIDA
trointestinal diseases in children. JPGN 2006; 42: 454-475.
António Guerra
Importância do problema
Está hoje demonstrado que muitas doenças
chamadas da “civilização” têm as suas raízes na
idade pediátrica. Para essas doenças contribuem
de modo determinante factores ambientais relacionados fortemente com a alimentação na
primeira infância. O adequado estado de nutrição
(e de saúde) está, assim, muito dependente de factores relacionados com hábitos alimentares, sendo
desejável um correcto plano de alimentação do
lactente desde o seu nascimento.
São desde há muito conhecidas as vantagens
imediatas do leite materno, nomeadamente a protecção conferida por numerosos factores antiinfecciosos. Estudos epidemiológicos recentes têm
também registado efeitos benéficos a longo prazo,
relativamente à massa corporal, com uma menor
prevalência de excesso de peso/obesidade nos alimentados com leite materno, e à pressão arterial,
com valores inferiores nos amamentados.
É unanimemente reconhecida pelos peritos em
nutrição e amplamente recomendada pela OMS, a
alimentação com leite materno de modo exclusivo
nos primeiros 6 meses de vida.
Reitera-se que a alimentação do lactente deve
idealmente iniciar-se com o leite materno logo
desde os primeiros minutos de vida e durante,
pelo menos, o decurso do primeiro ano de vida.
Quando não é possível o aleitamento materno, é
recomendável a utilização de uma fórmula láctea
para lactentes ou de uma fórmula de transição
para a maioria dos lactentes, as quais foram abordadas no capítulo 53. Em situações particulares,
como os casos de alergia às proteínas do leite de
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida
vaca ou de refluxo gastro-esofágico, estão indicadas fórmulas especiais com uma composição
adequada para tais situações.
A diversificação alimentar
A partir do 6º mês de vida, não sendo possível
suprir de modo adequado todas as necessidades
em macro e micronutrientes com o leite materno
como alimentação exclusiva, torna-se necessário
iniciar um plano alimentar com introdução progressiva de novos alimentos (começar com pequenas porções). O suprimento energético fornecido
pelo leite materno é também claramente insuficiente para a maioria dos lactentes a partir daquela idade. Torna-se ainda importante o fornecimento de oligoelementos a partir de outras fontes alimentares, apontando-se como exemplo mais relevante o ferro.
De salientar, no entanto, que o aleitamento
materno a par de alimentação diversificada, pode
continuar até aos 12 meses. Entre os 6 meses e 12
meses, a par da alimentação diversificada, a alimentação com leite não deve ultrapassar 700
ml/dia nem ser inferior a 500 ml.
É o período da chamada diversificação alimentar – conotado com a noção de alimentação
não láctea exclusiva – incluindo alimentos não
líquidos com características diferentes das do
adulto correspondendo a uma programação que,
não sendo rígida, deve, no entanto, nortear-se por
alguns princípios*. Esses princípios têm basicamente a ver com:
a) Necessidade de suprir o lactente de modo
adequado em todos os nutrientes, sem risco, quer
de certas carências que neste período crítico do
crescimento e desenvolvimento conduziriam a
alterações irreversíveis a nível físico em diferentes
domínios comportamentais, psicomotores, sensoriais e cognitivos, quer de excessos nomeadamente energético e proteico, predispondo a
situações de excesso de peso e de obesidade.
b) Necessidade de respeitar limitações morfológicas e maturativas próprias dos primeiros
meses de vida nomeadamente do tracto digestivo.
São exemplos:
* Como sinónimos de diversificação alimentar são frequentemente
empregues outros termos como: desmame, complementar, suplementar, de transição, weaning, “beikost”, “à-côtés”, solid foods, etc..
309
– Capacidade gástrica: o volume gástrico vai
aumentando progressivamente, desde cerca de 20
ml nas primeiras semanas de vida, até cerca de
250 ml no final do primeiro ano.
– Maturação enzimática: nos primeiros meses
algumas enzimas importantes para a clivagem de
macronutrientes não atingem ainda níveis suficientes. Tal ocorre com a amilase (ainda que a glucoamilase intestinal possa, em parte, participar na
digestão do amido ou de moléculas intermédias) e
com a tripsina pancreáticas. Também a concentração de sais biliares está diminuída nas primeiras semanas de vida.
– Protecção imunológica: nos primeiros meses
de vida o sistema imunológico intestinal não está
suficientemente desenvolvido, o que permite uma
maior permeabilidade à passagem de macromoléculas proteicas com aumento do risco de sensibilização e ocorrência ulterior de alergias alimentares. A diminuição da proteólise intestinal e a deficiência transitória da produção de IgA secretora
são factores de maior risco de sensibilização alérgica.
c) Desenvolvimento psicomotor e neurocomportamental: a aquisição progressiva de determinadas competências no primeiro ano de vida permite que a criança se vá adaptando aos alimentos
semi-sólidos e sólidos introduzidos na boca; pelos
4 a 6 meses – desaparecido o reflexo de extrusão
que “expulsa os alimentos não líquidos da boca”, a
mobilidade ântero-posterior da língua permite
empurrar aqueles para a faringe, assim como a
deglutição; entre 6 e 10 meses – surgem movimentos rítmicos do maxilar inferior com tendência para
abrir e fechar a boca em aproximação ou em fuga
ao alimento; surgindo movimentos de “mastigação” e o controlo manual e ocular, torna-se possível beber líquidos pelo copo; entre os 10 e 12
meses – a capacidade de agarrar os alimentos (em
pinça e com a mão) levando-os à boca permite que,
a pouco e pouco vá comendo cada vez com “mais
autonomia”.
d) Maturação progressiva da função renal que
condiciona também a alimentação do lactente:
– são exemplos de imaturidade renal a incapacidade de manuseamento de sobrecargas de
sódio e de concentração renal nas primeiras semanas de vida; desta particularidade decorrem riscos
de ocorrência de desidratação hipernatrémica
310
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com a utilização de alimentos de elevada osmolaridade.
e) Necessidade de conhecimento pormenorizado da história familiar de determinadas patologias que poderão condicionar a opção por determinados alimentos, quer quanto à idade indicada
para a sua introdução, quer quanto à quantidade
recomendada.
É o caso da comprovação de patologia alérgica
familiar, particularmente nos progenitores e
irmãos, que levam a medidas preventivas defendidas pelos principais peritos em nutrição da
ESPGHAN e da American Academy of Pediatrics
(AAP) os quais recomendam:
– Leite materno exclusivo nos primeiros 6
meses de vida.
– Fórmula láctea de reduzida alergenicidade
na impossibilidade de aleitamento materno.
– Início da diversificação alimentar após os
primeiros 5/6 meses de vida.
– Introdução mais tardia de alguns alimentos
nomeadamente o ovo (2 anos) e o peixe (3 anos)
Outro exemplo em que a história familiar pode
levantar algumas dúvidas relativamente à selecção
dos alimentos a introduzir é a que se reporta à
existência de dislipidémia familiar, ou simplesmente ao risco aterosclerótico que o consumo de
alguns alimentos acarreta, particularmente as fontes
alimentares de gordura animal. Relativamente a
este grupo de patologia importa referir que não está
recomendada qualquer manipulação dietética
específica, já que os riscos de dietas restritivas são
claramente superiores aos eventuais efeitos benéficos relativamente à expressão fenotípica da dislipidemia ou ao risco de desenvolvimento da aterosclerose, particularmente a médio e longo prazo. De
acordo com os peritos de nutrição essa manipulação
deverá ocorrer somente a partir dos 24 a 36 meses
idade, idade a partir da qual se deve proceder ao
rastreio das referidas patologias. Assim, durante
aquele período não deve haver restrições à ingestão
de gordura, já que os ácidos gordos e o colesterol
são vitais para o desenvolvimento do sistema nervoso central e para o crescimento em geral.
A idade de início
Deve, como acima já se sugeriu, ser iniciada a partir dos 5/6 meses de vida de acordo com as
recomendações das OMS. Não há qualquer benefício nutricional em ser iniciada antes dos 5 meses
de vida sendo vários os riscos do seu início precoce:
– Interferência com a lactação materna:
a. diminuição progressiva da produção de leite
materno.
b. redução da biodisponibilidade da maioria
dos macro e micronutrientes do leite materno.
– Fornecimento de alimentos com aumento da
osmolaridade. Os alimentos sólidos têm, no geral,
um teor mais elevado em sódio, de que poderá
resultar um maior risco de ocorrência de hipernatrémia.
– Maior risco de alergia alimentar pelos
motivos já acima referidos.
– Suprimento energético excessivo com risco
de condicionar excesso de peso ou mesmo obesidade, logo desde o primeiro ano de vida.
– Suprimento proteico excessivo que para além
da sobrecarga renal, parece ser também um factor
que favorece a ocorrência de obesidade.
– Suprimento de componentes desnecessários
ou mesmo prejudiciais em período ainda muito
vulnerável:
a. Sacarose, criando desde muito cedo uma
maior apetência pelos doces, para além do potencial risco cariogénico.
b. Nitratos, com o risco de condicionar o
aparecimento de metemoglobinémia
c. Fitatos, com interferência na absorção de
micronutrientes nomeadamente de oligoelementos, sobretudo ferro, cobre e zinco.
d. Aditivos e contaminantes presentes numa
grande variedade de alimentos utilizados na alimentação do lactente.
A ordem de introdução
de novos alimentos
Não existe base científica para a recomendação no
sentido de se respeitar uma determinada ordem
sequencial de introdução de novos alimentos. Há
aspectos que terão naturalmente que ser tidos em
conta, sobretudo os relacionados com hábitos
regionais ou com características sócio-económicas
e culturais das famílias.
Importa lembrar que os alimentos, de início
fornecidos exclusivamente na forma líquida (re-
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida
gime lácteo exclusivo nos primeiros 4/6 meses),
devem evoluir na textura, que deverá progressivamente passar da cremosa à grumosa e à pastosa,
antes dos alimentos fornecidos na forma sólida a
partir do 2º ano de vida. Esta evolução é fundamental para uma correcta aprendizagem da mastigação,
competência que se verifica progressivamente no
lactente a partir dos 7/8 meses de vida. Não estimular o lactente à transição progressiva da textura
dos alimentos no decurso do segundo semestre de
vida pode levar a grandes dificuldades quanto à
aceitação de alimentação sólida e à integração na
alimentação familiar no segundo ano de vida.
Esta evolução gradual, permitindo que a criança, habituada a deglutir líquidos, retenha por mais
tempo na boca os alimentos mais consistentes,
submetendo-os, por isso mais tempo à acção da
saliva, amolecendo-os, constitui um passo fundamental da educação alimentar no que respeita à
aprendizagem da mastigação – aprender a mastigar bem e devagar constitui uma atitude fundamental com benefícios para toda a vida.
Os alimentos a introduzir
Cereais
Os cereais enriquecidos em ferro devem ser dados
ao lactente até aos 18 – 24 meses, tendo em conta
que a ferropenia é também muito prevalente no
segundo ano de vida.
Os cereais são fornecidos sob a forma de farinhas, lácteas ou não, constituídas por um ou
vários cereais sem ou com glúten, sendo recomendada a utilização de farinhas isentas de glúten nos
primeiros seis meses de vida.
Constituem uma fonte energética indispensável numa fase em que se verifica uma actividade
motora progressiva a qual despende energia.
Fornecem amido, vitaminas, minerais, e ácidos
gordos essenciais. Estas farinhas são tratadas por
hidrólise térmica e enzimática de modo a facilitar
a absorção dos seus nutrientes.
Frutos
São fonte importante de vitaminas e de fibras.
Devem privilegiar-se as frutas frescas e maduras
evitando as potencialmente alergénicas ou as libertadoras de histamina como os morangos, o kiwi
e o pêssego. Não devem adicionar-se na sua pre-
311
paração outros alimentos como o mel ou o açúcar.
Aliás não será de esquecer a regra fundamental (respeitando situações especiais): sacarose (e
sal) não devem ser acrescentados ao regime alimentar no primeiro ano de vida.
Não parece haver nenhuma vantagem em iniciar o fornecimento de fruta sob a forma de sumos
relativamente à fruta completa. Os 4 principais
açúcares nos sumos são a sacarose, a glucose, a
frutose e o sorbitol com diferentes percentagens
de absorção e em proporções variáveis de fruto
para fruto. A concentração global de hidratos de
carbono nos sumos varia de 11 a 16 g/100 ml (0,44
a 0,64 Kcal/ml).
Importa lembrar que não devem nunca ser utilizadas bebidas artificiais de fruta actualmente
disponíveis no mercado em múltiplas composições.
Poderá, em resumo, dizer-se que os sumos não
têm qualquer interesse nutricional no primeiro
semestre de vida e não oferecem qualquer vantagem relativamente à fruta completa a partir do
segundo semestre podendo mesmo, se fornecidos
em excesso, condicionar à ocorrência de distúrbios da nutrição.
Legumes e produtos hortícolas
Fornecem particularmente vitaminas, minerais e
fibras que facilitam a formação do bolo fecal exercendo uma acção favorável sobre o peristaltismo
intestinal. São inicialmente dados sob a forma de
caldos e, posteriormente, sob a forma de purés.
Carnes e peixes
A melhor fonte de ferro a partir do segundo
semestre de vida é a carne. O ferro apresenta-se na
forma de ferro hémico com uma biodisponibilidade muito superior à do ferro não-hémico
fornecido pelos cereais, legumes e produtos hortícolas. A presença de carne ou de peixe numa
refeição favorece a absorção do ferro não-hémico.
O teor de gordura fornecido por estes alimentos
de origem animal é qualitativamente variável de alimento para alimento. As carnes de ruminantes são
mais ricas em ácidos gordos saturados e em ácidos
gordos trans. Os peixes são fonte de eleição de ácidos gordos poli-insaturados da série w3, particularmente de ácido eicosapentanóico. A sua utilização deverá ser retardada em situações bem ponderadas nas crianças com antecedentes familiares do-
312
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Leite de
crescimento
Peixe ©
Iogurte
Puré de legumes
com peixe (a)
Papa de
fruta
0
1
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Leite materno exclusivo
Leite materno
Fórmula láctea
Fórmula láctea
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12 meses
11
12 meses
Farinha de
cereais
Caldo de legumes
com carne (a)
(a)
Carne total ou peixe - 30 - 35 g/dia
(b)
Até 2-3 gemas/semana
(c)
Sem história familiar de atopia
Gema de ovo (b)
Arroz, massa,
leguminosas (d)
FIG. 1
Exemplo de diversificação alimentar no primeiro ano de vida.
cumentados (progenitor ou irmão) de patologia
atópica como se referiu. É suficiente o fornecimento
de 30 a 35 gramas de carne ou peixe por dia,
começando-se com 10-15 gramas/dia aos 6 meses.
Ovos
Fornecem todos os aminoácidos essenciais. A gordura encontra-se na sua quase totalidade na
gema, onde se encontram também as vitaminas
lipossolúveis, estando as hidrossolúveis maioritariamente presentes na clara.
A clara do ovo desencadeia com muito mais
probabilidade reacções alérgicas do que a gema,
pelo que deve ser iniciada mais tardiamente, ou
seja a partir do primeiro ano de vida (ou após os
dois anos em situações com antecedentes familiares de patologia alérgica). Os ovos devem ser
dados cozidos, alternando com carne ou peixe.
Iogurtes
Embora se trate um alimento obtido do leite de vaca
sem modificação qualitativa, é bem tolerado pela
diminuição do conteúdo em lactose e pela hidrólise
parcial das suas proteínas; tem, tal como o leite completo, um teor elevado em ácidos gordos saturados.
Recomenda-se a sua utilização a partir dos 10
meses. Estão actualmente disponíveis no mercado
iogurtes com uma composição qualitativa mais
adequada ao lactente pelo que a sua utilização
poderá iniciar-se um pouco mais precocemente.
Leguminosas frescas e secas
Têm um teor muito mais elevado em proteínas do
que os produtos hortícolas e são também fonte
importante de oligoelementos, vitaminas e fibras.
Podem ser oferecidos na alimentação a partir dos
10 meses, mas em pequenas quantidades para evitar flatulência e favorecer a digestão.
Leite de vaca em natureza
O leite de vaca em natureza não deverá ser utilizado no primeiro ano de vida. Com efeito, o leite
de vaca não fornece os nutrientes de modo adequado às necessidades da criança nesta faixa
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida
etária: é elevado o seu teor em ácidos gordos saturados e é muito reduzido o conteúdo em ácidos
gordos essenciais. No 2º ano de vida é ainda
prevalente a ferropenia como se referiu, tendo o
leite de vaca um teor de ferro que, além de baixo,
é muito pouco biodisponível.
Exemplifica-se na Figura 1, um plano de diversificação alimentar no decurso do primeiro ano de
vida. (consultar capítulo 53).
Aspectos práticos
São enumeradas a seguir algumas regras práticas
em relação com a alimentação diversificada.
1 – Não deve forçar-se o lactente à ingestão da
totalidade do volume da refeição oferecida. É
importante que o lactente controle a ingestão alimentar em função da sua saciedade que pode
variar ao longo do dia e dos dias. Regimes hiperproteicos e hiperenergéticos são a principal causa
de excesso de peso e de obesidade logo desde o
primeiro ano de vida.
2 – Não deve adicionar-se açúcar aos alimentos
(leite, iogurte, etc.) que, para além de criar a apetência pelo doce, tem ainda um indesejável efeito
cariogénico. Também o mel, qualquer que seja a
forma de apresentação, não traz qualquer vantagem nutricional podendo mesmo haver alguns
riscos, pelo que não deve ser dado, pelo menos no
primeiro ano de vida.
3 – Proscrita deve ser também a adição de
edulcorantes como o aspartame. Com efeito, o
aspartame inclui metanol (10%) para além do
ácido aspártico (40%) e fenilalanina (50%). A sua
adição pode provocar efeitos indesejáveis alguns
dos quais de difícil identificação no lactente.
4 – Nunca é de mais repetir: não é necessária
nem desejável a adição de sal aos alimentos; o
respectivo teor de sal intrínseco é suficiente para
suprir as necessidades diárias em sódio.
5 – A partir do início da alimentação diversificada, os alimentos não líquidos devem ser dados
à colher. Trata-se duma regra básica da educação
alimentar. Para além dos aspectos estritamente
nutricionais, há que atender à estimulação progressiva com a aquisição de experiências sensoriais (tácteis, térmicas, gustativas, etc.).
6 – Por outro lado, para que a digestão dos alimentos sólidos dados (inicialmente farinha de
313
cereais e depois legumes) se realize eficazmente é
indispensável que os mesmos tenham um contacto relativamente prolongado com a saliva e maior
permanência na boca. Inversamente, a maior rapidez com que os alimentos passam pela boca quando administrados por biberão, impede a sua mistura homogénea com a saliva, comprometendo,
por isso, a digestão.
7 – Refira-se que é possível verificar um comportamento de sensibilidade ao sódio desde a
primeira infância o que aumenta o risco de valores
elevados de pressão arterial logo desde os
primeiros anos de vida.
8 – Sublinhe-se a este respeito que os alimentos
enlatados podem conter grandes quantidades de
açúcar e de sal, para além de outros conservantes,
devendo, por isso, estar proscritos na alimentação
do lactente. O suprimento em fibras não deve ser
preocupação durante o primeiro ano de vida.
9 – Apenas a partir dos 2 anos de vida se
recomenda um suprimento mínimo de fibra
equivalente à idade mais 5 gramas/dia. Sugeremse como limites de segurança para a criança, os
valores de 5 a 10 gramas/dia.
10 – Uma oferta variada de alimentos é outra
atitude que contribui para o estabelecimento de
bons hábitos alimentares em etapas posteriores da
vida; de notar que a monotonia do regime
favorece a anorexia.
11 – Uma referência importante relativamente à
consistência dos alimentos sólidos (legumes, carne
e peixe, etc.) e às sensações tácteis e gustativas que
os mesmos despertam. Tais alimentos devem ser
dados de forma progressivamente menos fraccionada e mais consistente; desaconselha-se, por
isso, a utilização por tempo muito prolongado de
máquinas trituradoras que transformam os alimentos sólidos em semi-líquidos ou cremosos
muito fluidos; passagem progressiva da trituradora eléctrica para o clássico “passe-vite” manual.
12 – Não deverá igualmente ser esquecida a
componente social dos actos alimentares e das
refeições; idealmente a criança deverá (deveria, na
medida do possível) ter as suas refeições convivendo com a família.
Fontes alimentares
Especifica-se, a seguir, a composição de algumas
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Relativamente a estes alimentos salienta-se a composição em ferro (respectivamente em mg/100 gramas e em mg/ 1 ovo)) das seguintes variedades:
Cereais
(composição por 100 g)
Ferro (mg)
Proteínas (g)
Glúcidos (g)
Arroz Trigo Soja Milho
7,3
12,6 36,8 8,3
85,8
68,5 23,5 75,3
Em regra o valor calórico por 100 gramas é cerca
de 400 kcal. A sua constituição é sobretudo à base
de glúcidos, polissacáridos, amido e pequenas
quantidades de proteínas vegetais, ácidos gordos
essenciais, minerais e vitaminas do complexo B.
Cereais manipulados
(composição por 100 g)
Proteínas (g)
Energia (kCal)
Cálcio (mg)
Massa
Pão
branco
Pão
de mistura
8,7
358
7
6,3
246
110
6,5
278
100
Frutos
(composição por 100 g)
Vitamina C (mg)
Fibra (g)
Maçã
14
1,6
Pera Banana Laranja
6
11
54
2,2
1,1
1,2
Ferro (mg)
Frango
0,7
Coelho
1,7
Vaca
Porco 1 ovo
1
0,8
1,9
Pescada Linguado
1,0
0,6
A carne e o peixe contêm cerca de 15-20% de
proteínas/100 gramas e, entre 5-10% de gordura/100 gramas.
Um ovo de 60 gramas fornece cerca de 80 kcal
e a mesma quantidade de proteínas que 10 gramas
de carne ou peixe.
Leguminosas
(composição por 100 g)
Quanto a estes alimentos (fornecendo cerca de 816 gramas de proteínas/100 gramas) salienta-se a
composição em ferro, cálcio, magnésio, fósforo e
fibra das seguintes variedades:
Ervilha Feijão Lentilha Grão
Ferro (mg)
1,5
6
3,5
1,2
Cálcio (mg)
19
89
22
0,4
Magnésio (mg)
29
150
34
–
Fósforo (mg)
130
360
130
–
Fibra (g)
4,5
10
3,8
2,5
Produtos lácteos
(composição por 100 g)
Iogurte
Legumes/hortaliças
(composição por 100 g)
Em geral as hortaliças e verduras (cenoura, batata,
abóbora, alface) têm um baixo valor calórico –cerca
de 40 a 80 kcal/100 gramas, sendo fonte importante de minerais, oligoelementos, vitaminas, alto
conteúdo em celulose e variável de fibras.
Proteínas (g)
Glúcidos (g)
Lípidos (g)
Cálcio (mg)
Leite
inteiro
30
4,6
3,0
126
3,2
4,3
3,2
125
Leite (fórmula padrão): 500 ml ◊
Leite materno: 500 ml ◊
30
0,2
14
850
335 Kcal
335 - 370 Kcal
Leite de vaca em natureza: ◊
Carne, peixe e ovo
(composição por 100 g)
Queijo
Leites (valor energético)
Ⲙ
As papas de frutas de preparação caseira têm
um valor calórico aproximado de 120 kcal/100 gramas; salienta-se que o valor calórico dos preparados
comerciais (boiões) é cerca de 220 kcal/100 ml.
Ⲙ
fontes alimentares utilizadas na composição da
alimentação diversificada.
Ⲙ
314
300 - 438 Kcal
Seguidamente são referidos exemplos práticos
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida
de regimes alimentares aplicáveis a crianças
saudáveis até ao 1 ano de idade.
Plano de refeições
• 1.º Trimestre
Refeições de leite:
– Materno (n.º variável) ou
– Fórmula: 6 biberões
• 2.º e 3.º Trimestre
Refeições de leite:
– Materno (n.º variável) ou
– Fórmula: 3 biberões
Alimentos sólidos:
– Farinha / cereais: 1 (após 4 meses)
– Refeição diversificada (caldo de legumes):
1 (após 5 meses)
– Introduzir fruta a partir dos 6 meses
• 4.º Trimestre
Refeições de leite:
– Fórmula: 1 biberão
Alimentos sólidos:
– Farinha de cereais: 1
– Refeição diversificada com sobremesa de fruta: 2
315
Nota: Tratando-se de alimentação com fórmula/leite, o nº de biberões pode variar (± 1) em
função do volume de leite distribuído pelo
número de biberões/dia.
O Quadro 1 exemplifica um esquema alimentar
diário para criança de 6-7 meses.
Nesta refeição tipo os legumes podem ser cozidos no vapor empregando um utensílio apropriado ou um simples passador de rede que se coloca
numa caçarola com água fervente. No passador ,
que não deve mergulhar na água, colocam-se os
legumes que devem ser cozidos tapados. Depois
de cozidos, os legumes passam-se na trituradora
manual ou eléctrica.
A refeição designada por “◊ Fruta” poderá ser
dada duas vezes por dia, a seguir a cada uma das
sopas, em função do apetite e características da
criança.
Neste esquema a que corresponde o valor
calórico total (VCT) de 696 kcal/dia para o peso ~
7.700 gramas <> 93 kcal/kg/dia, as percentagens
de VC estão assim distribuídas: Glúcidos ~64%;
Proteínas ~11%; Lípidos~ 25%.
As quantidades dos ingredientes destas
refeições são pesadas somente quando se realizam
os primeiros cozinhados.A prática e a utilização
QUADRO 1 – Exemplo de esquema alimentar diário para criança de 6 –7 meses
◊ Fórmula/Leite de transição
a 15% (2 x 200 ml)
◊ Farinha não láctea (*)
pó de farinha: 40 g
leite de transição: 2 medidas
Água: 200 ml
◊ Caldo de legumes(2x 200 ml) (“)
Cenoura: 50 g
Cebola: 50 g
Batata: 120 g
Hortaliça: 30 g
Carne ou peixe: 10 g (#)
Azeite cru (no fim da cozedura)
(1 colher das de sobremesa)
◊ Fruta: 60 g
Total:
Proteínas (g)
Gorduras (g)
Hidratos de Carbono (g)
8,9
12,2
31,8
3,6
2,0
1,6
2,7
0,6
2,1
41,0
35,6
5,4
6,9
0,3
0,5
3,0
1,0
2,1
–
5,0
0,1
–
0,3
0,6
4,0
29,7
3,2
1,9
24,0
0,6
–
–
0,4
19,6
–
19,6
8,0
110,2
(*) A partir dos 10 meses a refeição de cereais poderá ser substituída por 1 iogurte natural adicionado de 4 bolachas, sem açúcar; g= gramas; (“) A designação de caldo ou puré de legumes relaciona-se com a consistência da refeição diversificada em função do volume de água utilizado; (# Carne: depois dos 6-7 meses, peixe depois dos 7-8 meses com incremento progressivo até 30-35
gramas/dia – fase de 2 refeições diversificadas com carne ou peixe, por dia)
316
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de referências várias, como colheres,chávenas,
etc., dispensam depois tais pesagens.
on Nutrition. Nondigestible carbohydrates in the diets of
infants and young children: a commentary by the
ESPGHAN Committee on Nutrition. Pediatr Gastroenterol
Como exemplo de refeição diversificada
inclindo leguminosas secas (grão ou feijão ou
ervilha ou lentilha) mais consistente que o caldo
ou sopa de legumes (tipo puré) a introduzir cerca
dos 10 meses para substituir uma das duas sopas
de legumes mencionadas no esquema anterior,
são descritas duas variedades de puré de leguminosas secas:
Nutr 2003; 36: 329-37
American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition.
Hypoallergenic Infant Formulas. Pediatrics 2000; 106: 346-9
American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition.
The Use and Misuse of Fruit Juice in Pediatrics. Pediatrics
2001; 107: 1210-1213
de Onis M, Garza C, Victora CG, Onyango AW, Frongillo EA,
Martines J. The WHO Multicentre Growth Reference Study:
planning, study design, and methodology. Food Nutr Bull
1 – Puré de lentilhas
– gema de ovo –1
– massa/estrelinha- 15 gramas
– lentilhas-35 gramas
– cebola-30 gramas
– tomate-40 gramas
– azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
– água q.b.p. para se obter um volume final de 250
cc.
2004; 25: S15-26
Department of Health Report on Health and Social Subjects
No. 45. Weaning and The Weaning Diet. Report of the
Working Group on the Weaning Diet of the Committee on
Medical Aspects of Food Policy. HMSO, London, 1994
ESPGAN Committee on Nutrition. European Society of
Pediatric Gastroenterology and Nutrition. Committee
report: childhood diet and prevention of coronary heart
disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1994; 19: 261-269
ESPGAN Committee on Nutrition. Pediatr Gastroenterol Nutr
A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é:
1cc./ 1 kcal.
Tratando-se duma refeição mais consistente,
prevê-se que se ofereça água por copo à criança,
alternando com as colheres que vão sendo dadas.
2003; 36: 329-377
Gomes- Pedro J, Silva AC (eds). Nutrição Pediátrica. Lisboa:
ACSM / Mead Johnson Nutritionals, 2006
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
2007
2 – Puré de feijão (com carne ou peixe)
– carne –25 gramas; ou peixe-30 gramas
– massa /estrelinha- 20 gramas
– feijão -35 gramas
– cebola-30 gramas
– azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
– água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc.
Kramer MS, Kakuma R. Optimal duration of exclusive breastfeeding. Cochrane Database Syst Rev 2002; (1): CD003517.
Rego C, Ribeiro L, Guerra A. Fórmulas lácteas infantis: uma
visão actualizada da realidade em Portugal. Acta Pediatr
Port 2002; 33: 257-274
Rudolph DC, Rudolph AM (eds). Rudolph’s Pediatrics. New
York: Mc Graw-Hill, 2002
Sabido F. Alimentação do Lactente. Lisboa: Edição do autor,
A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é:
1cc./ 1 kcal.
Como pormenor da confecção dos “purés de
leguminosas secas”, estas deverão ser postas de
molho de água desde a véspera para uma correcta lavagem; depois desta operação as lentilhas
levam-se ao lume com os restantes ingredientes e
com nova água.
1997
Teixeira Santos N. Alimentação Diversificada in Ballabriga A
TH
(ed). X Workshop Nestlé Infant Nutrition (Monografia)
Lausanne: Nestlé, 1997
Wharton B. Patterns of Complementary feeding (Weaning) in
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Pediatrics 2000: 106 (supll): 1273-1274
Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation
for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958
BIBLIOGRAFIA
Aggett PJ, Agostoni C, Axelsson I, Edwards CA, Goulet O,
Hernell O, Koletzko B, Lafeber HN, Micheli JL, Michaelsen
KF, Rigo J, Szajewska H, Weaver LT; ESPGHAN Committee
CAPÍTULO 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência
56
ALIMENTAÇÃO APÓS O
PRIMEIRO ANO DE VIDA
INCLUINDO AS IDADES
PRÉ-ESCOLAR, ESCOLAR E
ADOLESCÊNCIA
Ignacio Villa Elizaga
Importância do problema
Uma vez completado o primeiro ano de vida a
velocidade de crescimento diminui. Por isso, é
natural que as necessidades nutricionais da
criança se reduzam o que se traduz em grande
variabilidade no apetite no dia a dia. Este facto
preocupando os pais menos esclarecidos com a
falsa “falta de apetite” duma criança que mantém
a sua actividade normal e aparentando perfeita
saúde, obrigará o médico assistente e o profissional de saúde a um exercício contínuo da tarefa de
educação para a saúde, desmistificando certos
receios infundados.
Princípios gerais
São definidos alguns princípios a seguir para uma
alimentação saudável, com especial incidência
para o período após os 1-2 anos de vida em que a
criança passa progressivamente a estar integrada
no regime familiar:
1. Suprimento de gorduras não ultrapassando
35% do valor calórico total (VCT) com um teor de
gorduras saturadas inferior a 10% do VCT, suprimento de colesterol não excedendo 300 mg/dia
ácidos gordos poli-insaturados (7-8% do VCT), e
ácidos gordos mono-insaturados (12-13% do
VCT). Utilização de óleos vegetais em vez de gor-
317
dura de origem animal (privilegiando, designadamente o azeite “em natureza, cru, não aquecido” e
nunca óleo de palma nem óleo de coco). As crianças com menos de 2 anos são, como foi dito
excluídas, destas recomendações específicas dado
que as gorduras constituem uma fonte importante
de energia para o regime alimentar.
2. Consumo diário de frutas e verduras,
aumentando-o progressivamente; a partir dos 2
anos o consumo de fibras.
3. Consumo de lácteos ou derivados: 500 a 750
ml diários, em função da idade. Refira- se que
depois do primeiro ano de vida o leite de vaca
inteiro dá um contributo importante ao regime alimentar da maioria das crianças.
4. Fomentar o consumo de carne magra branca
(por ex. frango sem pele), peixe, evitando a
ingestão de enchidos.
5. Incrementar a ingestão de alimentos ricos
em hidratos de carbono complexos e com resíduos como arroz, cereais, farinha de milho, reduzindo, por outro lado, o consumo de açúcares refinados(máximo de sacarose: 20-30 gramas, em função
da idade).
6. Consumo de sal mínimo (3-5 gramas/dia) e,
caso possível, eliminá-lo do regime alimentar.
7. Promover um regime variado ao longo do
dia incluindo alimentos de todos os grupos e um
máximo de três ovos por semana.
8. Às refeições utilizar água em detrimento de
sumos não naturais.
9. Realizar quatro ou cinco refeições diárias
incluindo uma a meio da manhã e uma a meio da
tarde (intercalares), se possível à base de fruta
10. Evitar comer entre as refeições.
11. Estimular que a criança coma por si só,
habituando- a a normas de higiene.
12. Estimular a actividade física, (designadamente evitando o sedentarismo, tipificado, por
exemplo pelo número excessivo de horas à frente
da televisão ou do computador a jogar e a comer
snacks ou sumos hipercalóricos).
13. Estabelecer um equilíbrio entre o suprimento alimentar e o consumo energético para
garantir um peso saudável.
14. Suprimir o consumo de bebidas de cola,
com edulcorantes, de guloseimas ou de bolos de
pastelaria em geral confeccionados à base de gorduras saturadas, evitando quer a estratégia de uti-
318
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
lizar tais produtos como recompensa ou entretenimento, quer a sua proibição absoluta, em favor de
uma diminuição escalonada sob pena de fracasso
tendo em conta o fácil acesso e o “poder” da publicidade.
Promoção de um bom pequeno almoço
1. O dia deve ser iniciado com um pequeno
almoço garantindo um suporte nutricional adequado em quantidade e qualidade. As principais
vantagens são, por um lado, melhorar o rendimento físico e intelectual com repercussão positiva no trabalho escolar e, por outro, diminuir a
probabilidade de consumo de “snacks” prevenindo a obesidade.
2. É de realçar que a omissão do pequeno
almoço interfere nos processos cognitivo e de
aprendizagem, sobretudo nas crianças consideradas de risco nutricional.
3. Esta refeição deve conter hidratos de carbono complexos em detrimento dos alimentos
ricos em gorduras. Aconselha- se a tríade de grupos de alimentos composta respectivamente por
lácteos (leite, iogurte), cereais ou pão, e frutas frescas
com o objectivo de se alcançar, com tal suprimento, 20-25% do VCT diário.
4. É igualmente desejável que tal refeição não
seja rápida, dedicando-lhe entre 15-20 minutos e
seja realizada em ambiente calmo, com a criança
sentada à mesa com a família.
5. Torna-se evidente que todas as acções de
educação alimentar dirigidas à criança serão mais
eficazes se igualmente forem praticadas pelos
restantes membros do agregado familiar.
A merenda
Nesta refeição intercalar a meio da tarde são
desaconselhadas igualmente bebidas derivadas
da cola, sumos não naturais ou “snacks”. Haverá
que evitar os alimentos hipercalóricos e com ácidos gordos saturados(certas margarinas, pastelaria industrial e enchidos, etc.) procurando que se
realize a uma hora que não produza saciedade
para garantir a não interferência com a refeição
seguinte (o jantar).
Exemplo de ementa (criança de 1-2 anos)
Discrimina-se, a seguir, um exemplo de regime
alimentar a realizar num dia para uma criança de
1-2 anos concretizando, na prática, alguns dos
princípios gerais anteriormente mencionados.
Pequeno almoço
– 1 prato com leite gordo /leite de continuação
(80-100 c.c.+cereais (± 100 gramas) ou 1 ovo cozido
– 1 copo de sumo de fruta (100-120 c.c.) ou banana
média ou 2-3 morangos grandes (ou outra fruta).
Refeição intercalar (a meio da manhã )
– Fatia de pão torrado ou 1 papo-seco (de preferência de pão escuro) com queijo fresco (5 gramas) ou manteiga de girassol sem sal (5 gramas)
ou
– 1 sumo de fruta natural (100-120 c.c.).
Almoço
– 1 prato de sopa de legumes (100-120 c.c.);
– 1 prato à base de arroz ou massa ou batata ~ 200
gramas, incluindo legumes verdes, reforçado
com: peixe; ou carne (40-50 gramas/refeição); ou
ovo cozido, este último até 3 vezes/semana
– 1/2 a 1 peça de fruta ralada (natural ou cozida)
sem açúcar.
Merenda (a meio da tarde)
– 1/2 a 1 papo-seco com queijo freco ou manteiga
de girassol sem sal ou com fiambre magro e 1
copo de leite idem ou 1 iogurte natural com 1
peça de fruta ou 1 chávena de leite idem com 45 colheres de cereais e 1 peça de fruta.
Jantar
– Semelhante ao almoço, variando os ingredientes
e o tipo de sopa.
A partir da idade dos 6 anos é desejável que a
criança, com o apoio da família, receba ensinamentos tomando como exemplo chamada
“Pirâmide dos alimentos”(Figura 1).
Com esta simbologia é apresentada uma pirâmide com diversas faces, com “escadas” da base
para o vértice cada uma com a sua cor, sendo que
cada cor representa determinado tipo de nutriente:
– cor de laranja → cereais
– cor verde → vegetais
– cor de tijolo → frutos
CAPÍTULO 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência
319
GORDURA, ÓLEOS E DOCES
Alimentos altamente calóricos; Podem levar à
obesidade, doença cardiovascular e outras
patologias
Use moderadamente
CARNE, PEIXE, OVOS, LEG.
SECAS E FRUTOS SECOS
LEITE, IOGURTE E QUEIJO
Importante fonte de proteínas e
minerais
2 - 3 porções
Importante fonte de proteínas e
minerais
2 - 3 porções
VEGETAIS
FRUTAS
Alimentos reguladores
Fonte de vitaminas,
minerais e fibras
3 - 5 porções
Alimentos reguladores
Fonte de vitaminas,
minerais e fibras
2 - 4 porções
PÃO, ARROZ, CEREAIS E MASSAS ALIMENTÍCIAS
Ricos em hidratos de carbono complexos
importante fonte de energia
6 - 11 porções
FIG. 1
Pirâmide alimentar.
– cor azul → leite e derivados
– cor roxa → carne e leguminosas secas
– cor amarela → gorduras
A imagem “Pirâmide” pretende significar que
não existe um só guia alimentar para todos os
indivíduos; efectivamente as necessidades em
nutrientes variam conforme a idade, sexo, peso,
altura e tipo de actividade física.
Cada indivíduo pode, assim, aceder à sua
pirâmide através do sítio “my pyramid.gov”.
Este programa permite planear um esquema
alimentar adaptado a cada caso/pessoa no que
respeita aos nutrientes atrás discriminados.
Tendo em consideração a realidade actual da
“fast-food” e os períodos em que a criança e jovem
estão fora de casa, a ingestão de alimentos do
referido tipo não deverá verificar-se mais de 2
vezes/semana.
Alimentação na adolescência
Na adolescência (~11 -18 anos) as necessidades
nutricionais têm em consideração as características especiais de crescimento rápido e o tipo de
actividade física desenvolvida .
De acordo com o Food Nutrition Board-National
Research Council dos Estados Unidos, as RDA
(Recommended Dietary Allowances) apontam para
os seguintes valores:
11-14 anos
(peso médio: 45 kg)
– proteínas: 45g–46 g
– kcal: 2200-2700
320
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
(sexo F - sexo M)
15-18 anos
(peso médio: 55-65 kg)
– proteínas: 46-56 g
– kcal: 2100-2800
(sexo F - sexo M)
Rudolph DC, Rudolph AM (eds). Rudolph’s Pediatrics New
York: Mc Graw-Hill, 2002
Sabido F. Alimentação do Lactente Lisboa: Edição do autor,
1997
Wharton B. Patterns of Complementary feeding (Weaning) in
Countries of the European Union: Topics for research.
Pediatrics 2000: 106 (supll): 1273-1274
O suprimento de hidratos de carbono deverá
corresponder a 50% do valor calórico total(VCT);
deduzindo-se o suprimento energético em proteínas atrás referido (globalmente entre 45-56 g/dia),
atribui-se às gorduras a restante percentagem do
VCT.
Ao longo do dia a ingestão deverá ser dividida
por cinco refeições com a seguinte repartição do
VCT:
Pequeno almoço- 20 %
Refeição intercalar da manhã-10%
Almoço-30%
Merenda ou refeição intercalar da tarde-10%
Jantar-30%.
Poderá realizar-se eventualmente uma sexta
refeição à noite(ceia constando de leite e 1-2
bolachas sem açúcar), devendo a percentagem do
VCT atribuída ao jantar ser distribuída por este e
pela ceia.
BIBLIOGRAFIA
American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition.
The Use and Misuse of Fruit Juice in Pediatrics. Pediatrics
2001; 107: 1210-1213
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Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation
for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958
CAPÍTULO 57 Obesidade
57
OBESIDADE
Carla Rego
Importância do problema
Em Março de 1997 a obesidade foi definida como
uma doença crónica pelo Consenso Internacional
para a Obesidade realizado em Washington DC.
Considerada um dramático problema de saúde
pública – a epidemia do século XXI - e uma das
doenças mais difíceis e frustrantes de tratar, a
obesidade é hoje encarada como uma síndroma
complexa, multifactorial crónica, conducente a
alterações físicas, psíquicas e sociais graves, com a
sua génese na idade pediátrica.
De ressaltar dois factos importantes: uma comprovada associação de maior risco de obesidade
no adulto quando esta ocorre em idade pediátrica
(aproximadamente 50-75% dos adultos obesos
apresentaram obesidade durante aquele período);
e os elevados custos que a situação só por si acarreta, acrescida dos elevados e irreversíveis custos
pessoais e sociais inerentes às suas complicações
que, cada vez mais, surgem em idades cada vez
mais precoces.
É, pois, inquestionável a responsabilidade de
quem lida com crianças na educação, na saúde e
na modulação de comportamentos.
Definição
Por definição simples, obesidade é um excesso de
gordura corporal total. Em idade pediátrica a distinção entre excesso de peso e obesidade é ainda
uma questão em debate devido às características
dinâmicas do processo de crescimento e maturação. Esta dificuldade é acrescida por outras duas
razões: a inexistência de um método simples, de
baixo custo, confiável e reprodutível, de quantificação da gordura corporal total, e a inexistência de
321
padrões de referência para valores de massa gorda
durante o crescimento que permitam identificar
indivíduos consideradas de risco, moderado ou
elevado, de patologia cardiovascular ou metabólica na infância e adolescência.
O índice de massa corporal (IMC = peso/
estatura2) foi recentemente recomendado pela
OMS como um método simples e barato para o
rastreio da obesidade, nomeadamente da obesidade pediátrica, devido à sua forte correlação com
a magnitude da adiposidade, quer em crianças/
adolescentes, quer em adultos. O valor do IMC em
idade pediátrica deve ser considerado em curvas
de percentis e em função do sexo e da idade, tendo
como base tabelas de referência (Capítulo 19).
Valores de IMC superiores ou iguais ao percentil
85 e inferiores ao 95 definem uma situação de
excesso de peso / risco de obesidade, enquanto
valores superiores ou iguais ao percentil 95
definem uma situação de obesidade. Segundo as
recomendações da International Obesity Task Force
(IOTF) – Childhood Obesity Group, deverão ser
adoptados as tabelas de Cole por duas razões:
para se comparar taxas de prevalência entre diferentes países; e para relacionar os valores do percentil de IMC 85 e 95 respectivamente com os valores 25 e 29,9 do adulto possibilitando extrapolar,
já na idade pediátrica, os riscos futuros da obesidade na idade adulta.
Recorde-se, a propósito, os critérios utilizados
para a definição de excesso de peso e de obesidade com base no IMC, no adulto:
– Execesso de peso: 25 - 29,9
– Obesidade: ≥ 30
Aspectos epidemiológicos
A obesidade atingiu proporções epidémicas em
todo o mundo registando-se, sobretudo nas últimas duas décadas, um aumento transversal da
sua prevalência a nível mundial. Actualmente
prevê-se que cerca de 250 milhões de pessoas, o
que equivale aproximadamente a 7% da população mundial, apresente obesidade.
Pela primeira vez na história do Homem, a sua
prevalência excedeu a da desnutrição, tendo
adquirido o estatuto da patologia do foro nutricional mais frequente, não só em países tecnologicamente desenvolvidos como em países em
322
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
desenvolvimento. Um dos exemplos mais extremos reporta-se aos Estados Unidos onde, entre a
avaliação de 1976-1980 (National Health and
Nutrition Examination Survey IV) e a recentemente
efectuada entre 1999-2002, a prevalência de excesso de peso duplicou em crianças (6-11 anos) e triplicou nos adolescentes (12-17 anos). No que
respeita à obesidade, cerca de 14-15% dos adolescentes de 15 anos nos EUA são obesos, registandose uma predisposição particularmente elevada
entre os afro-americanos, hispânicos e índios Pima.
De acordo com estudos efectuados em vários países europeus verificou-se maior prevalência de
excesso de peso nos países de ocidente e sul,
atingindo valores entre 20-40% nos países que
rodeiam a bacia do Mediterrâneo, enquanto os do
norte apresentam taxas na ordem dos 10-20%.
Em Portugal existem actualmente os registos
de dois estudos transversais que apontam para
valores de prevalência de excesso de peso e obesidade em crianças (7 – 10 anos) respectivamente de
20,3% e 11,3 %, e em adolescentes de 11 - 15 anos
valores de 12,9% e 3,6% respectivamente. Mais
preocupantes são os valores encontrados nos
Açores onde, em 2002, a prevalência de excesso de
peso e de obesidade no arquipélago atingiu 15% e
12% respectivamente.
Regista-se uma forte estabilidade (ou tendência para se manter a situação) entre a ocorrência
de obesidade na infância e na idade adulta. Sendo
conhecida a elevada comorbilidade associada à
obesidade na idade adulta, é de referir que o
aumento da prevalência mundial de obesidade na
idade pediátrica tem sido também acompanhado
de um aumento das complicações médicas a ela
associadas. Para além dos elevados custos que
acarreta esta doença crónica, ela cursa com elevada mortalidade em todas as idades. As estratégias
de prevenção, a detecção e intervenção precoces e
a avaliação das tendências de prevalência na população mundial são imprescindíveis para a
redução do compromisso da saúde das gerações
futuras.
Etiopatogénese
Genes e sistema neuroendócrino
A evolução filogenética da espécie humana
mostra-nos que o Homem sempre esteve sujeito a
situações de estresse, funcionando a maior capacidade de acumular energia sob a forma de gordura
como factor de selecção natural. Esta capacidade
genética em acumular energia e o actual estilo de
vida – elevados índices de sedentarismo e acesso
fácil a ingestão de alimentos de elevada carga
calórica – contribuem, em associação e potenciando-se, para o aumento do peso e para a obesidade.
Em indivíduos mais susceptíveis, na dependência
da sua predisposição genética, o actual estilo de
vida condicionará um balanço energético positivo
responsável pela acumulação gradual de massa
gorda e consequente ocorrência de obesidade, dita
primária ou nutricional, a mais prevalente em
idade pediátrica (95-97% dos casos).
O mapa genético da obesidade humana continua a desenvolver-se, estando identificados na
mais recente actualização cerca de 430 genes, marcadores e regiões cromossómicas associadas ou
ligadas a fenótipos da obesidade humana. Todos
os cromossomas, excepto o Y, apresentam loci
implicados no fenótipo da obesidade, registandose uma especificidade de alguns genes para a
ocorrência particular de obesidade visceral.
Assim, é altamente provável que a obesidade
humana tenha características de hereditariedade
poligénica, com uma susceptibilidade na dependência de factores genéticos complexos.
Para além da reconhecida importância de
vários genes determinantes do aumento de
prevalência da obesidade humana, existem situações na dependência de alterações monogénicas.
A leptina foi a primeira substância a que corresponde gene específico reconhecida como um
importante regulador do peso na espécie humana.
Actualmente várias síndromas de obesidade
monogénica estão descritas e identificadas, e a
maioria envolve a via reguladora leptinamelanocortina. O início precoce de uma obesidade
com características de gravidade é uma característica comum na obesidade monogénica, e entre os
novos genes em estudo, estão já identificados o
gene da leptina, do receptor pro-opiomelanocortina da leptina (POMC), da pró-hormona convertase 1 e do receptor 3 e 4 da melanocortina. As
mutações do receptor 4 da melanocortina (MC4R)
são a mais frequente causa de obesidade humana
monogénica conhecida, ocorrendo em cerca de 4%
dos casos de obesidade pediátrica grave.
CAPÍTULO 57 Obesidade
No que respeita aos mecanisos endógenos da
regulação do peso cabe salientar as seguintes noções: 1) O controlo da ingestão alimentar (apetite
e saciedade) verifica-se através dum mecanismo
neuroendócrino de retorno com ponto de partida
no tecido adiposo e tracto gastrintestinal (hormonas) e dirigido ao SNC (nucleus arcuato); 2) As
hormonas gastrintestinais tais como a colecistoquinina (CCK), o péptido 1 semelhante ao glucagom e o péptido PYY promovem saciedade, enquanto a grelina estimula o apetite; 3) O tecido
adiposo liberta leptina e adiponectina; 4) As hormonas actuam ao nível do nucleus arcuato onde
existem centros receptores relacionados, quer com
a estimulação, quer com a inibição do apetite.
Com a intervenção de neuropéptidos actuando
como mediadores da grelina ao nível do nucleus
arcuato (NA), verificam-se os seguintes mecanismos: a grelina tem efeito positivo na área da
estimulação do apetite do referido NA, enquanto
o PYY e a leptina têm efeito negativo; a CCK e a
leptina têm efeito positivo na área de inibição do
apetite do NA; isto é, a leptina actua, de modo
diverso nas referidas 2 áreas do NA.
De modo muito sucinto pode afirmar-se que os
defeitos genéticos relacionados com as hormonas,
receptores e ou mediadores implicados neste complexo sistema de regulação neuroendócrina
podem conduzir a alterações do apetite e a obesidade.
Ambiente e factores biológicos
Conforme foi referido, aparentemente os genes
desempenham um papel permissivo e interagem
com os factores ambientais no sentido da ocorrência de obesidade.
Para além da importância moduladora do
ambiente in utero, por exemplo, quer em relação
com hiperglicémia, quer com má nutrição fetal,
assume-se que a chamada influência programada
na dependência do ambiente é determinante nos
primeiros tempos de vida; isto é, deixa marcas
para o futuro, o que corresponde à noção de
“Programming”. Assim, a alimentação neonatal e
nos primeiros anos de vida parece desempenhar
um papel importante no risco de ocorrência de
obesidade. A duração do aleitamento materno e o
teor de ingesta proteica são, entre outros, alguns
dos factores apontados por alguns autores como,
323
respectivamente protegendo de, ou favorecendo
obesidade.
Com efeito, lactentes alimentados com fórmulas lácteas têm um suprimento energético e proteico superior ao registado em lactentes alimentados exclusivamente com leite materno. De igual
modo os níveis circulantes de IGF-I são também
superiores nos alimentados com fórmulas lácteas,
provavelmente na dependência da maior ingestão
de proteínas. É possível que outros factores
biológicos fornecidos pelo leite tenham também
um papel importante na produção de IGF-1.
Verifica-se, por outro lado, que a relação insulina/glicose é significativamente superior nos
lactentes alimentados com fórmulas lácteas relativamente aos alimentados com leite materno.
É possível que a maior secreção de insulina
esteja associada a um maior suprimento alimentar
em aminoácidos de cadeia ramificada (leucina,
isoleucina e valina) que ocorre nos lactentes com
uma maior ingestão proteica.
Também a acção anabolizante da insulina
poderá ser um factor condicionante do perfil de
crescimento e de um maior risco de obesidade nos
lactentes com níveis plasmáticos mais elevados de
insulina, tendo em conta a sua acção promotora
da diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos.
Actualmente coloca-se a questão do impacte
do nível sócio-económico, da raça e do sexo na
predisposição para a ocorrência de obesidade.
Estudos populacionais revelam que um nível
sócio-económico e cultural baixo, minorias raciais
e étnicas, e o sexo feminino apresentam maior
risco de desenvolvimento de obesidade.
No que respeita ao papel da actividade física e
hábitos alimentares, estudos usando sensores de
movimento revelam que crianças que gastam
menos tempo em actividade física de intensidade
moderada a vigorosa têm maior risco de se
tornarem obesas na infância ou adolescência. A
televisão e os jogos de consola contribuiram para
maior sedentarismo, para além de induzirem o
concomitante consumo de alimentos e favorecerem escolhas alimentares impróprias; regista-se
uma correlação positiva entre o número de horas
em frente da televisão (por vezes ultrapassando 20
horas por semana) e o valor do peso, especialmente em adolescentes.
A alteração dos hábitos alimentares na depen-
324
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dência da oferta publicitária conduz a uma inversão da pirâmide alimentar, traduzindo-se numa
elevada ingesta de açúcar e gordura em alimentos
com elevada densidade nutricional. Omitir o
pequeno-almoço, ingerir grandes porções sobretudo ao jantar, consumir regular e excessivamente
bebidas doces e carbonatadas, pouco leite ou
derivados, poucos vegetais e frutos, bem como
abuso de fast-food, são algumas das modificações
dos hábitos alimentares registadas nas últimas
décadas.
Admite-se que existam aparentemente períodos de maior vulnerabilidade à influência do
ambiente na expressão fenotípica de uma predisposição individual para a ocorrência de obesidade.
Como foi referido, o período pré-natal tem uma
importância moduladora precoce, não apenas do
risco de ocorrência de obesidade, mas de patologia
degenerativa e neoplásica do adulto. Ao longo do
processo de crescimento regista-se uma correspondência relativamente baixa entre a ocorrência
de obesidade na infância precoce e a obesidade no
adulto; por outro lado, adolescentes obesos apresentam elevado risco de se manterem adultos obesos. Relativamente à noção de “tendência de
manutenção do problema” (termos sinónimos;
estabilidade ou “tracking”) (neste caso da obesidade) em períodos ou idades diferentes – designadamente, criança → adolescente → adulto cabe referir que o IMC é o indicador de adiposidade com maior sensibilidade, comparativamente
às pregas cutâneas e à razão perímetro da cinta/
perímetro da anca. O ponto mínimo atingido pelo
IMC, por volta dos 6 anos de idade, é denominado
ressalto adipocitário. Em regra, a idade em que se
regista o ressalto adipocitário (inicio da subida do
IMC a partir do seu valor mínimo) é preditiva do
IMC do adulto, tendo vários autores demonstrado
que a sua precocidade constituirá um elevado risco
de desenvolvimento de obesidade na adolescência
e idade adulta. Genericamente, poderá dizer-se
que a capacidade de previsão da obesidade do
adulto com base na adiposidade na infância é apenas moderada.
Obesidade secundária
Muito embora com uma menor contribuição percentual (3-5%), a obesidade pediátrica poderá ser
secundária a alterações endócrinas, alterações
neurológicas na dependência de lesões do sistema
nervoso central e de determinado tipo de terapêutica farmacológica, entre outras. No âmbito da
patologia endócrina há a referir as deficiências de
hormona do crescimento (GH), de hormona
tiroideia e o hipercortisolismo; tais situações têm
de comum o facto de se associarem a uma combinação de baixo gasto energético e reduzida velocidade de crescimento, resultando numa deposição
de adiposidade predominantemente central numa
criança com baixa estatura.
Lesões cerebrais graves, tumores cerebrais
e/ou irradiação craniana são também situações
frequentemente associadas à ocorrência de obesidade. Embora se desconheçam os mecanismos
responsáveis, admite-se que uma redução da
actividade física na dependência da redução da
actividade do sistema nervoso simpático, aliada a
alterações dos neuropéptidos hipotalâmicos e a
um aumento da actividade da desidrogenase do
11- hidroxiesteróide, poderão estar implicados.
Finalmente algumas drogas podem predispor
ao aumento, de gordura corporal, nomeadamente:
glucocorticóides usados prolongadamente, valproato, alguns antipsicóticos e risperidona entre
outras.
Diagnóstico
Para o diagnóstico é necessário, antes de mais, distinguir entre uma situação de obesidade primária
ou idiopática e as restantes e mais raras situações de
obesidade secundária. Uma anamnese rigorosa
inquirindo, designadamente, sobre antecedentes de
obesidade familiar, o exame físico cuidado e exames
laboratoriais a ponderar em função das hipóteses
formuladas, orientarão para o diagnóstico.
Na prática poderá dizer-se que uma criança ou
adolescente com uma estatura igual ou superior à
média para o sexo e idade, com antecedentes
familiares de obesidade em um ou ambos os progenitores, com um desenvolvimento intelectual
adequado e com um exame físico sem particularidades sugestivas de uma situação sindrómica
apresentará, muito provavelmente, uma situação
de obesidade primária.
No que respeita à anamnese haverá que inquirir sobre a história nutricional (tempo de aleitamento materno, idade de diversificação alimentar,
CAPÍTULO 57 Obesidade
quantificação da ingesta actual em termos energéticos totais e de distribuição dos diferentes grupos de nutrientes), actividade física, índice de
sedentarismo e existência de indicadores sugestivos de síndroma de apneia obstrutiva do sono
tais como roncopatia, sonolência diurna ou mau
rendimento escolar, entre outros.
O exame físico deverá incluir de uma forma
geral, a observação do hábito externo no sentido
de detectar situações de suspeita de obesidade secundária, tendo ainda em atenção a existência de
alterações cutâneas sugestivas de síndroma metabólica (estrias, acantose), de alterações ortopédicas e do estádio pubertário.
Finalmente, a avaliação do estado nutricional
deverá incluir, para além da medição do peso e
estatura, o cálculo do IMC, a medição do perímetro da cinta e da anca e ainda, se possível, a composição corporal por impedância bioeléctrica. Na
impossibilidade da realização de impedância
bioeléctrica, a utilização do valor da prega cutânea
tricipital associado ao do IMC aumenta a sensibilidade da determinação da percentagem de massa
gorda; exige, no entanto, experiência do observador e apresenta uma baixa reprodutibilidade.
O perímetro da cinta ou a relação perímetro da
cinta/perímetro da anca têm uma forte correlação
com a deposição intrabdominal de gordura e são
preditivos de risco cardiovascular e de complicações metabólicas, não apenas no adulto mas
também na criança e adolescente. Embora não
existam muitos dados de referência que permitam
a sua correcta interpretação em populações
pediátricas, devem constar da avaliação da criança e adolescente obeso.
Ainda, no que respeita à avaliação da gordura
corporal total, existem métodos mais específicos e
confiáveis mas cujo custo, dificuldade de realização na clínica diária (hidrodensitometria; DEXA,
RMN) e elevada radiação envolvida (tomografia
computadorizada) lhes retiram a justificação para
uso corrente, tornando-os indicados apenas em
casos de excepção.
No que respeita aos exames laboratoriais, o
perfil lipídico, as funções hepática, renal, tiroideia
e adrenal, bem como a glicémia e insulinémia em
jejum devem constar de uma abordagem inicial.
Os doseamentos da glicose e insulina aos 30 minutos no período pós-prandial (ou em contexto de
325
prova de tolerância oral à glicose) estão indicados
em situações de obesidade grave, de suspeita de
alterações do metabolismo da glicose (acantose)
ou ainda em crianças/adolescentes com mais de
10 anos de idade. Tal facto prende-se com a não
recomendação do uso de fármacos antes desta
idade, o que reduziria a intervenção de tipo comportamental, independentemente da existência ou
não de comorbilidade.
Comorbilidade
A obesidade é uma síndroma crónica, multissistémica, reconhecida como um grave problema
médico e de saúde pública.
Em idade pediátrica não é clara a associação
entre a magnitude do IMC e a comorbilidade
observada. No entanto, vários estudos têm recentemente demonstrado um risco crescente de ocorrência de patologia cardiovascular e de alterações
do metabolismo da glicose se os valores de IMC
forem superiores ao percentil 85.
Considerando as complicações associadas à
obesidade em idade pediátrica, a alterações psicossociais são provavelmente as mais precoces.
Uma redução da auto-estima e uma crescente
insatisfação com a imagem corporal levam frequentemente ao insucesso escolar, ao ostracismo e
à depressão que, em casos extremos, são mesmo
acompanhados de tentativa de suicídio.
Na última década a diabetes mellitus tipo 2
(DM2) em idade pediátrica (anteriormente associada apenas ao adulto) tem registado, na Europa,
América e Japão, um aumento da sua prevalência
com uma trajectória paralela à do aumento da
prevalência da obesidade. Actualmente é responsável por mais de 1/5 de novos diagnósticos de
diabetes em adolescentes. Embora não seja
recomendado o rastreio universal, a Academia
Americana de Pediatria e a Associação Americana
de Diabetes recomendam que todos os adolescentes com excesso de peso e que tenham, pelo
menos, 2 outros factores de risco, sejam avaliados
aos 10 anos, no início da puberdade e periodicamente cada 2 anos; entende-se por factores de
risco haver antecedentes de DM2 em pais ou avós,
pertencer a certos grupos rácicos/étnicos (afroamericano, hispânico, japonês) ou ainda apresentar sinais associados a insulino-resistência tais
326
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
como hipertensão, dislipidemia, acantose nigricans* ou síndroma do ovário policístico.
Outra complicação frequentemente observada,
já em idade pediátrica, é a doença cardíaca e a hipertensão arterial. A obesidade produz uma série
de alterações estruturais cardíacas bem como
alterações hemodinâmicas; com efeito, é actualmente considerada a principal causa de hipertensão em idade pediátrica, registando-se uma forte
correlação positiva em crianças e adolescentes
entre a pressão arterial sistólica e IMC, gordura
subcutânea avaliada por pregas e relação
cinta/anca.
Factores genéticos, metabólicos e hormonais
tais como resistência à insulina, a elevação dos
níveis séricos de aldosterona, a sensibilidade ao
sal e alterações dos níveis de leptina poderão também estar relacionados com a hipertensão da
obesidade.
Um perfil lipídico desfavorável, caracterizado
por valores elevados de colesterol total, triglicéridos e apolipoproteína B, e valores baixos de colesterol-HDL, é frequentemente observado, já em
idade pediátrica, na dependência da obesidade.
Pelo que foi referido, conclui-se que é frequente a
ocorrência de síndroma metabólica, sobretudo na
adolescência, registando-se, por sua vez, uma
associação entre marcadores cutâneos tais como
acantose e estrias e síndroma metabólica (dislipidémia e DM2).
Não menos frequentes são: os problemas
ortopédicos (doença de Blount, necrose da cabeça
do fémur, pé plano, espondiloslistese entre outros),
os problemas respiratórios (síndroma de apneia
obstrutiva do sono), a doença hepática não-alcoólica (variando em termos de apresentação num
espectro que vai desde a esteatose hepática não progressiva e a esteato-hepatite com progressão para a
fibrose e cirrose), a litíase vesicular, e as alterações
neurológicas (pseudo-tumor cerebral na dependência de hipertensão intracraniana) entre outras.
Tratamento
O único tratamento eficaz é, sem dúvida, a intervenção preventiva; quanto mais precoce for esta,
* Acantose é o espessamento da camada de Malpighi da epiderme, que
se observa também em afecções como por ex. as verrugas.
maior a taxa de sucesso. Entretanto, pelas características particulares inerentes ao processo de
crescimento, todas as estratégias deverão ser individualizadas, obedecendo ao objectivo primordial
de restabelecer o equilíbrio entre a energia ingerida e a energia despendida. Um parâmetro confiável de seguimento das repercussões da intervenção é o valor absoluto do IMC, ou mais sensível ainda, o valor do z-score** do IMC. A estabilização do peso em crianças / adolescentes em
crescimento é traduzida por uma redução do
valor absoluto do IMC e do valor do z-score do
IMC. A redução destes valores deve ser fortemente encorajada, dado traduzir um aumento
estatural significativamente superior ao ponderal.
Os objectivos a longo prazo do tratamento da
obesidade pediátrica deverão incluir a redução do
z-score do IMC para um valor inferior a 2 e prevenir ou reverter a comorbilidade associada.
Como foi referido, as crianças e adolescentes
obesos apresentam elevado risco de complicações
metabólicas, cardiovasculares e psicoafectivas. A
questão que se coloca é: quando e quem tratar.
Estudos recentemente publicados mostram
que existe um aumento exponencial do risco de
ocorrência de alterações do metabolismo da glicose, de hipertensão, de dislipidémia, se os valores de IMC forem superiores ao percentil 85.
Assim, um aconselhamento alimentar e de incremento da actividade física (diária e organizada)
deverá ser preconizado e regularmente vigiado a
partir do momento em que de diagnostique uma
situação de excesso de peso (percentil de IMC ≥85
e <95).
Os programas de redução de peso baseados na
intervenção familiar são aqueles que evidenciam
maior sucesso a curto prazo, sendo a mudança de
atitude dos pais e famílias mantida a médio e
longo prazo o factor mais determinante do resultado. Uma restrição calórica moderada, baseada
numa mudança de comportamento familiar, não
apresenta riscos e é geralmente eficaz. Regimes
altamente restritivos em calorias, incluindo as
dietas hiperproteica ou de muito baixo valor calórico conduzem a perdas ponderais mais acentu** O z-score (ZS) de uma variável é calculado através da razão entre: o
respectivo valor determinado no indivíduo (VI), subtraído do valor de
referência (VR), e o desvio padrão (DP) da população de referência.
Fórmula: ZS=[(VI-VR)/DP].
CAPÍTULO 57 Obesidade
adas mas não devem ser efectuadas em ambulatório pois comportam riscos não desprezáveis.
Regimes desequilibrados podem conduzir a situações deficitárias em vitaminas e minerais, bem
como a um compromisso do crescimento estatural
e da maturação biológica.
No que respeita ao exercício físico, os seus
efeitos são mediados, pelo menos parcialmente,
pela redução nas reservas de gordura total e visceral e pelo aumento da massa magra; este último
é responsável por um aumento do gasto energético em repouso tendo em conta que a capacidade
individual de tolerância ao exercício diminui na
proporção directa do aumento de IMC.
O tratamento farmacológico deverá ser encarado como um complemento da intervenção comportamental – dieta e exercício físico - em casos
seleccionados. São considerados 3 grandes grupos
de fármacos utilizados na terapêutica da obesidade: os estimulantes do gasto energético, os
inibidores do apetite e os que limitam a absorção e
/ ou modulam a produção e /ou acção da insulina.
Do primeiro grupo, para além de um ensaio
recente com a associação de cafeína e efedrina
efectuado num grupo de adolescentes, pode
dizer-se que de momento nenhum dos restantes
fármacos (hormonas tiroideias, dinitrofenol, anfetaminas, fenfluramina, etc.) tem indicação ou
aprovação para este uso, apresentando efeitos
colaterais que proscrevem a sua utilização.
Dos agentes inibidores do apetite, apenas a
sibutramina está aprovada para utilização em
adolescentes obesos com mais de 16 anos. Vários
estudos comprovam o seu efeito na redução ponderal durante os primeiros 6 meses de terapêutica;
este efeito perde magnitude com a continuação do
tratamento, não devendo a sua utilização continuada exceder 2 anos. A referida sibutramina é um
inibidor não selectivo da recaptação da serotonina, norepinefrina e da dopamina; por isso há que
referir a ocorrência de efeitos colaterais (hipertensão, taquicardia, insónia, ansiedade, cefaleias,
depressão) que obrigam à redução da dose e
mesmo à sua suspensão.
No grupo dos fármacos que limitam a
absorção de nutrientes, de referir o orlistat, único
aprovado pela FDA para utilização em adolescentes com idade superior a 12 anos. Actuando
como inibidor da lipase pancreática, aumenta a
327
perda fecal nomeadamente em triglicéridos; por
vezes é mal tolerado, e conduz à redução dos
níveis de vitaminas A, D e E, mesmo em situações
de suplementação vitamínica.
Finalmente, a metformina reduz o apetite e a
reserva adiposa do organismo resultando numa
redução do peso corporal. É geralmente bem tolerada, estando aprovada pela FDA para o tratamento, não da obesidade ou da insulinorresistência, mas da DM2. De referir que o seu uso regular
conduz a situações deficitárias em vitaminas B1 e
B6, devido a um aumento da respectiva excreção
urinária.
Por fim, uma referência a outra modalidade de
tratamento – o cirúrgico em situações de falência
da terapêutica comportamental e na situação de
obesidades mórbidas com complicações associadas. São escassos os estudos prospectivos sobre
este tópico salientando-se que a opção por tal
modalidade deverá ser pontual e particularmente
analisada. O balão intra-gástrico como atitude
menos invasiva e reversível, ou a banda gástrica,
são duas opções a considerar.
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As síndromas de má nutrição energético-proteica
constituem um problema de grande magnitude e
impacte social, sobretudo nos países de fracos
recursos e em desenvolvimento, sendo responsáveis, directa ou indirectamente, por cerca de
50% dos óbitos de crianças com menos de 5 anos.
Nalgumas regiões do globo, em relação com
défice de condições de higiene, culturais e económicas, pode atingir cerca de 25-35% da população
em idade pediátrica (dados de 2000).
Nos países industrializados podem surgir em
nichos de população desprotegida e marginalizada
como resultado de negligência, pobreza e ileteracia.
Os factores relacionados com a doença crónica,
(doenças metabólicas, malformativas, respiratórias, do foro digestivo, etc.) surgindo em todas as
latitudes, independentemente do grau de desenvolvimento, tornam-se mais prevalentes nos países industrializados.
Situações mais raras de má – nutrição são a
anorexia nervosa e a síndroma diencefálica associada a tumor do hipotálamo.
Avaliação do estado nutricional
Para a avaliação do estado de nutrição, podem ser
utilizados critérios clínicos e laboratoriais:
• Inquérito nutricional – com o objectivo do
esclarecimento sobre os nutrientes supridos
durante vários dias, permitindo calcular, com a
maior aproximação possível, na base do peso
CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica
dos alimentos ingeridos, a percentagem do VCT
de proteínas, gorduras e hidratos de carbono.
• Antropometria – Os parâmetros que devem ser
determinados são: peso, altura, perímetro braquial e prega tricipital. Na prática, os índices
mais largamente utilizados para avaliar o grau
de má- nutrição são os de Waterlow e de Gomez,
respectivamente.
De acordo com Waterlow são considerados dois
índices:
1) peso para a altura (% do valor da mediana ou
do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 90 um estado de mánutrição aguda, ou seja, compromisso mais significativo do peso;
2) altura para a idade (% do valor da mediana ou
do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 95 um estado de mánutrição crónica, ou seja, compromisso mais significativo da altura.
De acordo com Gomez, é considerada apenas a
relação:
1) peso para a idade (% do valor da mediana ou
do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 75, quer má – nutrição
crónica, quer má- – nutrição aguda, traduzindo
compromisso do peso e da altura (Quadro 1).
Adoptando estes dois critérios para os cálculos,
os valores do percentil 50 do peso para a idade e da
altura para a idade são considerados no denominador, enquanto o peso actual e a altura actual no
numerador.
Tais avaliações devem ser seriadas valorizando um conjunto de determinações e não uma apenas isoladamente, sendo de referir que: nas situações agudas, para além do défice em nutrientes,
assumem relevância as alterações hidro-electrolíti-
cas; nas situações crónicas assumem relevância os
défices de mais que um nutriente.
• Composição corporal – A massa corporal integra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reserva de gordura; 2) massa magra que compreende
a água total, reserva de proteínas viscerais e
musculares, e de minerais.
As reservas de gordura subcutânea podem ser
avaliadas medindo a espessura das prega
cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e
supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avaliada através da determinação da prega tricipital
em conjunto com o perímetro braquial. A medição
da espessura da prega cutânea é difícil de determinar em crianças pequenas.
• Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar
são: albumina plasmática; excreção urinária de
creatinina proporcional à massa muscular, préalbumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao
retinol, e concentração plasmática de determinadas vitaminas e de determinados minerais
(em circunstâncias especiais, conforme a história
clínica, constituem elementos adjuvantes para o
diagnóstico).
A imunodeficiência é comum nas situações de
má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com
o estado de imunidade celular (provas cutâneas
com antigénios como por exemplo a prova da
tuberculina) evidenciam anergia.
• Exames biofísicos – Em determinados centros
especializadose ligados à investigação é utilizada a densitometria para avaliação massa gorda, e
a bioimpedância para a avaliação da massa
magra.
Classificação
A carência de suprimento calórico e proteico
engloba um largo espectro de situações clínicas em
QUADRO 1 – Graus de Má – Nutrição
Grau
0 grau
1º grau (ligeira)
2º grau (moderada)
3º grau (grave)
Peso/Altura
(% da mediana)
>90
81-90
70-80
<70
329
Altura/Idade
(% da mediana)
>95
90-95
85-89
<85
Peso/Idade
(% da mediana)
–
75-85
64-74
<64
330
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cujos extremos se situam dois quadros clínicos
bem definidos: o marasmo (com designações sinónimas de atrépsia ou inanição, resultante de carência calórica e de nutrientes global, com carência
proteica proporcional), e o kwashiorkor (com designação sinónima de má-nutrição proteica, correspondente às situações com carência apenas de proteínas de elevado valor biológico, sem redução do
valor calórico total).
Entre uma e outra situação existem vários tipos
intermédios, difíceis de caracterizar, que alguns especialistas classificam de marasmo-kwashiorkor.
Etiopatogénese
Na sua origem podem ser invocados um conjunto
de factores com influência recíproca encerrando
um ciclo vicioso.
Em primeiro lugar a ignorância e a pobreza
desempenham um papel decisivo; estão em causa
os recursos precários em nutrientes e as deficientes condições de higiene, de saneamento básico e de evicção de insectos vectores. Como consequência, existe maior frequência e maior gravidade de infecções e infestações parasitárias no
grupo populacional em tais condições, contribuindo para estabelecimento da má- nutrição, ou para
o seu agravamento. Por sua vez, a má- nutrição
propicia o desenvolvimento de infecções.
Os mecanismos determinantes dos quadros
paradigmáticos são, no entanto, diversos.
No caso do marasmo a situação mais típica é a
da criança que nos primeiros meses de vida é precocemente desmamada, continuando a alimentação com leite industrial (ou leite de vaca em
natureza na situações mais precárias), em quantidade insuficiente ou excessivamente diluído.
Por vezes,nalgumas sociedades, este quadro
de má- nutrição é já bem patente ao nascer traduzindo má-nutrição fetal ou restrição do crescimento intra- uterino como resultado de condições nutricionais deficientes da grávida.
No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogénico, na sua forma típica, é o seguinte: criança alimentada ao peito para além dos 12 meses (em
situações extremas a criança ainda está a ser amamentada quando surge nova gravidez da mãe).
Uma vez desmamada, o regime alimentar, como
foi referido, tende a ser constituído por suprimen-
to elevado em hidratos de carbono, sobretudo de
farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal
como nos restantes membros da família.
Assim, a criança recebe número suficiente da
calorias diariamente, mas não de proteínas.
Manifestações clínicas
• Marasmo – Sob o ponto de vista clínico, a característica mais marcante diz respeito à deficiente
progressão ponderal, seguindo-se estabilização e
ulterior diminuição. O critério peso é, pois, fundamental para definir a situação em que a criança se
encontra, reportando-nos a uma tabela de percentis.
Na alínea antropometria referida atrás, foram
definidos os critérios de Waterlow e de Gomez;
nesta perspectiva, o Quadro 1 dá-nos uma ideia
integrada da classificação dos graus de mánutrição englobando os dois critérios.
Para além da perda de peso, observa-se diminuição do panículo adiposo subcutâneo
(correspondente à utilização das reservas energéticas, fundamentais para a subsistência), o que
pode ser avaliado através da manobra do
pregueamento da pele entre dois dedos do observador.
Com efeito, a pele e os tecidos moles periféricos duma criança em situação de nutrição normal
evidenciam uma textura e elasticidade especiais
chamada turgescência ou turgor. A perda do turgor resultante da diminuição do panículo adiposo
origina o “sinal da prega”, mantida após se aliviar
o pregueamento. Este sinal também ocorre na
desidratação aguda, mantendo-se a prega neste
último caso por mais tempo.
Tratando-se duma situação crónica, o desaparecimento do panículo adiposo segue uma
ordem topográfica bem determinada: primeiramente desaparece no abdómen, depois no tórax e
ombros, mais tarde braços, coxas e nádegas
(“nádegas em bolsa de tabaco”ou seja, exibindo
sulcos ou pregueamento transversal da pele da
nádegas e face interna das coxas) e, finalmente, na
face com desaparecimento do panículo adiposo da
bochecha ou “bola de Bichat” dando lugar à chamada “fácies senil ou de Voltaire”, com rugas,
olhos vivos e abertos. O desaparecimento da “bola
de Bichat” é típico da má- nutrição do 3º grau
(Figuras 1 e 2).
CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica
FIG. 1
Quadro clínico de marasmo (NIHDE).
FIG. 2
Quadro de marasmo: nádegas em “bolsa de tabaco”. (NIHDE)
331
A avaliação da altura oferece, em geral, menos
interesse que o peso; com efeito, a estabilização de
tal parâmetro somente se verifica em situações de
má-nutrição grave, sendo evidente sobretudo
após os 6 meses.
A cor da pele é tipicamente acinzentada, parecendo fria ao contacto. Tal aspecto resulta, em
parte, da anemia que frequentemente existe, e da
hipoperfusão tecidual. As mucosas nem sempre
estão pálidas. Os cabelos são finos e escassos, sem
brilho. Não existe edema.
É muito frequente a observação de dermatites
variadas e de intertrigo que poderão ser a consequência de deficiência nos cuidados gerais prestados.
O tono muscular pode estar alterado; na maior
parte das vezes existe hipotonia a qual explica
outro sinal característico: distensão abdominal que
pode ser muito pronunciada estando em relação,
quer com a hipotonia da musculatura da parede
abdominal, quer com a hipotonia da musculatura
lisa das ansas intestinais e o défice de potássio. Por
vezes o abdómen pode estar deprimido.
Os mecanismos de adaptação metabólica do
organismo conduzem a hipotermia, bradicárdia,
hipotensão arterial e hipoglicémia
De referir igualmente a perturbação do psiquismo; embora estes doentes estejam despertos e
interactivos com o ambiente que os rodeia quando
estimulados, manifestam tristeza e apatia, com
um choro monótono.
Existe tendência para infecções as quais, por
sua vez, se repercutem negativamente sobre a mánutrição. Efectivamente, a infecção limita o apetite
produzindo frequentemente vómitos e diarreia o
que compromete a absorção de nutrientes; por
outro lado, o processo infeccioso produz hipercatabolismo.
A imunidade humoral está pouco comprometida (pode haver elevação das imunoglobulinas séricas como resposta a infecções repetidas)
enquanto a imunidade timodependente está seriamente afectada.
Considerando os diversos tipos de infecções,
cabe uma referência especial às infecções respiratórias (pneumonias) pela sua potencial gravidade. Na sua forma de manifestação mais típica,
trata-se de formas graves de pneumonia de localização paravertebral, favorecidas pelo decúbito
prolongado em relação com a precariedade dos
332
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cuidados; não existindo, em geral, febre nem
tosse, são muitas vezes subdiagnosticadas.
A má- nutrição pode comprometer o desenvolvimento do sistema nervoso central, o que tem
consequências a longo prazo. A este respeito é
importante ter em conta que o cérebro é um órgão
com um crescimento muito rápido nos últimos
meses da vida intra-uterina necessitando, por consequência, de um elevado suprimento de nutrientes durante esse período.
As consequências são diversas: atraso (por
vezes regressão) do desenvolvimento psicomotor,
sensorial e comportamental; perímetro cefálico de
menores dimensões; desenvolvimento intelectual
inferior ao da população geral. O resultado final
depende também do défice de estimulação destas
crianças as quais vivem em ambiente social e cultural muito precário.
Ao nível do aparelho digestivo há que salientar a diminuição da actividade da lactase. Estudos
de biópsias jejunais demonstraram anomalias histológicas consideradas de menor relevância (altura diminuída do epitélio e invasão da lamina
própria por linfócitos e eosinófilos) e outras, funcionais, traduzidas sobretudo por diminuição da
actividade lactásica. Este último achado tem
implicações na prática clínica obrigando à utilização de produtos isentos de lactose na recuperação
nutricional.
• Kwashiorkor – Sendo o regime alimentar
hipoproteico complementado por suprimento em
hidratos de carbono, conduzindo a relativo cumprimento das necessidades energéticas totais, as
manifestações clínicas, pelo menos numa fase inicial, poderão passar despercebidas.
O edema por hipoproteinémia(diminuição da
pressão oncótica do plasma) que, entretanto, surge, constitui a característica predominante deste
tipo de má- nutrição. O aspecto geral da criança é
o de uma criança com edema generalizado,
sobressaindo as bochechas tumefactas pelo referido edema o qual se localiza também noutras áreas
( pálpebras, membros superiores e inferiores).
O peso pode ser adequado para a idade ou até
superior ao valor médio, por motivo do edema .
Quanto ao psiquismo, as crianças revelam um
aspecto deprimido e de tristeza.
A musculatura participa no quadro clínico: a
hipotonia impede, muitas vezes, que a criança
ande ou permaneça sentada.
Como resultado da consequente perturbação
funcional do hepatócito surge degenerescência
gorda, hepatomegália e, em situações mais graves,
cirrose hepática.
Tal como no marasmo, surge perturbação funcional do enterocito com especial incidência no
jejuno, a qual conduz a diminuição das dissacaridases e diarreia.
Poderão surgir igualmente infecções e infestações intestinais. A anorexia é habitual.
As alterações dermatológicas são muito típicas, sendo frequentes áreas de hipopigmentação
alternando com áreas de hiperpigmentação (discromia) nem sempre revertidas com a intervenção
nutricional. Poderão evidenciar- se igualmente
queilite e estomatite.
Ao nível dos cabelos as alterações tróficas são
muito típicas e notórias na raça negra; a despigmentação produz uma cor avermelhada dos cabelos, aspecto que originou o nome de kwashiorkor
que significa, na linguagem duma tribo do Gana
“criança com cabelos vermelhos”.
Em certos casos, através do cabelo, pode reconhecer- se o momento em que se iniciou o processo de má- nutrição, pois a parte distal, mais antiga, aparece com a cor normal enquanto a parte
proximal exibe a cor alterada; os cabelos aparecem
assim divididos em duas partes com cores diversas, relativamente bem delimitadas que, quando
bem esticados aparentam “as cores duma bandeira”. Daí o nome de “sinal da bandeira”.
Para além das perturbações do psiquismo,
poderão ser notados tremores (cuja etiopatogenia
é incerta), anemia de causa multifactorial, e défice
imunológico, com compromisso mais significativo da
imunidade celular e da relacionada com os linfócitos T.
No que respeita à repercussão sobre o sistema
endócrino, de salientar a possibilidade de hipofunção tiroideia e de défice dos níveis de somatomedina C sem alteração da hormona de crescimento (Figura 3).
Tratamento
• Marasmo – A intervenção terapêutica eficaz
nas situações de marasmo, com resultados mantidos, não constitui tarefa fácil uma vez que a
mesma tem a ver com a mudança das circunstân-
CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica
333
• Kwashiorkor – O tratamento do kwashiorkor é essencialmente de ordem dietética: regime
com elevado suprimento em proteínas de elevado
valor biológico, e normocalórico. Não obstante, há
que contar com algumas dificuldades surgidas na
fase de recuperação relacionadas com intolerância
ao leite, infestações intestinais, infecções recorrentes, etc.. A anorexia obriga, por vezes, à necessidade de utilização de sonda gástrica.
Devem ser dados alimentos à base de hidrolisados de proteínas do leite de vaca, glucose
como hidrato de carbono e ácidos gordos de cadeia média como lípidos.
Estão também indicados suplementos vitamínicos e ferro.
Actualmente advoga-se a utilização de agentes
antioxidantes.
Prognóstico
FIG. 3
Criança com Kwashiorkor (NIHDE).
cias predisponentes do meio em que a criança vive
e que ultrapassam a componente exclusivamente
biomédica e nutricional.
Sob o ponto de vista de intervenção nutricional, o regime deve proporcionar proteínas de elevado valor biológico e em quantidade não inferior
a 2 gramas/kg/dia, sendo as proteínas do leite de
vaca adequadas a este respeito; no entanto, tendo
em conta a possível intolerância à lactose pelas
razões atrás apontadas, poderá surgir diarreia. Na
prática estão indicados produtos lácteos em que a
lactose tenha sido substituída por glucose ou dextrina- maltose ,sendo de referir que o amido é bem
tolerado.
O referido regime deve ser hipercalórico com
um suprimento energético de cerca de 150
kcal/kg/dia e incluindo suplementos vitamínicos
e de oligoelementos (nomeadamente cobre e
zinco).Havendo sideropenia torna-se obrigatório
adicionar ferro ao regime (1-2 mg/kg/dia).
O prognóstico, quer do marasmo, quer do kwashiorkor, é reservado tendo em conta, designadamente o risco de infecções conduzindo a elevada
mortalidade (mais elevada nos casos de kwashiorkor) nos países do continente africano, mais
pobre; no caso do kwashiorkor há que salientar a
elevada probabilidade de desenvolvimento de cirrose hepática.
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334
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
59
CARÊNCIAS VITAMÍNICAS
João M. Videira Amaral
1. RAQUITISMO POR CARÊNCIA
DE VITAMINA D
Importância do problema
As síndromas acompanhadas de raquitismo por
carência de vitamina D (raquitismo carencial
comum-RCC), com elevada prevalência há mais
de três décadas, em época anterior ao desenvolvimento dos cuidados primários no nosso país, têm
ressurgido na actualidade nos países desenvolvidos, particularmente em lactentes de pele escura,
exclusivamente amamentados por períodos prolongados sem suplementos vitamínicos.
Trata-se duma situação clínica clássica da pediatria com um modelo de fisiopatologia comparticipado pelo metabolismo da vitamina D e balanço do cálcio e do fósforo, que ajuda a compreender outras formas de raquitismo não carencial abordados na parte Nefro-Urologia; optou-se,
por isso, pela abordagem mais pormenorizada do
RCC cuja profilaxia é de fácil realização.
Definição
As síndromas raquíticas(ou raquitismo em geral)
são situações clínicas caracterizadas por falência
do ritmo normal de mineralização da matriz óssea
devida a inadequadas concentrações de iões cálcio
e de fosfato mono-hidrogeniónico nos líquidos do
organismo em crescimento, com consequente acumulação de osteóide não mineralizado. O desequilíbrio fosfo-cálcico tem repercussões multissistémicas: sistema ósseo (de modo especial ao
nível da zona metafisária de crescimento activo),
muscular, pulmonar, etc..
Se tal perturbação surgir num organismo após
se completar o crescimento linear (idade adulta), a
síndroma denominar-se-á osteomalácia (com sintomatologia mais discreta).
O RCC constitui o exemplo paradigmático de
carência extrema de vitamina D a qual se estabelece
de modo progressivo antes de os sinais clínicos se
tornarem evidentes, sendo de realçar, no entanto,
que o diagnóstico é essencialmente clínico.
Fisiopatologia
Embora a vitamina D activa se encontre pouco
difundida na natureza, os seus precursores ou
pró-vitaminas (esteróis) derivados do colesterol,
encontram-se largamente distribuídos, quer nas
plantas, quer nos animais.
A provitamina D das plantas (ergosterol) é susceptível de ser transformada em vitamina D2 ou
ergocalciferol.
A provitamina D animal (7-de-hidro-colesterol), produzida na mucosa intestinal, dirige-se,
depois, para a camada malpighiana da pela onde
adquire actividade vitamínica (vitamina D3 ou
cole-calciferol) quando exposta aos raios ultravioletas (290-320 mm).
Se o ergocalciferol ou o cole-calciferol forem
veiculados pelos alimentos, a sua absorção é rápida, verificando-se sobretudo ao nível do duodeno-jejuno e por via linfática. (Figura 1).
A seguir à conversão fotoquímica na pele ou à
absorção intestinal, a vitamina D2 ou a vitamina D3
são transportadas em direcção ao fígado com o
auxílio duma globulina alfa-2; no fígado sofrem
uma 25-hidroxilação ou transformação nos respectivos derivados 25-hidroxilados por intermédio da 25-hidroxilase, enzima do sistema microssómico (família das oxidases do citocrómo P450).
A actividade da 25-hidroxilase específica é regulada por um mecanismo de retroacção representado pela taxa sérica dos compostos 25-hidroxilados e do cálcio.
Os compostos 25-hidroxilados circulam também ligados a uma globulina alfa-2, sendo a sua
semivida de 19,6 dias (a semivida do ergo ou colecalciferol é apenas de 12 a 25 horas).
A acção dos compostos 25-hidroxilados (25-HC)
consiste essencialmente no transporte de cálcio ao
nível do intestino, na mobilização do cálcio ósseo e
na reabsorção tubular proximal de sódio e fosfato.
335
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas
(Pró-Vitamina)
7-De-hidrocolesterol
Colesterol
Radiação U-V
Colecalciferol
Pele
Fígado
Mucosa
intestinal
Calciferol
U_V
Aumento do
transporte de cálcio
e fosfato (intestino)
25-OHção
Ergosterol
(Pró-Vitamina)
1,25-HC
Mobilização do cálcio
ósseo (cooperação da
PTH)
Aumento da reabsorção
tubular de fosfato, de
sódio e cálcio (Rim)
1-OHção
Rim
Unidades de Vitamina D:
– 1 mg = 40.000 U.I.
– 1 U.I. = 0,025 gama
25-HC
Metabolitos
polares
inactivos
FIG. 1
O ciclo da vitamina D.
Ao nível do rim gera-se, depois, a forma metabolicamente activa, o 1-25 hidroxicolecalciferol
(ou 1-25 hidroxi-ergocalciferol) (1-25-HC) a partir
do 25-HC que sofre nova hidroxilação em posição
1, com o concurso duma enzima que faz parte
dum sistema mitocondrial das células tubulares: a
1-25-hidroxilase.
A actividade de 1-25 hidroxilase é regulada,
quer pela carência do organismo em vitamina D,
quer pela taxa de cálcio circulante, directamente
ou por intermédio da paratormona e calcitonina;
depende, ainda, da fosforémia e do teor em fosfatos do tecido renal.
Em caso de normocalcémia ou hipercalcémia,
poderá originar-se um composto hidroxilado em
24-25 que não tem qualquer função específica,
pois tende a degradar-se.
A acção dos compostos di-hidroxilados (1-25
HC) traduz-se no transporte de cálcio e fósforo ao
nível do intestino (quantitativamente a sua acção
quanto a este aspecto é cerca de 1 vez e meia superior aos compostos 25-HC) e na mobilização do
cálcio ósseo (acção cerca de 100 vezes superior à
dos 25 HC). Quanto à reabsorção tubular de sódio,
fosfato e cálcio, o seu efeito pode considerar-se, ao
contrário, mínimo em relação aos 25-HC.
Quer a vitamina D3, quer os seus derivados 25hidroxilados, são susceptíveis de se armazenarem
ou constituirem em depósitos ao nível dos tecidos
adiposos e muscular. Existe, no entanto, uma
diferença de comportamento entre os dois:
enquanto a vitamina D3 é mais lipossolúvel e se
concentra rapidamente no tecido adiposo e por
muito tempo - cerca de 80% do seu depósito inicial
pode ser encontrado ao cabo de 3 meses – os 25
HC são armazenados em menor quantidade pela
sua menor lipossolubilidade, constituindo as formas circulantes por excelência (Figura 1).
A vitamina D não actua directamente sobre as
células intestinais ou ósseas; com efeito os seus
metabolitos hidroxilados induzem a síntese duma
proteína necessária ao transporte activo do cálcio
(a CaBP-Calcium-Binding-Protein) e à ligação a
receptores.
Outros aspectos do seu mecanismo de acção
dizem respeito a:
• síntese duma fosfatase alcalina (adenosinotrifosfatase ou ATP-ase) ao nível das células da
«bordadura em escova», cálcio-dependente.
• regulação do funcionamento dum sistema
336
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de transporte activo, segundo o qual existe
captação pela mucosa e migração intracelular de cálcio segundo um gradiente electropotencial.
• regulação da difusibilidade do cálcio em
relação com alterações moleculares ao nível da
célula mucosa intestinal – aumento da proporção de fosfolípidos, alteração da composição de ácidos gordos e ésteres do colesterol.
Considerando, então, a produção endógena da
vitamina D, a sua acção biomolecular traduzida
pela síntese proteica e o mecanismo regulador do
seu metabolismo de tipo retroacção, poderá concluir-se que o termo «vitamina» é incorrecto e
obsoleto; efectivamente deveria chamar-se «hormona» tanto mais que o calciferol é um membro
da família das hormonas esteróides.
Classificação dos raquitismos
Se nos reportarmos ao ciclo da vitamina D será relativamente fácil deduzir uma classificação etiopatogénica das síndromas raquíticas. Assim, podemos
estabelecer dois grandes grupos: (Quadro 1).
1. Grupo que decorre da interferência num ou
vários «passos» do ciclo metabólico da vitamina D
por parte de determinados factores ou circunstâncias, o que condicionará uma diminuição da concentração do metabolito activo (1-25HC); o perfil
bioquímico mais característico deste grupo é constituído essencialmente pela hipocalcémia – tendo
em conta o défice de absorção do cálcio no intestino – e por hiperparatiroidismo secundário.
2. Grupo em que não existe qualquer perturbação do ciclo da vitamina D, o que condiciona
uma taxa normal do metabolito activo 1-25 HC; a
anomalia reside, sim, ao nível das células «alvo»
representadas fundamentalmente pela célula
tubular renal; neste grupo a característica bioquímica mais importante é a hipofosfatemia, tendo
em conta o défice de reabsorção tubular de fosfato.
Não existe inicialmente, nem hipocalcémia nem
hiperparatiroidismo secundário (Quadro 1).
As situações que integram o subgrupo A correspondem ao chamado raquitismo carencial comum,
vitamino-sensível ou vitaminoprivo; com efeito, é o
que surge com maior frequência, é evitável com
profilaxia correcta (200-400 UI de vitamina D por
QUADRO 1 – Classificação dos raquitismos
1. Deficiência do metabolismo activo da vitamina D
A
• Falta de exposição ao sol, pigmentação cutânea,
roupa, filtros solares, poluição atmosférica
• Carência de suprimento alimentar
B
• Má absorção de vitamina D
• Doença hepato-biliar
• Terapêutica anticonvulsante
• Doença renal
• Dependência de vitamina D (anomalia de 1-OHase)
(Raquitismo vitamina D – dependente)
2. Anomalia da «célula - alvo»
C
• Sindroma de Fanconi
• Cistinose
• Tirosinose
• Outras causas
• Acidose tubular renal
• Hipofosfatémia genética primária
• Hipofosfatémia com «tumores não endócrinos»
dia) e é curável com doses usuais de vitamina D.
As situações que integram os subgrupos B e C
correspondem aos chamados raquitismos vitamino-resistentes, raros em relação aos raquitismos
carenciais comuns. Surgem com profilaxia correcta e não são curáveis com doses terapêuticas
usuais de vitamina D; efectivamente, as doses
requeridas para a sua cura são consideradas tóxicas para o indivíduo normal, verificando-se recaída após interrupção do tratamento.
No sentido lato, o subgrupo B pode considerar-se «carencial não comum» na medida em que,
efectivamente, existe uma «carência» de metabolito activo 1-25HC no organismo, embora não relacionável com défice de suprimento alimentar nem
com défice de exposição ao sol.
Manifestações clínicas, radiológicas
e laboratoriais
As manifestações do RCC podem assim ser sistematizadas:
a) Sinais clínicos ósseos
Os sinais clínicos característicos decorrem de
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas
alterações ósseas indolores, simétricos, localizando- se na zona de crescimento activo com
evolução (em geral com início desde os primeiros
meses, progredindo no primeiro ano de vida no
sentido crânio-caudal): cranio-tabes (consistência
mole do crânio evidente sobretudo ao nível da
região parieto- occipital dando a sensação de palpação de bola de ping-pongue – após compressão,
o osso volta à posição inicial), atraso de encerramento das suturas cranianas cujos bordos são
moles, deformações diversas do crânio relacionadas com a diminuição de consistência da
calote craniana susceptível de deformação postural, atraso da erupção dentária, tumefacção esferóide ao nível das articulações condrocostais por
hipertrofia das respectivas cartilagens (por acumulação de osteóide) cujo conjunto ao longo do
tórax aparenta um rosário (é o chamado rosário
costal); deformação do tórax, em sino, com alargamento da base e evidência do chamado sulco de
Harrison; alargamento das epífises dos ossos longos especialmente notória ao nível dos punhos
(chamados “de boneca”) e regiões tíbio- társicas;
deformações dos membros inferiores (tíbias em
“parêntesis”, genu varum, etc.); ao nível da coluna
pode verificar-se cifose com formação de saliência
lombar típica nas formas exuberantes – saliência
ou gibosidade do raquis, donde o nome de
raquitismo).
De referir a relação que existe entre a velocidade de crescimento e o aparecimento do quadro
clínico; ou seja, a probabilidade de aparecimento
do quadro clínico é tanto maior quanto maior a
velocidade de crescimento (Figuras 2, 3 e 4).
b) Sinais clínicos músculo- ligamentosos
Salienta-se a hiperlaxidão dos ligamentos e a
hipotonia muscular as quais condicionam o atraso
do desenvolvimento motor(início do sentar-se e
da marcha), designadamente.
c) Sinais radiológicos
As lesões ósseas com tradução radiológica têm,
sobretudo, uma localização metafisária: a metáfise
dos osssos longos está alargada, côncava, “em
taça”, com aspecto franjado e limite irregular; as
diáfises evidenciam diminuição da densidade
óssea com trabeculação nítida e aspecto de duplo
contorno, por vezes sinais de fracturas e de calos
FIG. 2
337
FIG. 3
Criança com raquitismo:
Raquitismo: cifose dorso
deformação torácica (NIHDE). lombar e deformação da
coluna com gibosidade.
(NIHDE)
FIG. 4
Raquitismo “Punho de boneca”/alargamento dos punhos
(NIHDE).
de fracturas; espaço epífise- metáfise alargado
podendo haver atraso de aparecimento dos
núcleos de osssificação; ao nível do tórax, em complemento dos sinais clínicos já referidos, torna- se
evidente o alargamento das articulações condrocostais em “raquete”; pode haver sinais de
infecção parenquimatosa (pneumonia, bronquite)
338
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
face à susceptibilidade para as infecções, enquadrando a situação classicamente conhecida por
“pulmão raquítico”.
Os primeiros sinais aparecem em geral entre os
4 e 6 meses; no caso de não tratamento, a forma
exuberante é notória por volta do final do 1º ano de
vida e durante o 2º ano (Figuras 5 e 6).
c) Sinais laboratoriais
Os valores séricos do cálcio, fósforo e fosfatase
alcalina podem variar em função da fisiopatologio, já exposta: fase precoce com hipocalcémia e
fósforo normal; fase intermédia com normocalcémia e fósforo diminuído; fase avançada com cálcio e fósforo baixo. A fosfatase alcalina está em
geral aumentada.
Valorizando o produto cálcio x fósforo séricos
em mg/dl para o diagnóstico, classicamente considera- se: 30 (raquitismo certo); 30-40 (raquitismo
possível); 40 (raquitismo impossível ou em via de
cura).
Sendo possível o doseamento dos metabolitos
da vitamina, considera-se que o valor do metabolito mono – hidroxilado (25-HC) ou 25-hidroxivitamina D < 25 nmol/L (10 ng/ml) corresponde
a carência de vitamina D.
Relacionando os sinais clínicos com os laboratoriais e radiológicos, chama- se a atenção para
uma forma clínica (fase precoce) de carência de
vitamina D ocorrendo habitualmente no lactente,
sobretudo antes dos 6 meses com o seguinte
quadro: sintomas de hipocalcémia- cálcio ionizado inferior a 3-4 mg/dl ou total inferior a 7-7.5
mg/dl (irritabilidade neuromuscular incluindo
convulsões, tetania, espasmo carpo pedal, laringospasmo) com ou sem evidência radiológica de
raquitismo. É a chamada “tetania” do lactente por
carência de vitamina D, hoje rara no nosso país.
A hipocalcémia susceptível de originar tetania
(não manifesta ou latente) pode ser identificada
através da pesquisa dos clássicos sinais de
Chvostek,Trousseau e de Erb.
Tratando-se duma síndroma com repercussão
sistémica, é habitual ser acompanhada de anemia,
habitualmente hipocrómica, traduzindo carência
concomitante em ferro. No entanto, poderá igualmente surgir anemia megaloblástica por carência de
vitamina B12 ou ácido fólico e anemia pluricarencial.
Uma forma clássica, hoje rara, é a anemia de
Von-Jaksch-Luzet ou anemia pseudo leucémica cursando com hiperleucocitose e hepatoesplenomegalia, relacionável com eritropoiese compensadora ectópica.
Diagnóstico diferencial
FIG. 5
FIG. 6
Sinal radiológico de
raquitismo: metáfise do rádio
e cúbito ao nível de punho,
alargamento em taça
(NIHDE).
Sinal radiológico de
raquitismo: esboço de aparecimento da linha de calcificação
preparatória ao nível das
metáfises alargadas (rádio e
cúbito) como resposta do
tratamento (maior densidade
óssea relativamente à figura
5). (NIHDE).
A anamnese é fundamental para a destrinça com
outras situações acompanhadas de alterações esqueléticas.
O craniotabes não é patognomónico do raquitismo, podendo surgir nalgumas displasias
ósseas.
As deformações do tórax poderão enquadrarse em situações acompanhadas de anomalias congénitas.
O rosário costal pode surgir igualmente no
escorbuto (défice de vitamina C), hoje praticamente uma raridade, sendo acompanhado
doutras carências; no entanto, nesta última situação o rosário costal resulta de luxação condrocostal e os sinais radiológicos esqueléticos são
diferentes: é típica a hemorragia subperióstica, e
as alterações esqueléticas são acompanhadas de
dor. Podem também surgir hematúria e hemorragias petequiais.
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas
Prevenção
O RCC é susceptível de prevenção através da
exposição à luz solar (fracção leve da radiação ultravioleta B) ou da administração de vitamina D.
Tendo em conta os riscos de cancro da pele
relacionados com a exposição ao sol (estando
provado que, em termos de risco, a idade em que
a exposição solar directa se inicia é mais importante do que a exposição solar total ao longo da
vida), a Academia Americana de Pediatria,
recomenda, no entanto, que os lactentes, sobretudo abaixo dos 6 meses, sejam resguardados da luz
solar directa e usem roupa protectora e filtros
solares. Nas referidas recomendações ressalva-se,
entretanto, que se torna difícil determinar o que se
entende por exposição solar adequada.
Classicamente recomendava –se o suplemento
de vitamina D na dose de 400 UI por dia; actualmente a referida dose foi corrigida para 200 UI por
dia, a qual garante a manutenção do nível sérico
de 25-hidroxi-vitamina D > 25 nmol/ L (10 ng/ml)
compatível com ausência de carência de vitamina
D, de acordo com o que atrás foi referido.
Dum modo geral as fórmulas para lactentes
contêm cerca de 400 UI/Litro, sendo de salientar
que a concentração da vitamina D no leite
humano é muito mais baixa, embora mais biodisponível ( cerca de 25 UI /Litro) .
Assim, a referida dose preventiva de 200 UI
/dia está indicada nas seguintes situações:
1. lactentes alimentados com leite materno
2. lactentes alimentados com fórmula suplementada com vitamina D, ingerindo menos
de 500 ml/dia
3. crianças ou adolescentes não expostos regularmente ao sol, ingerindo menos de 500 ml
de leite suplementado com vitamina D ,ou
não tomando suplemento multivitamínico
diário que contenha, no mínimo, 200 UI
/dia.
Tratamento
Para o tratamento do RCC estão indicadas doses
de diárias de 50-150 mcg (2000- 6000 UI) de vitamina D3 ou de 0.5-2 mcg de 1,25- di-hidroxi-colecalciferol; com cerca de 2-4 semanas de tratamento produz-se uma melhoria dos sinais radiológi-
339
cos traduzida pelo aparecimento da chamada
“linha de calcificação preparatória” ao nível das
metáfises (Figura 6).
Uma vez verificada a resposta inicial, a dose
diária deve ser reduzida para 10 mcg (400 UI).
O doseamento sérico do metabolito monohidroxilado (25-hidroxi-cole-calciferol) poderá
servir de orientação para avaliação do resultado
terapêutico.
Como alternativa, poderá optar- se por outro
esquema de administração de vitamina D: 15000
mcg (600000 UI) em dose única sem administração
subsequente durante vários meses.
Se não ocorrer resposta ao tratamento a curto
prazo, tratar-se-á provavelmente, não de um RCC,
mas de uma forma resistente ou dependente da
vitamina D.
A correcção da hipocalcémia sintomática obriga a terapêutica de substituição emergente com
gluconato de cálcio, a qual é abordada na Parte
Fluidos e Electrólitos (Capítulo 50).
Recorda-se que em situações de carência de
cálcio, a calcémia pode ser normal ou baixa e que
a hipocalcémia sintomática é pouco comum.
Nos casos de carência de cálcio está indicado o
suplemento de 350 a 1000 mg/dia de cálcio-elemento.
Em situações específicas e graves acompanhadas de deformações esqueléticas sequelares,
poderá haver necessidade de intervenção
ortopédica.
2. CARÊNCIA DE VITAMINA A
Importância do problema
Faz-se uma breve referência a este estado carencial
(raro em crianças saudáveis com regime alimentar
equilibrado) mas com elevada prevalência nos
países em desenvolvimento, sobretudo da África,
constituindo um grave problema de saúde pública.
Poderá surgir igualmente como resultado de
síndromas de má- absorção e em situações com
deficiência de ingestão em lípidos.
As consequências de tal carência, que surgem
insidiosamente, verificam-se sobretudo ao nível
do sistema ocular: essencialmente, xerose da conjuntiva e da córnea com ulterior opacificação
desta; dificuldade de adaptação à escuridão e
340
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cegueira nocturna. A pele é seca e descamativa.
O tratamento consiste na administração diária
de doses entre 1500 e 3000 mcg de vitamina A por
via oral com vigilância da evolução clínica tentando evitar a toxicidade. Na xeroftalmia são utilizadas doses maiores. Vários organismos internacionais e várias equipas de profissionais de saúde
colaboram em campanhas nos países mais afectados .
BIBLIOGRAFIA
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A popularidade dos regimes vegetarianos tem
aumentado nas últimas décadas, estimando-se
que nos Estados Unidos cerca de 4% da população
os pratique. Este facto tem importância pela probabilidade de tais práticas serem impostas às
crianças e adolescentes as quais têm maior vulnerabilidade para determinados distúrbios nutricionais face ao crescimento e desenvolvimento
que os caracteriza.
Os promotores de tais práticas nutricionais
advogam as seguintes vantagens tendo como base
a defesa de princípios ecológicos e de luta antipoluição do ambiente: regimes ricos em amido e
desprovidos de açúcar e sais refinados; maior
riqueza em produtos contendo fibra; menor teor
em gordura e maior riqueza em poli-insaturados;menor incidência de coronariopatia aterosclerótica, cancro, obesidade, hipertensão e colelitíase.
Os regimes vegetarianos podem ser classificados em três categorias principais: vegetarianos
parciais, vegetarianos tradicionais e os chamados
vegetarianos novos ou atípicos.
Nos regimes vegetarianos parciais ou semivegetarianos são excluídos alguns alimentos de
origem animal, designadamente carnes vermelhas, permitindo ingestão de peixe e de carne de
aves (pesco e polo-vegetarianos).
Nos regimes vegetarianos tradicionais (também
chamados lacto- ou lacto-ovo-vegetarianos) são consumidos produtos lácteos e/ou ovos, estando
proibidos a carne e o peixe. No grupo tradicional está
incluído o subgrupo designado por “vegan” ou vegetariano puro que exclui qualquer produto de
CAPÍTULO 60 Regimes vegetarianos e erros alimentares
origem animal; os seus seguidores praticam determinada filosofia para além das práticas estritamente alimentares: não usam peles, lãs ou sedas nem comem
mel. No entanto, as mães vegan em geral, amamentam, estando descritos, casos de raquitismo e de anemia megaloblástica nos respectivos lactentes.
Os regimes vegetarianos atípicos (que admitem determinadas “propriedades metafísicas” de
determinados produtos) incluem a chamada prática macrobiótica com diferentes tipos de regimes,
desde o uso exclusivo de cereais, até à permissão
de alguns produtos animais.
De acordo com as regras gerais atrás explanadas, o regime vegetariano exclusivo não é adequado em idade pediátrica, tratando-se dum período
da vida caracterizado pelo crescimento e desenvolvimento. Por exemplo, no que se refere às proteínas de origem vegetal, as mesmas são de valor
biológico inferior ao das proteínas animais pelo teor
mais baixo em um ou mais aminoácidos essenciais.
Na perspectiva do dever ético de humanização
e de respeito pelas diferenças culturais dos povos,
o clínico e o profissional de saúde em geral, responsáveis pela vigilância de saúde da criança ou
adolescente (tendo especial atenção aos sintomas
e sinais de determinadas carências) deverão esclarecer os pais sobre eventuais riscos e esclarecer-se
sobre o tipo de regime, mais ou menos restritivo
que os pais desejam para a criança.
Determinadas deficiências em nutrientes
poderão ter de ser corrigidas fazendo misturas de
diferentes vegetais. A inclusão de leite e ovos
afigura-se fundamental para compensar eventuais
carências em proteínas, ferro, cálcio e vitamina B12.
Poderá igualmente estar indicada a suplementação em ácido fólico.
No âmbito dos problemas de ordem nutricional que traduzem défice ou excesso de nutrientes foram abordadas já as seguintes situações
clínicas: síndromas de má nutrição energéticoproteica, raquitismo carencial comum por défice
de vitamina D, carência de vitamina A e obesidade. A anemia por carência de ferro (ferripriva)
será abordada na parte Hematologia.
Erros alimentares mais frequentes
Enunciam-se alguns erros a evitar, os quais tradu-
341
zem o não cumprimento de regras fundamentais
da alimentação saudável em qualquer idade: alimentação suficiente, completa, harmónica e adequada.
Estes erros a evitar têm particular relevância
no primeiro ano de vida, período fundamental de
aprendizagem, quer de boas, quer de más práticas; são salientados os seguintes:
• Não atender a que o apetite da criança varia
de refeição para refeição. Para além do que
foi referido a propósito da alimentação com
leite materno, a criança não deverá ser forçada a terminar o biberão
• A noite “é para dormir”; mas, se a criança
acordar “com fome”, a mamada ou biberão
não deverão ser recusados
• Dar leite de vaca em natureza antes do 1 ano
de idade
• Administrar sal ou açúcar antes do 1 ano
• Administrar mel
• Introduzir novos alimentos diversificados
com intervalo inferior a 1 semana entre cada
um
• Forçar a criança a terminar a sopa de legumes “de que não gosta” logo nos primeiros
dias, sem tentar que se adapte
• Administrar farinha de cereais e sopa de
legumes por biberão
• Substituir a sobremesa de fruta por doces ou
compotas
• Substituir uma refeição com alimentos integrando proteínas, por fruta
• Continuar a dar alimentos em puré, muito
desfeitos e não granulosos, para além dos 9
meses
• Não verificar o suprimento em ferro nem
providenciar a sua eventual suplementação
no regime alimentar da criança que duplicou
o peso de nascimento, data em que as reservas de ferro se esgotam
• Idem nos casos em que a criança tenha sido
submetida a regime eventualmente desequilibrado e essencialmente farináceo-lácteo
• ”Premiar” a criança com doces, chocolates
ou guloseimas em geral, na hipótese de a
refeição ter sido cumprida
• Dar refrigerantes em vez de água quando a
criança tem sede, ou à refeição
• Dar leite (ou produtos lácteos como iogurte,
342
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
queijo, etc.) em quantidades excessivas (mais
de 1 litro por dia) ou menos de 400 ml/dia
• Abusar de fritos
• Não dar fruta e produtos hortícolas ao
almoço e jantar.
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www.mypyramid.gov – (acesso em Junho de 2008)
A alimentação constitui um domínio privilegiado
de expressão psicopatológica: a mesma comporta
uma dimensão social e representa a primeira
grande função fisiológica que marca a génese e o
desenvolvimento da vida afectiva.
As alterações do comportamento alimentar
(não específicas de determinada entidade nosológica) podem ser sistematizadas do seguinte modo:
Quantitativas
– por defeito: anorexia nervosa restritiva, inicialmente por recusa alimentar (sitiofobia), e depois
por perda de apetite (anorexia);
– por excesso: hiperfagia paroxística, ou seja,
bulimia(ou hiperorexia ou poliorexia);
– hiperfagia regular e compulsão alimentar
conduzindo a excesso de suprimento energético e
a obesidade.
Qualitativas
– incidindo sobre a sede e a ingestão de bebidas
(potomania);
– incidindo sobre substâncias não nutritivas
(pica, geofagia, coprofagia dos deficientes profundos);
– incidindo sobre substâncias tóxicas(alcoolismo, toxicomania);
– incidindo sobre a escolha de alimentos(vegetarianismo).
Neste capítulo procede-se à descrição da
anorexia nervosa (AN) e da bulimia nervosa (BN).
CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar
1. ANOREXIA NERVOSA
Definição e aspectos epidemiológicos
De acordo com os critérios da DSM-IV, a síndroma
anorexia nervosa(AN) é uma perturbação do comportamento alimentar caracterizada por:
– recusa em manter o peso corporal ideal ou
acima do peso mínimo para a idade e estatura;
– medo de a pessoa ganhar peso ou de se tornar
obesa, mesmo tendo peso inferior ao ideal (perturbação na apreciação do peso e da forma corporal);
de tal resulta perda progressiva e desejada de peso.
– apreciação distorcida do peso e da imagem
corporal;
– amenorreia em pessoas do sexo feminino
pós-menarca considerando-se, como condição, a
ausência de, pelo menos, três ciclos menstruais
consecutivos.
São considerados dois subtipos:
– restritivo (abstenção voluntária de alimentos
ou restrição do suprimento energético).
– compulsivo/purgativo(ingestão excessiva de
alimentos seguida auto-administração de laxantes, diuréticos, enemas, ou de provocação de vómitos).
Estima-se, segundo dados da literatura científica, maior frequência entre adolescentes,em especial com idades compreendidas entre 13 e 18 anos.
Diversos estudos em populações com idade média de 15 anos, apontam para taxas (entre 0,1 e
4,1%) sendo que mais de 90% dos casos ocorrem
no sexo feminino.
Etiopatogénese
De acordo com especialistas em psicopatologia, a
designação de anorexia não é correcta; na verdade, o processo mórbido diz respeito, sim, a luta
contra a fome. No estado actual dos conhecimentos admite-se a comparticipação associada de factores socioculturais, familiares, psicológicos(por
ex. défice de auto-estima), genéticos, etc..
Alguns casos estão associados a situações de
disfunção familiar e a certos estereótipos de ideal
de beleza e feminilidade associados a corpo magro.
Estudos recentes apontam para a hipótese de
certos genes determinarem maior predisposição
quanto a comportamento.
343
Anteriormente julgava-se que este tipo ocorria
apenas em famílias de robusto poder económico
nas culturas ocidentais; no entanto, estudos
recentes têm identificado incidência semelhante
em populações de cultura dita oriental e de fracos recursos económicos.
Manifestações clínicas e diagnóstico
diferencial
O início do quadro clínico da AN passa frequentemente despercebido em fase inicial. Existe, em
geral, uma atitude psicológica estereotipada : não
reconhecimento sistemático dos sintomas, interesse por questões relacionadas com alimentos e
regimes alimentares, esconder alimentos em
diversos locais, dividir alimentos em pequenas
porções, preparar alimentos para outras pessoas
sem os saborear, não ter refeições na presença
doutros, observar o que os outros comem, etc..
Existem sempre dificuldades relacionais importantes, relações sociais pobres e vida sexual nula.
Podem associar-se outros elementos: tomas
excessivas de laxantes e vómito provocado (o sinal
de Russel ou cicatriz no dorso da mão por introdução frequente desta na boca indicia tal).
Outras manifestações incluem: irritabilidade,
hiperactividade, alterações do humor, intolerância
ao frio e acrocianose, diminuição da líbido, etc..
A recusa alimentar com as consequências inerentes de emagrecimento, em determinado contexto
clínico, conduzem à necessidade de diagnóstico
diferencial com outras situações tais como: SIDA,
doença neoplásica, síndroma da artéria mesentérica
superior, síndroma depressiva, esquizofrenia, etc..
Evolução, complicações e exames
complementares
A duração da síndroma pode durar anos, sendo
que a regressão espontânea não é habitual; conclui-se, pois, que o prognóstico é reservado considerando o risco vital.
O regresso da menstruação é frequentemente
considerado como uma verdadeira cura, salientando-se que apenas um em cada três doentes se cura
definitivamente com a inserção social.
As principais complicações da AN implicam a
realização de determinados exames comple-
344
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mentares (para apreciar a repercussão biológica
do estado de desnutrição e eliminar eventual
causa orgânica), a planear caso a caso (Quadro 1).
Tratamento
As medidas gerais do tratamento da AN(actuação
multidisciplinar com o apoio fundamental da
equipa de pedopsiquiatria) devem implicar uma
relação com a pessoa doente, humanizada, muito
personalizada e compreensiva, mas firme; os
objectivos fundamentais são a recuperação do
peso adequado e a educação para a saúde sobre
nutrição com a colaboração da família como forma
de motivação para o tratamento, evicção das recaídas e tratamento da comorbilidade.
Para a prossecução destes objectivos são adoptadas resumidamente as seguintes estratégias:
Intervenção nutricional
Os incrementos de peso para se atingir o peso adequado devem processar-se por etapas, tornando-
se necessário o internamento no período inicial.
Em regime de internamento são programados
incrementos da ordem de 800-1200 gramas/semana
e, ulteriormente, em regime ambulatório, entre 250500 gramas/semana. Na fase inicial o suprimento
energético acompanhado de suplementos vitamínicos deve ser da ordem de 30-40 kcal/kg/dia, progredindo até cerca de 70-100 kcal/kg/dia.
Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada terapia cognitivo-comportamental (técnicas de alteração de comportamentos inadequados,reeducação alimentar,etc.), psicoterapia individual ou
de grupo, e orientação e/ou terapia familiar.
Intervenção psicofarmacológica
Este tipo de intervenção não colhe o consenso de
todos os especialistas. Em situações seleccionadas
(e apenas após a fase de recuperação do peso)
pode utilizar-se fármacos inibidores de recaptação
selectiva da serotonina com efeito nas perturbações do humor e ansiedade.
QUADRO 1 – Anorexia nervosa
Alterações da homeostase térmica
Hipotermia
Alterações cardiovasculares
Hipotensão, bradicárdia, diminuição da tolerância ao
esforço, edema periférico
Alterações do SNC
Atrofia cerebral
Alterações renais
Insuficiência pré-renal
Alterações hematológicas
Anemia
Alterações gastrintestinais
Atraso do esvaziamento gástrico, dilatação gástrica,
défice de lipase e lactase intestinais
Alterações endócrinas
Défice hormonal (hormona luteinizante, estrogénio,
progesterona, estimulante folicular, tiroxina, tri-iodotironina, etc)
Excesso hormonal (tri-iodo-tironina reversa, cortisol,
GH, etc.)
Diabetes insípida
Alterações metabólicas e hidroelectrolíticas
Hipoglicémia, hipercolesterolémia, aumento do teor de
enzimas hepáticas, desidratação, hipocaliémia, etc..
2. BULIMIA NERVOSA
Definição e aspectos epidemiológicos
De acordo com os critérios da DSM-IV, a bulimia
nervosa (BN) é uma perturbação do comportamento alimentar definida por: episódios recorrentes de
ingestão alimentar compulsiva caracterizados por:
– ingestão de grande quantidade de alimentos
num período curto de tempo (até 2 horas), superior ao que a maioria das pessoas consideradas
normais comeria;
– sensação de incapacidade para controlar a
quantidade e qualidade dos alimentos;
– comportamento de compensação no sentido
de prevenir o incremento de peso: indução de
vómito, abuso de laxantes, diuréticos, enemas,
jejum ou exercício físico excessivo;
– ocorrência de ingestão alimentar compulsiva e de comportamentos de compensação com a
frequência de, pelo menos, 2 vezes por semana e
durante, pelo menos, 3 meses;
– preocupação excessiva com o peso e a imagem corporal;
CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar
São considerados dois subtipos:
– purgativo (vómitos ou abuso de laxantes,
diuréticos e enemas);
– não purgativo (jejum ou exercício físico excessivo pressupondo a não utilização de vómitos, de
abuso de laxantes, diuréticos e ou de enemas).
Etiopatogénese
A etiopatogénese da bulimia está relacionada com
conflitos familiares, antecedentes de perturbações
da relação precoce mãe-RN e lactente, de abuso
sexual na infância, síndroma depressiva, alterações no relacionamento com figuras parentais,
sentimentos de culpa exagerados, dificuldade na
aceitação da frustração e ansiedade, etc..
Manifestações clínicas e diagnóstico
diferencial
No que respeita ao estado nutricional, as manifestações de BN não são tão exuberantes como na
AN; com efeito, os doentes com BN têm em mais
de 80% dos casos peso normal. Raramente existe
obesidade, salientando-se que os episódios bulímicos nos obesos são pouco frequentes.
Como manifestações mais típicas citam-se:
perturbações gastrintestinais, como vómitos,
dores abdominais associadas frequentemente a
gastrite e esofagite, alterações da motilidade
esofágica e gástrica, dilatação gástrica aguda, síndroma do cólon irritável, alterações dentárias
(erosão do esmalte pela acção do suco gástrico),
risco aumentado de pancreatite, etc..
O perfil comportamental típico da pessoa com
BN é: mulher extrovertida, com carácter histérico,
vida sexual activa e muitas vezes dependende de
drogas e/ou álcool.
O diagnóstico diferencial da BN faz-se com a
NA de tipo compulsivo/purgativo, síndroma
depressiva atípica e perturbações da personalidade.
A propósito e como nota de síntese importa reter a
seguinte noção: certos bulímicos são antigos anorécticos
e cerca de metade dos anorécticos são bulímicos.
Complicações
As principais complicações da BN, nem sempre
fáceis de distinguir das próprias manifestações,
345
(implicando, por vezes, a realização de determinados exames complementares para apreciar a repercussão sobre o estado geral e eliminar eventual
causa orgânica), são sistematizadas no (Quadro 2).
Tratamento e evolução
As medidas gerais do tratamento da BN que pode ser
efectivado em regime ambulatório (actuação multidisciplinar com o apoio fundamental da equipa de
pedopsiquiatria) devem implicar uma relação personalizada médico-doente, humanizada e compreensiva, mas firme; os objectivos fundamentais são a
alteração do padrão alimentar compulsivo e
manobras purgativas, promover a educação para a
saúde sobre nutrição com a colaboração da família
como forma de motivação para o tratamento, corrigir
ideias pré-concebidas e atitudes disfuncionais, prevenção das recaídas e tratamento da comorbilidade.
Para a prossecução destes objectivos são adoptadas resumidamente as seguintes estratégias:
Intervenção nutricional
Este tipo de intervenção consiste fundamentalmente
na promoção de regime alimentar equilibrado e
saudável com vista à manutenção de peso adequado.
Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada terapia cognitivo-comportamental (técnicas de alteração de comportamentos inadequados, reeducação
alimentar reduzindo,designadamente os regimes
restritivos, automonitorização da ingestão alimentar, pesagem regular etc.), psicoterapia individual
ou de grupo, orientação e terapia familiar.
Intervenção psicofarmacológica
Este tipo de intervenção pode englobar, nomeadamente, a utilização de fármacos inibidores de
QUADRO 2 – Complicações da bulimia nervosa
Alterações gastrintestinais
Dilatação e perfuração gástricas, hérnia do hiato esofágico,perfuração esofágica, pneumomediastino.
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas
Desidratação, hiponatrémia, hipoclorémia, hipomagnesiémia,alcalose metabólica,etc..
346
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
recaptação selectiva da serotonina com efeito nas
perturbações do humor e ansiedade, e de fármacos antidepressivos tricíclicos.
A evolução das perturbações, bem como a
resposta ao tratamento, são muito variáveis(desde
muito boas a muito más).
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PARTE XII
Imunoalergologia
348
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
62
DOENÇAS ALÉGICAS NA
CRIANÇA – EPIDEMIOLOGIA
E PREVENÇÃO
J. Rosado Pinto
Importância do problema
As doenças alérgicas correspondem a um tipo de
patologia que, pela sua frequência e importância,
estão na primeira linha no grupo etário pediátrico.
Cerca de 35% da população europeia apresenta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu
aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as
populações dos países industrializados.
É importante referir o efeito das reacções alérgicas no comportamento emocional e social dos
doentes e suas famílias.
Nomenclatura
Actualmente existe uma nomenclatura internacionalmente aceite e publicada pela European
Academy of Allergology and Clinical Immunology
recentemente actualizado pela World Allergy
Organization que permite definir com rigor o significado dos termos e patologias mais frequentemente ligados à alergia. Discrimina-se seguidamente significado de alguns termos relacionados
com esta problemática; algumas situações são
definidas com mais pormenor nos capítulos
seguintes.
Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade iniciada por mecanismos imunológicos a qual pode
ser mediada por anticorpos ou células, sendo na
grande maioria dos casos o anticorpo responsável
pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE.
Os indíviduos afectados podem ser referidos
como sofrendo de uma alergia mediada por IgE.
Alergénios – São antigénios que causam alergia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e
IgG são proteínas.
Atopia – É uma tendência pessoal ou familiar
frequente na infância e na adolescência para se
ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a
uma exposição a alergénios. Como consequência,
nestes individuos podem desenvolver-se sintomas característicos de asma, rinoconjuntivite e
eczema. Os termos "atopia" e "atópico" devem ser
reservados para descrever uma predisposição
genética para sensibilização a alergénios comuns
durante uma exposição ambiental sendo que, na
maioria dos individuos, não se produz uma
resposta prolongada mediada por IgE.
Hipersensibilidade – Corresponde a um conjunto de sinais ou sintomas objectivamente reprodutíveis e desencadeados pela exposição a um
estímulo definido tolerado pelos indivíduos ditos
normais ou saudáveis.
Hipersensibilidade não alérgica – É o termo
preferido para descrever hipersensibilidade na
qual não é possível demonstrar a presença de
mecanismos imunológicos.
Asma (definição do Grupo GINA - Global
Initiative for Asthma) – É uma doença inflamatória
crónica das vias aéreas na qual intervêm muitas
células particularmente mastócitos, eosinófilos e
células T. Nos indivíduos susceptíveis esta inflamação provoca episódios recorrentes de pieira,
dispneia, retracção torácica e tosse, os quais
podem ser parcial ou totalmente reversíveis,
espontaneamente ou por tratamento. A asma alérgica é mediada por mecanismos imunológicos,
particularmente IgE, ao contrário da asma não
alérgica.
Rinoconjuntivite – Situação em que há sintomas de reacção de hipersensibilidade mediada
imunologicamente com tradução clínica nas fossas nasais e conjuntiva, na maioria das vezes mediada por IgE.
Dermatite – É o termo geralmente utilizado
para uma inflamação local na pele. Actualmente é
utilizado o termo síndroma eczema/dermatite
atópica (SEDA) englobando um conjunto de
diferentes doenças da pele com características
comuns. Como na asma, o eczema de indivíduos
com constituição atópica deve chamar-se eczema
atópico.
CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção
A realidade nacional
O estudo da prevalência das doenças alérgicas de
crianças em Portugal e no mundo está actualmente bem caracterizado através do projecto
ISAAC (International Study of Asthma and Allergies
in Childhood) que foi executado ao longo de 10
anos envolvendo mais de um milhão de jovens em
mais de 60 países entre 1993 e 2003. Ele teve por
objectivo desenvolver a investigação epidemiológica sobre asma, rinite, conjuntivite e eczema
atópico através da padronização a nível de
definições dos casos e da metodologia utilizada
com base em questionários, podendo comparar
diferentes países e centros de cada país. Composto
por 3 fases, foi concebido de forma a poder comparar populações quanto à prevalência desta
doença em todo o mundo. Um dos objectivos mais
importantes foi examinar as tendências temporais
de prevalência da asma, rinoconjuntivite alérgica
e eczema atópico ao longo de 8 anos (centros que
cumpriram as fases I e III).
Em Portugal o estudo envolveu na fase I (entre
1993/95) 5036 jovens de 6-7 anos provenientes de
207 escolas, e em 11.427 jovens de 13-14 anos, oriundos de 84 escolas. Na fase III (2002) o grupo de
6-7 anos envolveu 9081 jovens tendo participado
408 escolas. O grupo de 13-14 anos era oriundo
das mesmas regiões e envolveu 12.905 jovens de
142 escolas.
Ao centrarmos a análise comparativa dos
resultados globais nas mesmas regiões da população inquirida que já teve pieira (sintomas sibilância recorrente), asma (diagnóstico médico),
rinite (sintomas) ou eczema (diagnóstico médico/sintomas) verificamos no grupo de 6-7 anos:
1995
2002
Valor-p
Pieira
28,2%
28,1%
0.936
Asma
11%
9,4%
0.008
Rinite
23,8%
29,1%
<0.001
Eczema
11,2%
14,1%
<0.001
Quando comparamos populações de 6-7 anos
inquiridas que tiveram pieira, asma, rinite ou
eczema nos últimos 12 meses, foram obtidos os
seguintes resultados:
349
1995
2002
Pieira
12,9%
12,9%
Valor-p
0.983
Rinite
19,9%
24%
<0.001
Eczema
13,9%
15,6%
0.013
Em relação ao grupo de 13-14 anos foram obtidos os seguintes resultados:
1995
2002
Valor-p
Pieira
18,2%
21,8%
<0.001
Asma
11,8%
14,7%
<0.001
Rinite
30,2%
37,1%
<0.001
Eczema
11,7%
12,7%
<0.014
Na comparação das populações inquiridas de
13-14 anos que declararam ter tido pieira, asma,
rinite ou eczema nos últimos 12 meses, os resultados foram:
1995
2002
Valor-p
Pieira
9,2%
11,8%
<0.001
Rinite
21,2%
26,5%
<0.001
7,6%
8,7%
0.002
Eczema
Da análise dos valores nacionais mais significativos sobre o estudo do inquérito ambiental e
estilo de vida realizado em 2002 salientamos, comparando os grupos de 6-7 e 13-14 anos (Quadro 1):
A análise dos resultados obtidos revela um
aumento global da prevalência das doenças alérgicas do grupo 13-14 anos no país, o que se atribui
provavelmente a uma mudança de hábitos que
leva muitos jovens a preferir cada vez mais uma
actividade localizada dentro de casa (computador
e televisão) e a um aumento da utilização de comida rápida/hamburgers com consequente maior
susceptibilidade para as doenças alérgicas, respiratórias e de expressão cutânea. Ao contrário, no
grupo dos 6-7 anos, o facto de não haver ao longo
dos anos um aumento da prevalência de asmáticos pode atribuir-se a um melhor conhecimento,
pelos familiares (responsáveis pelos inquéritos
neste grupo etário) e pelos profissionais de saúde,
acerca dos problemas relacionados com as
doenças alérgicas em geral, e do modo de fazer a
sua prevenção, particularmente nas crianças de
risco.
350
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida
a) Alimentação nos últimos 12 meses
carne: três ou mais vezes por semana
peixe: três ou mais vezes por semana
fruta: três ou mais vezes por semana
vegetais: três ou mais vezes por semana
cereais (incluindo pão): três ou mais vezes por semana
arroz: três ou mais vezes por semana
manteiga: três ou mais vezes por semana
leite: três ou mais vezes por semana
ovos: três ou mais vezes por semana
“fast-food”, hamburgers três ou mais vezes por semana
uma vez por semana
aleitamento materno
b) Actividade física – 3 vezes por semana ou mais
c) Horas de televisão - 3 ou mais horas/dia
d) Antibióticos no primeiro ano de vida
e) Nível de escolaridade da mãe da criança:
básico
secundário
universitário
f) Gato em casa no primeiro ano de vida
Gato em casa nos últimos 12 meses
g) Cão em casa no primeiro ano de vida
Cão em casa nos últimos 12 meses
h) Mãe fumadora no primeiro ano de vida
Percentagem de não fumadores no agregado familiar
Prevenção
O aumento de prevalência das doenças alérgicas e
o facto de se tratar de doenças de elevada morbilidade, sobretudo na idade pediátrica, levou a
uma progressiva preocupação sócio-sanitária e
económica com este problema. A utilização de
normas profilácticas genéricas, sobretudo na alergia respiratória, levou a que uma maior informação fosse difundida entre as populações, sobretudo no que se refere à exposição aos agentes em
meio habitacional.
Como observámos anteriormente, a tendência
em Portugal acompanhando os países industrializados, para uma cada vez maior exposição
alergénica e desenvolvimento de uma sensibilidade alérgica dentro de casa, é fruto de uma progressivo estado de vida sedentário da criança que
6-7 anos
13-14 anos
65,8%
44,8%
82,3%
52%
84,8%
58,2%
55,2%
86,9%
18,5%
3,2%
18,6%
78,5%
9,3%
17,3%
54,9%
49%
39,3%
66,5%
37,7%
71,0%
48,1%
37,2%
75,1%
17,9%
8,5%
40,5%
27%
34%
19,3%
9,3%
15%
22%
29,6%
15,6%
36,7%
22,5%
31,3%
39%
32%
21,9%
25,2%
49,3%
34,3%
cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente
da televisão e do computador. Por outro lado, a
cada vez mais precoce frequência de infantários
por crianças mais pequenas, localizados em
habitações que não estão, na maioria das situações, devidamente preparadas para receber tantas crianças, leva a preocupações acrescidas,
devendo incidir-se atenção especial sobre as
condições em que se encontram as salas onde permanecem aquelas. É, no entanto, no quarto de
dormir onde o jovem passa cerca de um terço da
sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se
mais as nossas preocupações.
Os 3 níveis de prevenção: primária – que promove a prevenção de atopia; secundária – que
promove a prevenção das sensibilizações já existentes e que são consequência da aptidão genética
e da exposição a alergénios; e a terciária que não é
351
CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção
mais que a prevenção das consequências clínicas
motivadas pelas manifestações alérgicas, devem
ser tratados em conjunto. De um modo geral as
medidas ambientais exequíveis nos referidos
níveis de prevenção passam por uma boa identificação dos alergénios em causa.
A sensibilização na criança ocorre geralmente
nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de
alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite
de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para
os alergénios alimentares é detectável em cerca de
10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios
inalantes aparecem geralmente a partir dos 3
anos, passando a sensibilização a ser particularmente evidente aos ácaros do pó da casa, animais
domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e
a asma alérgica passam a ter uma expressão clínica muito mais significativa que as alergias de
expressão cutânea.
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352
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
63
ASPECTOS DO DIAGNÓSTICO
DA DOENÇA ALÉRGICA
Ângela Gaspar
Anamnese
O diagnóstico da doença alérgica baseia-se essencialmente na história clínica. A anamnese é fundamental e deve esclarecer: a idade de início dos sintomas e circunstâncias do seu aparecimento; a presença de factores desencadeantes, como esforço físico, exposição a alergénios (pó, pólens, esporos de
fungos, pêlos de animais, látex, etc.) ou ingestão de
alimentos ou fármacos; a frequência, duração e
gravidade dos sintomas, incluindo recursos ao
serviço de urgência e internamentos; as terapêuticas
efectuadas, sua eficácia e eventuais reacções adversas; a variabilidade circadiana e sazonal dos sintomas; o impacte sobre o estilo de vida, incluindo
tolerância ao exercício, períodos de interrupção do
sono, perturbação de afectos familiares e sociais, e
grau de absentismo escolar. Os antecedentes pessoais da criança, nomeadamente a coexistência de
outras doenças alérgicas e os antecedentes familiares
de alergia apoiam o diagnóstico de doença alérgica.
Pela anamnese deverá também inquirir-se sobre o
contexto ambiental em que a criança se movimenta,
particularmente em termos de exposição alergénica,
tabagismo passivo e exposição a outros poluentes
em ambiente doméstico ou fora de casa.
A sensibilização precoce na criança, por via
digestiva ou inalatória, desencadeia o início da
chamada marcha alérgica. Segundo este conceito
clássico, como foi referido antes, a expressão clínica da atopia varia durante a vida, iniciando-se na
primeira infância sob a forma de alergia alimentar
e dermatite atópica, com evolução ulterior, variável segundo a experiência de vários autores, para
alergia respiratória, rinite e asma.
Algumas particularidades clínicas das doenças
alérgicas mais prevalentes na criança serão em
seguida sucintamente referidas, como complemento do que foi referido a propósito da “Nomendatura das doenças”.
Asma: Asma é uma situação clínica caracterizada por episódios recorrentes de tosse, pieira e
dificuldade respiratória, parcial ou completamente reversíveis espontaneamente ou após terapêutica com broncodilatador; queixas induzidas
pelo exercício físico e tosse crónica, podem ocorrer
isoladamente. Apoiam o diagnóstico, a periodicidade dos sintomas, a sintomatologia nocturna, o
agravamento com esforço físico, ar frio e exposição a alergénios, a resposta favorável à terapêutica broncodilatadora e a história familiar de asma
parental e pessoal de rinite e dermatite atópica.
Rinite alérgica: os sintomas incluem rinorreia
serosa, prurido nasal, espirros paroxísticos e
obstrução nasal (como aspecto característico na
ausência de processos infecciosos). A coexistência
de sintomas oculares alérgicos (prurido ocular,
lacrimejo) apoia fortemente este diagnóstico. A
variabilidade sazonal, bem como a relação com a
exposição alergénica com agravamento no
ambiente fora de casa é característica das polinoses.
Dermatite atópica ou síndroma eczema/dermatite atópica (SEDA): completando o conceito
atrás explanado, esta situação surge, habitualmente, após os 3 meses de vida e caracteriza-se
pelo prurido cutâneo intenso, que tipicamente se
agrava após o banho, com a sudação e durante a
noite, e pela distribuição e morfologia típica das
lesões cutâneas, com evolução crónico-recidivante.
Alergia alimentar: trata-se da associação entre
a ingestão alimentar e o aparecimento dos sintomas; a forma de manifestação clínica mais frequente é mucocutânea, com urticária e angioedema; no entanto, os sintomas podem variar desde
síndroma de alergia oral a reacção anafiláctica
grave. O número de alimentos implicados é habitualmente limitado, exceptuando situações em
que ocorrem fenómenos de reactividade cruzada.
Existem classicamente três grandes síndromas de
reactividade cruzada entre determinados alergénios inalados e alimentares, que é importante conhecer, pela potencial gravidade de algumas das
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica
reacções adversas alimentares: síndroma ácarosmariscos, síndrome látex-frutos e síndroma
pólens-frutos. Nestas circunstâncias as reacções
tendem a não ser graves, sendo a alergia oral a
forma típica de apresentação clínica.
Exame físico
O carácter intermitente da doença alérgica, de um
modo geral, determina que na maioria das situações o exame físico da criança seja normal. Alguns
sinais característicos que podem ser detectados ao
realizar o exame físico são em seguida descritos.
Asma: durante uma exacerbação pode verificar-se taquipneia, utilização dos músculos
acessórios da respiração, hiperinsuflação torácica,
prolongamento do tempo expiratório e sibilos na
auscultação pulmonar; situações mais graves
podem cursar com cianose, diminuição generalizada do murmúrio vesicular e alterações do estado de consciência.
Dermatite atópica: é frequente verificar-se
xerose cutânea e localização das lesões eritematosas/exsudativas/descamativas na face, flexuras
e superfícies de extensão, por vezes com liquenificação; podem também observar-se queratose
pilar, reforço das pregas palmares, queilite, dermatose plantar e pitiríase alba.
Rinite alérgica: fácies característica da criança
com obstrução nasal crónica, com respiração oral
com boca entreaberta, existência de prega atópica
nasal e olheiras; a observação das fossas nasais
permite-nos visualizar habitualmente, para além
da rinorreia aquosa, hipertrofia e palidez da
mucosa dos cornetos inferiores.
Conjuntivite alérgica: são aspectos característica a hiperémia e a quemose (edema) conjuntivais, secreção serosa e frequentemente edema
palpebral, habitualmente bilateral; a observação
da conjuntiva tarsal pode evidenciar a presença de
papilas.
Urticária: a lesão característica maculo-papular, pruriginosa, consiste numa área de eritema
circunscrito, discretamente elevado, de centro
claro, que desaparece à dígito-pressão e regride
em menos de 24 horas, sem lesão residual; as
lesões têm carácter recorrente e migratório.
Anafilaxia: forma de manifestação clínica mais
grave da patologia alérgica, potencialmente fatal;
353
caracteriza-se habitualmente pela presença de
sinais mucocutâneos (urticária, angioedema),
associados a um ou mais dos seguintes sinais: respiratórios-broncospasmo e dificuldade respiratória por edema da glote; cardiovascularestaquicardia, hipotensão arterial, alterações do
ritmo cardíaco, perda de consciência e choque;
digestivos-vómitos, diarreia e dores abdominais.
No entanto, o colapso cardiovascular pode ocorrer
de imediato, sem associação a sinais mucocutâneos, respiratórios ou digestivos.
Exames complementares
de diagnóstico in vivo
Testes cutâneos
Os testes cutâneos por picada ou “prick” constituem o método diagnóstico de eleição no estudo
da sensibilização alergénica, inclusive em idade
pediátrica, pela facilidade de execução, rapidez de
obtenção de resultados, segurança, baixo custo e
elevada sensibilidade. No entanto, contrastando
com a facilidade de execução, estes testes podem
ser influenciados por diversos factores, pelo que é
imprescindível que a sua interpretação seja
efectuada por especialista e sejam realizados com
uma metodologia correcta, obedecendo a normas
padronizadas.
A utilização dos testes cutâneos por picada
permite a identificação, se existente, do alergénio
sensibilizante. A introdução do alergénio nas
camadas superficiais da pele leva ao aparecimento de uma reacção imediata, dependente da desgranulação dos mastócitos e envolvendo também
factores neurogénicos, com libertação de histamina e outros mediadores originando uma resposta
de pápula e eritema; esta resposta visível é máxima aos 15 minutos, regredindo habitualmente aos
30 minutos.
Os testes cutâneos podem ser influenciados
por uma série de variáveis, que podem determinar os resultados e condicionar a precisão dos
mesmos, tais como: factores técnicos, factores
biológicos e factores externos não alérgicos. Os
factores técnicos estão relacionados com a
preparação do alergénio (potência, qualidade,
composição e estabilidade) e com a metodologia
do teste. Os factores externos não alérgicos
incluem fármacos, como anti-histamínicos, e con-
354
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dições patológicas intercorrentes, como neoplasias, infecções, exacerbação de eczema, que
podem inibir a reactividade cutânea. Os factores
biológicos incluem a idade do indivíduo, o factor
racial e a variação sazonal relacionada com a
exposição alergénica.
A selecção dos extractos alergénicos a utilizar
deve estar de acordo com a história clínica e a frequência de sensibilizações alergénicas na população. Na nossa população os alergénios mais
importantes em crianças com sibilância recorrente
são os ácaros do pó (Dermatophagoides pteronysinus
e Dermatophagoides farinae), mesmo no grupo
etário abaixo dos 3 anos de idade. Outros aeroalergénios comuns poderão estar implicados,
nomeadamente pólens de gramíneas, parietária,
outras herbáceas e árvores localmente relevantes,
de animais, particularmente gato, cão, baratas, e
de fungos (Arpergillus, Cladosporium e Alternaria).
Podem ainda ser incluídos outros testes segundo a localização geográfica ou em presença de
dados particulares fornecidos pela história clínica.
Habitualmente, através da utilização de um
número limitado de aeroalergénios comuns é possível confirmar ou excluir a presença de atopia. A
evidência de sensibilização alergénica foi identificada em vários estudos prospectivos como factor
de risco de persistência da sintomatologia respiratória, isto é, de asma activa em idade escolar, com
elevado valor preditivo positivo, com valor diagnóstico e prognóstico da asma na criança. Assim, o
factor etário não deve ser um factor limitante para
a execução dos testes cutâneos na criança, devendo,
pelo contrário, ser considerada como rotina na
investigação de atopia. Os testes cutâneos por picada negativos permitem excluir a presença de atopia
e, deste modo, evitar a utilização de medidas de
evicção de alergénios não apropriadas.
Apesar de identificarem a sensibilização a
determinado alergénio, os referidos testes cutâneos não permitem avaliar a sua relevância clínica
se valorizados independentemente da história
clínica. A presença de testes cutâneos positivos em
pacientes assintomáticos pode ser factor de risco
de início de sintomatologia alérgica, mas não identificam, por si só, doença. Ou seja, os conceitos de
sensibilização alergénica ou atopia e doença alérgica são distintos e independentes. No entanto, na
presença de clínica sugestiva, a relação entre os
testes cutâneos por picada positivos e as provas de
provocação específicas é altamente significativa.
Na alergia alimentar os testes cutâneos devem
ser realizados com os alergénios alimentares identificados como suspeitos pela história clínica. Os
alergénios alimentares mais frequentemente
implicados também variam com a população estudada. Na nossa população, em idade pediátrica, o
leite e o ovo são os mais importantes, seguidos do
peixe, trigo e amendoim. Os referidos testes apresentam um excelente valor preditivo negativo,
mas baixo valor preditivo positivo, pelo que,
exceptuando os casos em que haja uma íntima
associação entre a ingestão do alimento e o aparecimento das queixas ou uma reacção anafiláctica
grave, a positividade dos mesmos apenas serve
para seleccionar os alimentos com os quais deverão ser efectuadas provas de provocação. A utilização de testes cutâneos com o alimento na
forma natural pode ser necessária nalgumas situações, particularmente na suspeita de alergia a frutos frescos, legumes e mariscos, quando persistir a
suspeita clínica, e o extracto comercial não estiver
disponível ou for negativo.
Os testes cutâneos intradérmicos são mais
invasivos, e menos específicos; o risco de ocorrência de reacções adversas graves em cerca de 2%
dos casos, contraindica a sua utilização por rotina.
A sua utilização deve, pois, ser reservada a situações para avaliação de alergia medicamentosa,
como na suspeita de alergia à penicilina, e alergia
a veneno de himenópteros, nomeadamente abelha
e vespa. Estes testes apresentam um elevado valor
preditivo negativo, ou seja quando negativos permitem excluir a presença de sensibilidade IgEmediada, na grande maioria dos doentes.
Caso não seja possível a realização dos testes
cutâneos, esteja limitada a sua interpretação por
existência de dermografismo, de diminuição da
reactividade cutânea, ou seja necessário o esclarecimento de casos discordantes ou duvidosos, deverá ser efectuada a determinação sérica de IgE
específicas. No entanto, salienta-se, a menor sensibilidade diagnóstica e o custo mais elevado dos
testes in vitro (Quadro 1).
Provas de provocação
1. Provas de provocação brônquica: no período
intercrítico a avaliação respiratória da criança
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica
355
QUADRO 1 – Testes cutâneos por picada e testes séricos de IgE específica: vantagens
Testes cutâneos (in vivo)
Económicos
Resultados imediatos
Valor educacional
Maior sensibilidade
Testes séricos de IgE específica (in vitro)
Independentes da interferência de fármacos que inibem a reactividade cutânea
Não influenciados por dermografismo ou doenças cutâneas
Totalmente seguros
Maior especificidade
Nota: Teste sinónimo de Prova
asmática apresenta-se frequentemente dentro de
parâmetros de normalidade funcional e, muitas
vezes, para confirmar o diagnóstico de asma, há
que se recorrer a provas de broncomotricidade as
quais podem ser broncodilatadoras ou broncoconstritoras.
A prova de broncodilatação é habitualmente
efectuada no decurso do estudo da função respiratória, por espirometria ou pletismografia corporal. Nesta prova avalia-se o grau de reversibilidade,
15 minutos após inalação de um β -agonista de curta
acção. Considera-se a prova positiva quando há um
aumento do VEMS (volume expiratório máximo no
primeiro segundo) de ≥ 12% ou ≥ 200ml em relação
ao valor basal. A existência de uma prova positiva
permite efectuar o diagnóstico de asma.
Em indivíduos com sintomatologia atípica,
quando os parâmetros funcionais são normais,
para demonstrar a existência de hiperreactividade
brônquica, recorre-se a provas boncoconstritoras.
A prova de esforço é particularmente importante,
pela sua fácil exequibilidade e por apresentar uma
elevada especificidade para o diagnóstico de
asma, nomeadamente na criança, permitindo, se
positiva, (ou seja quando ocorre uma redução do
VEMS ≥ 10% após a realização do esforço normalizado) confirmar o diagnóstico.
A prova da metacolina apresenta uma baixa
especificidade, sendo positiva em várias situações
que apresentam hiperreactividade brônquica tais
como fibrose quística, bronquiectasias, insuficiência cardíaca e infecções víricas. Salienta-se, no
entanto, o seu elevado valor preditivo negativo.
Esta prova considera-se positiva quando ocorre
uma redução do VEMS ≥20%. Outras provas de
provocação avaliam a hiperreactividade brônquica a estímulos como a água destilada, soluções
hiperosmolares como o manitol e hiperventilação
de ar seco e frio. A prova de provocação brônquica
2
com alergénio não é habitualmente utilizada,
excepto em estudos de investigação; só deve ser
efectuada em circunstâncias especiais e sempre
em ambiente hospitalar, pois desencadeia uma
resposta imunológica imediata e tardia, com
riscos acrescidos.
2. Provas de provocação oral: são administradas
por via oral doses crescentes do alergénio suspeito
com intervalos regulares, até ao aparecimento de
reacção, ou até ser atingida uma dose cumulativa
correspondente à quantidade ingerida habitualmente numa refeição, ou à dose terapêutica diária,
consoante se trate de prova de provocação alimentar ou medicamentosa. Na criança habitualmente
são realizadas segundo um protocolo aberto; no
entanto, em determinadas situações, nomeadamente se as queixas referidas forem subjectivas,
poderá justificar-se a utilização de protocolo com
ocultação. Estas provas são utilizadas para confirmação ou exclusão do diagnóstico de alergia alimentar e medicamentosa. Estes procedimentos só
devem ser realizados em ambiente hospitalar,
geralmente em regime de hospital-de-dia, tendo
disponíveis os meios terapêuticos necessários para
a eventualidade de reacção sistémica, com a supervisão de especialistas experientes nesta área.
Na abordagem da alergia alimentar em idade
pediátrica, habitualmente transitória, as provas de
provocação, para além da finalidade diagnóstica,
são imprescindíveis para determinar o momento
em que se obtém a tolerância ao alimento; neste
caso, a calendario das provas deve ser feito tendo
em conta o quadro clínico apresentado, o conhecimento existente sobre a história natural da sensibilização ao alimento implicado, e a evolução
dos níveis de IgE específica sérica.
3. Provas de provocação por contacto: consistem
na provocação por contacto com o alergénio suspeito. Salienta-se a prova de provocação com
356
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
material contendo látex, habitualmente luva de
látex ou balão, que pode ser necessária em determinadas situações em que haja suspeita de alergia
ao látex, nomeadamente quando se torna necessário confirmar a existência de sintomas em doentes sensibilizados ao mesmo.
Outras provas de provocação específicas,
nomeadamente nasais e conjuntivais, podem ser
efectuadas com o alergénio suspeito, mas habitualmente a sua utilização é limitada a estudos de
investigação.
Exames complementares
de diagnóstico in vitro
IgE total
O doseamento da IgE total sérica é um teste de
baixas especificidade e sensibilidade no diagnóstico da doença alérgica. Para a generalidade dos
autores, e de acordo com estudos efectuados em
pares de gémeos, a síntese de IgE total terá um
determinismo essencialmente genético; a síntese
de IgE específica será fundamentalmente influenciada pela exposição ambiental. Apesar de intimamente relacionada com a doença alérgica, a determinação da IgE total sérica tem um interesse relativo quando avaliada isoladamente, podendo
estar elevada por várias razões, nomeadamente
nas parasitoses, na aspergilose pulmonar, na síndroma hiper-IgE e associada ao tabagismo.
A concentração de IgE total, relacionada com a
idade, aumenta progressivamente até aos 5 anos,
mantém-se sem grandes alterações até aos 15 anos,
para estabilizar cerca dos 20 anos. É um teste de baixo
custo e rápido. No entanto, o facto de uma
determinação de IgE total evidenciar valores normais
não significa que não haja aumento de alguma IgE
específica nem que seja excluída doença alérgica.
Alguns estudos prospectivos têm documentado para
este teste, um maior valor prognóstico do que
diagnóstico, nomeadamente na criança asmática.
Valores superiores à média +2 desvios-padrão
indiciam probalidade de 95% de atopia.
Para o doseamento de IgE total no sangue
utilizam-se métodos radio-imunológicos (PRIST e
RAST) e imuno-enzimáticos (ELISA).
Os níveis de IgE no cordão umbilical foram
propostos e utilizados como factor preditivo da
ocorrência de doença alérgica. Este entusiasmo
inicial não foi, no entanto, apoiado por estudos
mais recentes, revelando-se um método pouco
sensível; por outro lado não permite também prever o tipo de doença alérgica.
IgE específica
A identificação do alergénio suspeito, para além de
poder ser efectuada pelos testes cutâneos, pode
também ser efectuada por métodos in vitro, que
permitem determinar as concentrações de IgE
específica para um determinado alergénio. O
primeiro método desenvolvido para o doseamento
de IgE específica foi o RAST (Radio Allergo Sorbent
Test®). Desde então, os métodos têm-se desenvolvido progressivamente de modo a obter-se testes
cada vez mais sensíveis e específicos. Actualmente,
estão disponíveis dois métodos de determinação
de IgE específica, igualmente eficazes: UniCAP® da
Pharmacia Diagnostics (fase sólida) e Immulite“2000
da Diagnostic Products Corporation (alergénios líquidos). A calibração do método é muito importante e
deve ser uniforme, de modo a poder comparar-se
os resultados (Quadro 2).
A IgE específica não é um bom método de rastreio, sendo os respectivos custos muito elevados.
O doseamento de IgE específicas séricas deveria
estar reservado para uma avaliação mais diferenciada, tendo em conta a história clínica e o resultado
dos testes cutâneos. Esta determinação é extremamente importante em determinadas situações
(Quadro 3), nomeadamente: na monitorização de
imunoterapia específica; na alergia alimentar, para
controlo do correcto cumprimento da dieta e para
avaliar o grau de tolerância, diminuindo o risco de
provas de provocação positivas; e na suspeita de
alergia a venenos de himenópteros e penicilina,
alergénios com risco acrescido na realização dos
testes cutâneos (intradérmicos).
Os alergénios também se têm desenvolvido
quer em variedade, quer em qualidade, de modo
a garantir a inexistência de perdas de constituintes
essenciais durante o processo de fabrico, sendo
um bom exemplo desta evolução os alergénios recombinantes.
A pesquisa de IgE específica pelo método
Imunoblot permite saber qual ou quais são os epítopos contra os quais essas IgE são dirigidas.
Habitualmente mais usado em investigação, é
importante na caracterização do perfil de sensibi-
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica
357
QUADRO 2 – Resultados quantitativos e qualitativos de IgE específica
Resultados quantitativos (kUA/l)
< 0.35
0.35 a 0.70
0.71 a 3.50
3.51 a 17.50
17.51 a 50.0
50.01 a 100.0
> 100
Resultados semi-quantitativos (classes)
0
1
2
3
4
5
6
Resultados qualitativos
Ausente ou indetectável
Baixo
Moderado
Alto
Muito alto
Muito alto
Muito alto
QUADRO 3 – Testes séricos de IgE específica (in vitro)
Dermografismo ou doenças cutâneas, com limitação na interpretação dos testes cutâneos
Testes cutâneos duvidosos ou negativos com forte suspeita clínica
Alergénios com risco da realização de testes cutâneos (intradérmicos)
Avaliação de resultados da evicção alergénica / Controlo do grau de evicção do alergénio
Avaliação do grau de tolerância / Decisão de realização de provas de provocação
Monitorização da imunoterapia específica
lização alergénica, com implicações na selecção da
terapêutica específica e no estudo da reactividade
cruzada, neste caso com utilização de técnicas de
inibição.
Painéis de alergénios múltiplos
São testes de rastreio, constituidos por uma mistura
de vários alergénios definida pelo fabricante.
Existem painéis para os alergénios inaláveis,
AlaTOP® e Phadiatop®, e inúmeros painéis para
alergénios alimentares, dos quais os mais utilizados
na criança por possuirem leite e clara do ovo são o
Fx5® e o correspondente FP5® (Quadro 4). Tendo
em conta os valores de sensibilidade, especificidade
e valor preditivo negativo, consideramos estes
testes bons métodos de rastreio, podendo ser utilizados em consultas não especializadas. Os mesmos proporcionam uma informação global, qualitativa, em termos de resultado positivo/negativo.
Marcadores de inflamação
O estudo dos mediadores e da sua determinação
como marcadores de inflamação constitui um dos
campos florescentes da investigação imunoalergológica. A introdução de novas tecnologias permitiu o desenvolvimento de métodos para avaliação
da libertação de mediadores produzidos pelas células intervenientes na inflamação alérgica, incluindo: ECP (proteína catiónica dos eosinófilos); triptase; FAST (teste de activação de basófilos por citometria de fluxo); CAST (teste celular de estimulação antigénica); formas solúveis de moléculas de
adesão como ICAM-1 e VCAM-1; citocinas de perfil Th2 como IL-4 e IL-13. A sua utilização é habitualmente restrita a estudos de investigação, sendo
potenciais instrumentos para o diagnóstico, monitorização e prognóstico das doenças alérgicas.
Pela sua importância em termos clínicos, salienta-se a determinação da triptase sérica. A triptase
QUADRO 4 – Painéis de alergénios múltiplos
Alergénios Inaláveis
AlaTOP® 1
ácaros, pólens de gramíneas,
ervas e árvores, fungos, epitélios
Phadiatop® 2
de gato, cão e cavalo
FP5® 1
Alergénios Alimentares
leite, clara de ovo, bacalhau,
trigo, amendoim e soja
Fx5® 2
1
Diagnostic Products Corporation; 2Pharmacia Diagnostics
358
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tem valor diagnóstico de anafilaxia, pelo que o seu
doseamento terá importância no serviço de urgência, durante a reanimação ou mesmo no estudo de
casos fatais. A sua utilização poderá ainda ter interesse na monitorização de provas de provocação.
diferencial das causas de obstrução nasal fixa; e
por estudo imagiológico, nomeadamente tomografia computadorizada das fossas nasais e seios
perinasais nas formas de rinossinusite de difícil
tratamento médico.
Exames complementares
em situações específicas
Dermatite atópica
Os exames complementares de diagnóstico incluem a realização de testes cutâneos, e se necessário doseamento de IgE específicas, nomeadamente para aeroalergénios, particularmente
ácaros do pó, e alergénios alimentares. Nalgumas
situações poderá associar-se a realização de provas
de sensibilidade epicutâneas (testes empregando
adesivo ou patch). Nas formas mais graves de
eczema, poderá ter interesse a pesquisa de IgE
específicas para agentes infecciosos, bacterianos
(Staphylococcus aureus) e fúngicos (Pityrosporum
ovale e Candida albicans). Nos casos em que a suspeita de alergia alimentar é pertinente, deve proceder-se a dietas de exclusão e a provas de provocação oral para excluir ou confirmar o diagnóstico.
Asma
Os exames complementares de diagnóstico incluem a realização de testes cutâneos, para identificação dos alergénios implicados, e provas funcionais respiratórias, para quantificar as repercussões funcionais ao nível das vias aéreas. A
espirometria, incluindo a realizada em idade préescolar, avalia a existência e grau de obstrução
brônquica, bem como a sua reversibilidade após
inalação de broncodilatador; deve ser o exame de
primeira linha. A pletismografia corporal, mais
independente da colaboração do doente, permite
a determinação da resistência das vias aéreas e
dos volumes pulmonares, avaliando o grau de
insuflação pulmonar. O ideal na avaliação do
doente asmático será a realização regular destes
exames. Caso não seja possível, e apesar das limitações conhecidas, poderá efectuar-se a determinação seriada do débito máximo instantâneo
(DEMI) pela utilização do debitómetro (Peak Flow
Meter). O estudo funcional respiratório permite
confirmar o diagnóstico clínico, efectuar o diagnóstico diferencial em casos de dúvida, e determinar a gravidade actual da doença. A confirmação
do diagnóstico pode ser feita pela existência de
uma prova de broncodilatação positiva, variação
diurna do DEMI ≥20% ou uma prova de broncoconstrição positiva; na criança, a prova de broncoconstrição com maior especificidade para o diagnóstico de asma é a prova de esforço.
Alergia alimentar
A confirmação do diagnóstico clínico, empregando para além da realização dos testes cutâneos, e
se necessário pesquisa de IgE específica sérica, é
efectuada em regra por prova de provocação oral.
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Rinite alérgica
A realização de exames complementares de diagnóstico é habitualmente limitada aos testes cutâneos, e se necessário, à pesquisa de IgE específica
sérica; permitem confirmar o diagnóstico de rinite
alérgica, atópica, identificando os alergénios
implicados. Em situações mais complicadas, como
critério de exclusão, a avaliação poderá ser complementada por endoscopia nasal, no diagnóstico
reactividade cruzada – que implicações? Rev Port
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64
ASMA
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A asma, doença que foi definida em capítulos
anteriores, afecta muitas crianças e adultos em
todo o mundo; constitui um importante problema
de Saúde Pública, quer pela sua prevalência a
aumentar nos últimos anos, quer pelos custos
sociais e económicos que acarreta.
O impacte da doença na qualidade de vida das
crianças afectadas é considerável, devido a todas
as restrições físicas, emocionais e sociais que
muitas vezes lhe estão inerentes. Importa, assim,
reduzir ao mínimo tal impacte nas actividades
quotidianas.
Os custos directos relacionados com o tratamento farmacológico da asma correspodem apenas a uma pequena percentagem dos custos
globais da doença, estes muito mais afectados
pelos episódios de crise, pelos internamentos,
pelo absentismo escolar e laboral, ou pela própria
mortalidade relacionada.
Etiopatogénese
Trata-se de uma doença inflamatória crónica complexa, envolvendo múltiplas células (linfócitos,
mastócitos, eosinófilos, etc.) e mediadores celulares; as alterações inflamatórias presentes conduzem ao edema, à hipersecreção de muco, ao
aumento da contractilidade das vias aéreas, à
obstrução brônquica e à hiperreactividade das vias
aéreas, manifestadas pelos sintomas característicos
e bem conhecidos (tosse, dispneia, pieira, opressão
torácica). As consequências a longo prazo podem
levar à obstrução fixa das vias aéreas e/ou a fenómenos de remodelação, correspondente à cicatrização sequelar do processo inflamatório.
360
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A asma, doença multifactorial, depende da
interacção entre factores genéticos e ambientais,
iniciando-se as manifestações clínicas na idade
pediátrica num número muito considerável de
indivíduos. O aumento recente na prevalência das
doenças alérgicas em geral, e particularmente da
asma brônquica na criança, não poderá ser
explicado apenas por factores genéticos; reforça-se
assim o papel do ambiente, nas suas componentes
do interior e do exterior dos edifícios (Figura 1).
Por outro lado, diferentes prevalências em
populações submetidas a condições ambientais
semelhantes, realçam a importância dos factores
genéticos.
História natural e factores de risco
A história natural da asma em idade pediátrica é
também uma preocupação significativa, quer para a
família das crianças atingidas, quer para os próprios
clínicos que as seguem: Passará a doença com a
idade? Agravar-se-á? Melhorará? Qual será o efeito
do tratamento? Poderão existir alterações irreversíveis da função respiratória em idades precoces?
Estas questões frequentemente formuladas,
ficam habitualmente por responder, até porque
impera uma atitude demasiadamente negligente
da abordagem da doença asmática neste grupo
etário, associando-a quase invariavelmente a um
bom prognóstico clínico; os aspectos funcionais,
incluindo a sua avaliação, não são habitualmente
considerados. No entanto, a revisão de estudos
prospectivos demonstra que os sintomas tendem
a persistir durante a vida, particularmente quando está subjacente uma inflamação alérgica das
vias aéreas, apesar de serem previsíveis períodos
assintomáticos de duração variável. Acresce que a
mortalidade por esta doença, nas últimas duas
décadas, não evidenciou qualquer declínio,
atingindo particularmente adolescentes e adultos
jovens.
A existência de uma inflamação na criança
asmática desde a idade pré-escolar leva a ponderar a hipótese da existência de remodelação das
vias aéreas, transversal a todo o espectro de gravidade, constituindo argumentos a favor do desenvolvimento de sequelas respiratórias e indicando
a terapêutica anti-inflamatória precoce; efectivamente tem sido demonstrado que, mesmo em
lactentes asmáticos não tratados, as funções respiratórias degradam-se, confirmando que a inflamação crónica é prejudicial ainda antes da idade
escolar.
Como condicionantes do aumento de
prevalência da asma brônquica, particularmente
em idade pediátrica, estão actualmente bem documentados os efeitos de alguns alergénios, dos
poluentes (ex.tabagismo) e das infecções, bem
como dos factores genéticos, sociais e socioeconómicos.
Entre os factores de risco que têm sido identificados para a expressão da doença asmática na cri-
AMBIENTE
AMBIENTE
AMBIENTE
Transmissão Genética
AMBIENTE
AMBIENTE
AMBIENTE
Asma
brônquica
AMBIENTE
Hiperreactividade
brônquica
AMBIENTE
IgE total
IgE
específica
AMBIENTE
AMBIENTE
FIG. 1
A transmissão genética da propensão para asma, hiperreactividade brônquica e atopia ocorre de modo independente; chama-se a
atenção para a influência ambiental marcada.
CAPÍTULO 64 Asma
ança, alguns serão dificilmente susceptíveis de prevenção, nomeadamente os genéticos, contrastando
com os ambientais, passíveis de intervenção
(exposição alergénica, tabagismo e outros poluentes, regime alimentar), de cuja modulação podem
ser esperados ganhos significativos, nomeadamente
em termos de gravidade.
A assistência a crianças com doença grave, particularmente se sujeitas a internamento, deverá
ser cuidadosamente planeada. Actualmente no
Hospital de Dona Estefânia são internadas por
ano, apenas cerca de 10% daquelas que eram hospitalizadas por asma há 15 anos, traduzindo a
existência de: 1. um protocolo amplamente divulgado para o tratamento das agudizações; 2. a
referência sistemática dos casos mais preocupantes para consulta especializada e, finalmente,
3. a instituição de terapêutica anti-inflamatória,
incluindo as medidas de controlo ambiental precocemente, após avaliação clínica e formulação
diagnóstica.
Asma induzida pelo exercício
A asma induzida pelo exercício (AIE) define-se
como o aumento transitório da resistência das vias
aéreas resultante da broncoconstrição que ocorre
após esforço físico inerente a prática desportiva,
mas também facilmente desencadeável após situações fisiológicas como rir. Os sintomas de AIE,
semelhantes aos de outras formas da doença,
podem incluir tosse, pieira, dispneia, opressão
torácica ou cansaço que surgem durante e principalmente após cessar o exercício; estes sintomas
são de curta duração e acompanham-se de hiperinsuflação e hipoxémia arterial. A broncoconstrição
máxima ocorre geralmente 3 a 10 minutos após o
esforço físico, sendo habitual uma recuperação
espontânea num intervalo de 30 a 60 minutos.
A prevalência de AIE é variável, podendo ocorrer
nalgumas séries em cerca de 80% dos doentes
asmáticos; mais prevalente em idade pediátrica, é frequentemente causa de queixas e de frustração pelas
dificuldades na integração das actividades de grupo.
A gravidade da resposta broncoconstritora ao
exercício depende de vários factores, tais como da
intensidade do exercício, das condições climáticas
e da reactividade basal das vias aéreas. A magnitude da resposta dependerá do grau de controlo da
361
doença, do uso prévio de medicação anti-asmática
e do intervalo de tempo que decorreu desde um
episódio anterior de broncoconstrição induzida
pelo exercício, conceito conhecido como período
refractário. Em cerca de 50% dos asmáticos a
resposta broncoconstritora ao exercício é atenuada
se este for repetido dentro de 30 minutos. A gravidade da AIE pode também ser indirectamente
influenciada pela exposição a alguns factores, tais
como alergénios, poluentes e infecções víricas.
As actividades desportivas consideradas como
mais asmogénicas englobam os desportos que exigem altos níveis de ventilação, como a corrida de
fundo, o ciclismo, o futebol, o basquetebol, o raguebi, e modalidades praticadas em ambiente frio e
seco como vários desportos de Inverno, particularmente o esqui, o hóquei e a patinagem no gelo.
Relativamente à patogénese, os mecanismos
pelos quais a AIE ocorre, continuam ainda por
esclarecer. Actualmente, a desidratação da
mucosa brônquica, consequência da hiperventilação que ocorre durante o exercício, constitui a
explicação etiopatogénica mais aceite. O mecanismo pelo qual esta perda de água pela mucosa desencadeia a broncoconstrição, resulta provavelmente de uma conjugação de dois mecanismos
anteriormente propostos como distintos: o estímulo térmico e o estímulo osmótico (Figura 2).
O objectivo primordial do tratamento é prevenir, ou pelo menos atenuar, a resposta broncoconstritora ao exercício de modo que não constitua restrição à escolha de uma actividade física ou
limitação ao nível de desempenho. Para tal,
importa, em primeiro lugar, conseguir o melhor
controlo possível da asma.
Medidas não farmacológicas como mudar as
condições do ar inalado quando a actividade
ocorre em espaços fechados, evitar fazer exercício
em ambientes frios e secos, limitar a exposição a
poluentes, têm-se revelado benéficas.
Critérios de gravidade e classificação
Na classificação da gravidade, são consideradas as
propostas do Global Initiative for Asthma (GINA) e
do III International Pediatric Consensus Statement
on the Management of Childhood Asthma.
Segundo o grupo GINA, a classificação de
gravidade estende-se por “degraus” de 1 a 4:
362
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Exercício físico
Hiperventilação
Estímulo térmico
Estímulo osmótico
Hiperémia / Edema
Desgranulação
de mastócitos
Libertação de
neuropéptidos
Libertação de mediadores
(histamina, prostaglandinas, leucotrienos)
Broncoconstrição
FIG. 2
Mecanismos etiopatogénicos na AIE.
primeiro degrau, ou asma intermitente, é o que
corresponde ao indivíduo que apresenta sintomas
em menos que uma ocasião por semana (ou sintomas nocturnos < 2 vezes/mês) e cuja função
pulmonar apresenta valores superiores a 80% do
valor teórico previsto; o segundo degrau corresponde à asma persistente ligeira, em que existem sintomas diurnos mais do que uma vez por
semana, mas menos do que uma vez por dia (ou
sintomas nocturnos > 2 vezes/mês), encontrandose a função respiratória igualmente com valores
superiores a 80% do previsto; o terceiro degrau, ou
asma persistente moderada, descreve-se quando
os sintomas são diários, afectando a actividade
diária (ou sintomas nocturnos > 1 vez/semana),
ou estando a função respiratória entre 60 e 80% do
valor teórico previsto; finalmente, no quarto
degrau, asma persistente grave, os sintomas são
contínuos e a actividade física muito limitada (os
sintomas nocturnos são também muito frequentes), encontrando-se a função respiratória
com valores inferiores a 60% do previsto.
É de referir que a existência de, pelo menos,
um critério de gravidade (sintomas diurnos, nocturnos ou provas funcionais respiratórias) coloca
o doente nesse patamar de gravidade. No caso de
existirem crises graves, mesmo que pouco frequentes, deverá ser a criança classificada como
tendo asma persistente moderada.
Na classificação do III Consenso Pediátrico,
quanto à morbilidade a longo prazo da asma
infantil, considera-se: asma episódica infrequente – episódios agudos menos do que 1
vez/mês, com um mínimo de “pieira” após exercício prolongado, sem sintomas interepisódios e
com função respiratória normal entre eles; asma
episódica frequente – episódios agudos mais frequentes (mais que 1 vez/mês e menos do que 1
vez/semana), com pieira após exercício moderado mas que pode ser prevenida por β2-agonistas e
com função respiratória normal (ou próximo do
normal) entre os episódios agudos; asma persistente – episódios agudos frequentes (> 1 vez/semana), requerendo entre eles a utilização de β2agonistas mais do que 3 vezes/semana (devido a
sintomas nocturnos ou opressão torácica matinal)
e com pieira após exercício ligeiro; a função respiratória está geralmente alterada, mesmo intercrises.
Quanto à classificação dos episódios agudos
de asma, considera-se: asma ligeira – tosse e
pieira audível, mas sem diminuição da actividade
física, sem aumento da frequência respiratória,
sem cianose, permitindo pronunciar frases de relativa extensão e não interferindo na actividade
escolar; função respiratória acima de 75% do
esperado; melhorando espontaneamente ou com
doses habituais de β 2-agonistas; asma moderada
– evidenciando o uso dos músculos acessórios,
aumento da frequência respiratória, restrição da
marcha, e apenas permitindo pronunciar 3 a 5
palavras seguidas; interferindo na frequência
escolar; necessitando de maiores doses de β 2-agonistas e, com frequência, também de corticóides
orais; asma grave – cianose manifesta, dificuldade
respiratória marcada (por vezes já sem pieira
audível) só permitindo pronunciar 1 a 3 palavras;
incapacidade na marcha, com resposta débil aos
β2-agonistas; necessitando de monitorização das
saturações em oxigénio, oxigenoterapia, e de
cuidados hospitalares.
CAPÍTULO 64 Asma
Nalguns centros determina-se a taxa de NO
expirado (FENO), marcador da inflamação na
asma, o que poderá contribuir não só para o diagnóstico, mas igualmente como meio de controlar
a medicações instituídas.
A Figura 3 mostra uma radiografia do tórax
(póstero-anterior e perfil) uma criança de 8 anos
com uma crise de asma: Sinais hiperinsuflação
pulmonar (enfisema), horizontalização das costelas, abaixamento do diafragma e de acentuação do
retículo peribrônquico.
Prevenção e tratamento
No âmbito da actuação preventiva e terapêutica,
importa realçar pontos fundamentais a inquirir e
valorizar na relação entre sintomas e diagnóstico,
especialmente na criança em idade pré-escolar:
1. Episódios recorrentes de pieira?
2. Tosse irritativa nocturna?
3. Tosse ou pieira após exercício?
4. Tosse, pieira, opressão torácica após exposição a aeroalergénios?
5. Infecções das vias superiores “que descem
aos brônquios”?
6. Resultado da resposta ao tratamento?
Em relação aos factores de exacerbação importa abordá-los pela sua frequência: alergénios e
FIG. 3
Padrão radiográfico do tórax (PA) de asma com enfisema
(NIHDE).
363
infecções respiratórias víricas; exercício; alterações
climáticas; poluentes; alimentos, aditivos e fármacos.
Importa ainda salientar em relação ao início e
persistência de sintomas, que na maioria dos
casos a sibilância recorrente nos primeiros anos de
vida é transitória, com bom prognóstico; no entanto, a maioria dos casos de asma grave começa nos
primeiros anos de vida.
Para o controlo da maioria das situações clínicas de asma, importa dominar aspectos relacionados com evicção alergénica e farmacoterapia,
englobados num programa educativo e de promoção de saúde que será complexo e condicionado à gravidade da doença.
1. Controlo ambiental – evicção alergénica
Se o controlo ambiental para alergénios do
exterior dos edifícios se revela muito difícil (ex.
pólens), já algumas medidas visando o interior da
residência podem revelar-se essenciais.
• Ácaros domésticos – A sensibilização relaciona-se com os níveis e com a duração da
exposição. A redução da concentração de
alergénios influencia positivamente a evolução
clínica.
– Medidas:
Métodos de barreira ou oclusivos – capas de
colchão e das almofadas, idealmente aplicadas em
colchões novos ou recentes (impede a colonização); existem capas permeáveis e impermeáveis
ao ar e ao vapor de água; provavelmente constitui
a medida isolada mais eficaz (essencial).
Lavagem da roupa da cama, idealmente a mais de
55ºC; existem também capas para edredão, no
caso de não ser possível a sua lavagem (essencial).
Remover peluches da cama / lavagem regular
(semanal a mensal), a 60ºC, dos que permanecerem (essencial).
Remover mobiliário acolchoado e alcatifas, particularmente se antigas, preferindo pavimentos de
madeira, sintéticos ou aplicação de alcatifas
laváveis. Evitar livros no quarto (desejável).
Aspiração semanal com dispositivo apropriado
(aspirador com filtro de alta eficiência – high-efficiency particulate air - HEPA).
Limpar o pó com pano húmido (desejável).
Redução da humidade relativa – desumidificadores e aumento da ventilação (desejável).
364
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Acaricidas – pouco relevantes em locais muito
infestados, sendo considerado discutível o seu
interesse clínico. Indicados no pavimento se não
for possível retirar alcatifas (desejável).
• Animais domésticos ou de companhia – A
exposição mantida associa-se a maior gravidade e,
a exposição aguda, relaciona-se com agudizações.
– Medidas:
Não ter animais de companhia ou retirá-los da
residência (eficácia comprovada); de referir que o
contacto também pode ocorrer noutras habitações
ou mesmo no ambiente escolar. O benefício pode
não ser imediato (níveis de alergénio podem
reduzir-se progressivamente até periodo de 6
meses), mas será tanto mais rápido se associado a
outras medidas (aspiração). Nos casos clínicos de
sensibilização ao gato, nenhuma outra medida, se
o animal estiver presente, poderá influenciar significativamente a exposição alergénica.
Se o animal permanecer:
Lavagem do(s) animal(is), permitindo reduzir
transitoriamente (uma semana) os níveis de
alergénios. Filtragem do ar (filtros HEPA ou ionizadores colocados no quarto de dormir).
Aspiração regular (aspirador com filtro HEPA).
Aplicação de capas no colchão e na almofada.
Remoção de reservatórios de alergénios (alcatifas,
carpetes, estofos).
Limitar a circulação dos animais nos quartos de
dormir; porta do quarto sempre fechada.
• Baratas – Factor de risco de gravidade clínica, incluindo agudizações. Muito difícil a erradicação, particularmente em ambientes urbanos.
– Medidas:
Inspecção e identificação dos insectos, permitindo
prever locais principais de infestação.
Localização e erradicação de fontes de alimentos e
de água.
Insecticidas, permitindo reduzir a população de
baratas (exterminação) embora se mantenham os
alergénios.
Limpeza da casa, não deixando restos de comida
acessíveis, aspiração profunda e lavagem após
aplicação das medidas anteriores. Há que ter
cuidado com as condutas de lixo.
• Fungos – A contaminação é habitualmente
efectuada do exterior através das janelas (ex.
Alternaria), embora alguns fungos possam ser predominantemente encontrados dentro dos edifícios.
– Medidas:
Remover ou lavar materiais contaminados –
tapetes, mobiliário, papel de parede. Aplicação de
fungicidas.
Prevenção da contaminação do exterior – fechar
janelas; recurso a ar condicionado (caro).
Controle da humidade relativa através da utilização de desumidificadores, aumento da ventilação
(atenção às cozinhas e salas de banho).
Uso de filtros de alta eficiência – filtração do ar e
aspiração (HEPA).
Secar bem as roupas antes de serem guardadas.
Evitar plantas nos quartos de dormir.
2. Tratamento farmacológico
Nesta alínea procede-se à descrição dos principais
fármacos utilizados no tratamento da asma e dos
diversos esquemas de tratamento de acordo com
os quadros clínicos (como se combinam os fármacos em função do contexto clínico e em situações
específicas.
• Fármacos
– β2 -agonistas:
Os β2 – agonistas são os broncodilatadores mais
potentes, actuando por estimulação dos receptores
β-adrenérgicos. O Quadro 1 descreve os efeitos dos
β2 -agonistas em diferentes órgãos e sistemas.
Na pratica clínica são utilizados fundamentalmente dois tipos destes agonistas:
1) de curta acção, como o salbutamol (albuterol),
QUADRO 1 – Efeitos principais dos β2-agonistas
em diferentes órgãos/sistemas
Tecido
Vias aéreas
Resposta
Relaxamento músculo liso – broncodilatação
Aumento dos movimentos ciliares
Aumento da secreção de muco
Inibição da desgranulação mastocitária
Coração
Aumento da frequência cardíaca
Vasos
Vasodilatação
Aumento da permeabilidade vascular
Efeitos
metabólicos
Gluconeogénese
Hipocaliémia
Aumento da produção de lactato
CAPÍTULO 64 Asma
365
QUADRO 2 – β2-agonistas
• Broncodilatadores mais potentes, de primeira escolha no serviço de urgência
• Via inalatória é a mais eficaz
• Início de acção quase imediato
• Efeitos secundários mínimos
Medicamento
Salbutamol
(sol. respiratória)
1 ml = 0,5 mg
Dose
0,03ml/kg/dose (0,15 mg/kg) + SF
(mínimo de 0,3 ml e máximo de 1 ml)
Frequência
20/20 min
Observações
0,3 mg/kg/hora, até 30mg/hora
Nebulização contínua
Monitorização dos efeitos
secundários
Limitação da dose pela
monitorização dos efeitos
secundários
Salbutamol
50 µg/kg/dose (máx. 10 puffs = 1.000 µg)
(+ câmara expansora)
intervalo de 30 a 60 segundos
pMDI: 100 µg/puff
entre cada puff
20/20 min
Procaterol
(sol. respiratória)
1 ml = 100 µg
2/2 horas
Procaterol
(+ câmara expansora)
pMDI = 10 µg/puffs
< 20 kg: 0,3 ml
> 20 kg: 0,5 ml
Na criança não existem estudos
< 12 anos: 1 puffs
>12 anos: 2 puffs
2/2 horas
controlados dose/resposta
Puff ◊ insuflação sob pressão ou pressurização
procateral, terbutalina, fenoterol, etc..
Têm um início de acção rápida, em poucos minutos, atingindo o maximo de actividade cerca de 6090 minutos após administração por via inalatória.
Os seus efeitos duram cerca de 4-6 horas, sendo o
mais relevante o relaxamento do músculo liso; são
o tratamento de primeira linha nas crises de
asma/agudizações (Quadro 2)
2) de acção prolongada, como formoterol e o
salmeterol com efeito broncodilatador que dura
cerca de 12 horas, aprovados para crianças acima
dos 4-5 anos. O formoterol tem um ínicio de acção
mais rápido (1-3 minutos após inalação) do que o
salmeterol (cerca de 10-20 minutos).
Ao cabo de 30 minutos a sua acção é comparável
à do salbutamol ( de curta acção).
Estes farmacos não devem ser usados em
monoterapia; como regra, estão indicados em
associações a corticóides quando a corticoterapia
inalada em dose equivalente a 800μg por dia de
dipropionato de beclometasona não é suficiente
para reverter os sintomas.
Em crianças com idade superior a 6 anos a
dose recomendada de formoterol é 4,5μg e a de
salmeterol – 50μg (ver adiante)
– Corticóides:
Os corticóides, inalados ou sistémicos, são
complemento essencial para o controlo do proces-
QUADRO 3 – Equivalência de doses de corticóides inalados em idade pediátrica
Fármaco
Beclometasona
Budesonido
Fluticasona
Doses baixas
100 – 400 µg
100 – 200 µg
100 – 200 µg
Doses moderadas
400 – 800 µg
200 – 400 µg
200 – 500 µg
Doses elevadas
> 800 µg
> 400 µg
> 500 µg
366
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Corticosteróides
• Anti-inflamatórios com papel reconhecido no controlo dos processos fisiopatológicos da asma (↓ morbilidade e mortalidade)
• Melhoria da resposta aos agonistas β2 (actuação a nível dos receptores)
• Via de administração sistémica
• Início de acção em 2 a 8 horas
• Efeitos secundários (raros durante cursos terapêuticos curtos até 3 dias)
Medicamento
Metilprednisolona
Prednisolona
Dose
1 a 1,5 mg/kg/dose
2 a 2,5 mg/kg/dose
so inflamatório subjacente às agudizações. O
Quadro 3 discrimina os corticódes inalados mais
empregues e respectivas doses.
No Quadro 4 são referidas as doses de metilprednisolona e prednisolona por via sistémica
(tratamento de curta duração).
– Anticolinérgicos:
O brometo de ipratrópico, derivado sintético
da atropina, é o anticolinérgico actualmente mais
empregue como broncodilatador.
Comparativamente ao salbutamol, o brometo
de ipratrópico tem um início de acção mais lento,
com efeito máximo cerca de 60 minutos após
inalação, durando a sua acção 4 a 8 horas.
O Quadro 5 descreve a posologia (aerossol e
nebulização).
Os anticolinérgicos têm a sua indicação em
associação aos β2-agonistas nas agudizações moderadas a graves, ou em alternativa aos últimos se
existir intolerância a estes fármacos.
– Xantinas:
As teofilinas são cada vez menos utilizadas,
pois a um efeito broncodilatador menos potente,
associa-se a probabilidade de ocorrência de efeitos
secundários numa percentagem considerável de
Frequência
Até 4/4 horas
Até 4/4 horas
Observações
Máximo 48 mg/dose EV ou oral
Máximo 60 mg/dose EV ou oral
casos; a sua indicação fica reservada para quando
existe insucesso no tratamento com agonistas β2.
Trata-se de fármacos rapidamente absorvidos
por via oral, rectal ou parentérica, atingindo níveis
séricos máximos cerca de 2 horas após a administração.
A dose recomendada para crianças com mais
de 6 meses é 10mg/kg/dia até dose máxima inicial de 300 mg/dia; a dose pode ser aumentada de
3-3 dias até 16 mg/kg/dia (600mg/dia).
A “janela” terapêutica é estreita (5-15μg/ml);
obtém-se broncodilatação a partir de concentração
sérica de 5μg/ml.
– Antagonistas dos receptores dos lencotrienos:
Para além do seu efeito broncodilatador, aditivo ao dos β-agonistas, estes fármacos têm ainda
acção anti-inflamatória.
Em Portugal estão comercializados: a) Montelucaste para crianças com idade superior a 2 anos
(4mg/dia entre 2 e 5 anos, e 5mg/dia para >5
anos) em dose unicas diária, oral; b) Zafirlucaste
para > 12 anos em 2 doses diárias de 20mg por via
oral.
– Cromonas:
A utilização de cromonas (por ex. cromoglica-
QUADRO 5 – Brometo de ipratrópio: posologia
Via
Neonatal
Aerossol
Nebulização
Igual a < 1 ano
Idade
1 mês – 2 anos
2 – 12 anos
até 120 microgramas
< 1 ano: 125µg
> 1 ano: 250µg
< 5 anos: 250µg
> 5 anos: 500µg
12 – 18 anos
500µg
Frequência
(nº tomas/dia)
4-6
Dose/nebulização
(pode ser repetida
entre cada 2/2 ou 6/6horas)
CAPÍTULO 64 Asma
to de sódio) por via inalatória na terapêutica da
asma tem sido baseada essencialmente no seu
efeito (broncoprotector) por inibição da desgranulação mastocitária.
Podem ser alternativa à corticoterapia nalguns
casos de asma persistente ligeira.
É habitualmente administrada por pMDI em 2
inalações sucessivas (5mg cada) 4 vezes/dia, cerca
de 30 minutos antes do exercício físico ou da
exposição ao alergénio.
Existe também na forma de pó seco.
– Omalizumab:
Nalguns centros, nos doentes com formas
ligeiras a moderadas, e idade superior a 12 anos,
começou a utilizar-se um anticorpo monocolonal
que, ligando-se às IgE, previne a ligação destas
aos respectivos receptores, o que terá interesse nas
respostas alérgicas medidas por IgE (por ex. por
certos aeroalergénios) com fraca resposta aos corticóides orais ou inalados.
• Esquemas de tratamento
A Figura 4 descreve o esquema de tratamento
da asma na agudização.
No Quadro 6 apresenta-se a terapêutica
recomendada pelo grupo GINA (Global Initiative
Crise
ligeira
Crise
moderada
Crise
grave
β2 agonistas de curta acção
Corticóides IN
vs sistémicos
+ Corticóides sistémicos…
Anticolinérgicos
Teofilinas
FIG. 4
Asma e tratamento na agudização: enquadramento dos
fármacos. O esquema de actuação baseia-se fundamentalmente
na utilização de β2-agonistas inalados e corticóides sistémicos
para as situações com insuficiente controlo. Os anticolinérgicos
em associação com os beta2-agonistas devem ser reservados
para as situações de maior gravidade. As teofilinas em perfusão
raramente estão indicadas (IN = inalado).
367
for Asthma) para o tratamento da asma em idade
pediátrica.
Na abordagem da asma persistente ligeira, que
se controla com monoterapia, está largamente
demonstrado que o grupo farmacológico mais
benéfico no controlo clínico e funcional da doença
corresponde aos corticosteróides inalados, sendo
recomendados como tratamento de primeira linha
(equivalência de doses representada no Quadro
3). A utilização de antileucotrienos orais pode
também ser considerada como opção inicial em
monoterapia, embora seja de esperar uma percentagem inferior de sucesso terapêutico.
Quando os sintomas não se controlam com
doses baixas a medianas de corticóides inalados,
tende-se actualmente para uma utilização combinada de fármacos, permitindo um melhor controlo da doença, com a utilização de doses inferiores de cada um deles; isto é, obtém-se uma elevada eficácia sem correr o risco de efeitos adversos
significativos.
Os diferentes agentes vão actuar a diferentes
níveis, complementando a sua acção.
Em função da gravidade do quadro clínico,
poderá proceder-se a associação dos seguintes fármacos:
– Corticosteróides e agonistas β2-miméticos:
Na presença de β2-agonistas, há activação e
translocação do receptor citosólico dos glicocorticóides e aumento do efeito dos corticóides na
apoptose dos eosinófilos. Por outro lado, os corticóides aumentam a síntese dos receptores β2.
Estas acções complementares, entre outras, explicam o melhor resultado obtido quando se utilizam
ambos os fármacos.
Vários estudos demonstram que a adição de
um β2-agonista de longa acção ao corticóide permite reduzir a dose deste último, mantendo-se a
doença controlada. Mais recentemente esta combinação de fármacos num só dispositivo, veio permitir atingir um melhor controlo do asmático,
aumentando a adesão ao tratamento, e melhorando a qualidade de vida; demonstrou também que
com as combinações de fármacos disponíveis
actualmente, num só dispositivo, se consegue um
início de acção mais rápida, sendo esta também
superior após várias semanas de tratamento, particularmente em termos de ganhos de função respiratória.
368
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 6 – Fármacos recomendados de acordo com a gravidade escalonada da asma
Gravidade
Degrau 1: Intermitente
Medicação diária controladora
Nenhuma
Outras opções
• Nenhuma
Degrau 2: Persistente ligeira
Corticóide inalado, doses baixas
• Teofilina de libertação lenta ou
Degrau 3: Persistente moderada
Corticóide inalado, doses moderadas
• Corticóide inalado, doses moderadas
e teofilina de libertação lenta, ou
• Corticóide inalado, doses moderadas e
agonista-β2 inalado de acção prolongada
ou
• Corticóide inalado, doses elevadas ou
• Corticóide inalado, doses moderadas
e antileucotrieno
• Omalizumab (>12 anos)
Degrau 4: Persistente grave
Corticóide inalado, doses elevadas
e, se necessário, um ou mais dos
seguintes:
– Teofilina de libertação lenta
– Antileucotrieno (por ex.montelucaste)
– β2 -agonista inalado de acção prolongada
– Corticóide oral
Em todos os degraus:
• Medicação de alívio: β2 -agonista inalado de acção rápida quando necessário, nunca mais de 3-4 vezes por dia.
• Uma vez atingido o controle e mantido por pelo menos 3 meses, deve ser tentada uma redução gradual da terapêutica,
procurando-se assim identificar a terapêutica mínima para controlar os sintomas do doente.
* As crianças com asma intermitente, mas com crises graves, devem ter tratamento de controle como está indicado para
os casos de asma persistente moderada.
Está provado que as associações num só dispositivo conseguem ganhos superiores, quer na
precocidade do controlo sintomático e funcional,
quer no controlo a longo prazo da doença asmática, assumindo-se como uma excelente opção de
tratamento na asma moderada a grave, com uma
boa relação custo-benefício, melhorando a adesão
ao tratamento.
No mercado nacional há duas associações de
corticóides inalados e de broncodilatadores β2agonistas de acção, prolongada em inaladores de
pó seco, em duas dosagens (4.5 ou 9μg de formoterol e 80, 160 ou 320μg de budesonido), ou em
três combinações de doses de salmeterol e de fluticasona (50μg de salmeterol e 100, 250 ou 500μg
de fluticasona), permitindo a adaptação da prescrição à gravidade das queixas do doente, var-
iável em termos da dosagem contida no inalador
ou do número de inalações efectuadas. Existem
igualmente disponíveis mais três dosagens de salmeterol e de fluticasona em inalador pressurizado
(pMDI), permitindo o seu uso associado a
câmaras de expansão, em crianças nas quais não é
possível uma adequada colaboração com os inaladores de pó seco, isto é, em idade pré-escolar
(pMDI de 25/50, 25/125 e 25/250μg de salmeterol/fluticasona).
– Corticosteróides e antagonistas dos leucotrienos:
Os antagonistas dos leucotrienos são fármacos
que, como foi referido antes, podem inibir a síntese dos leucotrienos ou impedir a sua ligação aos
receptores. Actuam, tal como os corticóides, no
processo inflamatório, embora a um nível dife-
CAPÍTULO 64 Asma
rente, o que leva a que a associação destes dois fármacos seja apelativa. Vários estudos confirmam o
benefício da associação de corticosteróides a
antagonistas dos receptores dos leucotrienos, permitindo o uso de doses baixas de corticóides, particularmente na asma moderada.
– Corticosteróides e agonistas β2-miméticos
versus corticosteróides e antagonistas dos
leucotrienos:
Quando a terapêutica com corticóides inalados
em doses baixas a moderadas não é suficiente
para se atingir o controlo da doença, a associação
com leucotrienos ou com agonistas β2 adrenérgicos de acção prolongada é uma opção eficaz. No
entanto, levanta-se a questão de qual será a combinação que produz melhores resultados.
Em conclusão, no tratamento da asma brônquica persistente, quando não se obtém o controlo
com a monoterapia, nomeadamente com o recurso a corticóides inalados, é preferível usar a combinação de doses baixas de corticosteróide inalado
e β2-agonistas de acção prolongada do que usar
doses elevadas de corticosteróide inalado.
Intermitente
Ligeira
persistente
Moderada
persistente
Grave
persistente
β2 agonistas de curta acção SOS
Corticóides inalados
β2 agonistas de acção prolongada
Antileucotrienos / Cromonas / Teofilinas
369
É útil a combinação de antagonista dos leucotrienos e corticosteróide inalado com vista à
redução da dose deste último, necessária para o
controlo clínico da asma.
Entre as combinações corticosteróide inalado e
β2-agonista de acção prolongada versus antagonista dos leucotrienos e corticosteróide inalado, a
primeira é mais eficaz e de menor custo. A combinação dos broncodilatadores mais efectivos com
os anti-inflamatórios de primeira escolha na maioria dos asmáticos (corticóides inalados), resulta
claramente numa formulação eficaz em todo o
espectro da asma persistente moderada a grave, e
ainda nas formas ligeiras.
De salientar que o tratamento das agudizações
asmáticas moderadas a graves pressupõe o uso de
outras abordagens terapêuticas, quer em ambulatório, quer no âmbito dos serviços de urgência.
3. Terapêutica inalatória
Constitui actualmente o pilar fundamental no
tratamento de várias doenças respiratórias, sendo
consensual a escolha da via inalatória como preferencial para administração de fármacos no tratamento da asma. Comparada com a via sistémica,
tem uma acção mais rápida, utilizando doses
menores. Consegue-se efeitos terapêuticos muito
significativos com escassos efeitos secundários.
No entanto, em idade pediátrica o reduzido calibre da via aérea, os fluxos inspiratórios baixos, a
respiração nasal, os volumes correntes pequenos,
as frequências respiratórias elevadas e a colaboração, por vezes deficiente, entre muitos outros
factores, limitam frequentemente o sucesso da terapêutica inalatória.
Durante uma agudização de sintomas, para
além da idade, pode também estar comprometida
a utilização de inaladores que fazem depender a
FIG. 5
Asma e controlo a longo prazo: enquadramento dos fármacos.
Os broncodilatadores de curta acção estão indicados em todos os
degraus de gravidade para o tratamento das agudizações.
Os corticóides inalados são o grupo mais eficaz para o controlo
da maioria das crianças asmáticas. Na asma moderada a grave a
adição de outros grupos de fármacos permite o
controlo clínico e funcional sem efeitos secundários significativos.
Os fármacos antileucotrienos podem ser uma alternativa em
monoterapia na asma ligeira, tendo de ser associados a
outros fármacos para o controlo da asma moderada e grave.
Para melhor compreensão do texto são referidas as seguintes definições:
Aerossol – é um sistema de partículas sólidas ou líquidas que podem permanecer dispersas num gás. Relativamente aos métodos de produção de
aerossóis fundamentalmente existem 4 tipos: os nebulizadores, os pMDI, os
pMDI+ câmaras expansoras e os DPI.
Inalação – é o movimento de entrada do ar ambiente, através das vias respiratórias para os pulmões durante a respiração.
Nebulização – é um método de produção de aerossóis que permite transformar um medicamento líquido (solução ou suspensão) numa suspensão de
pequenas partículas líquidas no ar, permitindo que estas cheguem aos pulmões. Câmara expansora – é um dispositivo que se associa aos inaladores
pressurizados de dose fixa (pressurized metered – dose inhaler pMDI), de
forma e volume variado, com válvulas unidireccionais, funcionando como
reservatório, de modo a permitir ultrapassar a necessidade técnica da coordenação mão-pulmão.
370
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
disponibilidade das partículas do débito inspiratório.
Assim, para rendibilizar a extrema rapidez de
actuação e a eficácia desta via de administração,
particularmente durante a crise, é importante que
se respeitem algumas condicionantes relacionadas, quer com a idade da criança, quer com
os dispositivos disponíveis.
– Idade da criança - nos primeiros dois anos
de vida, a terapêutica broncodilatadora ou antiinflamatória indicada por via inalatória na
agudização, terá de ser efectuada através de nebulizador (pneumático ou ultrassónico) ou com
aerossol de dose calibrada (Pressurized Metered
Dose Inhalers – pMDI) associado a câmara de
expansão, sempre com o uso de máscara.
A partir do terceiro ano de vida, logo que a
colaboração o permita, deverá a inalação ser efectuada com o uso de peça bucal, pois a inalação do
fármaco através das cavidades nasais, (ou apenas
o facto de haver respiração nasal com a utilização
de máscara), pode reduzir a dose que chega ao
pulmão para menos de metade. Se fôr possível a
colaboração com a peça bucal, há que preferir o
uso de câmaras de expansão (quer nos serviços,
quer a nível das urgências e enfermarias).
A partir dos 6 a 8 anos, por vezes antes, é já
possível a utilização dos inaladores de pó seco,
uni ou multidose (Dry Power Inhaler – DPI),
para o tratamento dos sintomas. No entanto, em
crianças que estão familiarizadas com câmaras de
expansão, pode manter-se esta técnica de administração durante toda a idade escolar, particularmente no domicílio. Nos serviços de urgência hospitalares, com estas crianças deve efectuar-se terapêutica com inaladores do tipo pMDI associados a
câmaras de expansão.
– Tipos de dispositivos para aerossolização –
Como foi referido, os aerossóis utilizados na terapêutica da asma são produzidos por três tipos
básicos de instrumentos de inalação, nomeadamente os nebulizadores, os pMDIs e os DPIs.
Os nebulizadores são aparelhos geradores de
aerossóis a partir de soluções ou suspensões aquosas. Difíceis de transportar, são muitas vezes úteis
quando os outros dispositivos são inapropriados,
podendo transformar em aerossol, virtualmente,
qualquer substância líquida. Podem ser alimentados por ar comprimido, ou ultrassónicos; neles
deve considerar-se que a dose colocada no dispositivo, aparentemente elevada (carga do nebulizador) sofre perdas a vários níveis, nomeadamente: a dose que permanece no nebulizador
(“volume morto”- geralmente cerca de 0.5 ml);
perdas através do terminal do tubo; impacte de
partículas a nível interno; e as perdas durante a
expiração. Nestes aparelhos a geração de partículas não depende dos fluxos inspiratórios. Para os
pMDI a energia é dada pelo próprio dispositivo,
enquanto para os DPIs esta energia tem de ser
fornecida pelo doente através de um fluxo inspiratório que retira o pó do dispositivo, tornando
problemática a sua utilização em episódios sintomáticos, mesmo em crianças que com eles é realizada a sua terapêutica de controlo.
Na terapêutica da crise de asma nos serviços
de urgência devem ser usados, sobretudo, os
nebulizadores pneumáticos, mais baratos e permitindo o uso de um adaptador bucal ou máscara.
O nebulizador pneumático pode ser, ou não, reutilizado. Os dispositivos ultrassónicos podem produzir partículas menores, são silenciosos e actualmente bastante portáteis, mas não trazem benefício clínico adicional; existe mesmo um risco acrescido de infecções nosocomiais.
Para nebulização de broncodilatadores podem
ser utilizados indistintamente aparelhos pneumáticos ou ultrassónicos (soluções); para a nebulização de corticóides (fluticasona ou budesonido) os
únicos aparelhos a utilizar são os pneumáticos
(suspensões). Este factor poderá ser muito importante no caso de se recomendar a compra de um
aparelho gerador de aerossóis.
O tempo ideal para uma nebulização será de 8
a 10 minutos (factor que condiciona o volume a
nebulizar, colocado no dispositivo; por isso não
podem existir “receitas” universais, por exemplo,
do volume de soro fisiológico a adicionar). A frequência das nebulizações poderá ser de 20/20 ou
de 30/30 minutos.
A associação do inalador pressurizado com
uma câmara de expansão, constitui um meio de
eleição para a administração de terapêutica quer
na crise, quer como terapêutica de controlo, em
idade pré-escolar. Aumenta a deposição no pulmão, diminui a deposição na boca e vias aéreas
superiores à custa de uma maior deposição na
câmara, sendo uma alternativa portátil à utiliza-
CAPÍTULO 64 Asma
ção dos nebulizadores. A respiração pode ser feita
em volume corrente, durante cerca de 20 a 30
segundos, após cada pressurização (puff).
Nas crises e, em ambulatório, os DPIs são
habitualmente indicados nas crianças que já os
utilizam quotidianamente (> 6 a 8 anos). Os mesmos não devem ser utilizados nos serviços de
saúde como dispositivos locais usados no tratamento de crise por levantarem também problemas
na reutilização (perigo de contaminação).
A principal vantagem em relação aos pMDI
consiste no facto de não ser necessária a coordenação mão-pulmão, tornando a técnica mais fácil
(embora o uso de pMDI isolados nunca deva ser
recomendado em idade pediátrica; no futuro a
existência de dispositivos accionados pela
manobra inspiratória, do tipo autohaler, poderá
modificar esta conduta). Exigem uma inspiração
forçada para uma boa deposição pulmonar, com
um fluxo inspiratório relativamente alto (débito
inspiratório superior a 30L/min) o que não é possível em crianças pequenas. São igualmente
portáteis e discretos, não contendo propelentes
(contêm apenas lactose) e permitindo um melhor
controlo da quantidade do medicamento gasto e
do restante.
Os dispositivos multidose são os mais utilizados por serem mais práticos. Menos usados, os
sistemas unidose apresentam o medicamento em
forma de pó, contido numa cápsula, que é perfurada ou partida antes da inalação. As principais
vantagens em relação aos sistemas multidose são
um melhor controlo da dose, a verificação de que
esta foi de facto retirada da cápsula, e a possibilidade de repetir a inalação até desaparecimento
total do pó. No entanto são menos práticos, e
preferidos por uma minoria de doentes.
A adesão à terapêutica é também um problema central, sendo necessário proceder à correcta
administração do fármaco prescrito. Esta tarefa é
dificultada quando estamos perante crianças difíceis, que choram durante a administração da terapêutica. É fundamental que os profissionais de
saúde, os pais e as crianças compreendam a necessidade de utilizarem o fármaco prescrito e que
aceitem o uso do dispositivo seleccionado para o
efeito. As acções de formação devem ser iniciadas
nos profissionais, terminando na própria criança,
sempre que o grupo etário o permita.
371
Em ambulatório ou no serviço de urgência
deverá ser efectuado o ensino da utilização dos
diversos tipos de inaladores e reavaliada a técnica
regularmente.
A escolha do método de inalação constitui uma
etapa fundamental do tratamento das doenças
respiratórias da criança; o ensino e avaliação da
adequação só são possíveis com a colaboração de
técnicos treinados e experientes.
Em síntese, para o tratamento das crises de
asma no serviço de urgência é prática tradicional
o recurso aos nebulizadores, de preferência
pneumáticos, o que frequentemente não acontece
em Portugal. O seu uso estendeu-se ao tratamento
domiciliário, inclusive comparticipado pelo
Serviço Nacional Saúde. Numerosos estudos têm
vindo a demonstrar que as combinações pMDI /
câmara expansora são preferíveis, sendo mais eficazes, mais portáteis e menos dispendiosos.
Deve ser incrementado o uso de câmara
expansora nos serviços de urgência, na maioria
das crianças com crise de asma, pelo menos como
opção aos nebulizadores. Nalguns lactentes e
crianças em idade pré-escolar, a nebulização com
máscara pode ser mais bem aceite, particularmente em situações mais graves, em que criança
se encontra exausta, por vezes febril, não sendo de
esperar então grande colaboração com a técnica
requerida para uma câmara expansora.
4. Actuação na AIE
Vários fármacos têm sido preconizados no controlo da AIE. Na maioria dos doentes com função
respiratória basal normal a AIE pode ser prevenida pela administração prévia ao exercício de um
agonista β2-adrenérgico por via inalatória, eficaz
em reduzir a AIE em 90% dos doentes, podendo
também ser usado como medicação em SOS para
tratar a broncoconstrição desencadeada pelo
esforço. Esta abordagem exige uma atempada previsão das horas de maior esforço, sabendo-se que
em idade pediátrica o exercício constitui um acontecimento imprevisível, pelo que se torna mais
difícil de controlar a AIE na criança. Os broncodilatadores β2-adrenérgicos de acção prolongada
como o salmeterol e o formoterol têm, então, indicação óbvia uma vez que exercem o seu efeito protector de forma mais prolongada, até 8 a 12 horas;
372
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
constituem uma boa opção nas crianças em idade
escolar ou nos desportos de longa duração. A
associação destes fármacos com corticosteróides
inalados é obrigatória. A recente disponibilidade
em Portugal de terapêuticas combinadas (fluticasona com salmeterol e budesonido com formoterol) veio simplificar a terapêutica permitindo
uma maior adesão.
As cromonas por via inalatória como o cromoglicato de sódio são uma alternativa ao uso dos
broncodilatadores. Estes fármacos têm um início
rápido de acção, sendo eficazes na prevenção em
cerca de 50% dos doentes. O seu mecanismo de
acção baseia-se na inibição da desgranulação dos
mastócitos. São referidos como pontos positivos o
não desenvolvimento de tolerância e a inexistência de efeitos adversos; no entanto, o seu efeito
protector não parece estender-se para além de 2 a
4 horas, sendo eficazes unicamente como tratamento profiláctico.
Os leucotrienos são potentes mediadores de
broncoconstrição libertados por várias células inflamatórias incluindo mastócitos e eosinófilos, tendo
os seus níveis sido encontrados elevados após
broncoconstrição induzida pelo exercício. Os
antagonistas dos receptores dos leucotrienos (ex.
montelucaste) oferecem, para além da comodidade
posológica, protecção efectiva de sintomas induzidos pelo exercício ao longo das 24 horas, não parecendo este efeito decair com a sua toma regular.
Dada a elevada incidência de AIE em atletas de
competição, e consequente necessidade de uso de
medicação anti-asmática, o Comité Olímpico Internacional (COI) aceita o uso de agonistas β2-adrenérgicos, de acção curta e prolongada, cromonas e corticosteróides por via inalatória; os antagonistas dos
receptores dos leucotrienos não constam da lista de
medicamentos proibidos pelo COI. No entanto,
para que a medicação anti-asmática prescrita não
seja considerada dopante, obriga à comprovação
com uma notificação escrita, em impresso próprio
fornecido pelo Conselho Nacional Antidopagem
(CNAD), acompanhada de relatório médico, que
inclui resultados de provas funcionais respiratórias, comprovando o diagnóstico de asma.
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CAPÍTULO 65 Rinite alérgica
65
RINITE ALÉRGICA
Graça Pires
Definição e importância do problema
A rinite alérgica é uma doença inflamatória crónica da mucosa nasal, resultante de uma reacção de
hipersensibilidade imunologicamente mediada,
em que se verifica rinorreia serosa, obstrução e
prurido nasais, e crises esternutatórias; por vezes
é acompanhada de irritação conjutival.
A prevalência da rinite alérgica tem vindo a
aumentar progressivamente nos últimos anos, a
par do aumento da prevalência das outras patologias alérgicas. Estima-se que actualmente a rinite
alérgica tenha uma prevalência global de 10 a 30%
na população europeia, iniciando-se frequentemente as queixas nas primeiras décadas de vida.
A avaliação do estudo epidemiológico ISAAC
(International Study of Asthma and Allergies in
Childhood) demonstrou que 24% das crianças com
6-7 anos e 27% dos adolescentes (13/14 anos) referiam queixas compatíveis com o diagnóstico de
rinite alérgica nos últimos doze meses. Trata-se,
no entanto, de uma doença frequentemente não
diagnosticada e não tratada, com importantes
repercussões na qualidade de vida e no desempenho escolar.
Classificação
A classificação da rinite mais aceite actualmente
baseia-se nas características temporais da doença
e nas repercussões na qualidade de vida do
doente. Assim, a rinite é classificada em intermitente ou persistente, quanto à duração da
doença; e em ligeira ou moderada a grave, quanto à intensidade dos sintomas e repercussão
sobre a qualidade de vida e actividades diárias
(Quadro 1).
373
QUADRO 1 – Classificação da Rinite Alérgica
1. Intermitente
Sintomas < 4 dias por semana ou < 4 semanas
2. Persistente
Sintomas > 4 dias por semana e > 4 semanas
3. Ligeira
Sono normal e:
– actividades diárias, desportivas e de tempos livres
normais
– actividadades laborais e escolares normais
– sem sintomas perturbadores
4. Moderada-grave
Uma ou mais situações:
– sono anormal
– repercussão nas actividades diárias, desportivas e
tempos livres
– problemas na escola
Manifestações clínicas e diagnóstico
A história clínica é essencial para o diagnóstico
preciso de rinite alérgica e avaliação da sua gravidade. Os sintomas incluem obstrução nasal, rinorreia, prurido nasal e crises esternutatórias, podendo cada doente apresentar predomínio de um ou
mais sintomas. Podem surgir sintomas associados,
nomeadamente roncopatia e/ou distúrbios do
sono, cansaço e mau rendimento escolar, corrimento nasal posterior, tosse crónica e perda de
olfacto. O perfil temporal, a relevância dos sintomas e a resposta à terapêutica deverão ser avaliados. É também importante investigar eventuais
factores desencadeantes e avaliar o contexto ambiental da criança, incluindo exposição alergénica e
tabagismo passivo. A existência de outras manifestações da doença alérgica, nomeadamente asma,
conjuntivite, eczema e antecedentes familiares de
alergia apoiam o diagnóstico de rinite alérgica.
O exame objectivo pode auxiliar no diagnóstico de rinite alérgica. Pode observar-se fácies característica, com obstrução nasal e respiração oral
com a boca entreaberta, existência de prega atópica nasal e olheiras. Em situações de maior cronicidade poderá mesmo haver anomalias do desenvolvimento facial com má oclusão dentária.
A observação das fossas nasais com uma fonte
de luz incidindo sobre o vestíbulo nasal permite
374
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
observar rinorreia, habitualmente aquosa, hipertrofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores
e desvios do septo nasal.
Os testes cutâneos por picada, úteis a partir
dos primeiros anos de vida, são largamente utilizados para confirmar o diagnóstico de rinite
alérgica-IgE mediada, permitindo identificar os
alergénios implicados. Em caso de discordância
entre a história clínica e os testes cutâneos, deverá
efectuar-se doseamento de IgE específica.
A radiografia dos seios perinasais não está
indicada no diagnóstico de rinite alérgica. A radiografia do cavum, de perfil, é muito utilizada para
demonstrar a existência de hipertrofia das
adenóides.
As adenóides, um factor mecânico que agrava
a obstrução nasal provocada pela rinite alérgica,
também contribuem para o aparecimento de
quadros prolongados ou recorrentes de rinossinusite infecciosa. A tomografia axial computadorizada (TAC) é um exame radiológico importante para avaliar complicações ou patologias
associadas, em determinados casos.
Doenças associadas
A rinite alérgica ocorre muito frequentemente
associada à asma brônquica, embora a natureza
desta ligação não esteja totalmente esclarecida.
Discute-se actualmente as relações entre a patologia alérgica das vias aéreas superiores e inferiores,
partilhando aspectos relacionados com a inflamação numa mucosa respiratória contígua. A
rinite foi já identificada como factor de risco de
asma em adultos.
Num estudo prospectivo nacional, com a duração
de oito anos, onde foram incluídas crianças com
hiperreactividade brônquica em idade pré-escolar,
a rinite foi identificada como o principal factor de
risco independente para a persistência dos sintomas, mesmo nas crianças que não eram atópicas
na data da inclusão. Existirá, então, uma forte
relação entre rinite e asma, ficando por esclarecer
se a asma corresponde a uma fase na progressão
natural de uma doença das vias aéreas, considerada como uma unidade.
Outras doenças alérgicas estão frequentemente
presentes, devendo ser investigadas e tratadas,
nomeadamente conjuntivite alérgica e eczema.
A inflamação crónica subjacente à rinite alérgica estende-se à mucosa de revestimento dos seios
perinasais predispondo à ocorrência de quadros
de rinossinusite. O bloqueio funcional dos ostiae
dos seios perinasais inicia as alterações fisiopatológicas que levam ao aparecimento de rinossinusite. Alguns factores mecânicos podem também
contribuir para quadros prolongados ou recorrentes de rinossinusite, dos quais o mais frequente, na criança dos dois aos sete anos, é a
hipertrofia das “vegetações” em associação com
desvio do septo nasal e hipertrofia dos cornetos.
Importa, no entanto, referir que a maioria dos
quadros agudos de rinossinusite na criança são
causados por infecções víricas, com possibilidade
de sobreinfecção bacteriana.
Tratamento
A rinite alérgica é uma doença que, quando não
tratada, pode provocar alterações do ritmo do
sono, sonolência diurna e dificuldades de concentração e de aprendizagem, impondo várias
restrições nos aspectos físico, psíquico e social da
vida dos doentes. O tratamento da rinite alérgica
permite um melhor controlo da asma brônquica e
diminui a frequência de episódios de rinossinusite
e otite média.
O primeiro passo no tratamento da rinite alérgica consiste na evicção alergénica, devendo ser
recomendada desde os primeiros sintomas da
doença. As medidas de evicção deverão incidir
sobre os ácaros do pó, animais domésticos,
baratas, fungos e poluentes. É fundamental a
evicção de tabagismo passivo, importante factor
de risco do aparecimento e gravidade da doença
alérgica.
Habitualmente o controlo ambiental não é suficiente e existe necessidade de instituir terapêutica
médica. O tipo de fármacos a utilizar depende da
gravidade da doença e também dos sintomas mais
importantes em cada doente.
Os anti-histamínicos são considerados, por
alguns autores, os fármacos de primeira linha no
tratamento da rinite alérgica. Actuam como
antagonistas dos receptores H1 reduzindo o prurido nasal, os espirros e a rinorreia, sendo, no entanto, pouco eficazes na redução da obstrução nasal.
Os anti-histamínicos de 1ª geração não devem ser
CAPÍTULO 65 Rinite alérgica
utilizados pelos seus efeitos secundários, podendo diminuir as capacidades intelectuais das crianças em idade escolar. Os anti-histamínicos de 2ª
geração atravessam pouco a barreira hematoencefálica pelo que são bem tolerados, provocando menos sonolência e efeitos acessórios. São
habitualmente administrados por via oral, apenas
uma vez ao dia, aliviando os sintomas nasais, mas
também oculares e cutâneos, caso existam outras
doenças alérgicas. Os anti-histamínicos tópicos,
aplicados no nariz e nos olhos, têm um rápido início de acção e são habitualmente bem tolerados.
Necessitam, no entanto, de ser aplicados duas
vezes ao dia para manter a eficácia.
Os corticosteróides têm um papel central no
tratamento da rinite alérgica, actuando pelo seu
potente efeito anti-inflamatório. São usados geralmente sob a forma tópica, mas nas situações
graves podem ser usados por via sistémica, por
períodos de 3 a 5 dias. As formas depot de administração sistémica não devem ser utilizadas. Os
corticosteróides tópicos reduzem a obstrução
nasal, a rinorreia, os espirros e o prurido nasal,
sendo mais eficazes do que os anti-histamínicos
no controle da obstrução nasal. As doses são variáveis de acordo com a idade, a gravidade da
patologia e o corticosteróide seleccionado. Com
uma posologia correcta são habitualmente fármacos seguros, nomeadamente no que respeita ao
crescimento da criança, mesmo em terapêuticas
prolongadas. Um aspecto importante é o seu início de acção lento, podendo recorrer-se aos
descongestionantes nasais, nos primeiros dias de
tratamento, para se obter um efeito mais rápido
sobre a obstrução nasal.
As cromonas são seguras, mas apresentam
menor eficácia que os anti-histamínicos e os corticosteróides nasais. Pela frequência de administração diária (três a quatro vezes) colocam problemas de adesão à terapêutica.
Os antagonistas dos leucotrienos inibem a
acção dos leucotrienos C4 e D4 que são importantes mediadores da inflamação. Podem ser usados isoladamente ou em conjunto com os anti-histamínicos potenciando a sua acção.
A imunoterapia específica no tratamento da
rinite alérgica é eficaz quando aplicada a doentes
seleccionados. Alguns autores sugerem que
poderá alterar o curso da doença alérgica pre-
375
venindo o aparecimento de asma em doentes com
rinoconjuntivite alérgica. Deve ser sempre indicada e monitorizada por imunoalergologistas.
De acordo com a actual classificação da rinite
alérgica, a abordagem terapêutica desta doença
baseia-se na sua periodicidade e gravidade.
Nas formas ligeiras de rinite intermitente pode
usar-se os anti-histamínicos orais ou nasais ou os
descongestionantes nasais, estes últimos durante
um curto período de tempo. Nas formas moderadas/graves usam-se os anti-histamínicos isoladamente ou associados a corticosteróides nasais e,
eventualmente, um curto período de vasoconstritores. Nas fases agudas pode ser necessário recorrer a corticosteróides orais. O doente deverá ser
reavaliado após 2 a 4 semanas e a terapêutica reajustada.
Na rinite persistente existe habitualmente
inflamação permanente da mucosa, pelo que a terapêutica medicamentosa deverá ser mantida por
períodos prolongados. Nas formas ligeiras podem
ser utilizados anti-histamínicos ou corticosteróides nasais. Uma possível abordagem é a utilização de anti-histamínicos por um período de 2
a 4 semanas e, se não ocorrer melhoria, deverá
proceder-se ao início de corticosteróides nasais.
Nas formas moderadas/graves os corticosteróides nasais são a terapêutica de primeira
linha. Quando necessário, deve efectuar-se terapêutica com corticosteróides orais ou descongestionantes por um curto período de tempo.
Associam-se anti-histamínicos se estiverem presentes prurido nasal, crises esternutatórias e rinorreia importantes. Os doentes devem ser reavaliados regularmente, mantendo a mínima terapêutica necessária para controlar os sintomas.
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Durante a observação de uma criança com patologia cutânea, e provável etiologia alérgica devem
de imediato ser avaliadas, não só as características
das lesões e sua distribuição, mas também a presença de prurido. Considerando a etiologia alérgica é necessário avaliar a sua gravidade, tendo em
conta, não só cada episódio, mas também a probabilidade da sua recorrência e o risco de eventuais
reacções graves. Entre as situações consideradas
do foro alérgico com expresão cutânea há que distinguir as que comportam ou não um risco subsequente de desenvolvimento de outras doenças
alérgicas, nomeadamente respiratórias. No
âmbito das situações de alergia de expressão
cutânea, são descritas as entidades clínicas dermatite atópica, urticária e prurigo-estrófulo. Relativamente à primeira, neste capítulo foca-se essencialmente a fisiopatologia, abordando-se os restantes aspectos na parte referente à Dermatologia
Pediátrica (Capítulo 95).
1. Síndroma de eczema / dermatite
atópica
Definição e fisiopatologia
A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crónica da pele, muito pruriginosa, que
com frequência ocorre em associação com problemas respiratórios, para a patogenia dos quais contribuem mecanismos imunológicos de hipersensibilidade imediata e retardada; esta heterogeneidade de respostas tem levado à substituição do
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea
termo dermatite atópica por um mais abrangente:
síndroma eczema / dermatite atópica (SEDA),
podendo ainda dividir-se em não alérgica e alérgica; esta última, por sua vez, pode estar ou não
associada à presença de IgE específica (atópica ou
não atópica).
Na SEDA existe uma resposta inflamatória,
traduzida por um infiltrado linfo-histiocitário circundando os vasos da derme superficial, mesmo
ao nível da pele sem lesões.
Na fase aguda o infiltrado linfocitário acentuase e associa-se a fenómenos de espongiose ao nível
da epiderme, a qual, se muito intensa, condicionará a ruptura das ligações entre queratinocitos
com a consequente formação de vesículas. Os linfócitos associados aos processos crónicos de inflamação cutânea são portadores de um antigénio à
sua superfície (antigénio do linfócito cutâneo), o
qual, funcionando como receptor, se ligará ao contra receptor (E-selectina) existente no endotélio
vascular.
Na fase crónica, ao nível da epiderme o infiltrado de células T e a espongiose são substituídos
por hiperplasia e hiperqueratose, com concomitante aumento do número de células de
Langherans com IgE à superfície. Também na
derme o infiltrado linfocitário tem uma expressão
mais reduzida, relativamente aos macrófagos,
mastócitos e eosinófilos.
Para cada uma das fases descritas é possível
encontrar um padrão característico de citocinas
envolvidas, existindo uma mudança no perfil, inicialmente do fenótipo Th2 (fase aguda), para o
fenótipo Th1 (fase crónica), justificando o mecanismo retardado existente na maioria dos doentes
com DA.
Para além dos factores genéticos, das alterações constitucionais da pele e dos distúrbios
imunes, muitos factores exógenos, específicos e
inespecíficos, contribuem para a exacerbação da
doença. A tradução clínica é relativamente monótona, sendo o prurido o sintoma sem o qual não se
pode estabelecer o diagnóstico de eczema.
Na fase aguda estão presentes o eritema intenso
e, por vezes, observam-se vesículas; na fase subsequente, ou subaguda, apresenta-se essencialmente
uma secura intensa, ou xerose, com descamação; na
fase crónica, para além do prurido associado a
lesões em diferentes estádios, aparece outro tipo de
377
lesões resultantes da inflamação persistente e do
prurido, como as escoriações e a liquenificação. Os
diferentes tipos de lesões de eczema podem coexistir nas distintas fases evolutivas.
A evolução característica ocorre com ciclos de
exacerbação, por vezes associados a outras formas
de doença alérgica (asma e/ou rinite alérgica que
podem ocorrer em cerca de 50% destas crianças).
A alteração da barreira cutânea por agentes químicos como solventes, desinfectantes ou soluções
alcalinas permitem a persistência de lesões e a
penetração de macromoléculas.
2. Urticária e angioedema
Definição e fisiopatologia
Para se considerar o diagnóstico de urticária é
condição fundamental que estejam presentes, em
conjunto, pápulas eritematosas, pruriginosas, que
branqueiam com a digitopressão e que geralmente
desaparecem (cada lesão) em menos de 24 horas
sem deixar lesão residual.
As pápulas de urticária têm um aspecto típico:
são redondas ou ovais, de dimensões variáveis,
com superfície plana, da cor da pele ou rosa-pálido. O contorno é bem delimitado, por vezes com
prolongamentos – os “pseudópodos”. Isoladas ou
em grupos, tendem a confluir. Nas formas mais
exuberantes existe contorno policíclico em “mapa
geográfico”, eritematoso com centro pálido (em
anel) (Figuras 1 e 2).
O angioedema corresponde a uma situação de
edema subcutâneo ou submucoso de instalação
súbita e com carácter transitório, envolvendo
áreas bem circunscritas tais como língua, lábios,
laringe, mãos, pés e outros.
A urticária é uma patologia comum, estimando-se que possa afectar cerca de 15% da população em qualquer idade.
O angioedema aparece associado à urticária
em cerca de 50% dos casos, especialmente nas formas crónicas. Ocorre isoladamente em cerca de
10% dos doentes.
Na urticária o mastócito é a célula efectora
major. A sua desgranulação (causada por mecanismos imunológicos e não imunológicos) origina a
libertação de vários mediadores (histamina,
prostaglandinas, leucotrienos, factor activador
das plaquetas), dos quais a histamina é o me-
378
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
No angioedema, as alterações que se verificam
são as mesmas mas atingem camadas mais
profundas: derme profunda e hipoderme; como
estão atingidas as camadas mais profundas com
menor número de mastócitos e de terminações
nervosas, as lesões têm pouco ou nenhum prurido
associado, sendo referida, por vezes, dor ou
sensação de queimadura.
A bradicinina, péptido vasoactivo, desempenha um papel fundamental na fisiopatologia do
angioedema.
Episódios repetidos de angioedema poderão
ocorrer, na ausência de urticária, relacionados
com défices do inibidor da esterase de C1 do sistema do complemento, estando descritas formas
hereditárias e adquiridas relacionadas com défices
quantitativos e funcionais.
Classificação
Sob o ponto de vista clínico, tendo em conta a
duração das lesões, a urticária classifica-se em
aguda (duração inferior a seis semanas) e crónica
(duração superior a seis semanas).A forma crónica
pode ser contínua ou intermitente.
A classificação da urticária/angioedema
assenta em critérios clínicos; a associação a entidades nosológicas diferenciadas reflecte a diversidade de mecanismos subjacentes a esta síndroma
(Quadro 1).
De acordo com a nomenclatura clássica, tendo
em consideração a etiopatogénese, o angioedema
(hereditário ou adquirido) é considerado uma
forma de urticária crónica.
As formas crónicas da síndroma urticária/
angioedema estão mais frequentemente associadas a patogénese por agentes físicos, reumática,
endócrina, neoplásica e idiopática.
FIG. 1 e 2
Urticária: Pápulas isoladas e confluentes. (NIHDE)
diador mais importante. A acção desta condiciona
o aparecimento da resposta inflamatória tripla,
com vasodilatação (eritema), aumento da permeabilidade vascular (edema) e reflexo axonal
(aumento da extensão da reacção), ao nível da
derme superficial, para além do prurido provocado por estimulação das terminações nervosas.
Manifestações e formas clínicas.
Urticária aguda
A urticária aguda na criança é habitualmente
autolimitada e benigna, com duração de apenas
alguns dias. As formas agudas, particularmente
nos primeiros anos de vida, são mais frequentes
do que as formas crónicas, sendo factores etiológicos mais comuns as infecções, a ingestão de
alimentos e a administração de medicamentos; de
referir que a etiologia é identificada ou suspeitada
em 40 a 90% dos casos.
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea
QUADRO 1 – Urticária / Angioedema
Classificação etiopatogénica
Infecções
Alimentos
Fármacos
Agentes biológicos
Defeitos genéticos (ex. angioedema hereditário)
Autoimune
Vasculite urticariana e linfocitária com normalidade do
complemento
Agentes físicos
Frio
Pressão
Vibratória
Colinérgica
Solar
Aquagénica
Exercício
Associada a outras doenças
Reumáticas
Conectivopatias
Neoplasias
Tiroideia
Outras
Idiopática
1. Infecções
Os quadros de urticária aguda na criança são, na
sua grande maioria, de causa infecciosa vírica. É
de referir que, com estes agentes, as lesões podem
persistir por mais de 24 horas; por vezes, acompanham-se de lesão residual, traduzindo a
existência concomitante de um processo de vasculite associada a imunocomplexos com antigénios de origem vírica (ex. vírus de Epstein-Barr,
adenovírus, vírus influenzae, vírus sincicial respiratório, citomegalovírus, vírus herpes-varicela-zoster, parvovírus, enterovírus, rotavírus).
Também infecções bacterianas (estreptocócicas) e parasitárias podem originar tais manifestações cutâneas.
As infecções parasitárias poderão ser causa de
urticária em zonas endémicas, particularmente
em crianças com eosinofilia e IgE elevada; a ocor-
379
rência de urticária aguda e crónica foi relacionada
com infestações por Toxocara canis e Giardia lamblia.
A etiologia da urticária aguda é por vezes difícil
de estabelecer no decurso de uma doença infecciosa
tratada com antibióticos, antipiréticos e/ou anti-inflamatórios. Por vezes a criança passa a ser considerada
como alérgica ou intolerante a determinada medicação, quando a causa de urticária é, de facto, infecciosa. Realça-se a pertinência do encaminhamento
destes casos a consultas de Imunoalergologia.
Estes quadros, frequentes, não constituem factor preditivo de outra patologia imunoalérgica.
2. Alimentos
Os sintomas podem surgir na sequência de contacto directo do alimento com a pele (alergénios
lipofílicos); o leite, os peixes e os mariscos podem
conduzir a este quadro. A síndroma de alergia oral
é uma forma particular de urticária de contacto
provocada por alimentos; é caracterizada por
prurido e edema da mucosa oral, língua, lábios e
orofaringe. Surge principalmente nos doentes com
alergia a pólens, após a ingestão de certos frutos
ou vegetais, por um mecanismo de reactividade
cruzada IgE mediada. Esta síndroma afecta predominantemente adolescentes.
As lesões de urticária podem também surgir
na sequência de ingestão de alimentos. O leite, o
ovo, o peixe, o amendoim, a soja e o trigo são os
alimentos mais frequentemente em causa e o
mecanismo implicado é mediado por IgE. Trata-se, em regra, de quadros de fácil identificação,
surgindo as lesões entre 30 a 60 minutos após a
ingestão do alimento; a evicção deverá levar à sua
resolução num período de 24 horas.
De referir que o morango, o chocolate, os citrinos, o tomate, a carne de porco e outros alimentos
podem provocar lesões cutâneas que surgem,
habitualmente, 6 a 24 horas após a ingestão e
podem permanecer dias a semanas, contrastando
com as reacções IgE - mediadas. Correspondem à
chamada urticária papular ou prurigo estrófulo
(maioritariamente relacionada com picadas de
insectos); são provocadas por um mecanismo não
IgE mediado em que há libertação directa de histamina pelos mastócitos. (ver adiante)
3. Fármacos
Qualquer fármaco pode desencadear um quadro
380
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de urticária ou angioedema, embora os antibióticos beta-lactâmicos e os anti-inflamatórios não
esteróides tenham um papel primordial (estes
últimos raramente envolvidos nos grupos etários
pediátricos). A reacção surge habitualmente
durante os primeiros dez dias da administração
do medicamento.
As reacções adversas a fármacos, imunologicamente mediadas, têm uma incidência baixa
(menos de 10%). Apesar disso, a incidência de
exantema após utilização de fármaco na criança,
nomeadamente antibióticos, é uma situação
comum; contudo, nestes casos o antibiótico administrado é muitas vezes incorrectamente responsabilizado, visto que na maioria das situações os sintomas são causados pela infecção concomitante.
Se o fármaco for essencial à terapêutica do
doente, o diagnóstico definitivo poderá exigir a
realização de um teste de provocação por especialista experiente, em ambiente hospitalar e com
disponibilidade de meios de reanimação. A
indução de tolerância é reservada para os casos
em que a administração do fármaco é imprescindível e não existe alternativa (ex. penicilina).
4. Agentes biológicos: veneno de himenópteros
(vespa e abelha) e outros insectos
A picada ou mordedura com inoculação de
vários agentes biológicos pode induzir uma
reacção de urticária aguda que, embora na maioria das vezes seja local, pode ser acompanhada de
manifestações sistémicas (de urticária generalizada a anafilaxia) em cerca de 5% dos casos.
Urticária crónica
Por definição, a urticária crónica caracteriza-se
pela ocorrência de lesões diárias ou quase diárias,
com ou sem angioedema acompanhante, durante
um período superior a 6 semanas. Na criança a
urticária crónica ocorre raramente.
A vasculite urticariana linfocitária normocomplementémica e a urticária decorrente de patologia
autoimune são situações excepcionais.
As urticárias físicas, subgrupo das urticárias
crónicas (10 a 20%), são desencadeadas em
indivíduos susceptíveis pela exposição a alguns
estímulos ambientais como sejam o calor, o frio, a
exposição solar, a água, o exercício, a pressão e a
vibração. Com raras excepções, as lesões de
urticária e/ou angioedema desenvolvem-se nas
áreas da pele expostas, poucos minutos após a
aplicação do estímulo físico, ainda que possam
ocorrer de forma generalizada a toda a área corporal ou com manifestações sistémicas associadas;
verifica-se em regra remissão espontânea, em
poucas horas, embora existam formas mais
duradouras. As formas retardadas (adquiridas ou
familiares) frequentemente constituem problemas
de diagnóstico, uma vez que não existe uma
associação causal imediata.
As urticárias desencadeadas pelo calor, essencialmente a urticária colinérgica, representam 2 a
7% das urticárias físicas e a urticária ao frio 3 a 5%,
sendo esta a forma que mais frequentemente se
encontra na prática clínica. As formas mais raras,
com uma incidência inferior a 1%, correspondem às
urticárias de pressão, solar, vibratória e aquagénica.
Sintomas extracutâneos podem ocorrer nalgumas destas urticárias (ao frio, colinérgica, de
pressão e solar), condicionando ocasionalmente
formas clínicas graves, potencialmente fatais; daí
a importância de um correcto diagnóstico destas
entidades.
Nota: A urticária acompanha-se em geral de
alteração da reactividade cutânea-vascular frente
a estímulos traumáticos superficiais denominada
dermografismo (ocorrendo em 2 a 5% da população geral). Pesquisa-se executando um traço na
superfície da pele com estilete de ponta romba,
resultando linha eritematosa persistindo cerca de
10-15 minutos.
Diagnóstico
O diagnóstico de urticária é clínico, baseando-se
fundamentalmente nas características das lesões,
evolução e na observação; a realização de biópsias
cutâneas está reservada a algumas formas crónicas da doença.
Uma vez confirmado o diagnóstico de urticária ou angioedema, é fundamental uma correcta
caracterização das lesões quanto à localização e
distribuição, dimensões, frequência, intensidade e
factores condicionantes. Uma análise meticulosa
deverá avaliar não apenas as características das
lesões, mas também os antecedentes pessoais da
criança, o seu ambiente doméstico e os hábitos,
nomeadamente alimentares e medicamentosos.
As formas agudas, mais frequentes na infân-
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea
cia, são habitualmente autolimitadas, raramente
necessitando de uma avaliação diagnóstica aprofundada e respondendo adequadamente à terapêutica sintomática.
As formas crónicas, embora menos frequentes,
exigem habitualmente, pelo carácter recorrente
das lesões, uma investigação adicional (detecção
de sensibilização alergénica; patologia infecciosa e
autoimune ou neoplásica). Esta abordagem orientará também a escolha de um esquema farmacológico mais adequado à etiologia da urticária ou
angioedema em questão.
A análise dos dados colhidos na história clínica orientarão a investigação diagnótica ulterior
que se pretende esclarecedora mas, também, economicamente viável. Assim, proceder-se-á a uma
selecção criteriosa dos exames subsidiários mais
indicados a cada situação particular.
Exames para avaliação do estado geral da
criança poderão ser úteis numa primeira abordagem: hemograma, determinação de parâmetros
bioquímicos, determinação de imunoglobulinas
séricas e fracções do complemento, proteína C
reactiva, velocidade de sedimentação, exame
parasitológico de fezes, etc..
As síndromas de causa física são habitualmente identificadas pela história clínica que
permite reconhecer o estímulo desencadeante. A
realização de testes específicos conduzirá ao diagnóstico definitivo.
O estudo alergológico, quando indicado, inicia-se habitualmente pela realização de testes cutâneos de alergia por picada aos aeroalergénios e/ou
alergénios alimentares a que o doente está exposto
de acordo com metodologia padronizada.
De salientar que a urticária crónica pode surgir
como primeira manifestação de uma doença
sistémica (ex: lupus eritematoso sistémico, tiroidite
autoimmune, doença do soro); outros estudos
imunológicos poderão então estar indicados como
a pesquisa de anticorpos antinucleares, imunocomplexos circulantes ou anticorpos antitiroideus.
Tratamento
Para além de cuidados gerais, incluindo os de
assegurar uma adequada hidratação cutânea, a
conduta terapêutica perante um quadro de
urticária aguda passa, em primeiro lugar, pela
eventual identificação e evicção do agente causal.
381
Os anti-histamínicos por via oral são os fármacos de eleição no tratamento farmacológico
desta situação (a via tópica está proscrita pelo
risco de sensibilização fotoalérgica e efeitos extrapiramidais), estando vários anti-histamínicos
disponíveis, desde a hidroxizina à cetirizina,
loratadina, mizolastina, fexofenadina ou ebastina,
aos mais recentes: levocetirizina e desloratadina.
O tratamento deve durar, em média, 5 a 10
dias; no plano terapêutico, a monoterapia com
anti-histamínicos constitui o esquema farmacológico, particularmente nas formas agudas, em
função da gravidade e da resposta clínica. A
associação de duas moléculas distintas representa
o escalão de actuação seguinte.
Justifica-se a utilização de corticosteróide
sistémico nos casos mais graves, com lesões exuberantes e generalizadas, quando associados a
angioedema ou em reacções anafilácticas, (nestas
últimas após o tratamento inicial com adrenalina).
Devem ser usados ciclos muito curtos (3 a 5 dias)
de prednisolona ou equivalente na dose de 0,5 a
1mg/Kg/dia.
A evicção de alimentos ricos em histamina
(marisco, bacalhau, morango, cacau, tomate, enlatados, charcutaria, queijos fermentados, entre outros)
também têm o seu papel durante a fase aguda; de
realçar o papel modesto dos alimentos na etiopatogénese da urticária na criança (aguda ou crónica) ao
contrário do que é geralmente assinalado.
Nas urticárias crónicas estão indicados antihistamínicos tipo bloqueantes H2 nos casos sem
resposta aos de tipo anti-H1 (por exemplo cimetidina). De referir efeito sinérgico pela associação
dos Anti-H1 + Anti-H2.
3. Prurigo estrófulo
Definição
A designação de prurigo diz respeito a toda e
qualquer dermatose acompanhada de prurido e
lesões papulosas.
O prurigo estrófulo ou urticária papular é uma
patologia inflamatória cutânea, definida pela
existência de máculo-pápulas, do tamanho de
cabeça de alfinete com ou sem vesículas, eritematosas e pruriginosas; é frequentemente observada na sequência de picada de insectos e, mais
raramente, após ingestão de certos alimentos ricos
382
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em histamina ou com propriedades histaminolibertadoras (peixe, tomate, ovo, cacau, morango,
beterraba, soja, amendoim e aditivos alimentares).
Os grupos etários pediátricos são os mais
afectados. Os insectos mais frequentemente
incriminados na etiologia do prurigo estrófulo,
são os artrópodes, de que é exemplo o Culex
pipiens (melga comum) que se encontra em todo o
mundo à excepção da Antártida. É conhecido
como o mosquito doméstico, por muitas vezes se
desenvolver em pequenos reservatórios de água,
perto ou dentro das casas. As suas larvas desenvolvem-se em águas estagnadas, com abundância
de matéria orgânica.
Esta patologia não constitui factor de risco de
expressão de outras doenças alérgicas, exceptuando dermatite atópica.
Fisiopatologia
A pápula associada à picada de insecto foi inicialmente encarada como uma reacção mastocitária
cutânea ao componente mecânico dessa mesma
picada, decorrente da inoculação de algumas proteínas, nomeadamente enzimas (hialuronidase);
existem estudos que objectivam a presença de IgE
sérica de proteínas de saliva do mosquito.
A intensidade da reacção e sua consequente
expressão clínica são influenciadas pela idade. As
picadas sucessivas induzem habitualmente um
estádio de tolerância.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Factores como a permanência prolongada no exterior dos edifícios (durante a prática desportiva,
casual ou recreativa), o suor, os odores fortes, a
pele quente e o movimento, parecem aumentar a
susceptibilidade à picada.
A reacção clínica à picada pode incluir dois
mecanismos: um imediato (minutos após) mais
frequentemente traduzido por quadro de eritema
e pápula, menos frequentemente por edema
extenso ou anafilaxia; e, um retardado (horas).
Este último tem tradução preferencial nas crianças
manifestando-se, por ordem decrescente de frequência, por pápulas muito pruriginosas, vesículas, lesões pustulares e exantema semelhante ao
eritema multiforme.
Na sequência de uma picada de insecto, a
reacção clínica observada depende do estádio
imunológico em que a criança se encontra, correspondendo o prurigo estrófulo às fases II e III
(Quadro 2). A evolução do estádio I para o V, pode
ter uma duração variável, de 2 a mais de 10 anos.
O diagnóstico depende do reconhecimento das
lesões e, em alguns casos, da identificação do
agente causal (especialmente insectos). Não está
habitualmente indicada a realização de exames
auxiliares de diagnóstico.
Prevenção e tratamento
As medidas de prevenção assentam no uso de
roupas que cubram áreas do corpo expostas e na
utilização de repelentes de insecto aplicados na
pele da criança, em pulseiras ou no próprio vestuário; pode ser recomendado o uso de mosquiteiros e insecticidas.
A terapêutica tópica, para além da aplicação de
emolientes, inclui a prescrição de corticóides que
têm um efeito anti-inflamatório; não deverão ser
prescritos anti-histamínicos tópicos, que podem
desencadear sintomas extrapiramidais ou dermatite de contacto fotoalérgica. Os anti-histamínicos diminuem o eritema, o tamanho da pápula e,
a intensidade do prurido; também exercem
influência na menor expressão da reacção tardia,
pelo que devem ser utilizados como profilácticos
QUADRO 2 – Estádios imunológicos de resposta cutânea à picada de insecto
Estádio imunológico
I (sem sensibilização)
II
III
IV
V (tolerância)
Reacção imediata
(15 minutos)
–
–
+
+
–
Reacção tardia
(24 horas)
–
+
+
–
–
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa
(anti-histamínicos não sedativos) durante períodos prolongados (semanas a meses) nos casos de
agudizações sucessivas.
Na fase aguda o intenso prurido pode tornar
preferíveis os anti-histamínicos de primeira geração, como a hidroxizina, pelo seu efeito sedativo
adicional. Os corticóides sistémicos podem ser considerados apenas quando são atingidas grandes
áreas corporais, se verifica a reactivação de zonas
anteriormente picadas, e nos casos raros de anafilaxia; nestas últimas situações o uso de adrenalina
coloca-se na primeira linha de actuação.
383
67
ALERGIA MEDICAMENTOSA
Paula Leiria Pinto
Definição e importância do problema
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O termo “hipersensibilidade” destina-se a designar todo o tipo de reacções a fármacos independentemente do mecanismo subjacente. Por outro
lado, recorda-se: “alergia” refere-se às situações
que envolvem a activação do sistema imunológico, por mecanismo mediado ou não por IgE.
As reacções de hipersensibilidade correspondem aproximadamente a 15% das reacções adversas a fármacos. Dificuldades relacionadas com o
diagnóstico e a deficiente notificação das reacções
a entidades responsáveis pela farmacovigilância
não permitem ter informação rigorosa sobre a verdadeira dimensão do problema.
Numa revisão de 17 estudos prospectivos realizados em crianças) da autoria de Impicciatore verificou-se que em 2,1% das crianças hospitalizadas o
diagnóstico principal foi reacções adversas a fármacos, sendo 39,3% graves com risco de vida.
Neste estudo a incidência de reacções adversas foi
9,5% nas crianças hospitalizadas, e 1,5% no ambulatório. Estes resultados mostram que as reacções
adversas a fármacos na criança constituem um
problema de saúde pública importante.
Factores de risco
Santa Marta C, et al. Prurigo estrófulo. In A Criança Asmática
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A imunogenicidade é um dos factores de risco mais
importantes de desenvolvimento duma reacção de
hipersensibilidade a fármacos a qual está directamente relacionada com o peso molecular e as propriedades químicas do respectivo fármaco. A utilização de doses elevadas, a via de administração
parentérica, a maior duração do tratamento, a
exposição repetida ao fármaco e as doenças concomitantes são outros dos factores de risco.
384
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Em relação ao doente destacam-se a idade, a
condição de sexo feminino e a presença de atopia.
Na criança a alergia a fármacos parece ser
menos frequente e menos grave que nos adultos, o
que se pode dever à imaturidade do sistema imunitário. O terreno atópico aumenta, no entanto, o
risco de reacções alérgicas graves mediadas por
IgE, sem aumento de probabilidade de se desenvolver um mecanismo IgE em resposta a moléculas de baixo peso molecular.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas podem ser muito variadas
assim como as formas de apresentação; envolvem
um ou vários órgãos e sistemas. As manifestações
cutâneas isoladas são as mais frequentes. No entanto, quadros de anafilaxia potencialmente fatais,
assim como manifestações do tipo de doença do
soro, reacções autoimunes induzidas pelo fármaco e
febre isolada fazem parte do espectro clínico.
Diagnóstico
O diagnóstico deve ser suspeitado após o aparecimento de um sinal ou sintoma não previsível,
relacionado, no tempo, com a administração de
um fármaco. A relação de causalidade deve ser
investigada criteriosamente, existindo vários algoritmos que poderão servir de orientação, como o
de Jones. As questões requerendo resposta são:
– os sinais e os sintomas são compatíveis com
uma reacção de hipersensibilidade a fármacos?
– há uma relação temporal entre a administração do fármaco e o início da reacção?
– a classe e a estrutura química do medicamento estão associadas a reacções imunológicas?
– o doente recebeu previamente o fármaco suspeito, numa ou em várias ocasiões?
– não há outra razão plausível para a reacção
descrita ou observada?
– os testes cutâneos e /ou laboratoriais disponíveis são compatíveis com o diagnóstico de
reacção explicada por mecanismos imunológicos?
Apesar do número limitado de testes objectivos in vivo e in vitro para confirmação do diagnóstico, têm sido utilizados numerosos testes “in
vitro”, com fins de investigação. Salientam-se,
assim, os testes de libertação de mediadores (ex.
triptase, metil-histamina urinária, histamina no
plasma); testes de reactividade celular – dos linfócitos (transformação linfocitária – TTL – ou produção de linfocinas), dos leucócitos (libertação de
leucotrienos e marcadores de activação celular) e
ainda os testes de hemaglutinação ou hemólise na
presença do fármaco e de soro do paciente.
Apenas o último tem interesse clínico para a
avaliação das citopénias mediadas imunologicamente.
Perante a suspeita de reacções mediadas por
IgE, pode proceder-se ao doseamento da IgE
específica cujo resultado apresenta em geral
menor sensibilidade quando comparado com o
dos testes cutâneos intradérmicos; aliás os testes
estão disponíveis apenas para um número limitado de fármacos (ex. penicilina G e V, amoxicilina e
sulfonamidas).
Recentemente, os testes de estimulação por
antigénio específico dos basófilos e a utilização da
citometria de fluxo para detecção de marcadores
de activação celular (ex: CD63) – Flow-CAST,
assim como os TTL, simulando uma prova de
provocação in vitro, são métodos promissores no
diagnóstico da alergia medicamentosa.
Em relação aos testes “in vivo”, os testes cutâneos intradérmicos para detecção de IgE específica têm sido os únicos com valor preditivo elevado,
sobretudo na avaliação da suspeita de alergia aos
antibióticos β-lactâmicos, relaxantes musculares e
anestésicos locais. A sua principal limitação
prende-se com o facto de os determinantes antigénicos responsáveis pela alergia à maioria dos
fármacos serem desconhecidas; assim, aqueles
devem ser realizados por especialistas de imunoalergologia e em meio hospitalar.
Podem ainda utilizar-se testes epicutâneos –
patch tests, cujos resultados encontrados por vários
autores não têm sido superiores aos demonstrados pelos testes intradérmicos (leitura tardia),
reservando-se a sua utilização para o estudo das
reacções à aplicação tópica de fármacos e conservantes.
Na maioria das situações o diagnóstico de uma
reacção de hipersensibilidade pressupõe a realização de uma prova de provocação em meio hospitalar, consistindo na administração controlada de
doses progressivas de fármaco, com o intuito de
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa
confirmar ou excluir o diagnóstico e, em casos
particulares, para obtenção de alternativas terapêuticas consideradas necessárias.
Tratamento
Quando há suspeita de alergia medicamentosa é
importante proceder à suspensão da administração do fármaco em causa. Nas crianças com
medicações múltiplas devem ser interrompidas
todas as dispensáveis e substituir as necessárias
por fármacos sem reactividade cruzada.
A confirmação do diagnóstico de hipersensibilidade implica a evicção do fármaco e dos que
apresentam reactividade cruzada.
Raras são as situações em que há que prosseguir
a utilização do medicamento ao qual o paciente é
alérgico, sob medicação. Nas reacções mais ligeiras
como os exantemas ligeiros, a utilização de anti-histamínicos é em geral suficiente. Apresentações
mais graves ou agravamento clínico podem requerer corticoterapia para controlo, sendo a dose usual
de prednisolona de 2mg/Kg de peso (máximo de
60mg/dose), uma a duas vezes por dia.
O tratamento da anafilaxia não difere do que é
utilizado em situações com outras etiologias,
sendo o fármaco de eleição a adrenalina (1/1000)
por via intramuscular, na dose 0,01ml/Kg de peso
(máximo de 0,5ml); pode repetir-se duas vezes em
intervalos de 15 minutos, dependendo da evolução. Outras medidas de suporte poderão ser
necessárias.
Indução de tolerância
Perante situações particulares de necessidade
imperiosa de utilizar um fármaco essencial num
indivíduo com manifestações de hipersensibilidade, e em que alternativas não existem ou as
mesmas conduzem a resultados pouco eficazes, é
possível recorrer à indução de tolerância através
da utilização de protocolos que envolvem a
administração de doses progressivas do medicamento. Na maioria das vezes este tipo de procedimentos é feito em internamento hospitalar, numa
unidade de cuidados intensivos. Alguns dos protocolos usados podem ser encontrados na literatura, nomeadamente para antibióticos β-lactâmicos,
trimetoprim-sulfametoxazol, insulina, ácido ace-
385
tilsalicílico, entre outros. A tolerância desaparece
após suspensão do fármaco.
Prevenção
São de destacar algumas recomendações para a
prevenção da alergia medicamentosa:
– prescrever apenas os fármacos essenciais;
– evitar fármacos com reacções prévias suspeitas, assim como aqueles com os quais se
verifique reactividade cruzada;
– utilizar medicação preventiva antes e
durante a administração de fármaco;
– informar o paciente/família sobre a reacção
medicamentosa, procedendo ao registo médico do incidente;
– reportar as reacções adversas graves ou inesperadas, ao Infarmed, especialmente de fármacos recentes.
Situações particulares
São abordados seguidamente alguns dos aspectos
mais importantes relativos aos principais grupos
de fármacos implicados nas reacções de hipersensibilidade em idade pediátrica, como antibióticos,
anti-inflamatórios não esteróides (AINE) e vacinas. Os antibióticos β-lactâmicos e as sulfonamidas são os antimicrobianos que com maior frequência originam reacções adversas.
1. Antibióticos β-lactâmicos
Em cerca de 7% das crianças expostas à penicilina
e outros antibióticos β-lactâmicos, refere-se o
aparecimento de exantema. No entanto, apenas 10
a 20% dos indivíduos com “história de alergia”
são verdadeiramente alérgicos, o que significa que
na maioria dos casos as pessoas podem tolerar a
exposição à penicilina sem que ocorram reacções
adversas.
Perante uma história sugestiva de reacção alérgica aos β-lactâmicos devem realizar-se testes
cutâneos por picada e intradérmicos.
Estima-se que 7 a 20% dos indivíduos com suspeita de história de alergia à penicilina tenham
testes cutâneos positivos. O valor preditivo negativo destes testes é excelente. As reacções sistémicas aos testes cutâneos são raras (<1%) embora
existam notificações de óbitos.
386
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Em situações não mediadas por IgE os testes
cutâneos não têm qualquer valor preditivo (ex:
febre medicamentosa, dermatite exfoliativa,
doença do soro, exantemas).
As determinações da IgE específica para
detecção de alergia à penicilina têm uma sensibilidade muito baixa.
O diagnóstico de alergia à penicilina é excluído
através da realização de uma prova de provocação.
Ocasionalmente, indivíduos alérgicos à penicilina
necessitam de efectuar terapêuticas com a penicilina (ex: endocardite por enterococos, neuro-sífilis)
sendo necessário proceder à indução de tolerância.
2. Sulfonamidas
A incidência de reacções ao sulfametoxazol-trimetoprim (SMX-TMP) na população geral é cerca de
3 a 5%, sendo de referir que em 1/10000 casos
podem ocorrer reacções de toxicidade idiossincrásica grave.
A patogénese é multifactorial. O aparecimento
de reacções mediadas por IgE são raras. Salientase que os indivíduos infectados pelo Vírus da
Imunodeficiência Humana (VIH) têm níveis celulares de glutatião-redutase diminuídos, o que contribui para aumentar a toxicidade e imunogenicidade dos metabolitos do SMX.
Os factores de risco parecem ser o grau de
imunodeficiência (CD4+<200/mm3), duração e
dose do tratamento, infecção vírica coexistente,
fenótipo acetilador lento, e atopia.
Os testes "in vitro" poderão vir a ser úteis
como marcadores clínicos de hipersensibilidade
ao SMX (ex: haptenização do SMX).
Devem realizar-se testes cutâneas com picada
e intradérmicos com SMX-TMP para detecção das
reacções mediadas por IgE embora o valor dos
mesmos não esteja confirmado.
Os protocolos de indução de tolerância são, em
geral, seguros e eficazes.
3. Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs)
A revisão das casuísticas mostra que os AINE’s
constituem a segunda causa de reacções adversas
a fármacos na idade pediátrica, sendo responsáveis por cerca de 10% destas.
Estudos realizados em grupos seleccionados de
crianças asmáticas e/ou atópicas mostram um
aumento da prevalência da hipersensibilidade em
função da idade. Uma revisão dos estudos sobre a
asma induzida pelo ácido acetilsalicílico (AAS) e
anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) em
crianças asmáticas revela uma prevalência de 5%,
valor superior ao obtido através da história clínica.
Considera-se hoje que a hipersensibilidade
provocada pelos AINEs se deve a alterações do
metabolismo do ácido araquidónico com inibição da
ciclo-oxigenase (COX) e consequente aumento da
libertação de leucotrienos com marcada actividade
pró-inflamatória. Questiona-se a possibilidade de
formação de IgE específicas nos quadros de “anafilaxia” associados a determinado AINE específico.
Na suspeita de reacção a um AINE e ausência
de contraindicação preconiza-se a realização de
prova de provocação para confirmação do diagnóstico. Podem efectuar-se provas de provocação
oral (PPO) com AAS ou outro AINE e provas de
provocação por inalação brônquica (PPIB) ou
nasal (PPN), com acetilsalicilato de lisina. Pelo
risco que comportam, deverão ser efectuadas em
meio hospitalar, sob vigilância cardio-respiratória
e com equipa de emergência disponível. Estão
reservados a casos duvidosos em que é necessário
confirmar o diagnóstico e investigar fármacos
alternativos.
As PPO são o método mais utilizado.
Na presença de hipersensibilidade a um AINE
é importante investigar um AINE alternativo,
atendendo à possível reactividade clínica simultânea a diferentes fármacos do mesmo grupo ou
de grupos diferentes.
É consensual o recurso a provas de provocação
para avaliar a tolerância a um determinado AINE.
Deve optar-se pelos fármacos de menor risco, ou
seja, utilizar AINEs inibidores fracos da COX1 (ex:
paracetamol) ou inibidores preferenciais da COX2
(ex: nimesulido).
A interdição no mercado nacional do nimesulido em idade pediátrica levanta problemas na
selecção do AINE alternativo. Encontra-se em fase
de investigação a forma pediátrica segura em crianças à semelhança do que se passa nos adultos.
A indução de tolerância deve ser considerada
nos pacientes com artrite ou doença arterial tromboembólica recorrente, tratando-se de situações
excepcionais.
É recomendado que, a crianças com asma e
com factores de risco clínico de hipersensibilidade
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa
aos AINEs (asma persistente grave ou rinosinusopatia crónica), apenas se administrem estes
fármacos quando estritamente necessário e sob
vigilância clínica. Várias séries demonstram, no
entanto, que não há risco de deterioração da asma
em crianças submetidas terapêutica analgésica ou
anti-inflamatória por curtos períodos.
4. Vacinas
Como a maioria das vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV) são administradas em
população pediátrica, as reacções alérgicas às vacinas são mais frequentes neste grupo etário. As
reacções sugestivas de alergia são muito raras mas
ocorrem, sobretudo, na sequência da vacina antidifteria, tétano e pertussis, sob a forma tríplice
(DTP) e associação da vacina anti-sarampo, parotidite e rubéola (VASPR). Os dois principais componentes identificados na patogénese das reacções
alérgicas foram a gelatina e as proteínas do ovo.
Algumas reacções imediatas que surgem relacionadas com a administração da VASPR e da
DTP são justificadas pela sensibilidade à gelatina.
Em relação às proteínas do ovo, o conteúdo é
muito elevado em vacinas de crescimento em tecido extraembriónico (febre amarela), é elevado em
vacinas de crescimento em embrião (parotidite,
raiva e influenza), e é baixo ou indetectável em
vacinas de crescimento em fibroblastos de
embrião de galinha (rubéola, sarampo).
Foram descritas ainda algumas reacções raras
relacionadas com antibióticos associados a vacinas
como estreptomicina e polimixina (poliomielite
injectável inactivada), neomicina (poliomielite oral
e injectável). Em muitas outras reacções imediatas
não se conseguiu provar a etiologia alérgica.
As reacções de hipersensibilidade retardada
podem ser causadas por timerosal (nos casos de
vacina de anti-DTP, hepatite B), formaldeído (nos
casos de vacina anti-hepatite B), hidróxido de
alumínio (nos casos de vacinas anti-DTP, hepatite B).
A incidência de reacções anafilácticas à vacina
anti-sarampo com risco de vida é menos de 71,6
/1 000 000 doses de vacina. Na metodologia de
diagnóstico os testes cutâneos não têm indicação
porque não são fidedignos. A determinação da IgE
específica para a gelatina é importante.
Nos doentes alérgicos ao ovo deve adoptar-se
o seguinte procedimento:
387
– Todas as vacinas devem ser administradas por
equipa capaz de tratar uma reacção de anafilaxia associada à administração de vacina.
– A alergia ao ovo não é contraindicação para a
imunização VASPR (mesmo em doentes com
anafilaxia induzida pelo ovo é preconizada
vacina sem realização prévia de testes cutâneos).
– As vacinas anti-sarampo ou VASPR estão
contraindicadas em indivíduos com antecedentes de reacção anfiláctica à vacina antisarampo.
As reacções anafilácticas são raras ao toxóide
tetânico, ocorrendo uma em um milhão de administrações. Vários mecanismos imunológicos estão
envolvidos:
– Hipersensibilidade mediada por IgE (muito
rara).
– Reacção de hipersensibilidade tipo III. Vários
estudos demonstram uma correlação entre o
nível de IgG contra o toxóide tetânico e o
grau de reacção local.
– Reacção de hipersensibilidade tipo IV por
presença de timerosal ou hidróxido de
alumínio explicando algumas reacções locais
tardias. A história de reacção anterior ao
toxóide tetânico, hidróxido de alumínio e
timerosal constitui factor de risco.
Na metodologia de diagnóstico os testes cutâneos são discutíveis porque originam muitos
resultados falsos positivos e negativos. Mesmo os
doentes com antecedentes de anafilaxia raramente
evidenciam testes positivos.
Nos casos com história anterior de reacção ao
toxóide tetânico deverá ser ponderado:
1 – Avaliar o título de IgG para verificar a
necessidade de reimunização;
2 – Usar outras formas de toxóide com diferente conservante;
3 – Usar formas isoladas de toxóide tetânico e
não associações DTP e DT;
4 – Iniciar protocolo de dessensibilização sob
orientação do imunoalergologista.
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Ao longo dos últimos anos, coincidindo com o
aumento de prevalência das doenças alérgicas, as
reacções adversas relacionadas com a ingestão de
alimentos têm vindo a ser consideradas um
importante problema de saúde pública. Tais
reacções podem ser denominadas duma forma
abrangente como Hipersensibilidade alimentar e
divididas em duas categorias principais:
1. Alergia alimentar – compreende qualquer
resposta imunológica anormal secundária à
ingestão de um alimento, mais frequentemente
mediada pela produção de anticorpos IgE (alergia alimentar IgE mediada); tal resposta pode
ter subjacentes mecanismos com envolvimento
de outras células e mediadores do sistema imunitário (alergia alimentar não-IgE mediada).
2. Hipersensibilidade alimentar não alérgica
(mais prevalente e anteriormente referida como
intolerância alimentar) – inclui manifestações
clínicas associadas à ingestão de um alimento
ou de um aditivo alimentar, resultantes de fenómenos não imunológicos, tais como reacções
metabólicas, defeitos estruturais, reacções farmacológicas ou reacções idiossincrásicas.
Os quadros de alergia alimentar têm então um substrato imunológico mediado ou não por IgE (celular
ou outro), existindo situações clínicas em que podem
estar envolvidos ambos os tipos de mecanismo
imunológico (mistas). No Quadro 1 exemplificam-se
algumas entidades clínicas representativas de formas
de hipersensibilidade imediata, retardada e mista.
Aspectos epidemiológicos
A epidemiologia da alergia alimentar não é co-
CAPÍTULO 68 Alergia alimentar
QUADRO 1 – Alergia alimentar – Classificação
quanto ao mecanismo imunológico
IgE mediado (início imediato)
Urticária e angioedema, hipersensibilidade intestinal imediata (anafilaxia gastrintestinal), síndroma de alergia oral,
rinoconjuntivite aguda, sibilância (broncospasmo), anafilaxia induzida pelo exercício, choque anafiláctico.
Misto (início variável)
Esofagite eosinofílica alérgica, gastrite eosinofílica alérgica, gastrenterocolite eosinofílica alérgica, dermatite
atópica, asma.
Não IgE mediado (início tardio)
Enterocolite, proctite, enteropatia, síndromas de máabsorção, doença celíaca, síndrome de Heiner
(hemossiderose pulmonar induzida por alimentos), dermatite herpetiforme, dermatite de contacto.
nhecida de forma precisa, quer pela falta de estudos bem desenhados, quer pelos diferentes
critérios de diagnóstico e metodologias utilizados
nos poucos disponíveis, dificultando comparação.
Em inquéritos realizados em amostras populacionais é habitualmente possível identificar uma
frequência elevada de indivíduos convictos de que
são “alérgicos” a algum tipo de alimento, mas em
menos de um terço destes casos tal se confirma
quando se procede a avaliação diagnóstica correcta. Estima-se, assim, que a prevalência de alergia
alimentar na população em geral seja 1% a 3% e em
populações da idade pediátrica, cerca de 8%.
Os alergénios alimentares mais importantes
variam entre as diferentes populações em função
dos hábitos alimentares predominantes e do
grupo etário estudado.
Na população pediátrica o leite e o ovo são os
mais frequentes, seguidos do peixe. A partir da
idade escolar começa a ganhar expressão outro
tipo de alimentos, como os crustáceos, o amendoim, frutos secos e frutos frescos.
Salienta-se a alergia ao amendoim, extrememente prevalente noutros países como EUA e
França, e que parece estar a ganhar expressão
entre nós. Este alimento é actualmente um problema grave nos países anglo-saxónicos pela gravidade, sendo responsável por elevado número de
casos fatais de anafilaxia alimentar. A elevada
prevalência de alergia ao amendoim nestes países
389
correlaciona-se com a introdução precoce deste
alimento sob a forma de respectivos derivados,
hábito até há pouco tempo praticamente inexistente em Portugal, mas que parece estar a modificar-se.
Manifestações clínicas e diagnóstico
As manifestações clínicas de alergia alimentar
podem ser muito variadas, evidenciando o envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas, predominando o compromisso mucocutâneo, gastrintestinal e respiratório. (Quadro 1)
A ampla diversidade de apresentações clínicas
levanta várias dificuldades diagnósticas, especialmente quando estão em causa situações crónicas e
multifactoriais, como a asma brônquica e a dermatite atópica, ou quando se confia excessivamente nos resultados dos meios auxiliares de
diagnóstico in vitro e in vivo, eles próprios com
valor preditivo negativo e positivo variável.
Assim, uma abordagem correcta deve basearse nos seguintes passos:
História clínica – permite identificar os alimentos responsáveis, com base numa relação consistente entre a ingestão do alimento e o aparecimento dos sintomas. A execução de diários alimentares pode ser um auxiliar precioso nos casos
de sintomatologia crónica em que a relação causal
não é óbvia ou quando a informação fornecida
não é rigorosa. O exame objectivo poderá permitir
a exclusão de outras causas das queixas;
Exames auxiliares de diagnóstico – a sua escolha deve basear-se na apresentação clínica e no
respectivo quadro imunológico subjacente, IgE ou
não IgE mediado. Se se suspeitar de um processo
imunitário IgE mediado, a realização de testes
cutâneos com picada e os doseamentos de IgE
específica constituem importantes auxiliares,
nomeadamente na selecção dos alimentos a incluir
na programação de provas de provocação alimentares. Apresentam geralmente um excelente
valor preditivo negativo (superior a 95%), mas um
baixo valor preditivo positivo (inferior a 50%);
Provas de provocação oral – se a clínica apontar para um quadro sem mediação por anticorpos,
reduz-se a utilização de exames auxiliares de
diagnóstico devendo o procedimento diagnóstico
basear-se essencialmente na resposta a dietas de
390
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
evicção e na realização de provas de provocação
oral.
Outros exames – finalmente, na avaliação da
patologia gastrintestinal as biópsias e os estudos
de permeabilidade intestinal podem estar indicados; e os doseamentos de mediadores nas fezes
carecem ainda de validação.
No entanto, mesmo conjugando dados clínicos
e os resultados dos exames auxiliares, não é possível confirmar com segurança a hipótese de diagnóstico inicial em mais do que 30% a 40% dos
casos, mantendo-se as provas de provocação
como gold standard na abordagem diagnóstica e na
avaliação evolutiva dos quadros de alergia alimentar. Estas devem ser efectuadas em meio hospitalar, por clínicos experientes na sua realização,
na interpretação dos sintomas eventualmente
resultantes, e na abordagem terapêutica de
emergência das reacções potencialmente desencadeadas.
Tratamento
O tratamento da alergia alimentar assenta fundamentalmente na evicção dos alimentos identificados e responsabilizados pelo quadro clínico detectado. A terapêutica farmacológica não é habitualmente utilizada, à excepção do tratamento de
emergência da reacção aguda.
Relativamente às medidas de evicção alimentar, há que salientar que na maioria dos casos
fatais o alimento foi ingerido inadvertidamente
pelo doente. Os pais da criança com alergia alimentar devem ser alertados para este facto e ensinados a atitude preventiva, nomeadamente pela
leitura atenta dos rótulos e pelo cuidado na
manipulação dos alimentos, de forma a evitar a
contaminação inadvertida dos alimentos que o
doente irá consumir.
No que diz respeito ao tratamento de emergência, há que salientar a necessidade de elaborar
planos de actuação que devem incluir informação
que permita ao doente e/ou aos pais identificar os
sintomas de alarme e definir critérios para utilização
da terapêutica. Reacções mais ligeiras poderão ser
tratadas com anti-histamínicos e corticóides sistémicos e, no caso de se tratar de um doente asmático,
deve ser prevista a administração de broncodilatadores por via inalatória. Caso se considere que se
trata de um doente de alto risco anafiláctico, deve ser
prescrito estojo de emergência incluindo adrenalina;
e as pessoas que contactam mais de perto com a criança devem ser informadas e treinadas na sua utilização. Após a terapêutica inicial da reacção, o
doente deve ser observado em meio hospitalar onde
deverá permanecer em vigilância algumas horas
dado o risco de reacções bifásicas.
A história natural dos sintomas relacionados
com alergia alimentar é muito variável, tendendo
com frequência a sensibilidade a perder-se com o
tempo. Consequentemente, a realização de provas
de provocação regulares constitui o seguimento
adequado destas formas clínicas. O cronograma
das provas deve ser feito tendo em conta múltiplos factores, como a idade do doente, o tipo de
manifestações clínicas, o alergénio incriminado e a
evolução dos níveis de IgE específica sérica. Estes
procedimentos só devem ser realizados em
ambiente hospitalar, geralmente em regime de
hospital-de-dia, e com supervisão de especialistas
com experiência nesta área.
Como nota importante há a realçar que a negativação dos testes cutâneos não constitui critério
indispensável para a realização de provas de
provocação; a positividade pode persistir para
além da tolerância, nalguns casos durante mais de
uma década. Do mesmo modo as IgE específicas
podem continuar detectáveis muito para além de
se alcançar a tolerância ao alimento.
Prevenção
Dado o elevado impacte desta patologia na qualidade de vida do doente e da sua família e a ausência, até à data, de medidas terapêuticas eficazes, a
prevenção primária adquire nesta situação particular importância. As medidas de prevenção
têm, em regra, tido algum efeito, quando são
incluídos lactentes de alto risco alérgico (ambos os
progenitores alérgicos, ou um progenitor alérgico
e um irmão alérgico ou um alérgico e marcadores
in vitro do lactente positivos). No Quadro 2 estão
enumeradas as medidas preventivas mais consensuais para a generalidade das crianças, e para as
de elevado risco atópico em particular.
A alergia alimentar tem implicações importantes a vários níveis: saúde (riscos de reacções
graves, por vezes fatais, riscos de défices nutri-
CAPÍTULO 68 Alergia alimentar
QUADRO 2 – Alergia alimentar - Prevenção
primária
Todas as crianças
• Gravidez sem restrições dietéticas (excepto amendoim);
• Aleitamento materno sem dieta restritiva da mãe;
• Maternidade – fórmulas hipoalergénicas;
• Aleitamento materno exclusivo até 5/6 meses;
• Evicção de alimentos sólidos até aos 5/6 meses;
• Evicção de exposição tabágica, incluindo na gravidez.
Nas crianças de elevado risco atópico, também
• Aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses;
• Regime materno de restrição durante o aleitamento
(leite, ovo, peixe, frutos secos e amendoim) se dermatite atópica,
• Suplementos ou fórmulas hipoalergénicas, preferencialmente com utilização das fórmulas extensamente
hidrolisadas;
• Evicção de alimentos sólidos até aos 6 meses;
• Ovo e peixe após os 12 meses,
• Frutos secos, amendoim, frutos tropicais e mariscos
após os 36 meses.
cionais), sociais e psicológicos (necessidade de
dietas especiais, de ingestões inadvertidas com
possibilidade de efeito de alergénios ocultos, integração da criança no meio social) e económicos (o
custo das dietas alternativas). Em suma, é importante conhecer as medidas que cada profissional
de saúde deve recomendar para que se possa
inverter a tendência actual na nossa sociedade.
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392
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
69
IMUNODEFICIÊNCIAS
PRIMÁRIAS
Conceição Neves
Definição e importância do problema
As imunodeficiências englobam um grupo de
doenças congénitas e hereditárias que têm em
comum um défice no sisteme imune, quer do
desenvolvimento, quer da função, do que resulta
predisposição para infecções recorrentes com
agentes patogénicos pouco comuns.
As imunodeficiências primárias (IDP) somente
foram identificadas após a introdução dos
antibióticos, já que a mortalidade e morbilidade
devidas à infecção, mesmo em indivíduos
considerados saudáveis, era muito elevada.
De referir que várias síndromas de imunodeficiências com achados clínicos característicos tinham
já sido descritas antes de 1940, incluindo a candídiase mucocutânea por Thorpe e Handley em 1929,
a ataxia-telangiectasia por Syllaba e Henner em
1926 e, a síndroma de Wiskott-Aldrich por Wiskott
em 1937. O primeiro doente com défice da
imunidade celular foi descrito inicialmente por
Glazmann e Riniker em 1950. Os défices do
complemento foram identificados mais tardiamente
em 1965 por Klemperer e seus colaboradores.
Fisiopatologia
A resposta imune corporal depende de uma série de
mecanismos de defesa, designadamente barreiras
físicas, componentes celulares e mediadores solúveis.O sistema imune normal possui dois mecanismos essenciais: numa fase inicial, põem-se em
marcha respostas rápidas e inespecíficas (resposta
imune inata) contra a infecção inicial; depois entram
em acção as chamadas respostas imunes específicas
de adaptação (imunidade específica adquirida)
contra um determinado factor patogénico. Juntos,
estes dois mecanismos cooperam na manutenção de
uma função normal no hospedeiro no que respeita à
resistência às infecções. A interrupção de qualquer elo
deste sistema da resposta imune resulta em incapacidade de controlo da infecção com aparecimento de
subsequente doença.
A resposta imune inata envolve três tipos de
células: células fagocitárias como os neutrófilos e
macrófagos; células “natural killer” que têm a
capacidade de lise de células estranhas ao organismo, e células apresentadoras de antigénios envolvidas na indução da resposta imune de adaptação.
As proteínas do complemento são uma classe
importante de mediadores solúveis da resposta
imune inata, contribuindo para promover a inflamação e a morte de microrganismos extracelulares.
O sistema imune adaptativo é filogeneticamente mais tardio e aparece nos organismos
superiores; envolvendo processos altamente específicos de reconhecimento de substâncias estranhas (antigénios), inclui os linfócitos T e B , responsáveis respectivamente pelas respostas imunes celular e humoral.
A resposta imune celular é mediada primariamente pelas células T, contribuindo para limitar
as infecções intracelulares por vírus, parasitas e
micobactérias.
Os anticorpos, chave principal da resposta
humoral, são produzidos pelas células B activadas
com papel importante no controlo da infecção por
agentes patogénicos extracelulares.
As respostas dependentes de linfócitos T e B não
são independentes uma da outras; assim, défice de
qualquer das linhagens pode afectar tanto a imunidade celular quanto a humoral em grau variável.
Na actualidade são conhecidos os genes responsáveis por grande número de imunodeficiências congénitas.
Em suma, considera-se que o sistema imune,
por conveniência clínica e fisiopatológica, integra
os seguintes componentes essenciais:
• Linfócitos B (sistema imune humoral)
• Linfócitos T (sistema imune celular)
• Sistema fagocitário (polimorfonucleares e mononucleares)
• Sistema do complemento (relacionado com a
opsonização).
CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias
Esta sistematização permite adaptar uma
classificação das IDP (cujas características essenciais são adiante discriminadas) mais ajustada à
prática clínica; de referir, no entanto, que muitas
doenças têm deficiências de um ou mais sistemas,
particularmente défices humorais e celulares
combinados.
Aspectos epidemiológicos
Mais de 80 IDP são hoje reconhecidas pela
Organização Mundial de Saúde. A incidência de
muitas delas é desconhecida devido à falta de
registos nacionais. Num registo americano da
Immune Deficiency Foundation estima-se que
existam aproximadamente 50.000 casos nos
Estados Unidos com a incidência de 1/10.000
nascimentos. Na Europa, em 1994, através da
European Society of Immunodeficiency, foram
reunidos dados de 10.000 doentes pertencentes a
26 países, não havendo, no entanto, conhecimento
acerca do número actual de registos. Estima-se que
surjam aproximadamente 400 novos casos/ano em
crianças nascidas nos Estados Unidos.
Manifestações clínicas
Os doentes com IDP são susceptíveis a infecções
que, não sendo reconhecidas e tratadas atempadamente, podem ser letais. Existem determinados
sinais e sintomas que podem conduzir o clínico a
suspeitar de IDP. (Quadro 1)
Uma história clínica pormenorizada pode dar
indicadores para o diagnóstico, já que muitas IDP
são herdadas de modo dominante ligado ao X, ou
autossómicas recessivas.
As crianças com infecções oportunistas com
patogénios não habituais, restrição de crescimento
e algumas doenças cutâneas nos primeiros meses
de vida têm, na sua forma típica, anomalias das
células T.
Apesar de os anticorpos maternos adquiridos
por via transplacentar e as próprias células
fagocitárias e complemento serem suficientes para
proteger as crianças com IDP de infecções bacterianas, elas são altamente susceptíveis a doenças
por vírus, fungos e protozoários já nos primeiros
meses de vida.
As crianças com infeções bacterianas graves
393
QUADRO 1 – Sinais suspeitos de imunodeficiência primária
• Oito ou mais otites durante um ano
• Duas ou mais sinusites graves durante um ano
• Necessidade de, pelo menos, 2 meses de antibiótico
com resposta ineficaz
• Duas ou mais pneumonias por ano
• Falência de ganho ponderal ou restrição de crescimento
• Abcessos recorrentes cutâneos ou de órgãos profundos
• Candidíase bucal ou cutânea persistente , após o 1º
ano de vida
• Necessidade de antibioticoterapia endovenosa para o
tratamento de infecções
• Duas ou mais infecções graves em órgãos profundos
• História familiar de imunodeficiência primária
Adaptado : The warning signs of primary immunodeficiency.
The Jeffrey Model Foundation,2007
após os 6 meses de vida têm alteração das células B.
Esta idade coincide com o desaparecimento das IgG
maternas mantendo, no entanto, uma somatometria
e desenvolvimento psicomotor adequados.
Os défices das células fagocitárias podem ser
de início observados em crianças com patologia
do foro dermatológico ou odontológico.
Os défices do complemento podem apresentar-se exactamente da mesma forma do défice
de células B, com infecções bacterianas graves.O
complemento não atravessa a placenta; o respectivo défice pode ocorrer em qualquer idade. De
referir que muitas situações acompanhadas de
défice do complemento revelam-se, sobretudo,
por manifestações do foro reumatológico e, menos
frequentemente, por infeções recorrentes.
São referidas seguidamente as características
essenciais das IDP.
1. Doenças da imunidade humoral
Afectam a diferenciação das células B e a produção de anticorpos. Correspondem a cerca de
50% de todas as IDP. Na maioria dos casos os
doentes manifestam-se após os 6 meses de idade
quando há uma diminuição da taxa dos anticorpos maternos transmitidos por via transplacentar. Tipicamente desenvolvem-se infecções
394
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com bactérias capsuladas, das quais as mais
frequentes são as infecções sinopulmonares.
O quadro designado por imunodeficiência
variável comum corresponde à situação mais
frequentemente diagnosticada, englobando um
grupo heterogéneo de doenças que têm de comum
hipogamaglobulinémia. Estes doentes têm uma
resposta ineficaz a vacinas, e um risco aumentado
de desenvolvimento de doenças autoimunes e
tumorais.
O défice selectivo de IgA pode ter a incidência
mais elevada, mas é muitas vezes assintomático e
subdiagnosticado.Os doentes apresentam-se com
infecções do aparelho respiratório e com envolvimento gastrintestinal; verifica-se uma resposta
normal a vacinas.
A doença de Bruton ou agamaglobuliménia ligada ao X é causada por uma mutação ou
ausência do gene tirosina-cinase de Bruton (BTK).
O desenvolvimento precoce das células B não é
efectuado e as imunoglobulinas estão muito
diminuídas ou ausentes.
2. Défices combinados de células T e B
Geralmente estas doenças são mais graves que as
provocadas por défice de imunidade humoral. Os
doentes afectados apresentam-se precocemente
com restrição de crescimento e infecções disseminadas.
A síndroma de DiGeorge é uma das entidades
mais reconhecidas neste grupo.
Geralmente tais défices cursam com infecções
víricas e fúngicas fatais.
A imunodeficiência grave combinada está
associada a profunda deficiência da função das
células T e B (e algumas vezes das células natural
killer). Caracteriza-se por infecções oportunistas
graves, ou diarreia crónica e restrição de crescimento. Cerca de metade dos casos corresponde à
hereditariedade ligada ao X e os restantes herdados de modo autossómico recessivo.
A síndroma de Wiskott-Aldrich é uma doença
recessiva ligada ao X; caracteriza-se por trombocitopénia, plaquetas de volume diminuído, disfunção plaquetar, eczema e susceptibilidade às
infecções. As crianças apresentam-se na sua forma
típica com hemorragia prolongada no local de
circuncisão, diarreia sanguinolenta e equimoses
generalizadas.
3. Défices fagocitários
A forma mais comum é a doença granulomatosa
crónica, afectando sobretudo o sexo masculino. O
défice da fosfatase da nicotinamida-adeninadinucleótido nos fagócitos resulta numa eliminação defeituosa dos patogénios extracelulares
como bactérias e fungos. Os doentes são mais
susceptíveis a infecções com organismos catalasepositivos (estafilococos) que requerem actividade
fagocítica eficaz para a sua eliminação.A causa de
morte mais frequente é a infecção por Aspergilus.
4. Défices do complemento
Contribuem para 2% de todas as IDP.Os défices da
via clássica são os mais comuns e os doentes
apresentam-se com manifestações autoimunes
como as síndromas “lupus-like” ou semelhantes a
lúpus. Os doentes com alterações da via alternativa
têm habitualmente infecções por Neisseria.
Os doentes com défice de properdina estão
particularmente predispostos a infecções por N
meningitidis.
O angioedema hereditário ocorre nos casos em
que se verifica défice de síntese do inibidor de C1
(C1INH).
O Quadro 2, de utilidade na prática clínica, relaciona as manifestações clínicas com a base patogénica e a probabilidade de relação com determinados germes causais.
O Quadro 3 sintetiza os exames complementares
básicos para identificação da imunodeficiência.
Na presença de um diagnóstico incerto, poderá
haver necessidade de mais exames complementares, tais como estudos genéticos e de imunofenotipagem. Em tal circunstância o doente deverá
ser encaminhado para uma consulta de imunologia
clínica.
Tratamento
Discriminam-se, a seguir, de modo conciso aspectos da actuação prática (profiláctico-terapêutica)
pressupondo que as situações de IDP deverão ser
seguidas num centro especializado.
Imunoglobulina endovenosa
Utilizada nos casos de agamaglobulinémia,
agamaglobulinémia ligada ao X, défices de anticorpos, imunodeficiência variável comum, imu-
CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias
395
QUADRO 2 – Manifestações clínicas de imunodeficiência e organismos causais
Anomalia
Células T
Células B
Fagocitos
Complemento
Manifestação clínica
Candidiase oral persistente
Diarreia crónica
Exantema
Pneumonia intersticial
Otite média recorrente
Sépsis
Meningite
Artrite supurada
Pneumonia
Sinusite
Abcessos em tecidos moles, na pele,
pulmão, maxilares
Úlceras bucais
Queda tardia do cordão umbilical
Otite média recorrente
Sépsis
Meningite
Artrite supurada
Pneumonia
Sinusite
Doenças autoimunes
Angioedema
nodeficiência grave combinada e défices selectivos de subclasses de IgG (dose de IGIV: 400
mg/Kg/mês).
Transplante de medula óssea
Indicado em caso de imunodeficiência grave
combinada, síndroma de DiGeorge e síndroma de
Microrganismo
Candida albicans
Pneumocystis jiroveci
Micobactérias atípicas
Citomegalovírus
H. influenzae tipo b
S. pneumoniae
Staphylococcus aureus
Echovirus
Staphylococcus aureus
Serratia marcescens
Klebsiella
Candida
Aspergilus
Staphylococcus aureus
H. influenzae tipo b
S. pneumoniae
Neisseria meningitidis
Wiskott-Aldrich. Os resultados não são conclusivos
na doença granulomatosa crónica.
Terapêutica antimicrobiana e imunoterapia
Em doentes com doença granulomatosa crónica o
uso de antimicrobianos profilácticos como trimetoprim-sulfametoxazol reduz para metade a inci-
QUADRO 3 – Diagnóstico laboratorial das IDP
Imunodeficiência
Todos os tipos
Défice de anticorpos
Imunodeficiência celular
Défice do complemento
Défice fagocitário
Exames complementares básicos
Hemograma completo
Estudo do sangue periférico
Imunoglobulinas (doseamento)
Titulos de anticorpos pós imunização
Iso-hemaglutininas
Provas cutâneas de hipersensibilidade retardada
Radiografia do tórax
Complemento hemolítico total(CH50)
Prova do nitro-azul de tetrazólio
Estudo da população CD11+/CD18+
396
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dência de infecções. Nos défices do complemento
preconiza-se a vacinação anti H influenzae, S
pneumoniae e N meningitidis, igualmente das
pessoas que contactam com o doente. No casos de
angioedema hereditário está indicada a profilaxia
com infusão de concentrado de C1INH nos casos
submetidos a tratamento cirúgico ou procedimentos estomatológicos.
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A síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
– descrita neste capítulo como exemplo de imunodeficiência secundária – é uma doença provocada
por um vírus que destrói os mecanismos de defesa
imunitária do organismo (os linfócitos T) expondo-o a diversas infecções oportunistas graves(candidíase esofágica e broncopulmonar, criptococose
disseminada do sistema nervoso central, pneumonia intersticial por Pneumocystis jiroveci ou por
micobactérias atípicas, etc.). A estas acrescentamse ainda, em todos os estádios de doença, certas
neoplasias como sarcoma de Kaposi e linfomas.
Trata-se, pois, dum problema grave de saúde
pública que comporta elevadas taxas de morbilidade e de mortalidade.
Pouco tempo depois de descritos os primeiros
casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em
1982, foram identificados os agentes responsáveis
por esta entidade clínica: primeiramente o vírus da
imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje disseminado em todas as regiões do Mundo; e, mais
tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2
(VIH2), mais comum em determinadas regiões da
África Ocidental, designadamente Guiné.
Os agentes microbianos em causa são retrovírus humanos ARN que se integram no genoma
das células-alvo como um pró-vírus, sendo que o
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida
genoma vírico é copiado durante a replicação celular, persistindo na pessoa infectada toda a vida.
Aspectos epidemiológicos
Apesar de demonstrada a presença do VIH em
estado latente em várias células e fluidos corporais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uterinas e leite humano estão implicados na transmissão da infecção. São, pois, três as vias de transmissão do VIH: contacto sexual; via percutânea
(agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição
das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais
com altos títulos de VIH; transmissão vertical
mãe-filho, durante a gravidez, na data do parto e
pelo aleitamento materno.
Devido a medidas de exclusão de dadores de
sangue potencialmente infectados, tratamentos de
inactivação vírica de concentrados de factores da
coagulação, e utilização desde há alguns anos de
factores da coagulação recombinantes, a transfusão de sangue ou produtos derivados tornou-se
uma via raríssima de transmissão VIH, pelo
menos nos países desenvolvidos.
Na ausência de contacto sexual ou de
exposição parentérica ou mucosa a sangue ou fluidos corporais contendo sangue, muito raramente
se tem demonstrado a transmissão do VIH em
contactos familiares ou na prestação de cuidados
em instituições de saúde. Também nunca foi
demonstrada a transmissão do VIH em escolas ou
creches.
De acordo com dados da OMS, no final de 2005
havia em todo o mundo mais de 2 milhões de
crianças com menos de 15 anos infectadas com o
VIH, com uma taxa de incidência anual de cerca
de 640 mil. Estima-se que nesse ano tenham morrido mais de 500 mil crianças.
Dados do Instituto Nacional de Estatística de
Portugal indicam um total de 28 370 casos de
infecção pelo VIH; destes, 12 702 correspondem a
SIDA(0,8% em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4
das quais em idade reprodutiva). Na região de
Lisboa em cerca de 1% as grávidas são seropositivas para o VIH, situação comparável à de certas
regiões de África ao sul do Saará.
Nos países industrializados mais de 90% das
crianças infectadas com menos de 13 anos adquiriram a infecção por via perinatal. As 10% restantes
397
incluem crianças politransfundidas, sobretudo
hemofílicas, com sangue, componentes do sangue
ou concentrados de factores da coagulação contaminados. Poucos casos de infecção VIH resultaram de abuso sexual.
Nesses países incluindo Portugal actualmente
quase todas as novas infecções são adquiridas por
transmissão vertical (cerca de 25-40% dos casos
ocorrem no decurso da gravidez e, entre 60-75% ,
durante o parto).
Nos adolescentes a transmissão do VIH é
atribuída sobretudo a exposição sexual e/ou toxicodependência. No nosso país, segundo dados
do Centro de Vigilância Epidemiológica de
Doenças Transmissíveis (CVEDT), nos últimos
anos o número de casos de infecção neste grupo
etário, tem vindo a diminuir.
Ao aleitamento materno também é atribuído
papel de transmissão(determinadas estatísticas
apontando taxas entre 8 e 30%), salientando-se
que os maiores índices se verificam durante a
infecção aguda da mulher lactante, em relação
directa com a duração da amamentação, e com a
evidência de patologia mamária acompanhada de
eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras).
Antes do advento da profilaxia ou tratamento
com fármacos antiretrovíricos a taxa de transmissão perinatal do VIH era estimada entre 13% e
39%, sendo na Europa e em Portugal de cerca de
15%.
Em relação ao VIH2 a taxa de transmissão estimava-se em menos de 5%. Com a utilização dos
antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal
diminuiu cerca de 3/4.
A determinante materna de maior risco de
transmissão do VIH à criança é uma maior carga
vírica (infecção recente). Outros factores associados com um risco aumentado de transmissão
incluem: número baixo de linfócitos CD4+,
doença materna avançada, condições intraparto
com aumento da exposição do feto ao sangue
materno, inflamação da membrana placentária,
parto prematuro, parto prolongado e rotura prolongada de membranas. O aleitamento materno
constitui também um risco adicional importante.
É possível hoje, tendo em conta os factores de
risco mencionadas, diminuir a transmissão vertical do VIH para menos de 2% com intervenções
que incluem: utilização antenatal, perinatal e pós-
398
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
natal de fármacos antirretrovíricos (zidovudina,
nevirapina, lamivudina); cesariana electiva para
evitar contacto com o canal de parto; evicção do
aleitamento materno, a ponderar em função de
contexto económico e social.
Manifestações clínicas
A infecção pelo VIH na criança e no adolescente
origina um largo espectro de manifestações clínicas e uma evolução variada, representando a
SIDA o espectro clínico terminal mais grave. A
história natural da infecção pelo VIH caracterizase por um período assintomático (mais curto nas
crianças infectadas por via vertical), a que se
segue uma fase de doença progressiva, embora
com velocidades de progressão diferentes de criança para criança e até na mesma criança, dependendo, entre outros factores, de características do
vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, da
terapêutica prescrita e da adesão à mesma.
A apresentação clínica varia com o grau de
imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas,
crianças com imunodeficiência ligeira podem apresentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenomegália, parotidite; com imunodeficiência moderada
pode haver infecções bacterianas recorrentes, candidíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia
intersticial linfóide (LIP), trombocitopénia; manifestações de imunodeficiência grave a muito grave
incluem infecções oportunistas (pneumonia por
Pneumocystis jiroveci, esofagite por Candida, infecção
disseminada por Citomegalovírus, infecções crónicas
ou disseminadas por Herpes simplex ou Varicela
zoster, infecção por Mycobacterium tuberculosis,
Mycobacterium avium complex, enterites crónicas por
Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado do
desenvolvimento (Wasting Syndrome), encefalopatia, e tumores malignos (raros na criança).
De acordo com critérios propostos pelos CDC e
AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro
formas clínicas agrupando um conjunto de determinados sinais, sintomas e de resultados de
exames complementares, a saber:
Forma assintomática ou N
Nesta forma clínica verifica-se ausência de sintomatologia ou apenas um dos parâmetros da
forma clínica seguinte-A.
Forma ligeira ou A
Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois
ou mais dos parâmetros seguintes desde que não
se verifique qualquer dos que fazem parte das
formas B ou C.
Os parâmetros que definem a forma A são:
hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfadenopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em
duas cadeias ganglionares diferentes).
Forma moderada ou B
Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb<
8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bacteriana, sépsis ou pneumonia,candidíase oral
durando > 2 meses, miocardiopatia,febre > 1 mês,
varicela disseminada ou complicada, toxoplasmose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia
intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster
com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2
episódios anuais de estomatite pelo vírus Herpes
simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV
no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica,
infecção por CMV no RN.
Forma grave ou C
Para se incluir o caso nesta forma é condição
necessária a verificação de qualquer dos parâmetros a seguir mencionados, exceptuando a LIP:
infecções bacterianas graves e recorrentes, sistémicas ou localizadas , confirmadas por exame cultural com a frequência de, pelo menos, 2 episódios
por ano; encefalopatia persistindo mais de 2 meses,
comprovada por exames imagiológicos-TAC,RMN;
linfoma; sarcoma de Kaposi; desnutrição grave
acompanhada de diarreia crónica, febre de duração
superior a 30 dias;toxoplasmose cerebral iniciada
após o período neonatal, histoplasmose disseminada, estomatie/esofagite/ pneumonite por HSV em
crianças de idade superior a 1 mês e de duração
superior a 1 mês; pneumonia por Pneumocystis;
infecções disseminadas por micobactérias de diversas espécies; infecções por CMV após o período
neonatal; candidíase esofágica ou pulmonar; coccidioidomicose disseminada; criptococose; diarreia
crónica por criptosporidíase ou isosporíase.
Exames complementares
A suspeita de infecção é levantada pelo conhecimen-
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida
to de dados epidemiológicos indicadores de exposição provável ao vírus, ou pela existência de sintomas sugestivos de infecção. A precocidade do diagnóstico possibilita a adopção de medidas de profilaxia e terapêutica numa fase de relativo bom estado de
imunidade e, deste modo, o prolongamento do
período assintomático e a consequente melhoria da
qualidade de vida da criança e da família.
Como se disse, a infecção pelo VIH na criança
nos países desenvolvidos como em Portugal é
quase exclusivamente adquirida por via vertical. O
primeiro passo é, pois, a identificação da infecção na
mãe, pelo que se recomenda a realização de serologia VIH em todas as grávidas, pelo menos no 1º e
3º trimestres (com consentimento informado).
O conhecimento da infecção em tempo útil na
mãe permite à mulher infectada receber terapêutica antirretrovírica apropriada e profilaxia contra
infecções oportunistas, efectuar quimioprofilaxia
com antirretrovíricos (zidovudina, nevirapina,
lamivudina), programar cesariana electiva para
prevenção da transmissão à criança e impedir o
aleitamento materno; e no RN iniciar quimioprofilaxia (zidovudina, nevirapina, lamivudina), iniciar profilaxia para o Pneumocystis jiroveci nas crianças expostas e facilitar o diagnóstico precoce de
infecção na criança para início de terapêutica
antirretrovírica (ver adiante).
O diagnóstico é sempre laboratorial (com
excepção dos países mais pobres onde se aceita o
diagnóstico de SIDA, com base na aplicação dos
critérios clínicos e epidemiológicos definidos pela
O.M.S), dispondo-se para tal de exames serológicos e virológicos.
O diagnóstico de infecção na criança menor de 18
meses pode fazer-se por cultura ou por PCR-DNA.
A PCR-DNA, por necessitar de menor quantidade
de sangue e pelo facto de os respectivos resultados serem mais rápidos, deve ser o método escolhido.
O diagnóstico provável de infecção pelo VIH
na criança é feito com um destes testes positivo.
Deve ser efectuada uma segunda colheita de imediato. O diagnóstico definitivo é efectuado com
dois resultados positivos.
Nos filhos de mães seropositivas para o VIH, a
PCR-DNA ou o exame cultural, devem ser efectuados às 48 horas, aos 14 dias, entre o 1º e o 2º
mês e entre o 4º e o 6º mês.
399
Se os resultados forem negativos, deve
realizar-se estudo serológico VIH por ELISA /
WB de 3 em 3 meses e, depois, entre o 1 ano de
idade e os 18 meses.
Para o diagnóstico de infecção na criança maior de
18 meses é suficiente o resultado de serologia positiva (ELISA / WB), podendo também utilizar-se
os mesmos critérios aplicáveis à criança menor
de 18 meses.
A PCR-RNA ou a determinação da “carga vírica” não são, por enquanto, consideradas técnicas
recomendadas para o diagnóstico, embora possam ser utilizadas (técnica ultra-sensível com limiar de detecção suficientemente baixo – 20 a 50
cópias).
O diagnóstico de infecção pelo VIH pode ser excluído com elevada probabilidade se:
1) dois ou mais exames virológicos forem
negativos, desde que efectuados com idade igual
ou superior a 1 mês, e um deles, obrigatoriamente,
com idade superior a 4 meses, em criança sem
evidência clínica de infecção; ou :
2) dois ou mais resultados serológicos negativos para VIH, se a idade for superior a 6 meses,
com, pelo menos, um mês de intervalo, em criança
sem evidência clínica de infecção.
A infecção pelo VIH pode ser definitivamente
excluída aos 18 meses se o resultado do estudo
serológico for negativo, na ausência de hipogamaglobulinémia, em criança sem evidência clínica de
infecção e com resultados de estudos virológicos
negativos.
A contagem de linfocitos CD4+ por citometria
de fluxo constitui uma técnica fundamental para
determinar o estádio evolutivo da infecção na
idade pediátrica, estabelecer a data de início da terapêutica antirretrovírica, e também a profilaxia
das infecções oportunistas.
Cabe referir, a propósito, que os valores de
referência na criança até aos seis anos de idade
são mais elevados do que no adulto; por outro
lado, é importante salientar que poderá haver
discordância entre ausência ou presença de sintomatologia e ausência ou presença de sinais de
imunossupressão.
O Quadro 1 discrimina os valores de linfocitos T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos,
em relação com o grau de compromisso imunológico.
400
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Valor quantitativo de CD4+ (por mm3 e em % )
Quadro Imunológico
< 1 ano
1-5 anos
6-12 anos
Normal
Alteração moderada
Alteração grave
> 1500 (>25%)
750-1499 (15-25%)
<750 (<15%)
> 1000 (> 25%)
500-999 (15-25%)
<500 (<15%)
>500 (>25%)
200-499 (15-25%)
<200 (<15%)
Adaptado de ER Stiehm e col, 2004
Tratamento
O tratamento da infecção pelo VIH na criança
tem-se tornado cada vez mais complexo e a prescrição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por
um especialista com experiência nesta área em
centros especializados .
O controlo eficaz das necessidades de uma
criança infectada obriga necessariamente à
disponibilidade de uma equipa multidisciplinar
incluindo Médico de família, Pediatra, Infecciologista, Enfermeiro, Imunologista, Virologista,
Psicólogo, Assistente Social, Farmacêutico e
Dietista.
Torna-se igualmente necessário proceder à
monitorização regular da contagem de linfócitos
CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter
acesso ao perfil genotípico das resistências aos
antirretrovíricos.
Há que ter em atenção as características especiais da infecção pelo VIH na criança: na grande
maioria das crianças adquire-se o vírus por transmissão perinatal; a transmissão ocorre na grande
maioria dos casos em período próximo do parto
ou mesmo durante o parto, o que possibilita a
terapêutica da infecção primária.
Uma vez que a infecção perinatal ocorre durante
o desenvolvimento do sistema imunológico, as manifestações clínicas e os marcadores imunológicos e
virológicos são diferentes dos do adulto.
Há factores a considerar no planeamento de
um regime antirretrovírico: disponibilidade; tolerância; eficácia; formulações; perfil de efeitos
secundários dos medicamentos, incluindo frequência de administração e seu impacte na escola,
família e vida social; interacção com outros
medicamentos e alimentos; desenvolvimento de
resistência antirretrovírica e planeamento futuro
dos subsequentes regimes.
Antes de se iniciar a terapêutica é fundamentar esclarecer e formar intensivamente a família,
treinando-a na administração dos medicamentos,
explicando a importância da adesão e esclarecendo dúvidas. É necessário ainda o seguimento
intensivo durante os meses iniciais da terapêutica
e a verificação da tolerância.
As recomendações para o início da terapêutica
antirretrovírica combinada não são ainda absolutamente consensuais e o seu início precoce colhe
argumentos e contra-argumentos.
São vários os fármacos antirretrovíricos disponíveis para tratamento da criança e adolescente:
• Inibidores da Transcriptase Reversa
Nucleosidos – ITRN’s – abacavir, didanosina
(ddI), lamivudina (3TC), stavudina (d4T), tenofovir, zalcitabina (ddC), zidovudina (ZDV, AZT),
ZDV + lamivudina, ZDV + lamivudina + abacavir
• Inibidores da Transcriptase Reversa Não
Nucleosidos – ITRNN’s – delavirdina (DLV),
efavirenz (EFV), nevirapina (NVP)
• Inibidores da Protease – IPs – amprenavir,
indinavir, nelfinavir, ritonavir, saquinavir,
lopinavir + ritonavir
• Inibidores da Fusão – enfuvirtide
Os regimes mais utilizados na criança para início de tratamento incluem uma associação tripla
(2 ITRN + 1 IP ou ITRNN). Em certos casos é
necessária uma associação quádrupla (2 ITRN + 2
IP, ou 2 ITRN +1 IP + 1 ITRNN). As associações
duplas (2 ITRN) são cada vez menos utilizadas e
qualquer monoterapia não é recomendada.
A prescrição dos antirretrovíricos deve ser
cuidadosamente ponderada tendo em conta todos
os factores apontados, pois, para além das repercussões que possa vir a ter na sobrevivência e na
qualidade de vida das crianças infectadas, tem
custos muito elevados.
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida
Prevenção
Para a prevenção da transmissão vertical da
infecção pelo VIH na criança é importante a
adopção das seguintes medidas: rastreio da
infecção na grávida; realização de cesariana electiva, sempre que possível; terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido; e evicção do
aleitamento materno.
Em relação à terapêutica antirretrovírica na
grávida e recém-nascido, o esquema utilizado
durante a gravidez deverá ser sempre discutido
com a mulher, colocando à sua disposição os
conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios
da administração dos vários antirretrovíricos. Há
que ter em conta os cenários possíveis:
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretrovírica anterior e sem indicação para terapêutica: quimioprofilaxia com zidovudina
recomendada a partir das 14 – 34 semanas de
gravidez; considerar a utilização de outros
antirretrovíricos.
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretrovírica anterior e com indicação para terapêutica: terapêutica semelhante à que é instituída em mulher não grávida, mas sempre
incluindo zidovudina; o seu início deve ser
diferido até às 10 – 12 semanas de gravidez,
de acordo com a situação clínica e a opção da
mulher.
• Mulher sob terapêutica prévia com antirretrovíricos: manutenção da terapêutica se
esta estiver a ser eficaz; suspensão da terapêutica até às 10 – 12 semanas de gravidez
por decisão da mulher; associar sempre
zidovudina se esta não fizer parte do esquema terapêutico, após as 14 semanas.
• Mulher que se apresenta em trabalho de
parto sem seguimento médico anterior:
zidovudina intra-parto e à criança .
• Recém-nascido de mãe que não recebeu terapêutica: zidovudina durante 6 semanas
iniciada até às 48h após o nascimento:
(2mg/kg/dose de 6-6 horas). Pode considerar-se a associação com outros antirretrovíricos).
Outros esquemas incluem como antirretrovíricos a nevirapina ou a associação zidovudina +
lamivudina.
401
A grávida infectada pelo VIH deve ser seguida
em Consulta de Alto Risco, sendo ainda
necessário rastrear outras doenças transmissíveis,
por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplasmose, hepatite B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia
e Chlamydia .
A puérpera deve ser encaminhada para uma
Consulta de Planeamento Familiar.
Para prevenção das infecções secundárias na
criança com infecção pelo VIH devem ser instituídas medidas adequadas, as quais constituem um
pilar essencial no tratamento das mesmas. A profilaxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela
administração de vacinas, imunoglobulinas e antimicrobiano:
Vacinas – Aos filhos de mulheres seropositivas, com infecção indeterminada ou infectadas,
devem ser administradas todas as vacinas inactivadas de acordo com o actual Programa Nacional
de Vacinação.
A vacina contra o sarampo, parotidite e rubéola (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem
de linfócitos CD4 ≥15% (contraindicada , no entanto, se houver sinais de imunossupressão grave,
declínio rápido do número ou percentagem de
CD4+ e em crianças com a forma grave de doença).
Deve ser administrada, de preferência, aos 12
meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses) se o
risco de agravamento da doença e/ou o risco de
exposição ao sarampo for elevado.
A vacina contra a varicela deve ser considerada em crianças assintomáticas ou ligeiramente
sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥
25%.
A vacina antigripe deve ser administrada no
princípio do Outono às crianças com mais de 6
meses de idade e a todos os seus contactos, incluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s).
Em relação à vacina antipneumocócica deve
efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.
A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres
seropositivas deverá ser adiada até que a infecção
pelo VIH seja excluída.
Imunoglobulinas – A administração regular
(mensal) de imunoglobulina inespecífica intra-
402
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
venosa (IGIV) está indicada em situações de
hipogamaglobulinémia (IgG < 250mg/dL), ausência de resposta humoral a antigénios comuns
(vacinas, por exemplo), infecções bacterianas,
graves e recorrentes, e crianças vivendo em área
endémica de sarampo e sem resposta a 2 doses de
vacina. Tal administração de imunoglobulinas
deve também ser considerada em situações pósexposição a hepatite B, tétano, varicela e sarampo.
Antimicrobianos – Para a prevenção da pneumocistose utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol(cotrimoxazol), a iniciar pelas 6 semanas de idade
na dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habitualmente em dose única diária, trissemanalmente.
Esta medicação é interrompida se a infecção for
excluída (dois resultados de carga vírica na ausência
de sintomatologia e em crianças não amamentadas).
Seguimento
Dados os problemas habitualmente associados a
crianças e famílias com tal patologia ( dificuldade
de que se reveste o seguimento destas crianças – e
de suas mães – decorrentes da complexidade da
patologia, da necessidade de aplicação de esquemas terapêuticos rigorosos e de contextos económicos e sociais habitualmente complicados, o
acompanhamento deve ficar a cargo de equipas
multidisciplinares experientes e proactivas, possível em consulta própria, de modo a propiciar
apoio eficaz, eficiente e efectivo. Chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de promover
uma boa articulação com as equipas médicas e de
enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde
Primários, igualmente implicadas nos cuidados a
prestar que deverão primar pela qualidade e em
espírito de humanização.
BIBLIOGRAFIA
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Philadelphia: Elsevier Mosby, 2005
PARTE XIII
Oto-rino-laringologia
404
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
71
FARINGITE
Carlos Ruah
Definições e importância do problema
Faringite é um termo geral usado para descrever a
inflamação ou infecção da faringe, incluindo o
anel de Waldeyer. Nas crianças o termo rinofaringite pode sobrepor-se a adenoidite. Em relação à
orofaringe, há autores que falam em faringoamigdalite em vez de faringite. Assim, subentende-se que faringite é uma infecção da orofaringe com ou sem componente inflamatório das
amígdalas palatinas. Se este componente é predominante e domina o quadro clínico, fala-se em
amigdalite. As faringites podem ser divididas em
agudas e crónicas
O estabelecimento da flora normal da faringe
inicia-se logo após o nascimento, sendo a mesma
colonizada por lactobacilos e estreptococos anaeróbios. Aos 6 meses de idade já se encontram actinomicetas, fusobactérias e bacteróides. As
fusobactérias atingem o auge com a dentição e ao
ano de idade, com uma relação da flora saprófita
aeróbia e anaeróbia de 1/10. O Streptococcus do
grupo A é um habitante normal da nasofaringe em
15-20% das crianças. Colheitas feitas em crianças
assintomáticas demonstraram que, para além da
flora saprófita, podem existir Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus betahemolítico do grupo A, Moraxella catarrhalis e
Staphylococcus aureus.
1. Faringite Aguda
Etiopatogénese
As formas agudas ocorrem sobretudo na época
invernal e são frequentemente víricas, incluindo
os adenovírus, rinovirus, influenza, parainfluenza
e o vírus sincicial respiratório. As formas bacteria-
nas instalam-se sobre as víricas ou ocorrem primariamente, sendo habitualmente causadas por
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e
Moraxella catarrhalis.
De todas as bactérias a mais frequente é o
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A pelo que
convém relembrar algumas noções básicas sobre
Streptococcus: 1) É uma bactéria gram positiva,
classificada em 18 grupos (de Lancefield) designados por uma letra maiúscula, consoante o componente de hidrato de carbono antigénico da sua
parede celular; 2) Ainda são classificados consoante a capacidade de hemolisar eritrócitos de
carneiro: o beta-hemolítico causa hemólise, o alfahemolítico causa hemólise parcial e o gama-hemolítico não causa hemólise; 3) A patogenicidade da
bactéria é dada pela proteína M com 80 serotipos;
a mesma é responsável pela resistência bacteriana
à fagocitose; 4) A existência no hospedeiro, de
uma IgG anti-proteína M específica a um dos
serotipos, confere imunidade contra esse estreptococo; 5) Produz cerca de 20 exotoxinas das quais 2
são importantes: a estreptolisina 0, antigénica, e a
estreptolisina S que não é antigénica; 6) Ainda
produz 3 endotoxinas eritrogénicas. 7) Não se isolaram até hoje estreptococos resistentes à penicilina; no entanto já foram obtidos em laboratório,
verificando-se que todos eles têm ausência de proteína M (portanto, fagocitáveis).
A faringite também pode ser provocada por
fungos, sobretudo Candida, em crianças submetidas a tratamento frequente com antibióticos ou
imunocomprometidas.
Manifestações clínicas
As infecções víricas produzem odinofagia com
febrícula, sensação de secura, irritação faríngea
com pigarro que se pode estender à árvore
laringo-tráqueo-brônquica com tosse, inicialmente seca, e depois com expectoração. A faringe
apresenta-se ligeiramente vermelha: habitualmente tais infecções não se acompanham de
adenopatias.
As infecções bacterianas produzem habitualmente dor mais intensa, febre alta, odinofagia
intensa, mal estar geral e, por vezes, dor abdominal. A faringe apresenta-se mais vermelha, por
vezes com exsudado que pode fluir da nasofa-
CAPÍTULO 72 Amigdalite
ringe; nestas situações as adenopatias cervicais
são frequentes.
Tratamento
As formas víricas tratam-se com repouso,
hidratação , analgésicos, antipiréticos e dieta adequada à odinofagia.
As formas bacterianas obrigam a antibioticoterapia: 1) amoxicilina na dose de 50
mg/kg/dia dividida em 2-3 doses, durante 7-10
dias; ou 2) penincilina G benzatínica na dose de
50.000 unidades/kg via intramuscular (máxima
dose: 1.200.000 U); em regra 600.000 U se a criança
tiver menos de 15 kg e 1.200.000 U se mais de 15
kg; ou como alternativa se houver alergia à penicilina, 3) cefalosporinas de primeira geração como
cefradina (50 mg/kg/dia em 3 tomas) ou
cefadroxil (30 mg/kg/dia em 2 tomas), durante
7-10 dias.
No caso de alergia à penicilina ou cefalosporinas
devem utilizar-se macrólidos (por ex. eritromicina,
40-50 mg/kg/dia em 3 tomas e 10 dias ou claritronicina, 15 mg/kg/dia em 2 tomas e 10 dias, ou
azitromicina, 20 mg/kg/dia em 1 toma em 3 dias).
2. Faringite crónica
Enquanto a faringite aguda é mais frequente nas
crianças, a crónica é rara devido à ausência de factores de cronicidade tais como agressões profissionais, álcool, tabaco, e ressonar do adulto com
consequente secura faríngea.
BIBLIOGRAFIA
(em conjunto com o capítulo 78).
405
72
AMIGDALITE
Carlos Ruah
Definição e classificação
Este termo refere-se vulgarmente à infecção das
amígdalas palatinas, apesar de o mesmo processo
poder ocorrer nas amígdalas linguais e adenóides
(adenoidites) ou nos cordões linfóides da faringe.
A amigdalite pode dividir-se em aguda, recidivante e crónica.
1. Amigdalite aguda
Etiologia
A amigdalite é provocada pelos mesmos germes
descritos na faringite aguda. A amigdalite, no
entanto, tem habitualmente uma etiologia vírica
até aos 3 anos de idade e uma predominância bacteriana dos 5 aos 15 anos. O Streptococcus betahemolítico do grupo A está presente em cerca de 5%
dos casos em crianças mais pequenas, verificandose as maiores incidências entre os 5-8 anos e entre
os 12-14 anos.
Sistematizando, as amigdalites agudas podem
ser divididas duma forma empírica em:
1) Não específicas, que constituem a maioria
dos casos e são provocadas por bactérias e vírus
comuns; e
2) Específicas as quais incluem essencialmente
a angina de Vincent, a diftérica, do sarampo,
escarlatina, difteria, herpética, herpangina e da
mononucleose (vírus de Epstein - Barr/VEB).
Manifestações clínicas
A maioria das amigdalites víricas origina sintomas ligeiros de odinofagia e febrícula que desaparecem ao fim de uns dias. A favor duma etiologia vírica são a existência de rinofaringite associada, de envolvimento da árvore laringo-tráqueo-
406
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
brônquica, de adenomegálias cervicais difusas e
pouco exuberantes, de sinais gerais menos intensos e de fórmula leucocitária normal ou evidenciando ligeira leucocitose com linfocitose.
Destas, salientam-se:
a) Herpangina (coxsackievirus A) em que
aparecem pequenas vesículas nos pilares amigdalinos e palato mole; rebentando dão origem a
ulcerações redondas de fundo cinzento. Acompanham-se de, intensa odinofagia, febre alta e não
de adenomegálias.
b) Mononucleose infecciosa (vírus de EpsteinBarr); trata-se de uma doença sistémica que origina amigdalite pseudomembranosa ou ulceronecrótica com grande astenia, febre alta, múltiplas
adenopatias e hepatoesplenomegália. O leucograma mostra linfocitose e monocitose. O diagnóstico
é confirmado por provas serológicas, salientandose: detecção qualitativa de anticorpos heterófilos
(Paul Bunnell); detecção de anticorpos específicos
VEB IgG-VCA e IgM-VCA (Viral Capsid Antigen).
Nas amigdalites bacterianas as adenopatias
são mais confinadas às regiões jugulo-digástricas,
os sinais gerais mais exuberantes e a fórmula leucocitária apresenta leucocitose com neutrofilia.
Destas destacam-se:
a) Angina de Vincent. Habitualmente unilateral, ocorre em crianças com má nutrição e má
higiene oral, sendo causada por uma associação
fuso-espiralar e anaérobia.
b) Escarlatina. Causada pelo Streptococcus betahemolítico do grupo A, tem um início abrupto, com
febre alta, taquicárdia desproporcionada à febre,
vómitos e uma amigdalite eritematosa. A erupção
eritemato-papular aparece 24 horas depois nos
ombros e tórax e estende-se a todo o corpo acentuando-se nas pregas de pele, poupando a planta
dos pés, a palma das mãos e face. Ao 6º dia a
erupção melhora e dá lugar a uma descamação
cutânea que pode durar até 6 semanas. O exantema relaciona-se com a produção duma toxina
eritrogénica cuja reacção à injecção intradérmica
diluída (teste de Dick) confirma o diagnóstico.
A observação permite distinguir 4 tipos de
amigdalites:
1) Eritemato-pultáceas em que as amígdalas se
apresentam vermelhas com ou sem exsudado
esbranquiçado. Podem ser causadas por bactérias
ou vírus, sendo impossível distinguir a sua etiologia, somente pelo aspecto das amígdalas (Figura
1).
2) Úlcero-necróticas em que a amígdala se
apresenta com úlceras de fundo sujo e exsudado
purulento. Se unilateral, há que admitir angina de
Vincent (associação fuso-espiralar). Se bilateral, há
que admitir mononucleose (vírus de Epstein-Barr)
ou hemopatias como a agranulocitose e a
leucemia.
3) Vesiculosas como acontece na herpangina.
4) Pseudomembranosas, caracterizadas pelo
aparecimento de pseudomembranas de fibrina
sobre as amígdalas; podem ser causadas por
agentes etiológicos bacterianos comuns e pelo
vírus de Epstein-Barr (Figura 2).
Diagnóstico
É realizado através da anamnese e observação do
doente. Os exames complementares servem para
o diagnóstico etiológico e incluem a colheita de
exsudado faríngeo e amigdalino para exame cultural, a fórmula leucocitária, as transaminases (na
hipótese de mononucleose), e exames que permitem o diagnóstico rápido do Streptococcus beta
hemolítico com a detecção do poliósido C da superfície da bactéria (antigénio).
Uma vez que número significativo de bactérias
se localizada nas criptas amigdalinas, um exsudado com resultado negativo não exclui a presença
FIG. 1
FIG. 2
Amigdalite eritemato –
pultácea (isolamento de
Streptococcus A. (NIHDE)
Amigdalite pseudomembranosa (mononucleose
infecciosa). (NIHDE)
CAPÍTULO 72 Amigdalite
duma bactéria patogénica localizada na superfície
da amígdala.
A medição do título de anti-estreptolisinas
O (TASO) é útil apenas quando combinada com a
colheita do exsudado faringo-amigdalino. Se o
TASO está elevado e a colheita é positiva, está-se
na presença da doença. Se o TASO é normal e a
colheita é positiva pode tratar-se dum portador
são.
Notas importantes: a) O valor do TASO não
deve constituir, só por si, critério para tratamento
antimicrobiano e não constitui rotina a sua determinação; b) Os exames bacteriológicos ou
detecção de antigénios apenas estão indicados em
situações em que: o exsudado possa levantar
dúvidas quanto à etiologia estreptocócica; haja
antecedentes de amigdalites de repetição ou, nos
contactos, antecedentes de febre reumática,
glomérulo – nefrite aguda ou síndroma de choque
tóxico por Streptococcus.
Tratamento
1) Amigdalites víricas. São tratadas sintomaticamente com análgésicos, antipiréticos e regime alimentar adaptado à odinofagia.
2) Amigdalites bacterianas. A penicilina continua
a ser o tratamento de escolha uma vez que o
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A é sensível a
este antibiótico. Em regra usa-se a penicilina G
benzatínica por via intramuscular em dose única
(600.000 U se menos de 15kg, 1.200.000 U se mais
de 15kg). Como alternativa podem utilizar-se formulações do mercado na proporção de 6/3/3,
respectivamente para penicilina G benzatínica,
penicilina G procaínica e penicilina G aquosa. A
falência do tratamento com a penicilina pode
indicar a comparticipação duma bactéria produtora de beta-lactamase ou de flora mista predominantemente anaeróbia. Segundo as mais recentes
recomendações da Academia Americana de ORL
(2007), o tratamento com um antibiótico resistente
à beta-lactamase é preferível à penicilina.
Dum modo geral poderão ser aplicados os
princípios de antibioticoterapia descritos a
propósito da faringite bacteriana. De referir que o
período de contagiosidade cessa após 24 horas do
início do tratamento antimicrobiano.
3) Angina de Vincent.
O tratamento consiste em lavar a boca com
407
uma solução de água oxigenada e soro fisiológio
para além da administração de penicilina G e
metronidazol; como alternativa poderão ser utilizados, amoxicilina / clavulanato, macrólido ou
doxiciclina.
4) Escarlatina.
Especificamente, no que respeita à amigdalite
no contexto de escarlatina, aplicam-se os princípios já enunciados a propósito da faringite aguda
bacteriana. (capítulo 278)
Complicações
Poderão surgir as seguintes complicações:
1) Celulite e abcesso periamigdalino: verificase na extensão progressiva da infecção da amígdala para os tecidos moles periamigdalinos
(celulite) a partir do polo superior da amígdala ou
para o espaço periamigdalino com acumulação
localizada de pus (abcesso). Em ambos os casos o
tratamento deve ser parentérico, aplicando-se os
princípios clássicos para o tratamento da celulite
da face. Estando em causa o Haemophilus influenzae
do tipo B, S. aureus ou S. pyogenes (grupo A), os
antibióticos de escolha são a cefuroxima, ou a
amoxicilina/clavulanato; como alternativa, cefalosporina de terceira geração. No caso do abcesso
está indicada a drenagem.(ver parte Infecciologia)
2) Abcessos parafaríngeos e retrofaríngeos:
ocorrem pela extensão da infecção através do
músculo constritor superior da farínge. O tratamento é semelhante ao anterior
3) Adenite cervical supurada: consiste na persistência dum gânglio cervical aumentado e
abcedado, podendo ter como agentes etiológicos o
Staphylococcus aureus ou o Streptococcus beta-hemolítico. O tratamento consiste em antibioticoterapia
parentérica contra estes dois agentes e a drenagem
do abcesso se necessário. Tratando-se de S aureus:
flucloxacilina; se Streptococcus: penicilina. Como
alternativas: cefalosporina de 1ª geração ou clindamicina.
4) Glomerulonefrite e febre reumática: podem
ocorrer 1 a 3 semanas após a amigdalite por
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A. O risco de
aparecer febre reumática é de 0,3% numa situação
endémica, mas aumenta para 3% numa situação
epidémica. Um episódio de febre reumática põe a
criança em risco de recorrência após anterior
episódio de amigdalite ou faringite estreptocócica.
408
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
5) Recentemente foram descritos os primeiros
casos duma doença neuropsiquiátrica autoimune
em crianças, após infecção por Streptococcus betahemolítico. A patogenia parece ser semelhante à da
coreia de Sydenham sendo aquela designada pela
sigla PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections).
6) Síndroma de Lemierre: consiste na associação de amigdalite, tromboflebite da veia jugular
interna, múltiplos abcessos metastáticos sobretudo no pulmão, articulações e ossos, septicémia por
Fusobacterium necrophorum (gram-negativo, anaeróbio, habitualmente saprófita da faringe). O
tratamento consiste no internamento e na administração de antibiótico resistente às beta-lactamases e metronidazol durante 6 semanas
7) Fascite necrosante: pode ocorrer em relação,
quer com o Streptococcus beta hemolítico quer com o
Staphylococcus aureus, a partir duma amigdalite.
2. Amigdalite recidivante
A definição de amigdalite recidivante varia com
os autores. Dum modo geral define-se com base
na verificação de 3 episódios por ano em 3 anos
consecutivos, 5 episódios por ano em 2 anos consecutivos, ou mais de 6 episódios num ano. As
causas das recidivas incluem a modificação do
equilíbrio ecológico entre as bactérias saprófitas e
as patogénicas, a fibrose progressiva da amígdala
que dificulta a penetração antibiótica, aparecimento de estirpes produtoras de beta-lactamases,
o não cumprimento correcto da terapêutica, e a
constante reinfecção por indivíduos próximos que
são portadores sãos.
O tratamento consiste na utilização de
antibióticos que atinjam as estruturas mais profundas das amígdalas fibrosadas (clindamicina ou
cefalosporinas), na detecção e tratamento dos portadores sãos próximos do doente, na imunoestimulação e na amigdalectomia.
3. Amigdalite crónica
Ocorre sobretudo em crianças mais velhas e adultos. Existe odinofagia, habitualmente sem febre,
com ou sem rubor das amígdalas e pilares. As
amígdalas são habitualmente mais duras à pal-
pação e a sua expressão liberta caseum amigdalino,
uma mistura de alimentos retidos e pus, que dá
mau hálito. Habitualmente não existem adenopatias. As colheitas de exsudado amigdalino permitem habitualmente o isolamento de flora mista
aeróbia-anaeróbia. O tratamento consiste na
amigdalectomia.
BIBLIOGRAFIA
(Em conjunto com o capítulo 78).
CAPÍTULO 73 Adenoidite
73
ADENOIDITE
Carlos Ruah
409
O tratamento sintomático consiste na aspiração de secreções, administração de analgésicos,
antipiréticos e anti-histaminicos se houver confirmação de que a criança tem antecedentes de
atopia.
A adenoidectomia é indicada nos casos recidivantes, nos que se acompanham de grande
obstrução nasal, e nas formas complicadas: otite
aguda de repetição, otite média com derrame
persistente, ou associadas a complicações do tracto respiratório inferior.
Definição e classificação
2. Adenoidite crónica
Adenoidite é o processo inflamatório localizado
nas vegetações adenóides; classicamente são consideradas duas formas clínicas: adenoidite aguda
e adenoidite crónica.
Ocorre em crianças sujeitas a um regime de vida
que as expõe a agressões ambientais e infecciosas
(creches, infantários, exposição frequente a
lareiras, pais que fumam em casa), com antecedentes de atopia, ou com hipertrofia adenoideia.
Tais crianças têm uma rinorreia anterior e posterior persistente que vai da hidrorreia ao exsudado
francamente purulento; são frequentes os episódios febris e a roncopatia.
O tratamento consiste no afastamento dos factores agressivos, limpeza nasal com soro fisiológico ou “água do mar” tratada e antialérgicos se
indicado. A colheita do exsudado nasofaríngeo
evitando a contaminação cutânea à passagem do
estilete é útil, demonstrando, muitas vezes, a presença de mais de uma bactéria patogénica. A adenoidectomia tem indicação na presença de complicações nos órgãos vizinhos (otites, sinusites
persistentes ou laringo-tráqueo-bronquites), ou de
obstrução nasal persistente.
1. Adenoidite aguda
O quadro clínico de adenoidite aguda é sobreponível ao da rinofaringite. Ocorre predominantemente em crianças dos 6 meses aos 8 anos sendo
causada em 15 a 70% dos casos por vírus (rino-,
adeno-, mixo-, e enterovírus e, nas muito jovens,
por virus sincicial respiratório). Nas formas bacterianas, os agentes mais frequentes são
Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae,
Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e
Moraxella catarrhalis.
As manifestações clínicas compreendem febre
alta que, inicialmente, pode ser inexplicável até
aparecer uma rinorreia posterior branca a esverdeada, obstrução nasal por hipertrofia adenoideia
e rinorreia anterior. A infecção pode estender-se
ao ouvido médio (dando origem a otite média
aguda ou com derrame), à faringe e à árvore
laringo-tráqueo-brônquica. O exame objectivo
apenas detecta a presença da rinorreia anterior e
posterior ou de otite, não sendo possível observar
a nasofaringe em crianças senão com a endoscopia. A radiografia de perfil do cavum não proporciona qualquer informação válida nestes casos.
A antibioticoterapia de primeira escolha compreende amoxicilina/clavulanato ou macrólido
azitromicina; como alternativa: cefalosporina de
2ª geração. A duração da terapêutica antibiótica é
7-10 dias (sendo de 3 dias para a azitromicina).
BIBLIOGRAFIA
(Em conjunto com o capítulo 78).
410
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
74
RINO – SINUSITE
Vital Calado
Definição e importância do problema
Rinite (termo sinónimo de coriza) é definida como
a inflamação aguda ou crónica das fossas nasais a
qual origina como sinais predominantes rinorreia
e obstrução nasal.
A rino-sinusite é um processo de inflamação da mucosa naso-sinusal. Pode ser classificada de acordo
com a sua evolução temporal e a intensidade dos sintomas, em aguda, subaguda, crónica ou recorrente.
A rino-sinusite aguda caracteriza-se por sinais
e sintomas de infecção aguda das vias respiratórias superiores, que duram mais do que 10
dias e menos do que três semanas. Na sinusite
crónica os sintomas persistem por mais de três
meses, enquanto na subaguda duram entre 3 semanas a três meses.
É importante referir, a propósito, que o nariz e
os seios perinasais são revestidos por um epitélio
ciliado pseudo-estratificado. Tendo em conta que
existe uma identidade anatómica e funcional entre
a mucosa nasal e a sinusal e que ambas estão em
continuidade, a inflamação sumultânea destas
mucosas é muito frequente, razão pela qual é
preferível a designação de rino-sinusite. Portanto,
relativamente ao termo sinusite há que ter presente este conceito.
Os agentes patogénicos infecciosos mais frequentemente associados a rinite são os rinovírus.
Na sinusite predominam as bactérias.
Neste capítulo é abordada a sinusite de causa
infecciosa bacteriana.
Etiopatogénese
Na situação sinusite aguda, as principais bactérias
patogénicas que têm sido isoladas, quer por co-
lheita do meato médio, que por punção sinusal
são: S. pneumoniae, H. influenzae, Moraxella
catarrhalis, S. aureus e Streptococcus pyogenes.
Na sinusite crónica, predominam os Streptococcus aneróbios, os Bacteróides sp e os Fusobacterium
sp.
A integridade da mucosa naso-sinusal, assim
como o bom funcionamento dos mecanismos de
transporte mucociliar, são essenciais para a
manutenção de uma fisiologia normal. Todos os
factores que alteram a composição da camada do
muco ou o funcionamento dos cílios favorecem a
infecção.
É importante também que a ventilação e a
drenagem dos seios sejam adequadas e que os
orifícios de drenagem estejam funcionantes.
A unidade ostiomeatal constitui a zona chave
de toda a fisiologia dos seios: é o espaço para onde
drenam os seios frontais, os seios etmoidais anteriores e os maxilares. Corresponde a uma zona
complexa e bastante estreita nas crianças, que
pode facilmente ser obstruída por edema inflamatório da mucosa, secreções espessas, pólipos,
ou alterações anatómicas. A obstrução dos ostia
produz dificuldades de ventilação e drenagem
dos seios, retenção de secreções e pressão negativa intra-sinusal que facilita a aspiração de bactérias patogénicas para dentro dos seios com consequente infecção.
A sinusite aguda é muitas vezes precedida de
uma infecção por vírus, que prepara o terreno
para a infecção bacteriana. Na sinusite crónica ou
na recorrente predominam os factores gerais ou as
anomalias locais.
Os seios mais afectados são, por ordem decrescente, os maxilares, os etmoidais e os esfenoidais.
Os seios frontais só são afectados a partir dos 7
anos. Muitas vezes há um processo de poli ou de
pansinusite.
Factores de risco
Os factores de risco de sinusite são semelhantes
aos factores de risco de otite. Deve referir-se que as
infecções por vírus das vias aéreas superiores, tais
como metapneumovírus, rinovírus, influenzae,
parainfluenzae, sincicial respiratório e adenovírus,
constituem importantes factores de risco, tanto de
sinusite aguda como de crónica ou recorrente.
CAPÍTULO 74 Rino – Sinusite
Também outras doenças sistémicas como a
fibrose quística, a síndroma de cílio imóvel, a síndroma de Down e os estados de imunodeficiência
constituem importantes factores de risco. A rinite
alérgica, a asma e a sinusite estão intimamente
associadas. A poluição, o fumo passivo, a
exposição a lareiras e a inalação de irritantes contribuem também para a eclosão ou manutenção da
sinusite.
Como factores locais são de salientar os pólipos nasais, os corpos estranhos, os desvios do
septo nasal, as anomalias anatómicas do meato
médio, os traumatismos, as infecções das amígdalas e das adenóides.
Salienta-se que cerca de 14% das crianças com
sinusite crónica têm deficiência de IgA, de IgG ou
subclasses, sindroma de cílio imóvel ou mucoviscidose. O refluxo gastro-esofágico está muitas
vezes presente nas sinusites crónicas ou resistentes ao tratamento médico.
Manifestações clínicas
Na sinusite aguda os sintomas são idênticos aos
de uma infecção aguda por vírus das vias aéreas
superiores: obstrução nasal, rinorreia anterior e
posterior, febre, mal estar de expressão facial, e
tosse. Pode ser difícil o diagnóstico diferencial
quer com a rinite por vírus, quer com a rinite alérgica. Se os sintomas forem mais marcados do que
um simples resfriado (febre alta, edema periorbitário), durarem mais de 10 dias ou se se
agravarem alguns dias após o início, é provável
que o diagnóstico seja de rino-sinusite aguda bacteriana.
Na sinusite crónica existe obstrução nasal,
rinorreia purulenta anterior e posterior, tosse persistente, mau hálito e dor faríngea. Muitas vezes
verifica-se otite sero-mucosa acompanhante. A
dor de expressão facial franca é rara na criança. Os
sintomas persistem por mais de 3 meses.
Pode ser realizada com um otoscópio e espéculo
auricular: permite verificar o estado da mucosa, a
existência de secreções , corpos estranhos, pólipos,
a permeabilidade nasal e alterações do septo e dos
cornetos. A aplicação local de um vasoconstritor
facilita o exame.
Maior valor tem a endoscopia nasal com o
endoscópio de Hopkins ou fibroscópio que, feita
por especialista treinado, permite observar toda a
fossa nasal, o meato médio, determinar a origem
da rinorreia purulenta, colher secreções para
exame bacteriológico, tecidos ou células para exame histológico, e verificar a importância do volume das adenóides.
O estudo radiológico dos seios perinasais , nas
posições de Waters, Hirtz e perfil deve ser valorizado de acordo com o contexto clínico, dado que
existem muitos resultados falsos positivos. Podem
encontrar-se níveis hidro-aéreos ou opacificação
total dos seios. O edema da mucosa só tem significado se for superior a 4 mm. A radiografia do
cavum (Figura 1) é útil para o estudo das
adenóides e seio esfenoidal.
A tomografia computadorizada, sobretudo no
plano coronal, é mais esclarecedora. Deve ser
reservada para o estudo das complicações das
sinusites, sinusites crónicas (Figura 2) , tumores e
para ajuda ao planeamento operatório. A
ressonância magnética nuclear (RMN) tem inte-
Diagnóstico
É essencialmente clínico. A anamnese é muito
importante. Já foram referidos os principais sintomas. A rinoscopia anterior é dificil de realizar
nas crianças, dadas as reduzidas dimensões das
fossas nasais e a resistência que oferece tal exame.
411
FIG. 1
Radiografia do cavum de perfil revelando sinais de
hipertrofia das adenóides.
412
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 2
TAC dos seios perinasais, no plano coronal. Opacificação dos
seios revelando um extenso processo de polissinusite.
resse no diagnóstico de certas sinusites fúngicas,
nas complicações orbitárias e endocranianas, e na
avaliação da extensão local dos tumores.
Tratamento
O tratamento médico tem por objectivo erradicar
a infecção, restabelecer a permeabilidade ostial e o
mecanismo de transporte mucociliar, por forma a
promover boa ventilação e drenagem dos seios.
O tratamento com antibióticos é muitas vezes
empírico. Deve ter em conta a prevalência bacteriana para a região e as resistências conhecidas.
Devido ao uso e abuso da prescrição de antibióticos quer a resistência do pneumococo à penicilina, quer a do Haemophilus (30%) e a da Moraxella
(70%) aos beta-lactâmicos, têm vindo a aumentar de
forma continuada.
Na sinusite aguda os antibióticos de eleição
são: a amoxicilina/clavulanato utilizando a dose
máxima de amoxicilina e a formulação de 7: 1; ou
a cefuroxima. Como alternativas: azitromicina ou
claritromicina.
O tratamento deve ter a duração de cerca de
duas semanas; a azitromicina utiliza-se durante 35 dias. Não havendo melhoria clínica procede-se a
colheita de pus para exame bacteriológico com
TSA (teste de sensibilidade aos antibióticos), e a
eventual mudança de antibiótico até conhecimento do resultado daquele.
Nas complicações das sinusites, quer orbitárias, quer intracranianas, devem usar-se antibióti-
cos de largo espectro, em doses elevadas e por via
endovenosa. A colheita do pus (no meato médio
ou por punção sinusal) é fundamental na tentativa de isolamento da bactéria responsável e determinação da sua sensibilidade aos antibióticos.
Na sinusite crónica o tratamento é idêntico,
mas deve ser prescrito para um período mínimo
de 4 semanas. Os antibióticos de eleição são a
amoxicilina/clavulanato ou a clindamicina; como
alternativa, a penicilina.
Haverá igualmente que tratar eventuais alergias, deficiências imunológicas, mucoviscidose e o
refluxo gastro-esofágico.
As lavagens nasais com soro e os corticosteróides tópicos têm um papel importante no tratamento da sinusite. Os antialérgicos só devem ser
usados se se demonstrar alergia.
O tratamento cirúrgico deve ser encarado com
grandes reservas. Está indicado nos casos graves,
nalgumas complicações ou em situações de falência de tratamento médico, em crianças com mais
de 12 anos. Consiste numa cirurgia endoscópica
ou, microscópica funcional. As lesões a excisar são
mínimas. O que importa é permeabilizar os orifícios e drenar os seios. Outras indicações são a
imperfuração coanal, a polipose nasal ( mucoviscidose ) ou os mucocelos. A adenoidectomia pode
ser ponderada face ao contexto clínico.
Prognóstico
A maior parte das sinusites agudas cura com
tratamento médico. No entanto, alguns casos,
agudos ou crónicos, podem originar complicações
graves, quer sejam locais (como o mucocelo, o
mucopiocelo ou a osteomielite), orbitárias (como a
celulite periorbitária, a celulite orbitária, o abcesso
orbitário) e a tromboflebite do seio cavernoso; ou
endocranianas como a meningite, o abcesso
epidural, o empiema subdural e o abcesso cerebral.
Muitas destas situações devem ser tratadas em
meio hospitalar, com antibióticos adequados, por
via endovenosa e em altas doses, com vigilância
rigorosa e, eventualmente, com recurso à cirurgia.
Prevenção
Há que ter em atenção os factores de risco já referi-
CAPÍTULO 75 Otite média aguda
dos e tratar correctamente as situações agudas ou
recorrentes para evitar complicações ou a cronicidade.
BIBLIOGRAFIA
Calado V, Monteiro L. Rinite alérgica e rino-sinusite na criança
in Rosado Pinto J, Morais Almeida M. A Criança Asmática
413
75
OTITE MÉDIA AGUDA
no Mundo da Alergia. Lisboa: Euromédice, 2003.
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Vital Calado
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
2007
Piccirillo JF. Acute bacterial sinusitis. NEJM 2004, 351: 902-910
Steele RW. Rhinosinusitis in children. Curr Allergy Asthma
Definição e importância do problema
Rep 2006; 6: 508-512
A otite média aguda (OMA) pode ser definida
como uma infecção aguda da mucosa do ouvido
médio, de instalação súbita, acompanhando-se de
sinais e sintomas tais como otalgia e febre.
A OMA tem sido considerada como a forma
supurada da otite média. É uma doença com elevada prevalência em idade pediátrica, sobretudo
entre os 6 e os 11 meses de idade, decrescendo à
medida que a idade avança. Por volta dos três
anos de idade cerca de 45% das crianças terão tido
já 3 ou mais episódios de otite.
Fala-se em otite recorrente quando ocorrem
pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou
4 ou mais num ano.
Os gastos anuais em actos médicos e tratamentos antimicrobianos são consideráveis e representam um pesado encargo para os Serviços de Saúde.
Etiopatogénese
As principais bactérias causadoras de OMA, evidenciadas por culturas obtidas por timpanocentese, são o S. pneumoniae (35 a 50 %),que é o mais
prevalente em todas as idades, o H. Influenzae (20
a 30 %) e a Moraxella catarrhalis (10 a 20%). Outros
agentes isolados incluem S. pyogenes, S. aureus,
Mycoplasma pneumoniae e bactérias Gram-negativas
como E. coli, P. aeruginosa, e Klebsiella. No recémnascido têm sido isolados o S. aureus, o
Streptococcus B e Enterobactérias Gram-negativas.
Os vírus podem ser isolados em cerca de 10 a
20% dos exsudados do ouvido médio. A disfunção
da trompa de Eustáquio desempenha um papel
central na eclosão da otite. Poderá resultar de uma
agressão vírica que conduz a obstrução da trompa
414
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
por congestão da mucosa ou por existirem factores anatómicos ou fisiológicos desfavoráveis.
Como consequência surge um défice de ventilação do ouvido médio. A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma pressão negativa que
contribui para a aspiração, através da trompa, dos
germes patogénicos que colonizam o cavum faríngeo, com localização especial nas adenóides. O
facto de a trompa de Eustáquio nas crianças ser
mais curta, mais horizontal e flácida do que no
adulto, favorece também o refluxo das secreções
infectadas para o ouvido médio. Em certos casos a
infecção pode fazer-se por via hematogénica ou
através de perfuração do tímpano. A otite média
aguda predomina nos meses frios, quando as
infecções por vírus das vias aéreas superiores são
mais frequentes. Os vírus constituem um factor
predisponente para a infecção bacteriana. Os que
têm maior importância são os rinovírus, o vírus
sincicial respiratório, o influenzae e o adenovírus.
Factores de risco
A idade constitui um factor de risco de OMA.
Quanto mais precoce for a otite maiores são as
possibilidades de recorrência. Um primeiro episódio de otite antes dos seis meses constitui factor de
mau prognóstico.
Outros factores de risco incluem alergia,
défices imunitários, fenda palatina, anomalias
crânio-faciais, síndroma de Down, factores genéticos e frequência de infantários, sobretudo os
superlotados e funcionando em condições precárias de higiene. Também o fumo passivo, a exposição a lareiras, a não alimentação com leite
materno, o baixo nível socioeconómico e uso de
chupeta parecem favorecer a infecção.
dade e os sintomas gastrintestinais. A dor expressa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa alimentar. Se a doença progredir, há aumento da
pressão do pus no ouvido médio, o tímpano pode
perfurar e iniciar-se um período de otorreia. Com
a saída do pus a dor acalma e os sintomas gerais
atenuam-se. A cura ocorre naturalmente, ou pela
acção medicamentosa.
Diagnóstico
O diagnóstico, nem sempre fácil, baseia-se na
anamnese, no exame objectivo e nos exames complementares de diagnóstico. A otoscopia é essencial. Deve ser feita com a criança confortavelmente
sentada ao colo da mãe, bem imobilizada e com
otoscópio de luz de halogénio. O ideal será usar o
espéculo pneumático de Siegle para testar a
mobilidade do tímpano. O canal externo deve ser
limpo de detritos e de cerúmen. O espéculo deve
ter um diâmetro apropriado ao conduto e não
deve ser introduzido profundamente para não
lesar a fina pele do canal. Na OMA podemos
observar, de acordo com a evolução da doença,
hiperémia difusa do tímpano e cabo do martelo
(Figura 1), hiperémia radiária, edema e perda de
caracteres, hiperémia e abaulamento da membrana, traduzindo exsudado sob pressão dentro
da caixa, ou perfuração com saída de pus. A valorização dos dados otoscópicos é difícil, sobretudo
Manifestações clínicas
Os sintomas variam conforme a fase da doença e a
idade do doente. O sintoma mais específico da
OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada,
hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e
acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com
infecções por vírus do tracto respiratório superior,
poderá haver obstrução nasal, rinorreia anterior e
posterior, e tosse.
Nos lactentes predomina a febre, a irritabili-
FIG. 1
Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia).
CAPÍTULO 75 Otite média aguda
nos lactentes. A avaliação das lesões e a sua interpretação requerem muita prática e análise crítica.
A comprovação da presença de líquido no ouvido
médio, pela timpanometria ou com o espéculo
pneumático, confirma o diagnóstico de OMA,
quando integrada num quadro agudo.
Em caso de dúvida a criança deve ser enviada
para avaliação por especialista de Otorrinolaringologia que, com o auxílio da aspiração e da
observação otomicroscópica, estará mais apto
para obter uma maior precisão diagnóstica e aconselhar a terapêutica mais adequada.
Tratamento
Em cerca de 70 a 80% dos casos de otite média
aguda verifica-se a cura sem tratamento, ao fim de
3 a 4 dias.Com base nesta evidência há países, como
a Holanda, em que alguns autores preconizam só
tratar com antibióticos as crianças com menos de 2
anos, unicamente por receio de complicações neste
grupo etário. Nos restantes grupos etários os mesmos autores prescrevem tratamento sintomático,
usando antibióticos apenas se a evolução for desfavorável. No entanto, na maior parte dos países, por
razões de segurança, não é seguida esta norma e os
antibióticos são prescritos na maioria das otites agudas adquiridas na comunidade.
Como primeira linha de actuação, há a referir
o analgésico (paracetamol) e a necessidade de
manter a permeabilidade nasal (aspiração cuidadosa de secreções e instilação de soro fisiológico).
A escolha empírica do antibiótico deve ter em
conta a idade da criança, as resistências locais conhecidas, a existência de recorrências e eventuais
alergias conhecidas aos fármacos.
A amoxicilina (80-90 mg/ Kg/dia de 12-12h
durante 5 dias) continua a ser o antibiótico preferido no tratamento do primeiro episódio de otite
aguda ou na otite ocasional.
No caso das crianças que frequentam infantários, têm otites recorrentes ou outros factores de
risco significativos, é preferível usar logo de início
a associação amoxicilina /ácido clavulânico, na
relação ponderal de 7/1 dada a existência, muito
provável, de estirpes resistentes produtoras de
beta- lactamases.
Na prática utiliza-se a dose de amoxicilina de
80 mg/kg/dia na suspensão oral (400 mg de
415
amoxicilina/57 mg de ácido clavulânico em 5 ml)
O tratamento é prescrito para 8 a 10 dias. A
reavaliação é feita às duas semanas e ao fim de um
mês.
Outras alternativas terapêuticas em função de
resultados de exames microbiológicos incluem a
cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas),
o cefaclor (30-50mgr/kg/dia em 2-3 tomas) e a
cefixima (8-12mg/kg/dia em 1-2 tomas).
Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos
macrólidos (eritromicina 50mg /kg/dia em 7-10
dias nas crianças com menos de 6 meses; azitromicina 10 mg /Kg/dia, dose diária durante 3 dias
nas crianças com mais de 6 meses).
A ceftriaxona tem sido recomendada ultimamente por vários autores como tratamento das
otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80
mg/kg/dia, em injecção única intramuscular
diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança
altas concentrações no ouvido médio sendo,
assim, bastante eficaz.
Em certas situações o tratamento médico é
insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgico. A paracentese do tímpano com aspiração do
exsudado do ouvido médio está indicada nos
casos de otalgia intensa com sinais muito marcados de infecção, otites de repetição resistentes à
terapêutica médica, ou presença de complicações
como a paralisia facial ou meningite.
Prognóstico
O prognóstico é bom. Porém, em certos casos,
devido à virulência bacteriana, baixa resistência
do organismo ou insuficiência terapêutica, poderão surgir complicações otológicas ou intracranianas, das quais as mais frequentes são a mastoidite, a paralisia facial e a meningite.
Prevenção
É importante reduzir ao mínimo os factores de
risco já referidos, assim como tratar e corrigir correctamente todas as situações agudas para se evitar as recorrências.
A prevenção prolongada (6 meses) com
antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para
a otite recorrente.
Trata-se dum dos problemas polémicos do foro
416
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
da otorrinolaringologia que ultrapassam o âmbito
deste capítulo.
A vacina conjugada contra o S. pneumoniae, há
poucos anos introduzida na clínica, tem-se revelado útil para prevenir as infecções provocadas por
essa bactéria contribuindo para diminuir a
prevalência atrás referida.
Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a
adenoidectomia são recomendados para prevenir
os casos graves de otites recorrentes.
BIBLIOGRAFIA
Alper CM, Bluestone CD, Casselbrant ML, Dohar JE (eds).
76
OTITE SERO-MUCOSA
Vital Calado
Definição e importância do problema
Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker
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for the treatment of acute otitis media. JAMA 2006; 296:
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A otite sero-mucosa (OSM) pode definir-se como
uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa
do ouvido médio, a tímpano fechado, que cursa
com derrame líquido intratimpânico, não purulento, de duração superior a três meses.
Actualmente é mais correctamente designada por
otite média com derrame ou efusão.
O derrame pode ser seroso (fino, aquoso,
dourado), mucoso (espesso, viscoso, tipo cola) ou
sero-mucoso. Se crónico, pode conter cristais de
colesterina.
Trata-se de uma doença de elevada prevalência nas idade pediátrica. A incidência máxima
situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de
80% dos casos é bilateral.
Etiopatogénese
A etiologia é incerta. Vários factores podem contribuir para a eclosão da doença tais como infecções agudas das vias respiratórias superiores
(vírus, bactérias), alergia, factores anatómicos, factores hereditários e mau funcionamento da
trompa de Eustáquio.
A OSM é uma complicação frequente da otite
média aguda ou da otite média recorrente. Tal
como na OMA, a disfunção da trompa de
Eustáquio tem um papel importante na OSM. O
processo começa muitas vezes por uma otite
média aguda supurada que provoca alterações na
mucosa do ouvido médio e da trompa, dando
origem a um derrame purulento que, ao ser esterilizado pela acção dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido. Noutros casos a disfunção
resulta de alterações anatómicas ou funcionais. O
CAPÍTULO 76 Otite sero-mucosa
mau funcionamento tubário compromete a ventilação e a drenagem do ouvido médio, dando
origem a uma pressão negativa na caixa timpânica. Secreções infectadas existentes no cavum
podem, assim, ser aspiradas para o ouvido médio
e o processo reactivar-se.
A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão
negativa do ouvido médio devida à reabsorção do
ar, levam a alterações estruturais da mucosa
traduzidas por um infiltrado celular composto
por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este
complexo processo gera a formação de uma grande quantidade de glândulas produtoras de muco
que segregam constantemente para o interior do
ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimática, a membrana timpânica sofre um processo de
atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos
resistente às variações de pressão, pode deprimirse e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa.
Factores de risco
São considerados factores de risco de OSM as
infecções frequentes do tracto respiratório superior,
a alergia, o barotraumatismo, a idade do primeiro
episódio de otite, a frequência de infantários superlotados, o fumo passivo, os estados de imunodeficiência e o baixo nível económico e social.
A OSM é frequente nas crianças com adenoidites de repetição, rinossinusites e otites recorrentes.
Também as anomalias crânio-faciais, a sindroma de Down e a fenda platina (completa ou submucosa) constituem importantes factores de risco.
Quase todas as crianças com fenda palatina têm
OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio.
417
evolução pode ser tão insidiosa que os pais das
crianças ficam surpreendidos quando é feito o diagnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio
agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desencadeia os sintomas. A criança começa a ficar desatenta, apresenta alterações de comportamento, sobretudo irritabilidade, aumenta o volume do som da televisão, e pede para repetirem as palavras. Se a situação se prolongar sem que seja identificada, poderão
surgir problemas de aprendizagem da fala e da linguagem e perturbações do rendimento escolar.
Diagnóstico
É raro as crianças pequenas queixarem-se de perda da audição, pelo que o diagnóstico precoce está
muito relacionado com a atitude dos pais, dos
professores e do exame periódico feito pelo pediatra ou médico de família. Se houver suspeitas
de perda da audição, perturbação do equilíbrio ou
otalgia recorrente, a criança deve ser avaliada por
um especialista de oto-rino-laringologia.
A otoscopia pode ser difícil de interpretar. Por
vezes, mesmo para um especialista bem treinado,
não é fácil diferenciar entre otite sero-mucosa
crónica agudizada e OMA. A ausência de sinais e
sintomas de infecção aguda favorecem o diagnóstico de OSM.
O tímpano está geralmente deprimido, com o
Manifestações clínicas
Ao contrário do que se passa com a otite média
aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais
e sintomas de infecção aguda tais como dores
intensas nos ouvidos, febre ou mal estar.
Pode ser assintomática ou revelar-se por perda
de audição, perturbações do equilíbrio, alterações
do comportamento, atraso no desenvolvimento da
fala e da linguagem e maus resultados escolares.
Em certos casos não é possível identificar pela
história clínica o momento do início da doença. A
FIG. 1
Otite seromucosa. Tímpano opaco, com uma coloração róseaamarelada clara.
418
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseoamarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e
radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis
hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio
através da transparência do tímpano. Os sinais
são geralmente bilaterais.
O timpanograma é um exame essencial para confirmar a presença de líquido no ouvido médio. Na
otite sero-mucosa arrastada o traçado é aplanado.
O audiograma revela sinais de surdez de
transmissão de grau variável, em média de 25 a 30
dB, mas a perda pode ser muito maior.
A endoscopia nasal poderá evidenciar um
desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos,
pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides.
Tratamento
Têm sido tentadas várias modalidades de tratamento da OSM, em geral sem qualquer eficácia.
Os casos agudos podem resolver-se pela acção de
antibióticos, descongestionantes nasais ou antiinflamatórios.
Nas situações crónicas o problema é mais complicado. De notar que cerca de 10% das otites agudas tratadas com antibiótico apresentam ainda um
derrame intratimpânico, passados 3 meses. É preciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível
identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H.
influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos derrames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicilina / clavulânico. A tentação de prosseguir com
outros antibióticos com maior espectro de acção
deve ser desencorajada, por ser ineficaz.
Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corticosteróides têm um efeito diminuto na evolução
da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem
ser usados quando existem sinais de alergia comprovada.
Se a situação não se resolver, o tratamento
recomendado consiste na aplicação de tubos de
ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos
casos em que o derrame tem duração superior a
3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30
dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de
retracção ou ameaça de colesteatoma.
Os tubos têm a finalidade de promover a ventilação e facilitar a drenagem do ouvido médio.
São expulsos espontaneamente em geral ao cabo
de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a
entrada de água nos ouvidos durante o banho
para se prevenir a infecção. Devem usar tampões
auriculares e bandas de protecção. O mergulho(mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidectomia é feita muitas vezes no mesmo tempo operatório que a aplicação dos tubos.
Prognóstico
A otite sero-mucosa não tratada pode dar origem
a complicações graves. A atrofia do tímpano e a
pressão negativa no ouvido médio geram os
mecanismos que conduzem à depressão timpânica, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular,
otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar
gravemente comprometida. Por outro lado, a
membrana timpânica atrófica está em grave risco
de perfurar se surgir otite aguda.
A aplicação dos tubos não resolve todos os
problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir
infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes
terão que ser submetidos a mais do que uma timpanostomia.
Prevenção
A prevenção deve incidir sobre a atenuação ou
eliminação dos factores de risco diagnosticados, o
correcto tratamento das infeccções das vias aéreas
superiores e a otoscopia de controlo.
BIBLIOGRAFIA
Alper CM, Bluestone CD,Casslbrant ML,Dohar JE (eds).
Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker
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Brackmann DC, Shelton C, Arriaga (eds). Otologic Surgery.
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CAPÍTULO 77 Otomastoidite aguda
77
OTOMASTOIDITE AGUDA
Maria Caçador, Carlos Ruah
Definição
Otomastoidite aguda é definida como processo
inflamatório agudo da mastóide, num doente sem
história de otite média crónica purulenta simples
ou colesteatomatosa.
Aspectos epidemiológicos
A referida situação é mais frequente em crianças com
idade inferior a 8 anos podendo, contudo, ocorrer em
qualquer idade. Um terço dos doentes com o diagnóstico de otomastoidite aguda apresenta história
prévia de otite média aguda (OMA) de repetição.
A incidência de otomastoidite aguda diminuiu
com a introdução da antibioticoterapia na terapêutica da OMA (de uma incidência de 0,4% dos
episódios de OMA a desenvolverem otomastoidite
na década de 60, para 0,004% na passada década
de 90). Nos últimos anos, contudo, tem-se verificado um aumento do número de internamentos por
otomastoidite aguda. A explicação para este facto
parece ser, por um lado, o aumento de resistências
aos antibióticos pelo abuso destes fármacos e, por
outro lado, a redução do número de miringotomias durante os episódios de OMA.
Etiopatogénese
Todos os doentes com OMA apresentam inflamação da mucosa da mastóide, com ou sem derrame. Quando o processo inflamatório, a nível da
mastóide, ultrapassa o mucoperiósteo e envolve o
osso, verifica-se desmineralização e erosão dos
septos das células mastoideias, com a formação de
empiema intramastoideu. Esta fase é descrita
como “otomastoidite coalescente”, com a mas-
419
tóide a ser transformada numa grande cavidade
abcedada.
A dificuldade de drenagem do pus acumulado
pode levar à exteriorização da infecção pela área
cribiforme ou pela fissura timpanomastoideia,
com sinais inflamatórios cutâneos da região mastoideia, apagamento do sulco retroauricular e
empurramento para diante do pavilhão auricular,
tradução semiológica de otomastoidite aguda. Se
o processo se estender ao periósteo forma-se um
abcesso do subperiósteo.
Nas últimas duas décadas foram realizados
vários estudos para identificação dos agentes
implicados nos casos de otomastoidite aguda. Ao
contrário do que se poderia esperar os resultados
não foram sobreponíveis aos dos estudos dos
agentes implicados na OMA. Os microrganismos
mais frequentemente isolados foram Streptococcus
pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus
aureus e Staphylococcus aureus coagulase negativo.
Estes resultados têm implicações práticas
importantes: o antibiótico escolhido na terapêutica
inicial da otomastoidite aguda, enquanto se aguarda o resultado dos exames culturais, deverá ter
uma potente acção anti-estafilocócica, para além
de dever incluir no seu espectro terapêutico os
agentes mais frequentemente implicados na OMA
(Haemophilus influenzae e M. catarrhalis).
Manifestações clínicas
O quadro clínico da otomastoidite aguda é caracterizado por sintomas otológicos sugestivos de
OMA, seguidos pelo aparecimento de sinais inflamatórios sobre a mastóide (dor, eritema e edema
retroauricular, apagamento do sulco retroauricular com deslocamento do pavilhão para a frente e
para baixo, e abaulamento da parede pósterosuperior do canal auditivo externo). Os sinais
inflamatórios surgem habitualmente entre o 4º e o
10º dia após o início das queixas otológicas, podendo esse período variar de 1 a 60 dias. A febre
faz geralmente parte do quadro clínico, apesar de
a sua ausência não excluir o diagnóstico.
Para a confirmação diagnóstica e detecção precoce de complicações intracranianas, a maioria
dos autores defende a utilização, por norma, de
tomografia computadorizada (TC) do ouvido e
crânio-encefálica. Para o diagnóstico radiológico
420
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de mastoidite coalescente não basta a presença de
níveis hidro-aéreos ou espessamento da mucosa
das células pneumatizadas da mastóide; é necessária a demonstração de erosão dos septos ósseos
das células mastoideias ou do cortéx mastoideu.
Dado que, na maioria dos casos, a realização
de TC em crianças exige sedação ou anestesia
geral, deve, sob a mesma anestesia, proceder-se à
colheita de material para estudo macrobiológico.
Tratamento
É consensual, entre os diferentes autores, que o
tratamento dos casos de otomastoidite aguda não
complicada, implica miringocentese, com ou sem
colocação de tubo transtimpânico, associada a
antibioticoterapia endovenosa, instituída precocemente (amoxicilina + ácido clavulânico: (80 mg/
kg/dia de amoxicilina) ou cefalosporina de 3ª
geração (cefotaxima – 50-100 mg/kg/dia; ou
ceftriaxona – 50-80 mg/kg/dia) em regime de
internamento. (ver capítulo 75)
Se não houver melhoria em 24 a 48 horas, ou se
se suspeitar de complicação, deve instituir-se
medidas cirúrgicas adequadas, e ser alterada a
antibioticoterapia, segundo os resultados do
exame cultural.
A terapêutica deverá durar 3 semanas.
Complicações
Embora a incidência de otomastoidite aguda
tenha diminuído significativamente com o aparecimento dos antibióticos, a prevalência de complicações graves continua elevada.
As complicações desta situação clínica dependem da zona para a qual o processo infeccioso se
estende; podem ser classificadas em extracranianas e intracranianas. (Quadro 1)
Consideram-se grupos de risco para o desenvolvimento de complicações os doentes com perfuração espontânea da membrana timpânica e
otorreia no momento do diagnóstico, e aqueles em
que os agentes etiológicos são Streptococcus pyogenes ou Staphylococcus aureus.
Os doentes em que foi realizada miringocentese antes do diagnóstico clínico de otomastoidite
aguda parecem ter menor risco de desenvolvimento de complicações graves.
QUADRO 1 – Complicações da otomastoidite
aguda
Extracranianas – Propagação da infecção
• Região retroauricular (Abcesso retroauricular)
• Região pré-auricular (Abcesso zigomático)
• Região inferior (Abcesso de Bezold)
• Região retroauricular (Abcesso retroauricular)
• Ouvido interno (Labirintite)
• Apex petroso (Síndroma de Gradenigo)
• Seio sigmoideu (Trombose do seio sigmoideu)
• Seio longitudinal (Hidrocefalia otítica)
Intracranianas
• Meningite
• Abcesso subdural
• Abcesso epidural
• Abcesso cerebral
• Abcesso cerebeloso
Prognóstico
O prognóstico de otomastoidite aguda é habitualmente bom e tem melhorado graças a vários factores, nomeadamente, melhor compreensão da fisiopatologia da doença, antibioticoterapia específica, disponibilidade de exames complementares
de diagnóstico e possibilidade de intervenção cirúrgica atempada. No entanto, quando o diagnóstico
se acompanha de complicações intracranianas graves, pode ser reservado.
BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 78 Patologia inflamatória laríngea
78
PATOLOGIA INFLAMATÓRIA
LARÍNGEA
Carlos Ruah
421
(epiglotite, laringite, laringite subglótica e laringotráqueo-bronquite ou falso “croup”), químicas
(refluxo gastro-esofágico, ingestão de caústico),
traumáticas (entubação, corpo estranho) e alérgicas.
5) Discute-se se a laringite, para além da etiologia infecciosa (vírica ou bacteriana) poderá
traduzir hiperreactividade da via aérea.
Neste capítulo são descritas três entidades
clínicas representativas da patologia inflamatória
da laringe.
1. Epiglotite
Importância do problema
Para compreender a importância de patologia inflamatória da laringe há que salientar aspectos
particulares de anátomo-fisiologia e semiologia.
1) A laringe da criança não é uma laringe do
adulto mais pequena; tem características particulares que são importantes: a região supraglótica é
muito elástica e ampla; o espaço glótico é mais
arredondado do que o do adulto; o espaço subglótico é muito pouco distensível, o mais estreito
da laringe, sendo mesmo mais estreito que a
traqueia e medindo 4 milímetros de diâmetro no
recém-nascido (ao contrário do adulto em que a
glote é o espaço mais estreito da laringe). Assim,
um edema subglótico aumentado em 1 milímetro
a espessura, reduz a via aérea em cerca de 50%.
2) A frequência respiratória no recém-nascido é
cerca de 40 por minuto, na criança 30 por minuto
e no adulto 20. A dispneia laríngea é definida
como bradipneia inspiratória (o tempo inspiratório está prolongado) com sinais de tiragem ou
retracção torácica (a inspiração torna-se um fenómeno activo com utilização dos músculos respiratórios acessórios como os intercostais e os esterno-cleido-mastoideus). Nos recém-nascidos a dificuldade respiratória de causa laríngea traduz-se
por taquipneia rapidamente ineficaz.
3) A dispneia laríngea pode acompanhar-se de
estridor. Sistematizando, pode afirmar-se que o estridor inspiratório corresponde a lesões supraglóticas, ao passo que o inspiratório-expiratório (bifásico) corresponde a lesões glóticas e subglóticas.
4) As doenças inflamatórias da laringe em idade pediátrica podem classificar-se em infecciosas
Definição e importância do problema
O termo de epiglotite (ou processo inflamatório
da epiglote) tem sido substituído por supraglotite
por alguns autores. A sua incidência era cerca de 3
a 9 casos por 10.000 internamentos pediátricos
antes do aparecimento da vacina anti Haemophilus
influenzae tipo b. Após a vacinação a incidência
diminuiu para cerca de para 0,4 a 0,6 casos 10.000
internamentos.
Etiologia
Haemophilus influenzae tipo b era, até existir vacina,
o agente mais frequentemente implicado em
(>90% dos casos).
Situação hoje mais rara, podem estar implicados
menos frequentemente outros germes: Streptoccocus do grupo A, B, C, Staphylococcus aureus,
Streptoccocus pneumoniae e, nos imunocomprometidos, Herpes simplex, Pseudomonas e Candida.
Manifestações clínicas
O início é rápido com febre alta odinofagia intensa
e sialorreia (“baba-se”). A criança está pálida, com
a boca aberta, ansiosa, irritável, dispneica com ou
sem estridor (ruído inspiratório agudo por
obstrução da laringe supraglótica), prefere estar
sentada com hiperextensão do pescoço e inclinação
do tronco para diante para melhorar a respiração, e
tem uma voz “abafada” pelo edema supraglótico.
Tratamento
Havendo suspeita de epiglotite (emergência médica), há que adoptar a seguinte conduta:
a) Medidas gerais
1) Não tentar observar a faringe nem laringe
422
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com espátula nem executar manobras invasivas
(tirar sangue por ex.) para não provocar choro e
obstrução aguda respiratória.
2) Transportar a criança com a mãe ao serviço
de imagiologa para proceder ao estudo de perfil
das partes moles cervicais, o qual evidenciará o
aumento da epiglote.
3) Se se confirmar o diagnóstico, levar a criança para o bloco operatório e induzir anestesia
geral por máscara com criança sentada ao colo da
mãe.
4) Uma vez entubada e com a via aérea controlada, pode observar-se então a laringe que demonstra a epiglote edemaciada muito vermelha e
exsudativa, quase “em carne viva”.
5) Proceder a hemocultura iniciando antibioticoterapia endovenosa no bloco antes da transferência para a unidade de internamento.
O diagnóstico etiológico é feito com base no
resultado da hemocultura, e não por colheitas faríngeas ou laríngeas.
b) Terapêutica antimicrobiana
Dada o aumento da resistência do Haemophilus
às penicilinas, utilizam-se hoje as cefalosporinas
de 2ª ou 3ª geração como tratamento de primeira
linha durante 5 dias:
1) Cefuroxima: 75-100 mg/Kg/dia excepto se
se suspeitar de envolvimento meníngeo; ou
2) Cefotaxima: 75-180 mg /Kg/dia se houver
suspeita de envolvimento do sistema nervoso central; ou
3) Ceftriaxona: 100 mg/Kg/dia em dose única
diária.
O tratamento pode ser continuado com amoxicilina e ácido clavulânico oral. A corticoterapia e
a epinefrina não são eficazes; a primeira pode provocar complicações hemorrágicas gastrintestinais
nestes casos.
A data da extubação tem sido controversa
porque o estado da epiglote não tem relação directa com a dificuldade respiratória, e a persistência
da febre não constitui critério para se manter a
entubação. Assim, em regra procede-se extubação
ao fim de 48 horas do início da terapêutica.
2. Laringite
Etiologia
Os agentes etiológicos mais frequentes são vírus: o
rhinovirus e o parainfluenza. No entanto, esta situação clínica pode fazer parte doutras afecções como
gripe, papeira, varicela, sarampo, ou tosse convulsa.
Independentemente do agente etiológico primário,
poderá surgir sobreinfecção bacteriana por
Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus influenza.
Manifestações clínicas
Verifica-se inicialmente mal estar geral, tosse iritativa, febrícula e pigarro. O aparecimento de estridor agudo, disfonia ou rouquidão e retracção torácica supraesternal permitem o diagnóstico. Se ao
fim de dias ocorrer febre alta e expectoração purulenta, há que suspeitar de infecção bacteriana.
Tratamento
É sintomático com aerossolterapia com soro fisiologico, anti-inflamatórios e antipiréticos. Se se suspeitar de infecção bacteriana, deve utilizar-se
amoxicilina com ácido clavulânico; como alternativa, cefalosporinas de primeira ou segunda geração, ou macrólidos.
3. Laringite subglótica
e laringo-tráqueo-bronquite
(falso croup)
Etiologia
Trata-se duma situação de etiologia habitualmente
vírica; os vírus mais frequentes são os parainfluenza virus tipos I e II. No entanto, podem também
estar implicados os vírus respiratório sincicial e
influenza A e B. Ocorre sobretudo entre os 6 meses
e os 3 anos, sendo raríssima antes dos 6 meses.
Manifestações clínicas
As duas situações são descritas em conjunto pela
semelhança do quadro clínico, considerando-se
fases diferentes do mesmo processo inflamatório,
com tendência descendente.
A doença inicia-se com uma infecção do tracto
respiratório superior durante 1 a 3 dias com
febrícula, mal estar geral e disfonia. A tosse
aparece subitamente, conhecida como “tosse de
cão” e a ocorrência do edema subglótico leva ao
aparecimento da dispneia e do estridor bifásico
(inspiratório e expiratório, de tonalidade grave)
(laringite subglótica). Se a infecção atingir a árvore
brônquica verifica-se aumento de secreções, respi-
423
CAPÍTULO 78 Patologia inflamatória laríngea
ração mais ruidosa e agravamento da obstrução
respiratória (laringo-tráqueo-bronquite).
Magalhães M. Laringites. In Ruah S, Ruah C, Manual de
Diagnóstico
É feito essencialmente pela clínica. A radiografia
ântero-posterior das partes moles cervicais mostra
o fim proximal da traqueia em “bico de lápis”
devido ao edema subglótico.
Melo-Cristino J, Serrano N, et al. Estudo Viriato: Actualização
Otorrinolaringologia. Lisboa: edições Laboratórios Roche
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Pneumol 2003; (IX): 293-310
Moreno S, Garcia Altozano J, Pinilla B, Lopez J C, et al.
Tratamento
Para obter humidificação eficaz estão indicadas
nebulizações com aparelhos ultrassónicos. Em
regime hospitalar poderá proceder-se à inalação
de adrenalina racémica (1 ml de soluto a 1/1000),
quer através de nebulizador, quer através de ventilador de pressão positiva intermitente; o efeito
pode verificar-se ao cabo de 20-30 minutos.
Os corticóides (hidrocortisona por via
endovenosa: 100mg 6-6 h; ou prednisolona por via
oral: 1-2 mg/Kg/dia) durante cerca de 3 dias
estão também indicados pela acção anti-inflamatória, embora o seu efeito seja mais lento. Em
função do estado clínico poderá haver necessidade de entubação traqueal.
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424
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
79
AVALIAÇÃO AUDIOLÓGICA
Luísa Monteiro
Função auditiva
A audição é uma função complexa que resulta da
integração central (e interpretação) dos sons previamente captados e processados pelo órgão periférico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva
ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado
nas suas três principais dimensões: frequência,
amplitude e tempo. A via auditiva está completamente desenvolvida na data do nascimento; no
entanto,sofre complexos fenómenos de maturação. Com efeito, a plasticidade do sistema nervoso central permite que, por exposição ao som,
haja um desenvolvimento de conexões neuronais
a nível cortical até aos seis meses de idade. A via
auditiva sofre também maturação ao longo dos
primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de
condução nervosa estão diminuídos, atingindo os
valores dos adultos cerca dos dezoito meses de
idade.
O Quadro 1 refere os apectos mais significativos do desenvolvimento da via auditiva e o
Quadro 2 a relação entre audição e linguagem.
Surdez infantil
Considera-se surdez significativa a hipoacusia
permanente, superior a 40 decibeis (dB), nas frequências conversacionais, no melhor ouvido.
Esta definição tem em conta que, a partir
destes valores, a hipoacusia tem repercussões negativas na aquisição de linguagem e no desenvolvimento de competências comunicativas da
criança. Existem vários graus de hipoacusia:
ligeira, moderada, grave e profunda, correspondendo a dificuldades crescentes de comunicação
audio-verbal.
QUADRO 1 – Desenvolvimento da Via Auditiva
• Nos RN a via auditiva periférica está completamente
desenvolvida.
• O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de
vida pela experiência auditiva, sobretudo pela
exposição à fala.
• Embora as crianças só produzam palavras reconhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes
de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções
auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a
sua própria fala.
• Ao nascer,o sistema auditivo periférico possui as
capacidades semelhantes às do adulto, pronto a estabelecer as conexões neurais baseadas na experiência
auditiva.
• O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos
dois primeiros anos.
• A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas
esta é mantida a nível do SNC.
QUADRO 2 – Audição e Linguagem
• A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre,
velocidade de produção).
• O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e
palavras com grande fidelidade e exactidão, começando estas capacidades a desenvolver-se após o nascimento.
• A aquisição de linguagem perceptiva precede a linguagem expressiva. Os bebés aprendem a organização
dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano
de vida.
• Pequenas alterações da audição podem alterar a
aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em
condições de ruído - escolas) .
Etiologicamente, a hipoacusia pode ser classificada em sensorioneural relacionada com patologia (endo ou retrocolear), de transmissão relacionada com patologia (ouvido externo ou médio)
e mista.
Na maior parte dos casos, a hipoacusia de
transmissão é adquirida, constituindo a otite seromucosa a causa mais frequente.
No entanto, menor grau de hipoacusia pode
influenciar negativamente a integração social e
escolar da criança. Na infância ocorrem frequente-
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica
mente períodos mais ou menos longos (semanas,
meses ou anos) em que as crianças sofrem de
hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral,
o que influencia o seu desenvolvimento. Estes
períodos correspondem a episódios de otite serosa
(otite com efusão ou otite com derrame) os quais
podem decorrer com hipoacusia de transmissão
de grau variável até 40dB, e que é reversível.
O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de
deficiência auditiva em relação a perda tonal
média.
Importância do problema
Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil
significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos
aparentemente saudáveis; trata-se da doença congénita mais frequente para a qual existe rastreio e
intervenção precoce. Reconhece-se a existência de
factores de risco que podem aumentar a incidência de surdez.
Em determinadas situações de maior risco de
hipoacusia a incidência pode aumentar para
1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores
de risco relaciona-se com ocorrências
desfavoráveis durante o período perinatal (muito
baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal,
sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave,
etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa
pode ter uma prevalência de 8 por cada mil
crianças.
As causas genéticas correspondem a cerca de 30
% dos casos de surdez congénita, relacionável na
maioria dos casos com transmissão autossómica
QUADRO 3 – Graus de Deficiência Auditiva
1. Deficiência Auditiva Ligeira
2. Deficiência Auditiva Média
3. Deficiência Auditiva Grave
4. Deficiência Auditiva Pofunda
5. Deficiência Auditiva Total
1. Perda tonal média: >20 e <40 dB
2. Perda tonal média: >40 e <70 dB
3. Perda tonal média: >70 e <90 dB
4. Perda tonal média: >90 e <120 dB
5. Perda tonal média: ≥120 dB
(dB = decibéis)
425
recessiva. Em geral, a surdez surge isolada, mas
poderá estar integrada em síndroma; há descritas
cerca de 400 síndromas que incluem défice auditivo.
(Figura 1)
Existem mais de 20 loci descritos para a surdez
isolada, mas um único locus – DFNB1 – é responsável por uma elevada proporção dos casos: tratase do gene GJB2, que codifica a proteína conexina
26. Mutações neste gene são responsáveis por
aproximadamente 50% dos casos de surdez congénita isolada não infecciosa.
As causas infecciosas pré-natais (rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus) são, felizmente, cada vez menos frequentes.
A hipoacusia pode classificar-se quanto à
cronologia do seu aparecimento, em congénita ou
adquirida (período perinatal ou ao longo da vida).
Assim, a criança pode ser portadora de deficiência
auditiva desde o período pré-lingual (congénita
ou adquirida no período perinatal) ou a dquirida
no período de aquisição de linguagem (ex: meningite bacteriana), pós-lingual (expresssão tardia de
surdez congénita, meningite bacteriana, traumatismo craniano, etc.). O prognóstico é diferente
conforme as competências linguísticas que já existiam quando surgiu a hipoacusia.
Rastreio auditivo neonatal
Desde longa data tem havido tentativa de programas de rastreio da deficiência auditiva, nomeadamente no período neonatal, utilizando métodos
baseados na pesquisa de reacções motoras dos
recém-nascidos após apresentação de estímulos
auditivos de elevada intensidade. Estes testes
baseavam-se na interpretação das reacções dos
recém-nascidos feita por observadores treinados,
consumindo, assim, muitos recursos humanos.
Existia, no entanto, uma grande variabilidade de
resultados entre os vários observadores, e além da
fraca confiabilidade, os referidos testes apenas
detectavam graus de surdez grave e profunda; por
isso, foram abandonados.
Em 1972 o “Joint Commitee on Infant Hearing”,
grupo multidisciplinar, elaborou uma lista de circunstâncias em que os recém-nascidos tinham
risco acrescido de ocorrência de surdez devendo
por isso, ser obrigatoriamente sujeitos a rastreio
que era habitualmente efectuado pelos nove
426
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 1
Exemplo de criança com hipoacusia de transmissão por
anomalia congénita do ouvido externo e médio.
meses de idade. Esta lista de factores de risco foi
sendo progressivamente alargada ao longo dos
anos.
No entanto, uma vez que cerca de 50% das
crianças surdas não possuem nenhum factor de
risco de surdez, houve necessidade de pôr em
acção rastreios universais no recém-nascido.
Durante a década de noventa foram organizados
rastreios universais dos recém-nascidos, mercê da
disponibilidade de técnicas de rastreio sensíveis,
específicas, rápidas, de preço acessível e de aplicação fácil: os aparelhos de oto-emissões acústicas
(OEA) que surgiram nesta altura. Estes rastreios
foram divulgados a partir dos Estados Unidos,
sendo a sua aplicação facilitada pelo ulterior
aparecimento de aparelhos automáticos, quer de
oto-emissões acústicas, quer de potenciais evocados auditivos. Estes aparelhos dão resposta do
tipo “Apto”, “que passa” ou sem problema, e
“Inapto” ou com problema a esclarecer. Não
necessitando de interpretação dos resultados por
parte do técnico, podem ser utilizados por pessoal
sem formação específica em audiologia (enfermeiros, médicos, pediatras, voluntários), após um
determinado tempo de treino. Estes rastreios
devem ser coordenados por profissionais da área
da audiologia pediátrica e com o apoio de uma
unidade de audiologia com recursos técnicos e
humanos apropriados.
Actualmente os rastreios universais da audição
dos recém-nascidos são aplicados na maioria dos
países desenvolvidos, segundo critérios padroniza-
dos. Prevê-se que nos próximos anos surjam
critérios normativos para as diferentes características técnicas dos mesmos. A eclosão destes programas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia
significativa antes dos 3 meses de idade e o início
da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos
recém-nascidos usufruirem dos benefícios da intervenção precoce que se traduzem em níveis de
aquisição de linguagem superiores aos que iriam
adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio.
De salientar que estudos publicados pelo grupo do
Colorado vieram demonstrar que a idade de intervenção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o
factor que mais positivamente influencia a reabilitação e aquisição de linguagem para qualquer grau
de surdez.
A maioria dos rastreios é organizada em 3
fases, com início ainda na maternidade, nas
primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas
automáticas, potenciais evocados automáticos ou
oto-emissões acústicas automáticas.
De acordo com as recomendações do GRISI, na
instituição onde se procede ao rastreio considerase equipamento indespensável: dois aparelhos, de
OEA (de diagnóstico ou automático) e/ou de
PEATC (de diagnóstico ou automático).
Os bebés que não “passam” ou não são considerados “aptos” na primeira fase (por exemplo
por existência de exsudado no ouvido médio,
colapso ou obstrução do canal auditivo externo),
serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geralmente uma ou duas semanas depois. Pode utilizar-se a mesma técnica que foi utilizada na
primeira fase, verificando-se que na maioria dos
casos o resultado será normal. Caso contrário, a
criança será encaminhada para uma consulta de
otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da
técnica de potenciais evocados auditivos diagnósticos e impedancimetria. Esta terceira fase, diagnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses.
Os programas de rastreio auditivo deverão ser
integrados, apoiados por programas de reabilitação habilitação e estimulação precoce apropriados que envolvem a adaptação protética, a estimulação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de
implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de
formar equipas multiprofissionais dotadas de
meios técnicos apropriados, motivadas para o
objectivo final que consiste em diagnosticar e
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica
habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as
famílias nas suas decisões e necessidades. Estas
equipas deverão incluir pediatras, otorrinolaringologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas
de fala, professores de surdos, psicólogos, assistentes sociais e administradores hospitalares, entre
outros. É evidente que novos desafios se perfilam
aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como
foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o
correcto diagnóstico e o início de intervenção cada
vez mais precocemente; daí a necessidade de
meios técnicos sofisticados e de treino específico
na área da audiologia pediátrica.
O Quadro 4, adaptado do “Joint Commitee on
Infant Hearing” discrimina os critérios considerados de alto risco que determinam o rastreio da
audição
De salientar, a propósito, a filosofia expressa
pelo European Consensus on Infant Screening em
1998: “....embora os sistemas de saúde na Europa
variem de país para país em termos de organização e financiamento, deverão ser postos em marcha sem atrasos de programas de rastreio de
audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos
cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor
qualidade de vida no próximo milénio”.
No âmbito de uma política nacional de saúde
QUADRO 4 – Critérios de alto risco para
rastreio auditivo (RN em UCIN)
• História familiar de surdez infantil de origem hereditária.
• Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus,
rubéola, sifílis, herpes e toxoplasmose.
• Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do
pavilhão auricular e canal auditivo externo.
• Peso de nascimento < 1,5 Kg.
• Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis
que necessitam de exsanguinotransfusão.
• Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente
aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas
ou em combinação com diuréticos de ansa.
• Meningite bacteriana.
• Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a
6 aos 5 minutos.
• Ventilação assistida durante cinco ou mais dias.
• Estigmas associados a síndroma conhecida por se
associar a hipoacusia sensorial ou de condução.
427
para o diagnóstico precoce da surdez e intervenção, constituiu-se o Grupo de Rastreio e
Intervenção da Surdez (GRISI). Este grupo de trabalho, aberto e multidisciplinar, reúne profissionais com experiência nesta área.
O objectivo deste grupo coordenado pela autora é o desenvolvimento de um programa nacional
de detecção e intervenção auditiva precoces,
padronizando técnicas e metodologias, através de
acções conjuntas entre os vários organismos oficiais e associações profissionais.
O Quadro 5 define as condições consideradas
indispensáveis para garantia de rendibilidade e
de qualidade do rastreio considerado universal.
As Figuras 2 e 3 resumem os esquemas organizativos respectivamente do Rastreio Auditivo
Neonatal Universal (RANU) – sem risco conhecido, e rastreio considerado de alto risco, em crianças internadas em UCIN (Quadro 4 já referido).
Estes esquemas são aplicados no Hospital
Dona Estefânia desde 2003.
Rastreio auditivo pós-neonatal
Na hipótese de não se ter procedido ao rastreio
auditivo no período neonatal, há que atender
aos indicadores de risco de surdez em geral, os
quais constam do Quadro 6, de grande utilidade na prática clínica, quer para pediatras
QUADRO 5 – Condições para rastreio universal
(qualidade e rendibilidade)
1. Um mínimo de 95% dos recém-nascidos deverá de ser
sujeito a rastreio conclusivo (só poderão ser perdidos
para seguimento cerca de 5% ).
2. Deverão ser utilizados métodos objectivos (potenciais
evocados auditivos ou oto-emissões acústicas) e testar-se os 2 ouvidos.
3. O rastreio deverá detectar todas as crianças com
hipoacusia significativa, isto é, com limiares superiores a 35 dB no melhor ouvido.
4. A taxa de falsos positivos deve ser inferior a 3%
(normo-ouvintes evidenciando alterações no âmbito
do rastreio).
5. A taxa de verdadeiros casos positivos deve situar-se
entre 2-4/1000.
6. É desejável taxa zero de falsos negativos.
428
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
RASTREIO DE CRIANÇAS EM UCIN
ORGANIZAÇÃO DO RASTREIO
AUDITIVO NEONATAL UNIVERSAL
UCIN
Na Maternidade
OEA
PEATC
PEATC e OEA
(antes da alta)
“Passa”
Informação
Família
Médico
“Não Passa”
Problema
a esclarecer
2.ª Fase
OEA/PEATC
2ª semana
Passa
Informação
Família
Médico
ORL e PEATC
antes dos seis meses
“Não Passa”
Encaminhamento
para centro
especializado
3.ª Fase
ORL
Impedância
PEATC
Audição Normal
“Passa”
Informação
Família Médico
Deficiência
Auditiva
Intervenção em Centro
especializado antes dos seis meses
(Adaptado de GRISI, 2007)
FIG. 2
Organização do rastreio auditivo neonatal universal.
quer para médicos de família. O referido quadro chama igualmente a atenção para as situações com necessidade de acompanhamento, e
associadas ao aparecimento tardio de perda
auditiva.
Provas diagnósticas
Uma vez realizado o rastreio, cabe referir a abordagem diagnóstica que pode ser realizada nos
casos em que foi detectada alteração da função
auditiva através daquele.
“Não Passa”
ORL e PEATC
antes dos seis meses
ORL e PEATC
Cada seis meses
até 3 anos
(Adaptado de GRISI, 2007)
FIG. 3
Rastreio de crianças em UCIN.
A avaliação audiológica das crianças utiliza um
conjunto de provas cujos resultados devem ser
cruzados e interpretados em conjunto. Cada prova
tem um valor relativo e constitui uma “janela” que
avalia uma determinada área/função da via auditiva. De um modo geral as provas diagnósticas
podem ser classificadas em comportamentais e
fisiológicas (também denominadas objectivas).
Provas comportamentais
As alterações do comportamento da criança após
exposição a um som teste são avaliadas por um
audiologista. As condições do teste são controladas pelo técnico e os resultados deverão ser
reprodutíveis (não deverão existir variações intra
e inter-teste). São, por isso, provas objectivas e
precisas. Trata-se de provas que exigem que a criança tenha o desenvolvimento psicomotor necessário e que a mesma coopere na execução do teste.
O técnico deverá ter a capacidade para determinar
que tipo de teste é o mais indicado para cada criança, baseado no desenvolvimento psicomotor, e
não na idade cronológica.
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica
429
QUADRO 6 – Indicadores de risco de surdez
Crianças até aos dois anos:
– Preocupação/suspeita dos pais em relação ao desenvolvimento da fala, linguagem ou audição.
– Meningite bacteriana e outras infecções associadas
com perda auditiva neurossensorial.
– Traumatismo crânio-encefálico acompanhado de
perda de consciência ou fractura do crânio
– Estigmas ou sinais de síndromas associadas a perdas
auditivas de condução e/ou neurossensoriais.
– Medicamentos ototóxicos (incluindo, mas não limitados a, agentes quimioterápicos ou aminoglicosídeos,
associados ou não a diuréticos de ansa).
– Otite média de repetição/persistente, com efusão por
períodos de, pelo menos, 3 (três) meses.
Crianças que necessitam de acompanhamento até
aos 3 anos de idade:
– Alguns RN podem “passar” no rastreio auditivo, mas
necessitam de acompanhamento periódico pois têm
risco aumentado de aparecimento tardio de perda
auditiva neurossensorial ou de condução.
– Crianças com indicadores abaixo referidos, requerem
avaliação a cada 6 (seis) meses.
Indicadores associados ao aparecimento tardio de
perda neurossensorial:
– Antecedentes familiares de perda auditiva tardia na
infância.
– Infecções congénitas (rubéola, sífilis, herpes, citomegalovírus, toxoplasmose).
– Neurofibromatose tipo II e doenças neurodegenerativas.
Indicadores associados ao aparecimento tardio de
perda de condução:
– Otite média de repetição/recorrente ou persistente
com derrame.
– Defeitos anatómicos e outras alterações que afectam a
função da trompa de Eustáquio.
– Doenças neurodegenerativas.
Podem dividir-se em provas limiares, quando
visam a detecção da menor intensidade sonora perceptível para cada som teste (limiar para aquela frequência), e supralimiares quando a intensidade do
som teste se situa acima do limiar de percepção.
São abordadas as seguintes provas comporta-
FIG. 4
Exemplos de instrumentos que produzem sons, utilizados
para testar os reflexos incondicionados.
FIG. 5
Reflexos Incondicionados – A criança vira a cabeça na
direcção da fonte sonora.
mentais:
• Prova dos reflexos incondicionados
Assim chamada porque são desencadeadas
reacções reflexas inatas dos recém-nascidos a sons
de intensidade audível. É habitualmente utilizada
até aos 6-7 meses de idade. Consiste na detecção de
reflexos incondicionados (reacções de sobressalto,
abertura dos olhos, pestanejo, suspensão de actividades motoras tais como a sucção) a sons de intensidades supralimiares e de várias frequências. É
muito importante para complementar a informação obtida através de provas fisiológicas, não
devendo ser utilizada isoladamente (Figuras 4 e 5).
• Prova dos reflexos de orientação condicionada
A partir do momento em que a criança se senta
e segura a cabeça (6-7 meses), é possível estudar
reacções de orientação do olhar para a fonte sonora no plano horizontal, sendo possível condicionála utilizando técnicas de condicionamento ope-
430
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
rante. É apresentado um som de suficiente intensidade para que a criança vire o olhar na direcção
da fonte sonora. Após esta reacção da criança ao
som, é apresentado um reforço positivo ao seu
comportamento. O reforço comportamental
poderá ser uma luz que se acende, um brinquedo
eléctrico que se liga ou um boneco que se torna
visível. Cada vez que a criança “vira o olhar” em
resposta à apresentação do som-teste, recebe o
reforço positivo. Quando a criança se encontra
condicionada, isto é, quando consistentemente
vira a cabeça e procura o reforço após a apresentação do som teste, pode ser feita uma determinação de limiares auditivos para cada frequência:
o estímulo vai diminuindo de intensidade até que
a criança não responde mais (limiar auditivo). O
processo de determinação de limiares vai-se
repetindo para as várias frequências. As crianças
que não permitam a colocação de auscultadores
terão de ser testadas em campo livre, sendo os
limiares obtidos respeitantes ao melhor ouvido.
A criança um pouco mais velha, ao permitir a
colocação de auscultadores e de vibrador ósseo,
poderá ser testada separadamente aos dois ouvidos, por via aérea e por via óssea (Figura 6).
• Audiomatria condicionada por jogos
A criança mais velha, geralmente a partir dos
dois anos e meio, poderá ser condicionada utilizando jogos: é-lhe explicado que, cada vez que
ouvir o som-teste, deverá colocar uma peça do
jogo. O som teste poderá ser apresentado em
campo livre, através de auscultadores ou de
vibrador. Inicia-se o exame pela apresentação de
um som com uma intensidade suficiente para que
a criança oiça; e depois vai-se diminuindo a intensidade e variando a frequência, de modo a obter
os limiares para as frequências entre 250 a 4000 Hz
(Figura 7).
As limitações das provas comportamentais são:
exigem condições técnicas adequadas a crianças
(cabines insonorizadas de dimensões adequadas,
audiómetros adaptados a colunas calibradas para
campo livre, técnicos treinados em audiometria
infantil, sendo por vezes necessários dois em
simultâneo); a criança tem que cooperar, o que
nem sempre é possível, devido à sua idade ou a
atraso do desenvolvimento psico-motor; a resposta comportamental pode extinguir-se rapidamente, pelo que muitas vezes a prova terá que ser
FIG. 6
Reflexos de Orientação Condicionada – A criança é
condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o
estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco
começa a mexer-se e a luz acende-se.
interrompida, recomeçado de novo, quando a criança volte a cooperar, por vezes no dia seguinte.
Pelas limitações descritas, quando as respostas
não são claras e consistentes, há necessidade de
complementar as provas comportamentais com
provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados
de ambas as provas.
Provas fisiológicas
No grupo das provas fisiológicas consideram-se
as seguintes modalidades: provas de impedância
(incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos
acústicos); a prova dos potenciais evocados auditivos (incluindo uma nova modalidade designada
por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory
Steady State Response), e a prova das oto-emissões
acústicas.
• Timpanograma
Esta prova permite avaliar as condições físicas
do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpanoossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio
de transmissão do som: gás ou exsudados).
Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226
Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em
bebés até esta idade.
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica
FIG. 7
Audiometria Lúdica (condicionada por jogos) – A criança
coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som teste.
Há três tipos principais de resultados obtidos
pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o
gráfico corresponde a um ouvido normal, com
uma mobilidade normal do sistema timpanoossicular; o segundo (B) corresponde a um
aumento significativo da impedância do ouvido
médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossicular, na maior parte das vezes correspondendo à
presença de derrame dentro do ouvido médio; o
timpanograma do tipo C corresponde a situações
intermédias, com pressões negativas dentro do
ouvido médio, por funcionamento anómalo da
trompa de Eustáquio.
• Prova dos reflexos acústicos
Esta prova que perdeu a importância diagnóstica que teve no passado, com a utilização generalizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais
evocados auditivos a referir adiante, testa a integridade da via auditiva (arco reflexo da via auditiva-nervo facial). O princípio utilizado é o
seguinte: apresentando um som-teste de intensi-
431
dade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60
dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na
contracção dos músculos do ouvido médio, no
ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos
ipsi e contralaterais). Como principais limitações
citam-se: tempo exigido para o teste, durante o
qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser
executada na presença de líquido no ouvido
médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular.
A presença de reflexos normais significa normalidade das duas vias testadas (aferente e eferente),
mas a sua ausência não permite a afirmação de
hipoacusia.
• Potenciais evocados auditivos (PEA)
São provas que avaliam as variações dos
potenciais eléctricos entre vários pontos da superfície da calote craniana em resposta a um estímulo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos.
Podem designar-se, quanto à sua latência, em
potenciais de curta, média e longa latência. Muitas
vezes estes potenciais são denominados quanto à
origem das ondas que examinam (ex: potenciais
evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC).
Tais provas exigem que o doente se encontre perfeitamente relaxado, preferencialmente adormecido, havendo muitas vezes necessidade de recorrer
à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade,
pois permitem confirmar os limiares auditivos
obtidos pelas provas comportamentais; em casos
de crianças muito jovens, não cooperantes ou com
deficiência, estas provas podem ser as únicas a
fornecer dados acerca das capacidades auditivas.
As respostas obtidas deverão ser interpretadas
por um técnico treinado e relacionadas com a
clínica e com os resultados das restantes provas.
Os potencias evocados auditivos mais utilizados na clínica audiológica pediátrica são os potenciais evocados auditivos precoces, de curta latência ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A
prova consiste no seguinte: são colocados eléctrodos na superfície da calote craniana sendo registado o traçado electroencefalográfico (EEG) do
doente, o que corresponde à actividade eléctrica
de base. Registam-se as variações da actividade
eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apresentação de um estímulo auditivo por meio de
auscultadores a cada um dos ouvidos separadamente, sendo este som-teste repetido rapidamente
(por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadên-
432
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cia de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo
mais utilizado é um “click”, estímulo transitório
com um espectro frequencial centrado entre 2 000
e 4 000 Hz.
O computador analisa as ondas, extraindo a
resposta eléctrica da via auditiva da actividade
eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas
ondas positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que
representam a activação de diversas zonas da via
auditiva (Quadro 7) . A intensidade do estímulo
vai depois sendo diminuída, em degraus de 10 dB,
até que as ondas se vão extinguindo progressivamente. Quando a chamada onda V se extingue
(geralmente a mais resiliente), verifica-se se o limiar auditivo se situa cerca desta intensidade. Este
limiar corresponde ao limiar obtido por audiometria comportamental entre os 2 000 e os
4 000 Hz. Com esta prova não é possível a determinação de limiares electrofisiológicos para as
restantes frequências. Além do limiar electrofisiológico, podem medir-se as latências das ondas e os
intervalos entre as ondas, o que permite um diagnóstico topográfico das lesões da via auditiva,
contribuindo para o esclarecimento etiológico da
hipoacusia.
Esta prova tem elevadas especificidade e sensibilidade, estando disponível na maioria das
unidades de audiologia desde há décadas.
Actualmente existem no mercado aparelhos
automáticos com algoritmos de decisão, em que o
próprio aparelho procede à identificação das
ondas e à sua análise, dando resultados do tipo
“Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com problema” que exige esclarecimento, tal como foi
descrito a propósito dos rastreios.
• Otoemissões acústicas (OEA)
Com esta prova são utilizados sons de fraca
intensidade com origem nas células ciliadas externas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normoouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta
a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA
espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas
(transitórias), e OEA de produtos de distorção.
Após a sua produção na cóclea estas ondas
sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo
vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se
estas vibrações ao ar do canal auditivo externo
onde serão detectadas por um microfone. Após
processamento destas respostas obtêm-se valores
QUADRO 7 – Origem provável das ondas dos
PEATC
• Onda I – Cóclea e porção mais distal do VIII par
• Onda II – Porção proximal do VIII par e Núcleos
Cocleares
• Onda III – Complexo Olivar Superior
• Onda IV – Leminiscus Lateralis, Núcleos Cocleraes e
Complexo Olivar Superior
• Onda V – Coliculus Inferior
que serão representados graficamente e que podem
ser utilizados para fins diagnósticos. Considera-se
que, quando as oto-emissões acústicas estão presentes, o ouvido tem um limiar auditivo igual ou
melhor que 40 dB; por outro lado a ausência de
OEA, que pode resultar de oclusão do canal auditivo externo, presença de líquido dentro do ouvido
médio, ou disfunção coclear, significa que o ouvido
deverá ter limiares auditivos piores que 40 dB.
As OEA não permitem a definição de limiares
auditivos, mas constituem um teste importante
para avaliar a função coclear. Utiliza-se, sobretudo, em rastreios auditivos (rastreio universal da
audição de recém-nascidos, rastreio da audição
após meningite, e também na monitorização de
fenómenos de ototoxicidade e de surdez induzida
por ruído).
Em suma, a avaliação audiológica correcta
deverá basear-se num conjunto de testes adaptados para cada idade e para cada criança; é mais
difícil nas crianças muito pequenas, com atraso
psicomotor, com perturbações da esfera do
autismo e nas crianças com multideficiência (cerca
de 30% das crianças com surdez).
O papel dos profissionais de saúde (pediatras,
clínicos gerais, técnicos) com responsabilidade na
avaliação do desenvolvimento das crianças, deverá ser proactivo, no sentido de detectar a deficiência auditiva cada vez mais precocemente. Com
efeito, no passado, muitas vezes o diagnóstico
apenas se fazia aos dois ou três anos, quando a criança apresentava um manifesto atraso de
aquisição da linguagem verbal.
BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica
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433
PARTE XIV
Pneumologia
436
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
80
ANOMALIAS DA PAREDE
DO TÓRAX
João M. Videira Amaral
Neste capítulo é feita uma abordagem de conjunto de determinadas anomalias de conformação do
tórax, quer congénitas, quer adquiridas, as quais
poderão estar ou não associadas a outras anomalias congénitas, em muitos casos fazendo parte
de diversas síndromas plurimalformativas.
Tórax assimétrico
Alguns lactentes, em especial com antecedentes
de prematuridade, exibem nos primeiros meses
de vida , tórax assimétrico, em geral associado a
assimetria da cabeça.
Trata-se de crianças que permanecem durante
muito tempo em decúbito, sempre na mesma
posição, mais inclinadas para um lado do que
para outro. A cabeça e o tórax cedem no lado comprimido, achatando- se e perdendo a simetria.
Para corrigir tal situação bastará mudar de vez
em quando a posição da criança no berço ou virála para o lado oposto durante algum tempo, para
prevenir ou corrigir a deformação.
notam-se nódulos arredondados dispostos de
cada lado da linha média da face anterior do
tórax, desde as costelas superiores às inferiores.
A correcção desta situação consiste no tratamento do raquitismo com vitamina D e, eventualmente, suplemento de cálcio. (ver Parte Nutrição).
No âmbito do raquitismo, cabe referir, a propósito:
1.1 - o chamado “pulmão raquítico”, quadro
clínico hoje praticamente inexistente, associado às
síndromas de raquitismo grave e às infecções respiratórias de repetição/pneumonias no contexto de
tal afecção. A etipatogenia relaciona-se com as
alterações da dinâmica respiratória associadas,
quer às deformações do tórax, quer à hipotonia
muscular acompanhante; as costelas, com défice de
calcificação, não resistem às tracções musculares e
compressões deixando- se deformar (Figura 1).
1.2 - a cinta raquítica ou sulco de Harrison
A tracção exercida pelo diafragma pode ocasionar, na parte inferior do tórax, um pouco acima
do rebordo costal, um sulco ou depressão horizontal que se acentua durante a inspiração. Como o
raquitismo se acompanha de hipotonia muscular,
o abdómen, consideravelmente abaulado, impele
para fora as costelas situadas abaixo das inserções
diafragmáticas, assumindo, nos casos mais típicos,
a forma de tórax em sino. (ver Parte Nutrição).
2. Escorbuto
No caso do escorbuto (situação que nos países
Tórax com “rosário costal“
1. Raquitismo
O ponto de união costocondral palpa-se com facilidade em muitos lactentes saudáveis nos
primeiros meses de vida;no entanto, não chega a
ser visível.
No raquitismo encontra-se, por vezes já no
segundo trimestre, o chamado “rosário costal”,
designação clássica para traduzir a tumefacção
esferóide “em conta de rosário” na junção osteocartilaginosa das costelas; com efeito, à inspecção
FIG. 1
Padrão radiográfico de pneumonia no contexto de
raquitismo grave (“Pulmão raquítico”) (NIHDE).
CAPÍTULO 80 Anomalias da parede do tórax
437
desenvolvidos hoje pertence à história) existe também rosário costal, no entanto com etiopatogénese
diferente da do raquitismo.
Com efeito, no escorbuto o esterno encontra-se
deprimido, sendo precisamente o deslocamento
do esterno para trás que origina subluxação das
condrocostais e, consequentemente, a sua “saliência” ou ”contas do rosário”. No entanto, as contas
deste “rosário“ são angulares, em “baioneta”, contrastando com as do raquitismo, largas e achatadas
ou esferóides. Recorde- se que não se observam as
deformações de tipo raquítico da cabeça e tórax.
A correcção deste defeito consiste, essencialmente,
na administração de vitamina C. (ver Parte Nutrição).
Tórax “em quilha ou de pombo”/
Pectus carinatum
Uma das alterações mais comuns consiste no
achatamento ou depressão ântero-lateral com saliência do esterno.
Tal deformação produz-se quando ao raquitismo se associam infecções broncopulmonares repetidas a que atrás se fez alusão.
Esta deformidade pode ser congénita, independente do raquitismo. É o que acontece , por
exemplo, numa das mucopolissacaridoses(doença
de Mórquio).
Independentemente da correcção do possível
défice de base na situações adquiridas, os quadros
clínicos com deformação mais exuberante deverão
ser avaliados pelo cirurgião pediátrico para eventual correcção cirúrgica.
Tórax “em barril” ou enfisematoso
Nas situações de enfisema pulmonar crónico as
costelas tornam-se horizontais e o tórax globoso,
arredondado; é o exagero da disposição normal da
primeira infância.
Este tipo de tórax encontra-se transitoriamente
na bronquiolite aguda e nas crises de asma. Com
carácter permanente é mais raro, associando-se na
maioria das vezes a fibrose quística ou asma grave.
Tórax “em funil” ou pectus excavatum
FIG. 2
Pectus excavatum no contexto de sindroma de Poland
(Atrofia do grande peitoral). (NIHDE)
restrita à parte inferior do esterno e às articulações
condrocostais, da 4ª costela à 9ª. Deste modo,
reduz- se o diâmetro ântero- posterior do tórax ao
nível do apêndice xifoideu.
A profundidade da depressão por vezes muito
acentuada, simétrica ou assimétrica, pode progredir ou regredir com a idade.
O pectus excavatum pode estar associado a
diversas síndromas tais como síndroma de
Marfan, de Pierre Robin, de Coffin Lowry, de
Poland, etc.. (Figura 2).
Para avaliação do compromisso da função respiratória poderá estar indicada espirometria.
Tal deformidade deve ser avaliada pelo cirurgião
pediátrico; se for decidida a correcção cirúrgica,
sendo isolada, ela é feita mais por razões cosméticas
do que pela repercussão funcional respiratória.
BIBLIOGRAFIA
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Philadelphia:Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Gill D, O´Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh:
Churchill Livingstone, 2003
Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson
Essentials of Pediatrics. Philadelphia:Elsevier Saunders,
2006
Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York:
Esta deformidade, quase sempre congénita, caracteriza-se por depressão, arredondada ou angular,
McGraw-Hill, 2002
438
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
81
ANOMALIAS CONGÉNITAS
DO SISTEMA RESPIRATÓRIO
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral
Importância do problema
As anomalias congénitas do sistema respiratório,
implicando em geral resolução cirúrgica, são situações raras de expressão clínica muito variável.
Com a evolução da tecnologia de imagem aplicada no período pré-natal é hoje possível o diagnóstico antecipado de muitas destas situações, o que
contribui para a melhoria do prognóstico.
Etiopatogénese
A morfogénese das estruturas da árvore respiratória
(tracto respiratório inferior) que derivam primordialmente do intestino primitivo do embrião, é classicamente dividida em cinco períodos: estes são
contados a partir da separação do divertículo “em
dedo de luva”ou saccuilus pulmonalis que emerge da
face ventral do tubo digestivo primitivo pelos 24
dias de gestação,bifurcando-se pelos 26-28 dias
(esboços dos brônquios principais):
– Período embrionário (4ª -7ª semana)
Neste período inicia-se a separação do primórdio
respiratório a partir da face ventral do intestino anterior como resultado da formação do septo tráqueoesofágico; estão então constituídos dois “tubos”
independentes: o esófago e o tubo laringotraqueal.
– Período pseudoglandular(7ª-16ª semana)
Neste período ocorrem determinados eventos
em simultâneo: ramificação da árvore respiratória
até aos bronquíolos terminais, migração das estruturas vasculares, e desenvolvimento da cartilagem, glândulas mucosas e musculatura lisa nos
brônquios a partir do mesênquima.
– Período canalicular (16ª-26ª semana)
Neste período formam-se os bronquíolos respiratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a partir dos bronquíolos terminais.
– Período sacular (26ª-36ª semana)
Os eventos importantes deste período são o
crescimento das unidades para as trocas gasosas e
a produção de surfactante alveolar.
– Período alveolar (a partir da 36ª semana)
Neste período completa- se a formação das estruturas envolvidas na função respiratória continuando
o crescimento da superfície de trocas gasosas.
A perturbação deste processo em diversas
datas e por efeito de diversos factores dá origem a
diversas anomalias congénitas; neste capítulo é
feita menção especial a quatro situações deste foro,
de possível solução cirúrgica: enfisema lobar congénito, quisto broncogénico, malformação adenomatóide quística e sequestração broncopulmonar.
1. ENFISEMA LOBAR CONGÉNITO
Definição
O enfisema lobar congénito consiste na insuflação
anormal de um pulmão anatomicamente normal
resultando provavelmente de um defeito intrínseco da cartilagem bronquiolar favorecendo broncomalacia. Como consequência verifica- se colapso do brônquio afectado durante a expiração
levando a retenção progressiva de ar no pulmão
por dificuldade de saída daquele. O lobo mais frequentemente afectado é o superior esquerdo
(LSE), seguindo-se em frequência o lobo médio
direito e o superior direito.
Manifestações clínicas
O enfisema lobar congénito pode ser assintomático durante algum tempo (dias), sendo habitual um
quadro de dificuldade respiratória, de instalação
mais ou menos rápida, nos primeiros dias de vida;
é possível que o mesmo seja desencadeado pelo
choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda.
As manifestações poderão surgir mais tarde,
na idade pré-escolar.
O quadro clínico é explicável pela compressão
exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal.
CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório
Exames complementares
e diagnóstico diferencial
Através da radiografia do tórax realizada perante
manifestações de dificuldade respiratória torna-se
evidente o sinal de hipertransparência na área do
lobo afectado(em geral LSE) com herniação e
desvio do mediastino para o lado oposto ; a
hemicúpula diafragmática homolateral está
aplanada (Figura 1).
O diagnóstico diferencial faz-se com pneumotórax e com anomalia adenomatóide quística
na sua forma de apresentação de quisto gigante.
A tomografia axial computadorizada ajuda
nesta destrinça, bem como esclarece a possível confusão com compressão extrínseca do brônquio por
estruturas mediastínicas. Nestes casos a broncoscopia pré-operatória pode tornar-se indispensável.
Poderá estar indicada a cintigrafia de perfusão/ventilação nos casos de enfisema lobar que
se admite tenha sido adquirido após ventilação
com pressão positiva de longa duração.
Também está indicada a observação por cardiologista pediátrico que procede a ecografia
cardíaca pela elevada probabilidade de associação
a anomalia cardiovascular.
Tratamento
Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento
é cirúrgico .
Se o quadro for de instalação aguda, pode ser
necessária uma toracotomia de urgência.
FIG. 1
Padrão radiográfico convencional do tórax (Enfisema lobar à
esquerda). TAC torácica (imagem bolhosa). (NIHDE)
439
Se se demonstrar que a causa da insuflação é
broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se existir compressão extrínseca, a intervenção tem como
objectivo retirar a causa.
Se se tratar de compressão extrínseca, após
remoção da causa o lobo afectado retomará a sua
função normal.
Se no pré-operatório se tornar indispensável
apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação
oscilatória de alta frequência.
2. QUISTO BRONCOGÉNICO
Definição
O quisto broncogénico gera-se a partir do
divertículo respiratório, em que um grupo de
células, que se desenvolve independentemente do
tracto respiratório, se separa deste.
Pode ter várias localizações sendo a mais frequente no mediastino posterior ou médio, por de
trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe”
(carina, hilo pulmonar); está frequentemente ligado a esta por um pedículo obliterado ou permeável. Em geral é central e único.
Pode, raramente, localizar-se no esófago, pericárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assumindo nesta última localização a forma multilocular.
No que respeita a características morfológicas,
os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de
diâmetro, parede bem individualizada e contêm
muco, pus ou sangue.
Manifestações clínicas
Mais frequentemente as manifestações têm início
na idade pré- escolar traduzindo- se por sinais de
broncospasmo, sinais de compressão, ou por
infecções respiratórias de repetição, nalguns casos
relacionadas com infecção do próprio quisto quando este comunica com a árvore tráqueo-brônquica.
Os quistos de localização intercarinal podem
manifestar-se muito mais precocemente, já no
recém- nascido, com insuficiência respiratória, o
que implica correcção precoce; podem ser causa
de morte súbita.
Noutros casos são assintomáticos, sendo então
identificados como achados no âmbito da realização
de exame radiográfico do tórax por motivos diversos.
440
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Exames complementares
A radiografia do tórax poderá evidenciar massa
paratraqueal ou imagem esferóide com parede
fina (semelhante a “balão” ou grande “bolha” correspondente a área de distensão gasosa.
A TAC e a RMN, com maior discriminação
imagiológica, possibilitarão a identificação de
pequenos quistos intercarinais.
primir as estruturas vizinhas.
Surge com uma frequência aproximada de 14/100.000 nascimentos.
São descritos 3 tipos: 1 ( 50%), macroquístico, com um ou mais quistos de diâmetro superior
a 2 cm; 2 ( 40%), microquístico com histologia
semelhante à do tipo 1; 3 ( 10%) em que a lesão
é sólida simile bronquíolos preenchidos por
epitélio cubóide ciliado e não ciliado.
Diagnóstico diferencial
Manifestações clínicas e diagnóstico
As manifestações clínicas e o padrão radiográfico
do tórax convencional evidenciando imagem de
distensão gasosa ou “bolhosa” única poderão
levar a admitir a presença doutra situação – o quisto pulmonar – com patogénese semelhante ao
quisto broncogénico, mas derivando das células
do bronquíolo respiratório. O referido quisto pulmonar é, no entanto, periférico (e único) com um
padrão radiográfico que evidencia parede melhor
definida do que no caso do quisto broncogénico.
Por sua vez, o quisto pulmonar pode confundir-se
com pneumatocelo o qual apresenta parede
menos espessa. O quisto pulmonar, quando infectado, pode confundir-se com abcesso pulmonar.
As manifestações são precoces, no pós – parto
traduzidas por síndroma de dificuldade respiratória conduzindo a insuficiência respiratória; a
manifestação mais tardia inaugural pode ser
infecção respiratória com recorrências.
A ecografia fetal permite o diagnóstico entre a
12ª e a 14ª semana de vida intra-uterina; por vezes
verifica-se inexplicavelmente a sua regressão espontânea o que prova a complexidade de tal anomalia
congénita. Em certas formas surge hydrops fetalis.
Após o nascimento a radiografia do tórax é
essencial para o diagnóstico definitivo, chamando- se a atenção para o diagnóstico diferencial
com a hérnia diafragmática de Bochdaleck (esta
última abordada no capítulo 308).
Em casos especiais pode proceder-se à tomografia axial computadorizada.
Definição e importância do problema
Esta anomalia relativamente frequentemente é
caracterizada por crescimento desordenado (histologia de tipo hamartoma ou displasia) dos bronquíolos terminais impedindo quase completamente o crescimento e desenvolvimento alveolar
no lobo de um pulmão; como consequência há
formação de múltiplos quistos desorganizados
alternando com zonas de parênquima não afectado, sendo que os referidos quistos não comunicam
com a árvore tráqueo-brônquica e podem com-
Ⲙ
3. MALFORMAÇÃO ADENOMATÓIDE
QUÍSTICA
Ⲙ
O tratamento, quer do quisto broncogénico, quer
do quisto pulmonar, é a excisão cirúrgica.
Ⲙ
Tratamento
Tratamento
O tratamento é a excisão cirúrgica – lobectomia –
mesmo no doente assintomático, de preferência
antes dos 12 meses de idade, face à possibilidade
de evolução sarcomatosa ou carcinomatosa.
Quando as lesões são de grandes dimensões
pode verificar-se hipoplasia do pulmão e hipertensão pulmonar implicando medidas de suporte
respiratório em unidade de cuidados intensivos.
4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR
Definição e etiopatogénese
Esta anomalia é caracterizada pela presença de
segmento de parênquima pulmonar não funcionante, sem comunicação evidente com a árvore
traqueo-brônquica ; a sua vascularização é anó-
CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório
mala, recebendo a totalidade ou a maior parte da
sua irrigação arterial sanguínea por vasos oriundos directamente da circulação sistémica.
São descritos dois tipos:
– intralobar em que o tecido sequestrado está
contido no lobo normal;
– extralobar, ocorrendo quando a lesão está
separada do lobo pulmonar normal e também fora
da pleura visceral; este tipo está mais frequentemente associado a outras anomalias congénitas.
441
A
Manifestações clínicas e diagnóstico
O início das manifestações é muito variável, desde a
idade pediátrica à idade adulta. Em geral traduzemse, quer por sinais e sintomas de infecções respiratórias, quer relacionáveis com shunt de alto débito
em relação com os vasos anómalos.
A sintomatologia é predominantemente respiratória, mas a presença de shunts de alto débito, por
si só, ou pelas malformações cardíacas congénitas
associadas, pode produzir manifestações cardiocirculatórias. Com efeito, a infecção respiratória é
habitual neste tecido pulmonar não funcionante,
pelo que as crianças com infecções respiratórias de
repetição de causa não evidente devem ser consideradas suspeitas de serem portadoras deste tipo de
malformação e investigadas nesse sentido.
A radiografia do tórax convencional, nos casos
de tipo intralobar, pode evidenciar sinais de
opacidade ou de lesão quística com nível líquido.
A ecografia doppler é o exame de eleição, mas
pode haver necessidade de se associar TAC com
reconstrução a 3 dimensões, ou ângio-ressonância.
Deve ser feito o estudo por ecografia e cintigrafia do fígado quando a lesão está localizada na
base direita, pois há casos de hérnia diafragmática
com fígado intratorácico que podem levar a erros
de diagnóstico.
Tratamento
B
FIG. 1
Sequestração pulmonar: A – Radiografia do tórax convencional
evidenciando opacidade ovóide no terço inferior do hemitórax
esquerdo; B – TAC torácica evidenciando opacidades arredondadas confluentes em “mapa geográfico”. (NIHDE)
dente, poderão ser seguidos sem intervenção
cirúrgica a qual só estará indicada se se verificar
infecção ou sintomatologia cardiocirculatória.
BIBLIOGRAFIA
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O tratamento da sequestração pulmonar intralobar
é a lobectomia ou, caso possível, a segmentectomia, tendo sempre em atenção a necessidade de
laquear o vaso anómalo face ao risco de hemorragia e morte intra-operatória .
Os casos de sequestração extralobar que, na sua
maioria, são assintomáticos e descobertos por aci-
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442
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
82
PNEUMONIA ADQUIRIDA
NA COMUNIDADE
Laura Oliveira e Fátima Abreu
Definição e importância do problema
Pneumonia é a inflamação dos alvéolos e das vias
aéreas terminais causada, regra geral, por um
agente invasor, vírus ou bactéria. Outras causas
não infecciosas podem também originar tal
processo inflamatório, como aspiração de
alimentos ou conteúdo gástrico, corpos estranhos,
hidrocarbonetos, substâncias lipóides, reacções de
hipersensibilidade, radiações, etc.. As causas de
infecção no RN e no doente imunocomprometido
são diferentes.
Este processo traduz-se na maioria das vezes
por um quadro de febre e sintomas respiratórios
de início agudo, associados a infiltrados parenquimatosos (hipotransparência) pulmonares evidenciados em radiografia de tórax. É o conceito de
pneumonia aguda. Assim, na perspectiva da
prática clínica surgem dois termos: 1) Pneumonia
no sentido genérico definida pela presença de
febre e/ou sintomas e sinais agudos de afecção da
via respiratória inferior, associados a sinais radiográficos de tórax (infiltrados parenquimatosos); 2)
Pneumonia adquirida na comunidade, definida
pelo quadro de infecção adquirida fora do
ambiente hospitalar no pressuposto de o doente
não ter estado internado nos 7 dias precedendo o
diagnóstico e de este último ser feito dentro de 48
horas após o internamento. Certos factores
aumentam o risco de aquisição desta patologia; as
crianças imunodeprimidas, com doenças neuromusculares, refluxo gastro-esofágico, defeitos
anatómicos congénitos pulmonares (por exemplo
sequestro intrapulmonar, fístula tráqueo-esofágica) ou com anomalias do mecanismo de depu-
ração pulmonar (fibrose quística, disfunção ciliar)
são particularmente susceptíveis.
A pneumonia de causa infecciosa é uma das
situações graves mais comuns na infância, com uma
incidência anual na Europa e América do Norte de
34 a 40 casos por 1000 crianças, sendo causa
frequente de morbilidade nas idades pediátricas nos
países desenvolvidos. Em Portugal, no que respeita
à pneumonia adquirida na comunidade, estima-se
uma incidência de 30/1000 internamentos.
Etiologia
Em idade pediátrica, de um modo geral não é
possível determinar o agente microbiano causador
da pneumonia. Tal requereria técnicas invasivas e
cruentas como a biópsia ou a aspiração pulmonares,
poucas vezes efectuadas. O diagnóstico etiológico
de presunção baseia-se, pois, em inúmeros
pressupostos, tais como: a clínica; a epidemiologia
local; aspectos radiológicos; variações sazonais e a
idade do doente. Exceptuando o período neonatal,
os vírus são responsáveis por cerca de 80 a 85% dos
casos de pneumonias. Destes os mais frequentes são
os vírus respiratório sincicial (VRS), parainfluenza
1,2,3 e influenza A e B.
Os agentes microbianos mais frequentemente
implicados no período neonatal são o estreptococo do grupo B (Streptococcus agalactiae) e os
bacilos entéricos gram-negativos, particularmente
a Escherichia coli, adquiridos por transmissão
vertical na altura do parto. Fora deste período, o
agente bacteriano mais frequente é o Streptococcus
pneumoniae, embora em crianças mais velhas e
adolescentes o M. pneumoniae e a Chlamydia pneumoniae estejam frequentemente implicados.
Lactentes com menos de 20 semanas com tosse
seca arrastada e conjuntivite podem ter infecções
por Chlamydia trachomatis. Lactentes não imunizados podem também ter pneumonia por
Haemophilus influenzae. A infecção por Staphylococcus aureus pode resultar de infecções cutâneas e
ser adquirida por via hematogénica causando
pneumonias graves.
Fisiopatologia
A pneumonia resulta da inflamação do tecido
pulmonar causada pela invasão de agentes pato-
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade
génicos como sejam vírus, bactérias, agentes
químicos ou outros. O agente causador de lesão
chega ao pulmão por inalação, por microaspiração ou por via hematogénica. Ao chegar ao
alvéolo pulmonar o sistema imunológico tenta
eliminá-lo através de dois mecanismos principais:
meios de defesa físicos (processo de depuração
mucociliar e drenagem linfática), e mecanismos de
destruição de bactérias (opsonização, acção de
imunoglobulinas G específicas, ingestão macrofágica ou destruição bacteriana mediada pelo
complemento). Se estes mecanismos não forem
capazes de deter a infecção, são recrutados
polimorfonucleados para o local, resultando daí
uma resposta inflamatória. A perpetuação desta
resposta conduz à pneumonia.
Classicamente foram descritos quatro entidades histológicas para a pneumonia por pneumococo: ingurgitamento; hepatização vermelha;
hepatização cinzenta e resolução. A primeira
destas fases está associada à presença de bactérias
nos alvéolos e ao exsudado seroso associado que
progride posteriormente para a hepatização
vermelha por passagem dos eritrócitos para os
alvéolos. A fase seguinte, hepatização cinzenta,
resulta da migração dos leucócitos para a área
afectada com depósito de fibrina intravascular,
dificultando a perfusão na área afectada. Por fim,
a fagocitose do micróbio e a eliminação da fibrina
e detritos conduzem à resolução da pneumonia.
Quando as bactérias se estendem à cavidade
pleural, a supuração intrapleural pode produzir
empiema. A resolução desta reacção pleural
pode ocorrer espontaneamente, mas habitualmente leva a espessamento fibroso ou forma
aderências.
443
Manifestações clínicas
O quadro clínico das pneumonias reveste-se de
contornos diferentes consoante a idade do doente,
a gravidade da doença e o agente etiológico.
As manifestações clínicas são diversas e
muitas vezes inespecíficas ou subtis, sobretudo no
período neonatal em que pode haver apenas um
quadro de irritabilidade, recusa alimentar, taquipneia e gemido. Nem sempre este quadro se
acompanha de febre, podendo, pelo contrário,
associar-se a hipotermia.
Após o 1º mês de vida a tosse é o sintoma mais
comum de apresentação da doença, em geral
acompanhada de febre. Os lactentes podem ter
história precedente de infecção das vias respiratórias
superiores. Vómitos, particularmente após acesso de
tosse, recusa alimentar e irritabilidade, são também
sinais comuns de apresentação da doença.
Em lactentes com menos de 20 semanas,
sintomas como tosse seca, conjuntivite, taquipneia
e fervores crepitantes detectados pela auscultação
pulmonar devem levar a admitir a hipótese de
pneumonia por Chlamydia trachomatis.
As crianças mais velhas e adolescentes, para
além dos sintomas comuns às crianças pequenas,
podem queixar-se de cefaleia, dor pleurítica ou
dor abdominal vaga, vómitos, diarreia, odinofagia
e otalgia, sugerindo pneumonia provocada por
germes como Mycoplasma. A tosse acompanhada
de sibilância é também muito comum a este tipo
de infecção.
A existência de sinais infecção pulmonar
associada, por exemplo, a abcessos cutâneos ou
dos tecidos moles, pode sugerir como agentes
etiológicos o Staphylococcus aureus e o Streptococcus
QUADRO 1 – Pneumonia: manifestações clínicas e germe microbiano
Pneumonia bacteriana
Pneumonia por vírus,
M. pneumoniae, C. pneumoniae
Febre
Início
Sintomas associados
geralmente > 39° C
abrupto
dor torácica; dor abdominal
Auscultação pulmonar
diminuição do murmúrio
vesicular
geralmente > 39° C
gradual
mialgias, faringite, conjuntivite,
diarreia, exantema
sibilos
444
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do grupo A; otite média aguda, sinusite ou
meningite podem ter como causa Streptococcus
pneumoniae ou Haemophilus influenza; este último
também se pode associar a epiglotite e pericardite.
No exame físico deve atender-se primeiramente ao estado geral do doente, ao grau de
hidratação, aos sinais de perfusão periférica e a
sinais de dificuldade respiratória (taquipneia;
adejo nasal; retracção costal). A auscultação pulmonar pode revelar fervores crepitantes, diminuição do murmúrio vesicular na área pulmonar
afectada ou, pelo contrário, pode não revelar qualquer alteração, sobretudo em lactentes pequenos.
Nas crianças mais velhas ocorrem sinais
pulmonares na área afectada do pulmão com
macicez à percussão, aumento das transmissões
vocais e finos fervores crepitantes.
Salienta-se, a propósito, que as manifestações
clínicas não são suficientemente específicas nem
sensíveis para estabelecer o diagnóstico etiológico
de pneumonia.
O Quadro 1 sintetiza as principais características clínicas relacionadas com etiologia microbiana mais provável.
O Quadro 2 sistematiza os germes microbianos
mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comunidade em função da idade.
Condições especiais, tais como disfunções
neuromusculares e perturbações da deglutição,
podem condicionar pneumonias de aspiração nas
quais estão muitas vezes implicadas bactérias
anaeróbias.
Distinguir na prática clínica uma pneumonia de
causa vírica doutra de causa bacteriana nem sempre
é possível, já que nem a gravidade da doença, nem
as características da tosse ou os aspectos radioló-
gicos permitem a destrinça com segurança. No
entanto, determinados achados tais como a presença
de derrame pleural extenso, pneumatocelo, abcesso,
consolidações lobares e pneumonias com opacidades “redondas” são, em geral, indicadores de
pneumonias bacterianas. Deve, porém, ter-se em
conta que cerca de 25 a 75% dos casos de pneumonia
bacteriana têm uma infecção vírica precedente ou
concomitante, e que a infecção por mais que um
agente etiológico é frequente em doentes hospitalizados (10-40% dos casos).
Exames complementares
Sendo o diagnóstico de pneumonia essencialmente
clínico, cabe salientar, no entanto, que: a radiografia
simples do tórax é o método mais útil para
confirmar a existência de tal patologia; e que a
realização da mesma em formas clínicas aparentemente ligeiras não está indicada rotineiramente, de acordo com as recomendações e
consensos da Secção de Pneumologia da SPP (2007).
Poderá não existir relação entre os aspectos
radiográficos e a clínica nos lactentes e crianças
mais pequenas, sendo também possível encontrarse sinais de pneumonia significativa na ausência
de sinais clínicos. Dum modo geral pode dizer-se
que a consolidação lobar se associa às infecções
por pneumococo e os infiltrados intersticiais às
infecções por vírus, embora estes diferentes padrões possam surgir associados a qualquer
etiologia.
Classicamente estão descritos três padrões de
densidades pulmonares: o padrão alveolar (associado mais frequentemente ao pneumococo e
outras bactérias), que se caracteriza por consoli-
QUADRO 2 – Germes microbianos mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comunidade em relação com a idade
RN (<1 mês)
Streptococcus grupo B
E coli
S pneumonae
Haemophilus influenzae
(tipo B)
1 a 3 meses
Vírus sincicial respiratório
Vírus parainfluenza
Adenovírus
Streptococcus pneumoniae
Staphylococcus aureus
Chamydophila trachomatis
Haemophilus influenza tipo b
Mais de 3 meses a 5 anos
Vírus sincicial respiratório
Vírus parainfluenza
Vírus influenza
Adenovírus
Streptococcus pneumoniae
Mycoplasma pneumoniae
Staphylococcus aureus
Mais de 5 anos
Mycoplasma pneumoniae
Streptococcus pneumoniae
Chlamydophila pneumoniae
Streptococcus pyogenes
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade
dação lobar ou segmentar e broncograma aéreo; o
padrão de pneumonia intersticial (causada habitualmente por vírus e Mycoplasma) que se apresenta como um aumento reticulonodular e hiperinsuflaçao, com possível progressão para
pequenas consolidações dispersas devido a
atelectasias; por último descreve-se o padrão de
broncopneumonia, mais frequentemente associada a Staphylococcus aureus e outras bactérias, que
se apresenta como um padrão bilateral difuso,
reforço peribrônquico e pequenos infitrados nodulares que se estendem até à periferia. No caso
da pneumonia estafilocócica podem ainda existir
sinais de necrose parenquimatosa (abcessos,
pneumatocelos) e derrame pleural.
As pneumonias “bolhosas” (acompanhadas de
pneumatocelos) podem igual relacionar-se com S
pyogenes (grupo A), S pneumoniae (raramente) e
com Klebsiella pneumoniae (formas complicadas
especiais).
Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se
a ecografia (por exemplo quando há suspeita de
derrame pleural), a tomografia axial computadorizada e/ou a ressonância magnética nuclear.
As Figuras 1 a 8 mostram diversos padrões
radiológicos torácicos de pneumonia, correspondentes a crianças assistidas no Hospital de
Dona Estefânia – Lisboa, quer em ambulatório,
quer em internamento (documentos do NIHDE).
A Figura 9 integra o esquema de projecção
radiográfia do torax que facilita a compreensão
das opacidades conforme a respectiva localização.
O hemograma, proteína C reactiva e a velocidade de sedimentação são pouco específicos e de
445
FIG. 2
Padrão radiográfico de tipo intersticial acompanhado de
enfisema importante (por vírus sincicial respiratório)-PA e perfil. (NIHDE)
FIG. 3
Pneumonia estafilocócica com sinais de derrame pleural à
direita. (NIHDE)
FIG. 4
FIG. 1
Pneumonia por Mycoplasma pneumoniae. (NIHDE)
Pneumonia estafilocócica. Imagens de pneumatocelos (PA e
perfil). (NIHDE)
446
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 5
Padrão radiográfico de pneumonia lobar (identificada
etiologia pneumocócica)- (PA e perfil). (NIHDE)
FIG. 6
Padrão radiográfico de pneumonia “redonda” (opacidades
arredondadas observáveis em ambos os campos pulmonares.
(NIHDE)
FIG. 7
FIG. 8
Pneumonia estafilocócica.
Sinais de derrame pleural à
esquerda. (NIHDE)
Pneumonia estafilocócica.
Radiografia do tórax (perfil);
sinais de piopneumotórax.
(NIHDE)
escassa utilidade na orientação terapêutica do
doente; nos casos de pneumonia por pneumococo
há frequentemente leucocitose muito elevada com
predomínio de polimorfonucleares e na infecção a
Chlamyda trachomatis, eosinofilia.
Nos doentes sem critérios de gravidade e cuja
orientação pode ser feita em regime ambulatório
não se torna imprescindível realização dos mesmos.
Estão disponíveis a nível hospitalar testes para
pesquisa rápida de antigénios de genomas ou dos
próprios vírus (testes DNA, RNA, etc.) no
exsudado da nasofaringe para vírus respiratório
sincicial (VRS), parainfluenza, influenza A e B e
adenovírus, os quais têm utilidade no diagnóstico.
Os testes serológicos para determinação de
títulos de IgM e IgG para o Mycoplasma e
Chlamydia, são também úteis no estudo destas
pneumonias, embora permitam apenas confirmar
a etiologia a posteriori.
As hemoculturas (positivas em apenas 3 a 11%
dos doentes com pneumonia bacteriana), devem,
no entanto, ser obtidas em todos os doentes
internados com tal suspeita, e antes do início da
antibioticoterapia.
A prova de Mantoux (com tuberculina intradérmica) deve ser ponderada em casos especiais
em função do contexto epidemiológico. (Parte
Infecciologia)
Relativamente à identificação do agente etiológico da pneumonia, os exames culturais do
aspirado pulmonar ou de biópsia pulmonar são o
método mais eficaz. Sendo métodos muito inva-
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade
447
deve ser repetida se houver agravamento do
quadro ou suspeita de complicações. Não há
necessidade de ulterior estudo radiológico (ou
laboratorial) perante boa evolução clínica. Nas
pneumonias complicadas. deverá ser efectuada
radiografia de controlo 4 a 6 semanas após a alta.
Tratamento
FIG. 9
Esquema da projecção radiográfica do tórax (de frente e de
perfil).
sivos, são reservados para situações muito graves
que não respondam à terapêutica instituída.
No caso de haver derrame pleural o exame
bacteriológico do líquido pleural colhido na ausência
de terapêutica prévia pode ser positivo em 65 a 80%
dos casos. Quando há necessidade de se efectuar
broncofibroscopia com lavado bronco-alveolar, na
idade pediátrica a identificação dos agentes
envolvidos pode variar entre 25 a 75% dos casos.
Deve proceder-se a esclarecimento etiológico
específico nos quadros graves se a evolução clínica
for atípica ou complicada, e se existir suspeita de
surto/epidemia.
Notas importantes: A identificação de vírus
(pesquisa de antigénios víricos no lavado
nasofaríngeo) deve ser feita em todas as crianças
internadas, com menos de 2 anos de idade.
Não deve ser realizado exame bacteriológico
das secreções respiratórias, já que o crescimento
bacteriano apenas reflecte a flora da nasofaringe,
não indicativo dos agentes infectantes das vias
aéreas inferiores. Deve ser reservado para
situações específicas. A radiografia de tórax só
A decisão terapêutica deve ser tomada tendo em
conta algoritmos diagnósticos que consideram a
idade do doente, a clínica e factores epidemiológicos. Para além da terapêutica de suporte com
fluidoterapia e oxigénio se houver hipoxémia com
o objectivo de obter saturação em O2 ≥92%; na
suspeita de pneumonia bacteriana a terapêutica
antibiótica dita empírica (antes do eventual isolamento do agente) deve ser prontamente instituída.
Recém-nascidos e lactentes com menos de 3
meses devem ser internados para terapêutica
endovenosa com ampicilina + ceftriaxona, ou
cefotaxima, ou gentamicina. No caso de suspeita
de pneumonia por Chlamydia trachomatis ou
pneumonia febril do lactente deve ser usado um
macrólido (eritromicina ou claritromicina).
O antibiótico de eleição de uma pneumonia
não complicada, entre os 3 meses e os 5 anos, é a
amoxicilina, mesmo considerando que 15% a 40%
dos pneumococos são resistentes à penicilina;
trata-se, no entanto de uma resistência intermédia
(MIC 0.06-1.0mcg/ml), o que implica o uso de
doses altas de amoxicilina (de 80mg/Kg/dia a
90mg/Kg/dia). As alternativas são a cefuroxima –
acetil e a amoxicilina + ácido clavulânico.
Quando a suspeita diagnóstica recai sobre o
Mycoplasma e a Chlamydia pneumoniae, sobretudo
nas crianças em idade escolar e adolescentes,
devem ser usados macrólidos (azitromicina ou
claritromicina); como alternativa acima dos 8
anos: doxiciclina. Nos adolescentes podem ser
utilizadas fluoroquinolonas.
Nas formas graves de pneumonia presumivelmente bacteriana exigindo internamento hospitalar, a terapêutica empírica inclui cefuroxima
(150mg/kg/dia) ou cefotaxima ou ceftriaxona IV.
Se as manifestações clínicas entretanto sugerirem etiologia estafilocócica (empiema, pneumatocelos, etc.), à terapêutica inicial deve acrescentar-se
vancomicina ou clindamicina.
448
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Nos casos de pneumonia lobar sugerindo
etiologia por S. pneumoniae ou por S. pyogenes
(grupo A) os antibióticos de primeira escolha são
a penicilina G 200.000-400.000 U/kg/dia ou
amoxicilina po, ou ampicilina IV. Como alternativas: ceftriaxoma ou cefotaxima (+ vancomicina se suspeita de S. pneumoniae de resistência
elevada à penicilina; ou penicilina G +
clindamicina (se suspeita de S. pyogenes).
Nos casos de pneumonia “bolhosa” detectada
de início, os antibióticos de escolha são flucloxacilina + aminoglicosídeo.
A duração do tratamento antimicrobiano é em
geral 7-10 dias, salientando-se a duração entre 14
e 21 dias nas pneumonias bolhosas.
O Quadro 3 especifica as doses de alguns
antimicrobianos utilizados no tratamento das
pneumonias adquiridas na comunidade, não
referidas no texto. A via endovenosa, se estabelecida de início, deverá manter-se por 24-48 horas
após desaparecimento da febre.
Quando não se verificar resposta à terapêutica
antibiótica a causa mais provável é vírica. Outros
agentes bacterianos devem, no entanto, ser
considerados (S. aureus; pneumococos multirresistentes, H. influenzae ampicilina – resistente e
anaeróbios) tendo em conta contextos clínicos
especiais.
O internamento deve considerar-se nas seguintes situações:
– Recém-nascidos;
– Lactentes até aos 6 meses com febre;
– Crianças de qualquer idade com: pneumonia
multifocal; hipoxémia; sinais de dificuldade
respiratória ou desidratação; impossibilidade de
se proceder a terapêutica oral; doença crónica;
ausência de resposta ao tratamento iniciado;
famílias incapazes de garantir o tratamento ou a
supervisão necessária da criança; imunodeficiência: complicações (derrame pleural, abcesso
pulmonar, pneumatcelo, pneumotorax, etc.).
A antibioticoterapia inicial deverá ser revista
se houver identificação do agente etiológico e do
seu perfil de sensibilidade aos antimicrobianos. A
identificação de Streptococcus peumoniae de resistência intermédia à penicilina não justifica a
mudança de antibiótico quando a opção inicial foi
a ampicilina ou amoxicilina em dose adequada.
Salienta-se o número crescente de S. pneumoniae
resistentes à penicilina.
Prognóstico e seguimento
De uma maneira geral o prognóstico é excelente
com a recuperação sem complicações na maior
parte dos casos. A grande maioria das pneumonias
por bactérias patogénicas comuns e por germes
atípicos respondem à terapêutica antimicrobiana.
Cerca de 80% dos infiltrados regridem em 3
semanas e os restantes em 3 meses. As complicações
mais frequentes das pneumonias bacterianas são os
derrames pleurais incluindo empiemas.
Prevenção
A imunização de rotina da criança tem tido um
QUADRO 3 – Posologia e via de administração de alguns antimicrobianos utilizados nos casos de
pneumonia
Antimicrobiano
Amoxicilina
Ampicilina
Amoxicilina + ácido clavulânico
Azitromicina
Via de administração
oral
endovenosa
oral
oral
Cefotaxima
Ceftriaxona
Claritromicina
Eritromicina
Flucloxacilina
endovenosa
endovenosa
oral ou endovenosa
oral ou endovenosa
oral
endovenosa
Dose (mg/Kg/dia)
80 - 100
150 - 200
75 - 90
1ª toma de 10 mg,
5 mg nos 4 dias seguintes
200
50 - 100
15
40
50
100 - 200
Intervalo
8/8 horas
6/6 horas
8/8 horas
24/24 horas
8/8 horas
24/24 horas
12/12 horas
6/6 horas
8//8 horas
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade
papel preponderante na prevenção de pneumonia
em idades pediátricas em geral; e, em especial,
reduzindo drasticamente a fequência de
pneumonias associadas à rubéola, tosse convulsa,
e à infecção por H. Influenza tipo B. A vacina
antipneumocócica heptavalente induz imunidade
contra os serotipos do S. pneumoniae que mais
frequentemente provocam doença na criança, pelo
que o seu uso generalizado poderá diminuir a
incidência de doença pneumocócica invasiva de
forma significativa. A vacinação contra o vírus
influenza poderá também prevenir uma das
complicações desta infecção, a pneumonia.
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450
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
83
DERRAME PLEURAL
Fátima Abreu
Definição e importância do problema
Derrame pleural define-se como acumulação
anormal de líquido no espaço pleural.
Os derrames pleurais em idade pediátrica são
habitualmente secundários a outra patologia
subjacente, surgindo, mais frequentemente nos
países desenvolvidos, como complicação de
pneumonia bacteriana.
Estima-se que mais de 2% das pneumonias se
complicam com esta patologia e que em cerca de
40% das crianças hospitalizadas com pneumonia
se verifica derrame pleural.
Outras causas mais raras são insuficiência
cardíaca, doenças do foro reumatológico e tumorais.
Neste capítulo são abordados apenas os
derrames que surgem em concomitância ou como
complicação de pneumonia.
Etiopatogénese
Na sua base fisiopatológica está um desequilíbrio
entre o processo de formação e de depuração/filtração do líquido na cavidade pleural.
Recorda-se que o movimento de líquido através
dos capilares pleurais segue a lei de Starling
variando com as pressões hidrostática e coloidosmótica.
Nesta perspectiva, são considerados dois tipos de
derrame pleural de acordo com o respectivo
mecanismo de formação: transudados e exsudados.
Os transudados, em que não se verifica
compromisso inflamatório da pleura, resultam de
um desequilíbrio entre a pressão hidrostática e
oncótica podendo, por isso, estar associados a
insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica,
hipotiroidismo, ou obstrução do fluxo limfático.
Os exsudados resultam de compromisso
inflamatório da pleura (pleurisia), com consequente aumento da permeabilidade capilar com
extravasão de proteínas para o espaço pleural.
Para a destrinça entre exsudado e transudado
são utilizados critérios bioquímicos, essencialmente
quantificação das proteínas totais, doseamento da
LDH (desidrogenase láctica) e determinação do pH
pleural.
De acordo com estes critérios (critérios de
Light), os exsudados evidenciam: proteínas
>3g/dl, relação proteína plasmática/proteína
pleural >0.6 , LDH >200 UI/ml ou 2/3 da LDH
plasmática, e pH >7.2.
Na prática clínica são classicamente considerados seguintes tipos de exsudados de causa
infecciosa (Quadro 1) sobre os quais recai a
abordagem:
– Pleurisias purulentas ou empiemas (líquido
pleural purulento e/ou com germe identificado);
– Derrames parapneumónicos não purulentos
(geralmente serofibrinosos).
Manifestações clínicas
A doença subjacente determina os sintomas e
sinais predominantes. Assim, a apresentação é a
de uma pneumonia, com tosse, febre alta, dificuldade respiratória, cianose, prostração e anorexia.
As crianças mais velhas podem queixar-se de dor
pleurítica em pontada, exacerbada com a inspiração ou associada a tosse.
Verifica-se igualmente taquipneia e tosse seca
desencadeada pelas mudanças de posição,
submacicez à percussão e diminuição ou abolição
das vibrações vocais e do murmúrio vesicular;
QUADRO 1 – Etiologia dos derrames de causa
infecciosa
Empiemas
• Staphylococcus aureus
Derrames serofibrinosos
• Mycobacterium
tuberculosis
• Haemophilus influenzae • Mycoplasma pneumoniae
• Streptococcus pneumoniae • Outras bacterias
• Vírus
CAPÍTULO 83 Derrame pleural
raramente é detectado atrito pleural. Por vezes a
criança adopta uma atitude escoliótica côncava
para o lado do derrame.
O derrame pleural parapneumónico habitualmente surge como complicação de pneumonias
causadas por Streptococcus pneumoniae, Haemophylus influenzae, Staphyloccus aureus e Streptococcus do grupo A. Identifica-se uma causa bacteriana
em cerca de 75% dos casos, embora muitas vezes
não se consiga isolar o agente, ou por antibioticoterapia prévia, ou nos casos de infecção por
Mycoplasma e vírus.
O empiema corresponde a uma colecção de
pus. Distinguem-se três fases: exsudativa, que
corresponde a líquido livre, facilmente drenado;
fibrinopurulenta, correspondendo à formação de
septações e loculações, que pode ser díficil de
drenar; organizativa, em que só é possível o
desbridamento cirúrgico.
451
FIG. 1
Radiografia do tórax PA: sinais de derrame pleural esquerdo
(linha de Damoiseau). (NIHDE)
Exames complementares
A base do diagnóstico desta situação assenta na
clínica, na imagiologia, na toracocentese e na
análise do líquido pleural. (LP)
Para a confirmação da existência de derrame
pleural já suspeitado clinicamente, é necessária a
realização de radiografia de tórax em projecção
póstero-anterior, perfil e decúbito lateral do lado do
derrame, podendo verificar-se: preenchimento do
fundo de saco costo-diafragmático nos derrames
mínimos; hipotransparência da parte inferior do
pulmão, com apagamento da cúpula diafragmática
e do fundo de saco costo-diafragmático, sendo o
limite superior desta hipotransparência oblíquo
para cima e para fora (curva de Damoiseau),
quando o derrame é medianamente abundante;
hipotransparência de um hemitórax com desvio do
mediastino para o lado oposto e alargamento dos
espaços intercostais, no caso de derrame abundante. (Figura 1)
É ainda possível observar pela radiografia
sinais de um foco de pneumonia, por vezes
mascarado pelo derrame, pneumatocelos, pneumopatia intersticial e adenopatias.
A ecografia completa os dados da radiografia
do tórax sendo de grande utilidade nos casos em
que a radiografia identifica sinais de hemitórax
opaco. Pode detectar pequena quantidade de
líquido a envolver o pulmão e distinguir entre
pulmão não arejado e líquido ou fibrina pleurais.
Pode ainda: detectar loculação, dando assim boas
informações relativamente às fases evolutivas do
empiema; e identificar o melhor local para se
efectuar toracocentese. Deve, no entanto, ser feita
por técnicos experientes.
A tomografia axial computadorizada diferencia complicações pleurais de processos intraparenquimatosos.
A toracocentese para exame do líquido pleural
é um método seguro e determina a causa do
derrame. Quando se detecta pus (empiema) é
requerida drenagem.
A avaliação citoquímica de LP não purulento
também é importante assim como a respectiva
coloração de Gram; deste modo é possível a
identificação dos agentes patogénicos implicados
em cerca de 50% dos casos.
Relativamente ao estudo das células, podem
ser obtidos os seguintes achados: predomínio de
neutrófilos aponta para derrames parapneumónicos; predomínio de linfócitos para a tuberculose,
doença do tecido conjuntivo, ou infecções
fúngicas; predomínio de eosinófilos é a favor de
infecções parasitárias; e número de células
>10.000 mmc sugere exsudado.
A identificação de antigénios bacterianos no
452
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
sangue ou LP é um método que pode ajudar na
escolha do antibiótico, nomeadamente através da
análise da prova da reacção em cadeia da polimerase (PCR).
A análise do LP permite ainda definir o estádio
evolutivo do derrame parapneumónico.
O metabolismo das bactérias e dos leucócitos
presentes no LP resultam numa baixa da glucose
e do pH. O nível de LDH aumenta em resultado
da destruição dos neutrófilos e outros fagócitos
presentes.
Considera-se que o derrame é complicado
quando o pH é inferior a 7, a glucose inferior a
40mg/dl e/ou cultura positiva.
A hemocultura é positiva em cerca de 20% dos
casos de derrame parapneumónico se a colheita
de sangue for realizada antes do início da
antibioticoterapia.
Tratamento
Medidas gerais
O tratamento dos derrames plurais inclui os seguintes opções para além das medidas gerais:
antibióticos, toracocentese, aplicação de tubo de
drenagem pleural com ou sem agente fibrinolítico,
descorticação por cirugia toracoscópica video
assistida (VATS), ou por toracotomia aberta.
As medidas gerais incluem suprimento adequado de fluidos,electrólitos e energia.
A oxigenoterapia depende da observação de
sinais de hipoxémia e de fadiga muscular. A
verificação de insuficiência respiratória indica
transferência para UCI (unidade de cuidados
intensivos).
Antibioticoterapia
A presença de derrame pleural parapneumónico
não altera a escolha empírica da antibioticoterapia
dos doentes com pneumonia. A escolha inicial
recai sobre antibióticos que cubram os agentes
patogénicos mais prevalentes de acordo com a
idade da criança.
Ao se isolarem os agentes patogénicos pode
estreitar-se o espectro baseando-nos no resultado
da coloração pelo Gram, nas provas de detectação
de antigénios ou nas culturas do LP. Por exemplo
um empiema por Streptococcus A pode ser tratado
com penicilina durante 10 dias. A pneumonia
causada por estirpes de resistência intermédia à
penicilina (CIM= 0,1-1,0 mcg de penicilina/ml)
respondem normalmente a penicilina em altas
doses ou a uma cefalosporina, com espectro mais
alargado. A pneumonia causada por estirpes
resistentes ( CIM >= 2,0 mcg de penicilina/ ml )
pode também responder à penicilina em altas
doses ou a cefalosporinas. Pode ainda tentar-se a
clindamicina, a vancomicina ou cloranfenicol.
O empiema por Staphyloccus aureus pode ser
tratado com uma penicilina sintética resistente à
penicilinase ou com vancomicina, pelo menos
durante 21 dias. Se a etiologia do empiema for
Haemophylus influenzae, deve usar-se uma cefalosporina de terceira geração por via parentérica.
Após a febre ter cedido ou a drenagem retirada
deve continuar-se os antibióticos por mais 5 a 7
dias. O tratamento deverá ser completado com
mais uma a duas semanas de antibióticos per os.
Salienta-se que, de um modo geral, se aplicam
neste âmbito as noções decritas a propósito da
pneumonia.
Drenagem
Em caso de febre que persista por 48 horas após o
início do curso de antibióticos, há indicação para
drenar o derrame pleural (toracocentese evacuadora).
A verificação de derrame purulento e/ou as
seguintes características de LP [pH<7,2; glucose <
40 mg/dl; com bactérias identificadas ( pelo Gram
ou pela cultura); com pus franco presente; LHD
>200UI/ml] estabelecem a indicação de se proceder a toracostomia com tubo/cateter de drenagem pleural fechada; o cateter deverá ter o maior
diâmetro interno possível para drenar com maior
facilidade áreas loculadas, sendo que poderá ser
necessário aplicar mais do que um tubo-cateter.
As múltiplas toracocenteses evacuadores devem
ser evitadas.
A resposta à drenagem deve ser monitorizada
pela quantidade de LP que sai e pela temperatura
corporal. Assim, se o débito do LP for inferior a
10- 15 ml /dia e houver melhoria clínica, deve
retirar-se o cateter. A duração média da drenagem
é 5 a 10 dias.
Se, pelo contrário, se verificar manutenção do
quadro febril e da dificuldade respiratória para
além de 72 horas após início de antibioticoterapia
CAPÍTULO 83 Derrame pleural
e toracostomia, está indicada a descorticação
cirúgica via VATS. Ressecam-se, deste modo, as
aderências pleurais, o que contribuirá para uma
drenagem efectiva do espaço plural, encurtando a
permanência no hospital.
A descorticação por toracotomia aberta está
indicada nos casos em que houve formação de
camada fibrosa que reduz a expansão pulmonar.
Trata-se duma técnica cirúrgica para remoção do
tecido fibrinoso nos casos de empiema organizado
ou fibrinopurulento que não respondem
adequadamente aos procedimentos anteriores
descritos.
Agentes trombolíticos
Ainda existem dados insuficientes para o seu uso
por rotina nos derrames pleurais parapneumónicos e nos empiemas na criança. Há referência a
resultados positivos com o uso de uroquinase e
estreptoquinase, evitando-se a necessidade de
descorticação em certos casos de empiema.
Quando existem múltiplos septos ou locas, a
terapêutica fibrinolítica com estes agentes pode
ser necessária para aumentar a drenagem no caso
de empiema. Alguns autores recomendam o seu
uso precoce (às 48 horas).
Estes agentes poderão originar hemorragias e
fonómenos da anafilaxia.
Prognóstico
453
Prevenção
No que se refere à prevenção volta a referir-se o
que foi dito no capítulo das pneumonias.
Efectivamente, a imunização de rotina da criança
permitiu tornar rara a pneumonia por
Haemophylus, assim como as suas possíveis
complicações.
A doença pneumocócica invasiva também
poderia ser muito reduzida com o uso mais
generalizado da vacina antipneumocócica
heptavalente; de igual modo, a vacinação contra o
vírus influenzae permitiria evitar complicações da
gripe sob a forma de infecções bacterianas das
vias respiratórias inferiores.
A prevenção das complicações do derrame
pleural começa pela sua detecção precoce e por
medidas terapêuticas rápidas e adequadas, mais
ou menos invasivas, de acordo com o que se
referiu anteriormente.
BIBLIOGRAFIA
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Os derrames pleurais parapneumónicos não
complicados respondem à terapêutica conservadora com internamento hospitalar, em geral num
período não superior a uma semana. Quando é
necessário recorrer à drenagem, a duração média
do internamento sobe para duas semanas.
Desenvolve-se espessamento pleural residual em
cerca de 60% dos casos. No caso do empiema
somente se verifica regressão dos sinais radiológicos ao fim de 3 meses. Há autores que referem
que o prognóstico é influenciado pela susceptibilidade à penicilina das estirpes pneumocócicas.
Os factores mais importantes do prognóstico
favorável, são sem dúvida, a rápida detecção e
drenagem imediata dos derrames parapneumónicos complicados.
Light RW. A new classification of parapneumonic effusions
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454
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
84
PNEUMONIA RECORRENTE
blema comum. A maioria das crianças tem 5-10
infecções respiratórias por ano, com uma frequência maior depois dos 6 meses e predominando no segundo ano de vida. Geralmente
estas infecções afectam o aparelho respiratório
superior, e só em 10-30% dos casos é envolvido o
aparelho respiratório inferior.
José Guimarães
Factores de risco
Definição e importância do problema
No capítulo sobre pneumonia adquirida na
comunidade foi definido o conceito de pneumonia aguda: início agudo de sintomas (tosse,
taquipneia, dispneia) e sinais (diminuição do
murmúrio, fervores, macicez, aumento das
vibrações vocais), acompanhados por hipotransparência na radiografia do tórax.
Num primeiro episódio de pneumonia, se a
criança evidenciar bom estado geral, por vezes
não é feita radiografia do tórax. Contudo, se a
situação não evoluir para a normalidade, ou se os
episódios se repetirem, a radiografia do tórax
torna-se fundamental.
Define-se pneumonia recorrente como 2 episódios de pneumonia em 1 ano ou 3 episódios em
qualquer período de tempo. Neste caso há uma
resolução clínica e radiológica entre os episódios
de infecção.
Geralmente os sintomas melhoram em alguns
dias, mas o tempo de resolução radiológica duma
pneumonia é muito variável. A pneumonia
pneumocócica não complicada pode curar em 4-8
semanas, enquanto uma pneumonia por adenovírus
pode levar 6 meses ou mais. Por outro lado, com
grande frequência desconhece-se a etiologia, o que
dificulta o problema. Na maior parte dos casos há
desaparecimento dos sintomas e melhoria ou cura
das alterações radiológicas em 2-4 semanas.
Fala-se de pneumonia persistente quando a
clínica e radiologia persistem para além de 1 mês.
Muitas vezes não é possível distinguir claramente
entre recorrência e persistência por não se dispor
de radiografias comprovando a resolução dos
episódios.
As pneumonias recorrentes constituem um pro-
Vários factores influenciam a eclosão de infecções
respiratórias (Quadro 1).
A idade é um factor importante. É habitual a
diminuição progressiva da frequência das infecções
respiratórias com o incremento dos anos, reflectindo o desenvolvimento da imunidade. Por
razões desconhecidas as infecções das vias
respiratórias inferiores são mais frequentes nos
rapazes. Os lactentes nascidos pré-termo, sobretudo aqueles com doença pulmonar crónica, têm
maior número de internamentos por pneumonia e
mortalidade mais elevada que os nascidos de
termo. A exposição aos agentes infecciosos nas
creches e infantários, em amas com várias crianças
ou famílias numerosas, aumenta a frequência de
infecções respiratórias. O tabagismo, sobretudo
materno, seja pré ou pós-natal, a exposição a
lareiras e a poluição em geral, aumentam o risco de
infecções respiratórias particularmente pneumonia. As condições de vida e outros factores
socioeconómicos também influenciam a frequência
das infecções respiratórias.
Avaliação clínica
A avaliação começa pela amamnese e exame
objectivo. É importante inquirir sobre os seguintes
tópicos: antecedentes familiares nomeadamente
QUADRO 1 – Factores de risco de pneumonia
recorrente
1 – Idade
2 – Sexo masculino
3 – Prematuridade
4 – Exposição aos agentes infecciosos
5 – Tabagismo / Poluição do ar ambiente
6 – Factores socioeconómicos
CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente
doenças graves, mortes infantis, alergias; se a
gravidez foi vigiada, se há toxicodependência ou
se a mãe teve múltiplos parceiros aumentando o
risco de infecção por VIH e outras infecções
congénitas; se a criança nasceu pré-termo e como
nasceu, se teve necessidade de ventilação e
oxigénio, se teve infecções nos primeiros tempos
de vida ou se tem anormalias congénitas; o
ambiente em que vive, particularmente se contacta com fumo de tabaco ou outros poluentes, se
há animais domésticos, plantas ou aves; com
quantos irmãos convive, se está numa creche
durante o dia ou se fica numa ama com outras
crianças.
Relativamente às infecções respiratórias: valorizar cada episódio de infecção; quando ocorreu,
qual a localização da pneumonia e sua duração, se
foi grave exigindo internamento ou se teve
complicações; a frequência dos episódios e se os
sintomas respiratórios persistem no intervalo entre
infecções; como foi diagnosticada a pneumonia, se
houve isolamento do agente etiológico; rever os
exames radiológicos; que tratamentos fez, qual a sua
duração e que resposta clínica obteve; valorizar a
existência de outras infecções nomeadamente
gastrintestinais, da pele ou do aparelho respiratório
superior (otite, sinusite).
No exame objectivo há que avaliar a repercussão das infecções na evolução ponderal: se a
criança tem aspecto doente ou se tem dismorfismo;
notar a presença de rinorreia serosa, prega nasal
transversal ou “olheiras” indiciando atopia, ou se
tem obstrução respiratória superior com respiração ruidosa bucal; na boca verificar a presença
de gengivite, ulcerações, perda de dentes ou
doença periodontal que são próprias de imunodeficiência; se tem deformação torácica ou
hipocratismo digital sugerindo doença pulmonar
crónica; valorizar alterações na pele: petéquias
(síndroma de Wiskott-Aldrich), seborreia generalizada (histiocitose), erupção eczematiforme (S.
Hiper-IgE, S. Wiskott-Aldrich), telangiectasias na
pele e conjuntivas (S. ataxia-telangiectasia). É
importante avaliar a presença de tecido linfóide
palpável, pois a sua ausência sugere deficiência de
linfócitos T; se há aumento do tamanho do fígado
ou baço. Na auscultação: valorizar a presença de
sopros cardíacos ou de fervores, e se são localizados ou não.
455
QUADRO 2 – Contexto de pneumonias
recorrentes
• Crianças provavelmente normais (50%)
• Crianças com doença alérgica (30%)
• Crianças com doença crónica não imunológica (10%)
• Crianças com imunodeficiência (10%)
Sistematização
Geralmente a história clínica fornece elementos
suficientes para classificar o doente com pneumonias
recorrentes numa de 4 categorias: crianças provavelmente normais, crianças com alergia, crianças
com doença crónica não imunológica e crianças
com imunodeficiência (Quadro 2).
Agrupar os doentes desta forma tem inconvenientes na medida em que compartimenta
doenças que frequentemente têm alguns aspectos
comuns. Por exemplo, a drepanocitose é uma
doença crónica e não uma imunodeficiência primária; contudo, acompanha-se de alterações
importantes dos mecanismos de defesa que levam
a infecções respiratórias recorrentes. Contudo, tal
forma de agrupar estes doentes tem grandes
vantagens não só por facilitar o estudo, mas
também para o tratamento e vigilância.
1. Crianças provavelmente normais
As infecções respiratórias são muito frequentes
nos primeiros anos de vida, particularmente até
aos 2 anos. Tal se deve à maturação gradual da
imunidade. Até cerca dos 6 meses a criança está
protegida por anticorpos maternos adquiridos por
via transplacentar, mas a partir dessa idade a
protecção passiva começa a desaparecer. Se este
fenómeno coincidir com a fase em que a criança
entra para o infantário em Setembro, no início dos
meses frios do ano a possibilidade de ter infecções
recorrentes é grande. As crianças deste grupo
constituem cerca de 50% dos doentes com
pneumonias recorrentes. Apresentam algumas
características comuns: geralmente não têm
história familiar de imunodeficiência, o seu
crescimento é normal, mantendo-se com bom
estado geral entre os episódios infecciosos, sem
alteração no exame objectivo. Além disso, não é
456
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
habitual que tenham infecções graves noutros
locais (infecções cutâneas, gastrintestinais ou
outras). Estas particularidades ajudam a separar
este grupo dos restantes.
Nestes casos é importante esclarecer os pais
reforçando-lhes a confiança e propondo uma
vigilância atenta da evolução. Por vezes são úteis
alguns exames complementares simples como
hemograma, proteína C reactiva (PCR), radiografia do tórax e eventuais exames culturais.
2. Crianças com doença alérgica
Este grupo também apresenta algumas características distintivas constituindo cerca de 30% dos
casos de infecções respiratórias recorrentes.
Frequentemente há história familiar de alergia e
pieira em cada episódio de infecção respiratória.
Muitos episódios decorrem em apirexia respondendo mal aos antibióticos. A tosse é muito
frequente, por vezes nocturna ou surgindo com o
riso ou o esforço. Por vezes há infecções das vias
respiratórias superiores que desencadeiam tosse
importante e grande produção de muco, podendo
levar a atelectasias ou infiltrados, sobretudo no
lobo médio. O crescimento é normal verificandose frequentemente obstrução nasal com rinorreia,
prega nasal transversal e eczema.
Nestes casos são úteis hemograma, PCR,
doseamento de imunoglobulinas, IgE, específicas,
radiografia do tórax e testes cutâneos. A espirometria deve obter-se quando possível, (ver Parte
Imunoalergologia).
Os lactentes com pieira e pneumonias recorrentes colocam alguns problemas diagnósticos,
sobretudo quando respondem mal aos broncodilatadores e anti-inflamatórios. Nestes casos será
necessário excluir alguns diagnósticos, nomeadamente fibrose quística, aspiração de corpo estranho, refluxo gastro-esofágico, bronquiolite
obliterante, anomalias congénitas do aparelho
respiratório ou imunodeficiência.
3. Crianças com doença crónica
não imunológica
Correspondem a cerca de 10% das crianças com
infecções respiratórias recorrentes. Ao contrário
dos anteriores, este grupo tem infecções que são
contínuas, por vezes graves, levando ao internamento, muitas vezes sem isolamento dos
agentes etiológicos. É frequente a repercussão no
peso e estatura e o exame pode evidenciar
fervores, deformação torácica e hipocratismo. As
infecções surgem de forma semelhante e, por
vezes, com a mesma localização. Nestes casos são
geralmente causadas por obstrução brônquica
(corpo estranho), por compressão extrínseca
geralmente de origem ganglionar (tuberculose ou
outras infecções, tumores) ou por anomalias
estruturais (estenose brônquica, bronquiectasias,
quisto broncogénico, sequestro).
Em algumas doenças deste grupo (Quadro 3)
pode haver alteração dos mecanismos de defesa
predispondo para a infecção como sucede em
situações de má-nutrição ou na drepanocitose.
A pneumonia (recorrente) é a infecção mais
comum mas pode haver diarreia crónica, tosse
crónica, episódios repetidos de febre, entre outras.
Para esclarecimento etiológico, deve procederse nestes doentes a exames complementares como:
hemograma, PCR, ureia e glicémia, urina, teste do
suor, radiografia do tórax, imunoglobulinas e
exames culturais. A broncofibroscopia e TAC
torácica são geralmente necessárias. Poderá haver
necessidade de outros testes diagnósticos mais
QUADRO 3 – Doença crónica não imunológica
• Síndromas de inalação (corpo estranho, refluxo gastroesofágico)
• Bronquiectasias (fibrose quística, síndroma de cílios
imóveis)
• Anomalias congénitas do aparelho respiratório
• Doenças pulmonares (displasia broncopulmonar, bronquiolite obliterante, hemossiderose pulmonar, pneumonias
de hipersensibilidade)
• Doenças neuromusculares
• Doenças cardíacas congénitas
• Doenças genéticas/ metabólicas (síndroma de Down,
Werdnig-Hoffmann)
• Doenças hematológicas (asplenia, hemoglobinopatias,
imunossupressão)
• Doenças nutricionais (má-nutrição, enteropatias)
• Doenças renais (síndroma nefrótica, insuficiência renal)
• Diabetes mellitus
• Doenças do colagénio vascular
CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente
específicos para confirmação das hipóteses diagnósticas colocadas.
4. Crianças com imunodeficiência
Perante uma criança com pneumonias recorrentes
é muito frequente que se coloque a hipótese de
imunodeficiência. Contudo, as imunodeficiências
constituem apenas 10% das causas de infecções
respiratórias recorrentes.
Neste grupo as infecções frequentemente
iniciam-se depois dos 6 meses de idade e são de
vários tipos (sépsis, meningites, osteomielites),
geralmente graves e predominando no aparelho
respiratório, com localização variada. Apesar de
ser comum a identificação do agente e a antibioticoterapia ser apropriada, a resposta ao
tratamento é lenta. Muitas vezes a infecção é
controlada mas não erradicada, as complicações
são frequentes e, no intervalo entre os episódios
agudos, persistem sintomas crónicos. Habitualmente o crescimento é afectado, são comuns
alterações cutâneas como eczema, piodermite,
telangiectasia. A crianças poderão não ter gânglios
linfáticos palpáveis nem amígdalas, ou, pelo
contrário, ter linfadenopatia generalizada, hepatoesplenomegália sugerindo infecção por VIH,
doença hematológica ou dos fagócitos.
As imunodeficiências primárias podem
envolver os linfócitos B (50-70%), os linfócitos T
(20-30%), ambos linfócitos B e T (10-15%), as
células fagocíticas (15-20%) ou o complemento (25%) (Quadro 4).
A identificação dos microrganismos causadores das infecções pode sugerir algumas entidades
específicas. As infecções recorrentes com microrganismos extracelulares, capsulados ou infecções
crónicas sinopulmonares são comuns nos doentes
com asplenia ou défice de anticorpos. As infecções
por oportunistas víricos, protozoários, bactérias,
micobactérias ou fungos sugerem défice das
células T. Infecções fúngicas, abcessos hepáticos
ou osteomielite sugerem doença das células
fagocíticas, enquanto as infecções recorrentes
acompanhadas de sintomas autoimunes ou infecções recorrentes por N. meningitidis sugerem
deficiência do complemento.
Numa fase inicial alguns exames complementares são úteis: hemograma, PCR, imunoglobuli-
457
QUADRO 4 – Imunodeficiências
Primárias
Défice de anticorpos:
Agamaglobulinémia ligada ao X
Imunodeficiência comum variável
Défice de IgA
Défice de subclasses de IgG
Má resposta específica a polissacáridos
Hipogamaglobulinémia transitória da infância
Imunodeficiências celulares:
Imunodeficiência combinada grave
Síndroma de DiGeorge
Candidíase mucocutânea
Síndroma de Wiskott- Aldrich
Ataxia telangiectasia
Células fagocíticas:
Doença granulomatosa crónica
Síndroma de Hiper IgE
Défice de complemento: C3 ou C5
Secundárias
Doença vírica (VIH, CMV, VEB)
Prematuridade
Má-nutrição
Esplenectomia
Drepanocitose
Síndroma nefrótica
Doenças hematológicas malignas e imunossupressão
nas, culturas, VIH e exames radiológicos. Mesmo
que os resultados destes exames sejam normais, os
doentes suspeitos de imunodeficiência deverão
completar o estudo com exames mais complexos,
nomeadamente subclasses de IgG, doseamento de
anticorpos contra antigénios vacinais (tétano,
difteria, rubéola), testes cutâneos de hipersensibilidade retardada (Candida, toxóide tetânico),
populações linfocitárias, estudo da função fagocítica, e testes para a função do complemento.
São muitas as doenças específicas neste grupo
e a sua caracterização é variável. Algumas são
bem conhecidas e existem múltiplos doentes descritos; outras estão incompletamente caracterizadas ou são tão raras que ainda não estão bem
compreendidas.
Por isso, na suspeita de imunodeficiência de
difícil caracterização é prudente dirigir o doente
458
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
um centro com experiência, o mesmo sucedendo
nas doenças mais raras cujo seguimento deverá
ser feito por especialistas. (ver parte Imunoalergologia).
BIBLIOGRAFIA
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A expressão bronquiolite aguda designa uma
afecção de etiologia predominantemente vírica
caracterizada por obstrução das vias aéreas de
pequeno calibre, atingindo sobretudo crianças com
menos de dois anos de idade (incidência máxima
entre o primeiro e o sexto meses de idade), quase
sempre com carácter epidémico; traduz-se clinicamente por polipneia com retracção costal e
expiração prolongada, ruidosa ou sibilante; esta
situação é precedida tipicamente por quadro
inflamatório das vias respiratórias superiores
constituído por tosse, rinorreia e/ou febre.
Em geral reserva-se o diagnóstico de bronquiolite aguda para o primeiro episódio de sibilância
com as características referidas antes, devendo
evitar-se o termo de bronquiolite para situações de
sibilância repetida.
A maioria dos casos de sibilância (quadro
acompanhado de ruídos adventícios designados
por sibilos produzidos nos brônquios e bronquíolos na expiração, os quais traduzem estreitamento das respectivas vias aéras) relaciona-se
com processo inflamatório; contudo, tais sinais
podem surgir em situação de broncospasmo e no
contexto doutras entidades a abordar adiante.
Sendo uma doença autolimitada, pode
habitualmente ser assistida em casa com medidas
simples; com efeito, só em cerca de 1 a 2% dos
casos se torna grave a justificar internamento
hospitalar. No entanto, a sua elevada incidência e
o maior risco inerente ao grupo etário em que
predomina, justificam o elevado número de internamentos hospitalares a ela associados, nomeadamente em unidades de cuidados intensivos
(UCI).
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda
De acordo com estatísticas da União Europeia,
estima-se uma incidência de internamentos
hospitalares de cerca de 30/1000. É a primeira
causa de hospitalização antes dos 6 meses.
Surgindo habitualmente nos meses de Inverno
e início da Primavera (nos países de clima
temperado), e predominando nos centros urbanos,
é a doença infecciosa das vias aéreas inferiores
mais frequente nas crianças com menos de 12
meses de idade. Cerca de 60 % das crianças
atingidas são do sexo masculino. A bronquiolite é
mais frequente em crianças que vivem em
situações de baixo nível socioeconómico expostas
ao fumo do tabaco e não alimentadas com leite
materno. Em cerca de 50% das crianças com
bronquiolite desenvolve-se sibilância subsequente.
Entre 50-90% dos casos é causada por infecção
pelo VSR.
A mortalidade atinge entre 0,5 – 1% dos doentes
internados, aumentando para 3-4% nos casos de
doença cardiopulmonar subjacente.
No que respeita a custos por internamento de
crianças com esta patologia com menos de 1 ano,
determinados estudos na América do Norte
divulgaram valores da ordem de 700 milhões de
dólares dos USA/por ano.
Etiopatogénese
É habitualmente causada pelo vírus sincicial
respiratório (VSR), mas outros vírus podem estar
implicados como os parainfluenzae 1,2 e 3,
influenzae A e B, rinovirus e adenovírus (cujos
serotipos 3, 7 e 21 causam doença mais grave
capaz de conduzir a insuficiência respiratória
aguda com necessidade de suporte ventilatório).
O metapneumovírus e bocavírus humano, são
causa primária de infecção respiratória vírica,
podendo associar-se ao VSR (coinfecção), o que
constitui factor de agravamento.
Mycoplasma pneumoniae e H. influenzae
raramente estão implicados. Aos 2 anos de idade,
a maioria das crianças foi já infectada pelo VSR.
Até mesmo recém-nascidos e adultos podem ser
infectados, embora sem o quadro clínico típico da
doença.
O VSR é altamente contagioso, ficando activo
cerca de 6 a 10 horas em gotículas de secreções, e
meia hora em roupa ou papel, persistindo no
459
exsudado nasal mesmo após melhoria clínica.
A transmissão da infecção dá-se através do
contacto directo das mucosas com secreções ou
gotas aerossolizadas infectadas, variando o
período de incubação entre 4 e 6 dias.
A infecção vírica atinge particularmente os
bronquíolos de calibres entre os 300 até aos 75 µ. O
epitélio bronquiolar é colonizado pelo vírus que
então se replica e desencadeia uma resposta
inflamatória, induzindo necrose epitelial à qual se
segue a proliferação de células que são desprovidas de cílios (perdendo-se importante mecanismo de defesa).
Cabe salientar aspectos da resposta imune
desencadeada pelo VSR, com papel na inflamação
bronquiolar:
a) desgranulação de eosinófilos com libertação
de proteínas catiónicas com efeito citotóxico sobre
o epitélio da via respiratória;
b) libertação de IgE com papel importante na
sibilância;
c) outros mediadores com papel na patogénese
da inflamação da via respiratória incluem a IL-8, a
proteína inflamatória dos macrófagos 1 alfa, etc.;
d) níveis mais elevados de interferão-gama e
de leucotrienos na via aérea correlacionam-se com
o grau de sibilância.
Os tecidos peribronquiolares são invadidos
por linfócitos, plasmócitos e macrófagos, surge
edema e congestão da submucosa e tecido adventício e, por vezes, alteração das fibras elásticas e
musculares (o que induz algum grau de espasmo
a contribuir para a obstrução). O aumento da
produção de muco, juntamente com a descamação
epitelial e a fibrina formada, podem obstruir
completamente o lume bronquiolar (na razão
inversa das suas dimensões) induzindo, por um
mecanismo valvular, a retenção do ar expiratório;
tal origina áreas de hiperinsuflação pulmonar e
áreas de atelectasia irregularmente distribuídas
com maior ou menor repercussão na ventilação/
perfusão. Como consequência poderá surgir
insuficiência respiratória tipo I (hipoxémia) ou de
tipo II (com hipercápnia).
Outros factores próprios do lactente pequeno
predispõem para a gravidade deste processo,
nomeadamente, ventilação alveolar colateral deficiente, caixa torácica pouco rígida, imaturidade
das células pulmonares e dos mecanismos de
460
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
expulsão de muco.
A recuperação surge a partir da camada basal
do epitélio respiratório e inicia-se ao fim de 3-4
dias, podendo a regeneração dos cílios demorar
ainda 15 dias ou mais.
Manifestações clínicas
O quadro clínico inicia-se por coriza, febre
moderada (inferior a 38ºC) e tosse irritativa (por
vezes com conjuntivite ou otite associadas); tais
sintomas evoluem para respiração ruidosa ou
expiração sibilante (pieira), polipneia, retracção
costal com ou sem adejo nasal, hiperinsuflação
torácica (tórax em tonel) e dificuldade alimentar,
por vezes com vómitos e desidratação.
Se alguns lactentes toleram bem a bronquiolite, outros evoluem com prostração, recusa
alimentar, perturbação do sono, e mesmo,
gemido. A cianose, se presente, é sinal de
gravidade embora possa estar ausente em
crianças gravemente doentes. Os movimentos
respiratórios são superficiais e na auscultação
pulmonar são audíveis: fervores finos no fim da
inspiração (crepitantes) por abertura dos
bronquíolos parcialmente obstruídos, roncos e,
por vezes, sibilos; o tempo expiratório é
prolongado. O fígado pode palpar-se aumentado
por empurramento pelo diafragma.
A agitação, a prostração e o aumento da
frequência respiratória (FR) > 60/minuto poderão
estar relacionados com hipoxémia.
De salientar que a gravidade clínica deste
quadro pode aumentar se existir outra patologia
de base associada, complicando-se com insuficiência respiratória global com cianose, por
exemplo em situações de cardiopatias congénitas
e displasia broncopulmonar (DBP), ou apneia
sobretudo em casos de prematuridade.
O Quadro 1 sintetiza os factores de risco que
poderão contribuir para a gravidade da bronquiolite.
Diagnóstico
O diagnóstico de bronquiolite é essencialmente
clínico, baseado na síndroma de dificuldade
respiratória, na idade da criança e na
epidemiologia. Os casos de infecção por VSR
QUADRO 1 – Factores de risco de bronquiolite
grave
Factores do hospedeiro
• Pré-termo
• Idade inferior a 3 meses
• Doença cardíaca congénita
• Doença respiratória crónica (DBP, FQ)
• Deficiência imunitária
Factores ambientais
• Pobreza
• Sobrepopulação
• Exposição pós-natal ao fumo de tabaco
• Desnutrição
• Não aleitamento materno
surgem em surtos epidémicos, tal como na gripe e
infecções pelo vírus parainfluenzae; as infecções
por adenovírus e rinovírus podem estar associadas a casos esporádicos.
A radiografia do tórax, não sendo específica, é
sugestiva do diagnóstico ao revelar sinais de
hiperinsuflação pulmonar com horizontalização
dos arcos costais e abaixamento do diafragma;
áreas de espessamento peribrônquico e de
consolidação ou colapso alveolar (segmentar ou
mesmo lobar), a não confundir com pneumonia. É
particularmente frequente a opacificação de um
segmento ou de todo o lobo superior direito por
obstrução provocada por secreções. A radiografia
do tórax deverá ser sempre solicitada no primeiro
episódio de bronquiolite visto ser auxiliar
essencial no diagnóstico diferencial da síndroma
de dificuldade respiratória aguda na criança
(Figura 1).
O hemograma, não dá, em geral, contributo
importante.
A gasometria capilar pode demonstrar a
existência de pressão de O2 (PO2) diminuída e
PCO2 elevada, correlacionando-se melhor este
parâmetro com a gravidade da doença. A
oximetria de pulso evidencia diminuição da
saturação em O2.
É possivel detectar por métodos rápidos de
imunofluorescência ou ELISA os antigénios dos
vírus respiratórios, os agentes etiológicos mais frequentes (VSR, influenzae, parainfluenzae e adeno-
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda
461
QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial
da bronquiolite aguda
Causa anatómicas
Anel vascular, quisto pulmonar, enfisema lobar
Pneumotórax, hidrotórax, quilotórax
Aspiração de corpo estranho
Insuficiência circulatória
Doença cardíaca congénita ou adquirida
Anemia
Infecções
Pneumonia por vírus, Chlamydia, Rickettsia,
Mycoplasma, bactérias, fungos
Parasitas
Irritantes
Inalação de substâncias tóxicas
Pneumonia de aspiração
Refluxo gastroesofágico
Causas metabólicas
Intoxicações (ex: salicilatos)
Acidose
FIG. 1
Aspecto radiográfico do tórax (póstero-anterior e perfil), na
bronquiolite aguda: sinais de hiperinsuflação; setas indicando
áreas de espessamento peribrônquico e focos de atelectasia/
enfisema.
vírus) nas secreções brônquicas ou da nasofaringe.
A identificação pode fazer-se igualmente por
métodos de PCR (reacção em cadeia da
polimerase). O diagnóstico serológico não está
indicado pela demora (semanas) na seroconvensão e pela escassa sensibilidade do método.
O diagnóstico diferencial pode ser difícil,
sobretudo nas formas clínicas menos típicas ou
sem contexto epidemiológico (Quadro 2).
Salientam-se outras infecções respiratórias
com carácter obstrutivo (ex. laringotraqueíte),
anomalias congénitas do aparelho respiratório,
doença cardíaca congénita ou adquirida(ex.
miocardite vírica) e ainda outras situações
associadas a dispneia expiratória na primeira
infância como o refluxo gastroesofágico, a fibrose
quística, a fístula tráqueo-esofágica, as anomalias
Causas alérgicas
Asma
Pneumonias designadas de hipersensibilidade
dos grandes vasos e, finalmente, a asma brônquica. Mais de 50% das crianças com asma
brônquica têm a sua primeira crise antes dos 2
anos de idade sendo habitualmente desencadeada
por infecção vírica.
Os parâmetros que podem diferenciar esta
afecção em relação à asma (que se pode acompanhar de inflamação dos bronquíolos), são essencialmente a idade da criança, o agente etiológico e
o carácter epidémico.
Avaliação da gravidade
O Quadro 3 sintetiza critérios de avaliação da
gravidade da doença, com particular implicação
na decisão de internamento hospitalar. A presença
de taquipneia com frequência respiratória (FR) >
60/m, a necessidade de O2 suplementar para
462
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Avaliação da gravidade e terapêutica na bronquiolite aguda
Ligeira
Capacidade alimentar normal
Dificuldade respiratória ligeira
(FR <50)
Sem necessidade de O2
suplementar (Saturação em
O2>96%)
Moderada
Dificuldade respiratória moderada com adejo
nasal e retracções costais (FR 50-70)
Hipoxémia ligeira corrigida com O2
Agravamento de dificuldade respiratória
durante alimentação
Breves episódios de apneia
Grave
Recusa alimentar
Dificuldade respiratória grave / retracção costal
acentuada, adejo nasal e gemido (FR > 70)
Hipoxémia não corrigida com O2
Episódios de apneia frequentes
Cansaço progressivo
Sem necessidade de exames
complementares
Tratamento no domicílio (pais
esclarecidos) se idade > 3 meses
Reavaliação pelo médico
assistente
Internamento
O2 suplementar para obter Saturação de O2≥90%
Ponderar fluidoterapia endovenosa e
alimentação por sonda gástrica
Monitorização
Telerradiografia do tórax
Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico
etiológico
Adrenalina em nebulização (ver texto)
Internamento
O2 suplementar para obter Sat O2≥90%
Eventual necessidade de ventilação
mecânica/unidade de cuidados intensivos
Pausa alimentar / fluidoterapia endovenosa
Monitorização cardiorrespiratória e gasometria
Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico
etiológico
Ponderar broncodilatador (salbutamol inalado
ou adrenalina em nebulização)
Se melhorar
Reintroduzir alimentação
Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90%
Reavaliação continuada pelo médico assistente
Se melhorar
Reintroduzir alimentação
Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90%
Reavaliação continuada pelo médico assistente
manter saturação de Hb em O2 superior a 90%, a
presença de dificuldade alimentar grave e desidratação, de prostração e gemido, e ainda a presença de doença de base que aumenta o risco de
complicações da doença, são factores decisivos
para o internamento hospitalar da criança, ainda
que apenas para vigilância de parâmetros vitais e
terapêutica de suporte.
A leitura da alínea sobre Tratamento ajudará a
compreender na íntegra o referido quadro.
Tratamento
Sendo a bronquiolite uma doença autolimitada, as
formas ligeiras poderão requerer apenas as habituais
medidas de humidificação e aspiração cuidadosa
das secreções da via respiratória (que promovem a
sua drenagem e desobstrução por mecanismos
fisiológicos), dos cuidados alimentares, hidratação,
e do esclarecimento de quem presta os cuidados.
Com o fim de diminuir o risco de aspiração de
alimento para a via repiratória face à SDR, a
criança deverá ser colocada em posição de tórax e
cabeça elevados a 30º, podendo ser necessária a
entubação nasogástrica para providenciar a alimentação.
A maioria das situações evolui, assim, para a
cura em 7 a 14 dias, sem complicações. Estas
poderão surgir, sobretundo, nos casos comportando factores de risco de doença mais grave, tais
como antecedentes de prematuridade, patologia
respiratória (como displasia broncopulmonar –
DBP), cardíaca, imunodeficiência ou imunossupressão, etc..
A seguir são sistematizadas as principais
medidas a aplicar com base em recomendações e
consensos recentes da Academia America de
Pediatria decorrentes de estudos cientifícos.
(medicina baseada na evidência).
Alguns procedimentos já foram descritos
sucintamente a propósito dos critérios de gravidade (Quadro 3)
Oxigenoterapia
Na bronquiolite moderada a grave, e sempre que
a saturação em O2 seja persistentemente <90% o
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda
oxigénio humidificado é a medida terapêutica
mais importante (usualmente por cânulas nasais a
um ritmo máximo de 2L/m ou por máscara facial
a 4L/m). Crianças com episódios de hipoxémia
(saturação em O2 < 90%), episódios de apneia ou
gasometria capilar com PO2 < 60 mmHg, PCO2 >
60 mmHg ou pH < 7.25 poderão necessitar de
internamento em unidade de cuidados intensivos
e eventual assistência respiratória com CPAP
(pressão positiva contínua) ou ventilação
convencional.
Estas formas moderadas/graves quase sempre
têm indicação de hidratação por via endovenosa,
com necessidade de balanço de fluidos rigoroso
e/ou alimentação por sonda nasogástrica.
Antibioticoterapia
A utilização de antibióticos somente está indicada
se se provar a coexistência de infecção bacteriana
a qual deverá ser tratada do mesmo modo, caso
tivesse surgido na ausência de bronquiolite.
Dados sugestivos são febre persistente,
leucocitose com neutrofilia, proteína C reactiva
elevada e agravamento do quadro clínico.
Broncodilatadores
A resposta aos broncodilatadores alfa e betaadrenérgicos sendo imprevisível, determina que os
mesmos não sejam indicados como rotina na
bronquiolite. Podem, de facto originar melhoria
clínica, nem sempre significativa; a resposta clínica
sugere, por outro lado, que no doente em que
foram aplicados existe comportamento de
hiperreactividade brônquica; ou seja, algumas das
crianças com primeiro episódio de “pieira” poderão ter asma. Assim, será lícito o seu emprego
por via inalatória como atitude inicial, procedendo
à sua interrupção no caso de não existir melhoria.
No nosso meio os broncodilatores mais usados
por via inalatória, nas formas graves e/ou que
requerem internamento são a salbutamol e o
brometo de ipratrópio, este último particularmente eficaz também como antitússico (ver
capítulo 64).
Se se verifica efeito após 1ª dose (brometo
ipratrópio: 125 μg) o fármaco pode ser continuado
até 4 a 8 vezes/dia.
Quanto ao salbutamol: 75-150 μg/kg/dose
(0.015-0.03 ml/kg/dose), a repetir dentro dos
463
limites definidos [mínimo 0.25 ml, máximo: 1ml].
Em circunstâncias a ponderar poderão ser
utilizados em concomitância os referidos dois
broncodilatadores.
A adrenalina evidencia propriedades, tanto
alfa como beta adrenérgicas; o efeito alfaadrenérgico, através da vasocontrição dos vasos
pulmonares e da redução do edema, tem sido
considerado útil no tratamento da bronquiolite.
Nas formas moderadas (Quadro 3) está indicada a administração de duas doses de adrenalina
através de nebulização com intrevalo de 30
minutos (3ml da solução a 1/1000) avaliando-se o
resultado durante pelo menos 2 horas no serviço
de urgência. Havendo melhoria, a situação poderá
ser tratada em regime ambulatório.
Corticosteróides
Os corticosteróides (inalados – budesonido,
fluticasona, por ex; orais – prednisolona, betametasona, por ex.) têm sido utilizados no tratamento agudo da bronquiolite numa tentativa de
reduzir, tanto os sintomas agudos, como a pieira
pós-bronquiolite aguda. De acordo com diversos
estudos, com resultados variáveis, não se conseguiu demonstrar benefício dos corticosteróides
no tratamento da bronquiolite aguda. Os estudos
em que se observaram efeitos positivos incluiram
crianças com pieira recorrente (com hiperreactividade brônquica e muito provável asma) e que
possivelmente por este motivo, responderam aos
corticosteróides.
Consequentemente, os corticosteróides não
estão indicados como rotina nos casos de bronquiolite aguda (ver capítulo 64).
Cinesiterapia respiratória
No tratamento agudo da bronquiolote é importante um manuseamento mínimo do doente; por
isso a utilização da cinesiterapia respiratória não
deve fazer parte do tratamento de rotina; nomeadamente está contraindicado se existir pieira relacionável com broncopasmo.
A cinesiterapia respiratória pode estar
indicada apenas nas formas associadas a perturbação da ventilação pulmonar por atelectasia.
Ribavirina
A ribavirina é um nucleósido análogo das purinas.
464
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Pensa-se que este medicamento possa interferir
com o funcionamento normal do ácido nucleico
vírico. A ribavirina tem actividade contra o VSR,
vírus da gripe e da hepatite C. As revisões
sistemáticas não demontraram qualquer efeito
com a utilização da ribavirina nas situações
agudas, embora exista certo benefício (não
significativo) nos indivíduos com doença grave
requerendo internamento numa unidade de
cuidados intensivos.
Embora as orientações iniciais surgerissem que
este medicamento fosse administrado sob a forma
de aerossol durante 12-18 horas diariamente, ele
tem sido utilizado durante períodos mais curtos
(duas horas três vezes por dia) na mesma dose de 6
g/dia. A ribavirina é administrada durante 3-5 dias.
Tratando-se duma droga potencialmente tóxica
e teratogénica para grávidas que com ela contactam, e igualmente dispendiosa e difícil de
administrar, a sua utilização deve ser restringida
apenas a doentes seleccionados, com risco de
infecção grave.
Imunoglobulina anti-VSR
A imunoglobulina anti-VSR, obtida de dadores
adultos com títulos elevados anti-VSR, comporta
risco baixo de transmissão vírica por via sanguínea devido ao processo de esterilização a que é
submetida.
Actualmente, não é recomendada a utilização
da imunoglobulina anti-VSR no tratamento da
bronquiolite aguda.
Palivizumab
O palivizumab é um anticorpo monoclonal de
origem humana produzido através de tecnologia
de ADN recombinante, com uma actividade semelhante contra ambas as estirpes (A e B) do VSR. Não
está provada eficácia no tratamento da bronquiolite
aguda. Este medicamento é recomendado para prevenir a bronquiolite pelo VSR (ver adiante).
Assistência respiratória
A bronquiolite pelo VSR pode causar insuficiência
respiratória grave, sendo, por vezes necessário o
suporte ventilatório. Muitas unidades têm facilidade em instituir aplicação de pressão positiva
contínua das vias aéreas (CPAP) como medida inicial de assistência respiratória.
Nos casos graves poderá estar indicada ventilação mecânica em UCI.
Outros tratamentos
Outros tratamentos incluindo o interferão, a vitamina A e a desoxirribonuclease humana recombinante 1 (rhDNase 1) foram experimentados mas
não revelaram benefício. Os produtos naturais
chineses, o surfactante, e o Heliox merecem possivelmente investigações adicionais. Com base nos
dados actuais o surfactante o Heliox (70% de hélio
e 30% de oxigénio) e nebulização com NaCl a 3%
devem ser reservados para os doentes internados
em unidades de cuidados intensivos pediátricos.
Profilaxia da infecção pelo VSR
Não existe ainda uma vacina eficaz contra o VSR.
O anticorpo monoclonal humano recombinante
(Palivizumab) pode reduzir a taxa de hospitalização nos grupos de risco (como crianças com
antecedentes de prematuridade, doentes com
displasia broncopulmunar ou cardiopatia), não se
tendo provado redução de necessidade de ventilação mecânica. De salientar que existem normas
da Sociedade Portuguesa de Pediatria para a sua
utilização preventiva nestes grupos de risco.
Nas situações atrás referidas são recomendadas 5
doses mensais na chamada época fria, com ínicio
em Novembro (15mg/kg/dose) por via IM.
A grande viabilidade do vírus no meio
ambiente facilita a sua transmissão pelos que rodeiam a criança (pais e familiares, educadoras,
pessoal de saúde); são, assim, importantes medidas simples mas eficazes como a correcta
lavagem das mãos, uso de bata, luva e máscara,
limitação dos contactos e quartos de isolamento
para doentes nos quais foi isolado o VSR. Medidas
ambientais como a evicção do fumo do tabaco são
igualmente importantes.
A AAP chama atenção para a eficácia da
fricção das mãos com compressas embebidas em
álcool após lavagem convencional das mesmas.
As orientações dos Centers for Disease Control
and Prevention sugerem que a lavagem frequentes
das mãos e a não partilha de objectos, tais como
chávenas, copos e outros outros utensílios com as
pessoas com uma infecção pelo VSR podem reduzir
o risco de disseminação. Admite-se que não é
necessário impedir as crianças com resfriados ou
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda
outras doenças respiratórias (sem febre) e bom
estado geral, de frequentarem infantários ou escolas.
Chama-se mais uma vez atenção para o facto
de o tabagismo passivo aumentar o risco de
internamento por bronquiolite.
A AAP chama igualmente com atenção para o
facto de, na criança alimentada com leite materno,
se verificar menor probalidade de infecções das
vias respiratórias inferiores; trata-se, pois do papel
preventivo do leite materno, como recomendação
explícita.
Complicações e prognóstico
A bronquiolite é considerada uma doença de
baixa mortalidade (inferior a 0.01%) a qual está
relacionada com patologia concomitante e préexistente que aumenta o risco de complicações.
No entanto, a sua morbilidade é importante,
sendo relativamente frequentes as complicações
na fase aguda, sobretudo as do foro respiratório
como a atelectasia e a insuficiência respiratória
obrigando, por vezes, à necessidade de ventilação
mecânica. Também pode observar-se pneumotórax, pneumomediastino e infecções bacterianas
secundárias como pneumonia e otite. A deterioração súbita com apneia é uma complicação, sobretudo no lactente pré-termo.
Há casos com evolução mais arrastada, mantendo tosse, sibilância e/ou dispneia expiratória
para além de duas semanas (por vezes meses) ou
evoluindo com crises de agravamento e intolerância
progressiva ao esforço. Trata-se dum quadro clínico
designado por bronquiolite obliterante, abordada no
capítulo 86.
Muitos autores têm demonstrado que nalgumas
crianças se mantém, após o primeiro episódio de
bronquiolite, alteração da função respiratória, ou
hiperreactividade brônquica, que pode persistir
desde meses até 8 a 10 anos (sobretudo após
infecção pelo VSR); tal alteração muitas vezes
traduz-se por episódios de sibilância recorrente,
levando ao diagnóstico de asma do lactente ou de
pieira recorrente da infância. Não estão cabalmente
esclarecidos os factores que condicionam este
quadro sendo admitidas várias hipóteses:
1 – Estudos epidemiológicos sugerem que tais
crianças fazem parte da população asmática,
sobretudo se houver história pessoal ou familiar
465
QUADRO 4 – Complicações de bronquiolite
• Atelectasia
• Hiperreactividade brônquica
• Bronquiolite obliterante
• Bronquiectasias
• Síndroma do pulmão hiperlucente
• Pneumonia bacteriana
• Estenose brônquica
• Granuloma endobrônquico
de atopia ou detecção de IgE específica para o VSR
nas secreções nasofaríngeas.
2 – Outros estudos sugerem tratar-se de
sequela a longo prazo da lesão bronquiolar
induzida pela infecção vírica ou relacionável com
factores do hospedeiro como a presença de calibre
mais reduzido das vias aéreas ou distensibilidade
pulmonar perturbada; tal não implica, no entanto
que venha a desenvolver-se asma na idade escolar
em tais circunstâncias.
3 – Com base noutros estudos demonstrou-se
que, se não existir história familiar de atopia, a
tendência para pieira pós-bronquiolítica regredirá
por volta dos 10 anos de idade.
O Quadro 4 sintetiza as principais complicações.
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A bronquiolite obliterante (BO) é uma doença pulmonar crónica pouco comum na idade infantil
secundária a agressão ao aparelho respiratório
inferior, do que resulta: pequenos brônquios e
bronquíolos obstruídos por tecido de granulação e
fibrose, por vezes em associação a bronquiectasias
nas vias aéreas de maior calibre.
Em estudos de exames necrópsicos em idade
pediátrica foi calculada a prevalência de cerca de
2/1.000.
Etiopatogénese
A maioria dos casos segue-se a infecção respiratória causada por adenovírus, particularmente
dos tipos 3, 7 e 21. Outras infecções têm sido associadas ao aparecimento de BO nomeadamente por
Legionella, Mycoplasma, B. pertussis, vírus influenza
e do sarampo. Também a aspiração de material
estranho, em particular conteúdo gástrico ácido
em casos de refluxo gastro-esofágico, ou a
inalação de tóxicos (por ex. NO2, NH3), podem
levar ao aparecimento de BO. Alguns casos têm
sido associados a artrite reumatóide, lúpus
eritematoso e síndroma de Stevens-Johnson.
Nos últimos anos a BO tem sido descrita como
uma complicação tardia major da transplantação
pulmonar. Além disso, têm sido identificadas
lesões semelhantes (nos doentes transplantados
com medula óssea) associadas a doença enxertohospedeiro. Nalguns casos não é possível determinar a etiologia.
A BO inicia-se como uma pneumonia grave
necrosante com destruição do epitélio bronquiolar. Quando ocorre a cicatrização, massas de teci-
CAPÍTULO 86 Bronquiolite obliterante
do de granulação obstruem o lume dos pequenos
brônquios e bronquíolos, tornando-se posteriormente fibróticas e causando obliteração parcial ou
total das vias aéreas. Nos casos mais graves há
destruição do músculo e do tecido elástico com
fibrose da parede e áreas envolventes. Existem
áreas heterogéneas de distensão e outras de atelectasia. O calibre do leito capilar pulmonar fica
diminuído. Devido à obstrução, a resistência aérea
e o trabalho respiratório aumentam. A perfusão de
áreas pulmonares mal ventiladas causa hipoxémia, e a diminuição na ventilação eficaz causa
hipercapnia. A hipoxémia crónica, obstrução aérea
e redução do calibre do leito vascular pulmonar,
levam a edema pulmonar, o que compromete adicionalmente as trocas gasosas.
Manifestações clínicas
Na fase aguda a doença não se distingue da
bronquiolite aguda: tosse, febre, pieira e dificuldade respiratória. Contudo, a evidência de broncopneumonia e pneumonia intersticial é mais comum. Após um período breve de aparente melhoria ou resolução, voltam a surgir sintomas de
doença obstrutiva pulmonar com dispneia, taquipneia e tosse crónica. A auscultação pulmonar
revela fervores e sibilos geralmente dispersos.
Ocasionalmente o processo obliterativo é predominantemente unilateral traduzido radiologicamente por um quadro de pulmão hipertransparente unilateral ou síndroma de Swyer-James.
Neste caso, um exame torácico cuidadoso pode
evidenciar sinais localizados no pulmão afectado.
Diagnóstico
O diagnóstico é sugerido pela clínica de tosse
arrastada, pieira e dificuldade respiratória variável, evoluindo: com períodos de melhoria seguidos de agravamento, mais frequentemente após
infecção pulmonar moderada a grave por adenovírus ou Mycoplasma; ou com obstrução respiratória persistente respondendo mal aos broncodilatadores, após transplante de medula óssea. A
recuperação clínica em geral é incompleta e o
doente raramente fica assintomático.
A radiografia do tórax evidencia sinais de
insuflação com hiperclaridade pulmonar periféri-
467
ca e zonas de opacidade do interstício, espessamentos peribrônquicos e áreas dispersas de broncopneumonia, podendo haver colapso ou consolidação de segmentos ou lobos.
A broncoscopia não mostra obstrução das
grandes vias aéreas, e a broncografia – na época
em que era realizada – evidenciava aspecto característico em “árvore de inverno” sem contraste
nos pequenos brônquios.
Quer a cintigrafia, quer a angiografia digital,
podem evidenciar diminuição da vasculatura pulmonar periférica. Estes aspectos geralmente são
difusos, dispersos e bilaterais, mas podem ser
localizados a um pulmão ou lobo como na síndroma de Swyer-James. A confirmação diagnóstica
poderá obter-se com biópsia pulmonar que deverá
ser cirúrgica face à natureza dispersa das lesões.
A tomografia computadorizada de alta definição (TCAD) melhorou muito a capacidade de
diagnóstico de lesões das pequenas vias aéreas.
Na BO frequentemente existe um padrão em
vidro despolido bilateral, com áreas de hiperdensidade alternando com outras de hipodensidade e
rarefação da vascularização na periferia dos campos pulmonares. Presentemente a história clínica
associada a estes aspectos típicos na TCAD tornam desnecessária a broncografia e a própria
biópsia pulmonar em muitos casos.
As provas de função respiratória são importantes não só no diagnóstico como no seguimento
destes doentes. Geralmente evidenciam sinais de
doença pulmonar obstrutiva irreversível. O fluxo
expiratório forçado a meio da expiração (FEF 2575) é um bom indicador de doença das pequenas
vias aéreas. A sua descida marcada abaixo de 30%
do valor previsível é um indicador sensível de BO.
Em doentes submetidos a transplantes de
órgãos sólidos ou medula óssea, têm sido descritos quadros clínicos com pneumonite intersticial aguda não infecciosa e bronquiolite. Aparentemente tais quadros estão relacionados com
doença enxerto-hospedeiro ou são devidos à quimioterapia, respondendo à terapêutica imunomoduladora.
A BO pode ocorrer, tal como foi referido, como
complicação tardia grave do transplante pulmonar. A patogénese é desconhecida, mas parece
tratar-se de uma forma peculiar de rejeição de
órgão. Ocorre em quase 50% dos sobreviventes de
468
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
transplante pulmonar e não responde à terapêutica usual, podendo ser irreversível.
Nos últimos anos uma entidade patológica
diferente chamada bronquiolite obliterante-pneumonia organizativa (BOOP) tem sido descrita associada a várias doenças pulmonares incluindo pneumonias infecciosas, inalação de tóxicos e doenças do
colagénio vascular. O aspecto anatomopatológico é
semelhante à BO excepto no que respeita a uma
característica: os septos alveolares estão espessados
por um infiltrado celular inflamatório crónico e
existe hiperplasia das células tipo II.
Tratamento
alguns com sintomas ligeiros que melhoram
gradualmente sobretudo depois dos 8-10 anos, até
outros que continuam a ter significativa doença
respiratória com obstrução crónica, bronquiectasias
e infecções recorrentes. Mais raramente podem ter
evolução rapidamente progressiva para insuficiência respiratória e morte pouco tempo depois do
início dos sintomas. Presentemente o prognóstico
em geral é razoavelmente bom com uma mortalidade baixa. Nalguns casos graves tem sido feito
transplante pulmonar.
BIBLIOGRAFIA
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Amadora: Roche Farmacêutica Química, 1997; 64-76
O tratamento é de suporte e inclui oxigénio para
manter saturação O2-Hb adequada prevenindo a
hipertensão pulmonar e a insuficiência cardíaca. Por
vezes os diuréticos são úteis no tratamento do edema
pulmonar. É importante evitar lesão pulmonar
secundária, quer por infecção, quer por aspiração nos
casos em que há refluxo gastro-esofágico. A fisioterapia respiratória e a manutenção de um bom
estado nutricional são também muito importantes.
O papel dos broncodilatadores é controverso,
pois os doentes com BO têm obstrução fixa.
Contudo, geralmente são usados, podendo haver
benefício clínico mesmo em doentes em que não
se verifica melhoria da função respiratória.
É possível que os corticóides possam limitar a
progressão da doença modificando a resposta
fibroblástica na fase inicial. Usam-se por via oral,
por vezes durante períodos prolongados de
meses. Alguns doentes beneficiam desta terapêutica melhorando a sua função pulmonar; contudo, outros não. Admite-se que a resposta positiva aos broncodilatadores possa indiciar utilidade
da corticoterapia prolongada.
Em centros especializados têm sido utilizados
agentes imunomodulares (por ex. tacrolimus),
ciclofosfamida em aerossol e macrólidos nos casos
de BO associada a transplantes pulmonares.
Também o infliximab (anticorpo monoclonal)
que se liga ao TNF-alfa tem sido empregue nos
casos de doentes transplantados com medula óssea.
Prognóstico
A evolução dos doentes com BO varia muito: desde
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CAPÍTULO 87 Bronquite
87
BRONQUITE
João M. Videira Amaral
469
alergénios (estes últimos abordados noutro capítulo) tem igualmente papel importante.
Está provada a associação entre fumo do tabaco (activo ou passivo), poluição do ar e bronquite,
com ou sem sibilância.
No que respeita à bronquite crónica, em termos de factores etiológicos, tem perfeito cabimento, o que foi referido a propósito das pneumonias
recorrentes.
Manifestações clínicas
Definição e importância do problema
A bronquite aguda consiste num processo inflamatório agudo da mucosa dos brônquios de início abrupto, geralmente de origem vírica, em que
a tosse é o sinal proeminente. De acordo com
estatísticas dos Estados Unidos, estima-se que na
idade pré-escolar ocorram cerca de 2 milhões de
episódios de bronquite aguda. Dum modo geral
acompanha ou surge na sequência de rinofaringite aguda ou de traqueíte aguda, fazendo parte
do quadro clínico acompanhante doutras doenças
infecciosas ou do foro respiratório com localização
diversa.
A bronquite crónica corresponde a uma situação caracterizada por produção excessiva de
muco e tosse, associada a febre em períodos não
inferiores a 3 meses. De facto, surgindo como
manifestação clínica ou epifenómeno de um conjunto doutras entidades, em idade pediátrica o
termo “bronquite crónica“ não tem a relevância
que lhe é atribuída no adulto,acabando por
prevalecer a situação de base como entidade.
Etiologia
Os agentes infecciosos mais frequentemente associados à bronquite aguda são:os adenovírus dos
tipos 1, 7 e 12, vírus influenza e para-influenza, o
vírus sincicial respiratório e os rinovírus.
Relativamente às bactérias estão mais frequentemente implicadas Bordetella pertussis e para
pertussis, Haemophilus influenzae, Streptococcuus
pneumoniae e Streptococcus pyogenes.
Outros germes igualmente isolados são: o
Mycoplasma pneumoniae e a Chlamydia psittaci.
O factor ambiente através das poeiras, fumos e
Os sinais e sintomas característicos são tosse e
febre associados a processo inflamatório das vias
respiratórias superiores, sendo notória a rinite
mucopurulenta com obstrução nasal. A tosse é
inicialmente seca , irritatativa, não produtiva, tornando-se produtiva nos dias seguintes. Nos
lactentes a tosse é emetizante conduzindo a anorexia e , por vezes, a desidratação.
Nas crianças maiores poderá haver expectoração e dor torácica.
A evolução tem, em geral, a duração de uma
semana, com uma fase de recuperação de 1-2
semanas em que é típica a tosse persistente. Tratase em geral dum processo autolimitado e benigno.
Poderá surgir infecção bacteriana secundária.
As situações crónicas de “bronquite” obrigam
ao diagnóstico diferencial com displasia broncopulmonar, bronquectasias e fibrose quística.
Os dados auscultatórios do tórax revelam roncos dispersos mais audíveis na metade superior
da caixa torácica.
A radiografia do tórax é em geral normal na
ausência de sobreinfecção bacteriana. Os exames
complementares têm valor limitado , sugerindo
em geral processo vírico. O hemograma poderá
revelar leucocitose ligeira e em cerca de 1/3 dos
casos, mesmo nos processos compravadamente de
etiologia vírica, neutrofilia ligeira.
Tratamento e complicações
O tratamento mais eficaz é o tratamento preventivo incluindo o cumprimento do programa de
vacinas disponíveis.
Uma vez surgido o episódio, são adoptadas
apenas medidas paliativas: desobstrução nasal
470
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com soro fisiológico e aspiração nasal cuidadosa,
mas eficaz, das secreções; antipiréticos com
prudência (paracetamol) e suprimento abundante
de líquidos por via oral para promover a mucolise. Os antitússicos deverão ser utilizados com
prudência e apenas nas situações de tosse não produtiva. Em circunstâncias especiais e em crianças
maiores poderão ser utilizados anti-histamínicos
durante 3-4 dias, havendo congestão nasal importante.
Nos casos de infecção bacteriana secundária
está indicada antibioticoterapia.
88
BRONQUIECTASIAS
Ana Margarida Reis e José Cavaco
Definição
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Esta entidade clínica, descrita pela primeira vez
por Laennec em 1819, define-se como uma dilatação anormal, permanente e irreversível do calibre brônquico, provavelmente como resultado de
diversos eventos patológicos.
Na criança a incidência das bronquiectasias
diminuiu nos últimos anos em resultado do
desenvolvimento dos programas de vacinação, do
tratamento precoce e adequado das infecções
respiratórias, e da melhoria do estado de nutrição.
A incidência real desta doença é difícil de avaliar
devido à baixa suspeita clínica que condiciona o
subdiagnóstico; no entanto pode considerar-se que
é relativamente rara nos países desenvolvidos.
Etiopatogénese
Nos países desenvolvidos a causa mais frequente
de bronquiectasias é a fibrose quística, devido à
obstrução brônquica e infecção crónica associada
a esta doença. No entanto, os factores etiológicos
de bronquiectasias são múltiplos, como se pode
observar no Quadro 1.
Devido à melhoria dos cuidados de saúde
algumas doenças como a tuberculose, sarampo e
tosse convulsa, que eram as principais causas de
bronquiectasias, diminuiram significativamente
em incidência; no entanto, a infecção pulmonar
ainda constitui o factor predisponente mais relevante do desenvolvimento de bronquiectasias. O
adenovírus é particularmente agressivo para o
pulmão. O vírus sincicial respiratório (VSR) pode
causar bronquiectasias se a infecção ocorrer em
crianças nascidas pré-termo.
A síndroma de Kartagener é uma tríade com-
CAPÍTULO 88 Bronquiectasias
QUADRO 1 – Factores etiológicos
Infecções
Vírus (adenovírus, sarampo, VIH, VSR), tuberculose,
tosse convulsa, Aspergillus, Pseudomonas, Mycoplasma.
Doenças congénitas
Deficiência da cartilagem (síndroma de WilliamsCampbell), traqueobroncomegalia (síndroma de MounierKuhn), síndroma de Marfan, síndroma de Ehler-Danlos,
discinésia ciliar primária, síndroma de Kartagener, fibrose
quística, deficiência de alfa1-antitripsina.
Imunodeficiência
Primária (hipogamaglobulinémia), secundária (causada
por neoplasia, quimioterapia ou imunossupressão).
Obstrução
Aspiração de corpo estranho, tumor, estenose, compressão por anomalia congénita, asma, síndroma do
lobo médio.
Aspiração
Refluxo gastroesofágico, anomalias congénitas.
Inalação de gases tóxicos
Heroína, amónia, dióxido sulfúrico.
Abreviaturas: VIH: vírus da imunodeficiência humana;
VSR: vírus sincicial respiratório.
posta por situs inversus, sinusite e bronquiectasias. A discinésia ciliar primária é uma doença
autossómica recessiva caracterizada por uma
diminuição de função dos cílios brônquicos que
contribui para a retenção das secreções e infecções
recorrentes.
O refluxo gastroesofágico e as aspirações
crónicas secundárias às dificuldades de deglutição
podem complicar-se com lesões brônquicas.
A presença prolongada de corpo estranho nas
vias aéreas provoca obstrução crónica e inflamação,
factores importantes do desenvolvimento de
bronquiectasias.
A síndroma do lobo médio, que se caracteriza
por atelectasia persistente deste lobo, é uma causa
frequente de bronquiectasias localizadas, pela ausência de ventilação colateral; com efeito o brônquio lobar médio é mais longo e de calibre mais
471
estreito, sendo a drenagem mais difícil. Uma das
principais causas desta síndroma é a asma.
De salientar que em muitos casos a etiologia
continua desconhecida.
As bronquiectasias, primariamente uma doença dos brônquios e bronquíolos, envolvem um
ciclo vicioso de obstrução, infecção e inflamação
transmural, com libertação de mediadores. Existe
uma agressão inicial das vias aéreas que compromete os mecanismos de defesa, causando
colonização bacteriana da árvore brônquica. Na
tentativa de eliminar estes microrganismos surge
uma reacção inflamatória que é ineficaz e, por este
motivo, se torna crónica. Esta reacção provoca
destruição da parede brônquica e consequente
alteração e compromisso dos mecanismos de defesa com aumento da susceptibilidade à invasão
bacteriana. Neste processo parece estarem envolvidos neutrófilos e linfócitos-T, tendo sido encontradas na expectoração concentrações aumentadas
de elastase, interleucina-8 e factor de necrose
tumoral alfa (TNF-alfa).
Microscopicamente o lúme brônquico encontra-se obstruído por muco, há hipertrofia e
hiperplasia das células caliciformes e glândulas da
submucosa, com infiltração da mucosa e
submucosa por células inflamatórias; verifica-se
também hipervascularização brônquica e
destruição do tecido elástico, tecido cartilagíneo e
músculo liso, que são substituídos por tecido
fibroso.
Classificação
Macroscopicamente verifica-se que os brônquios
são irregulares e tortuosos, e os bronquíolos distais estão obstruídos por secreções, transformando-se progressivamente em cordões fibrosos.
De acordo com o aspecto macroscópico, as
bronquiectasias podem dividir-se em:
– Cilíndricas: nesta forma as vias aéreas dilatadas surgem, por vezes, como efeito residual de uma pneumonia;
– Varicosas: nesta forma existem áreas constritivas focais ao longo das vias aéreas dilatadas
que resultam de defeitos da parede brônquica;
– Quísticas ou saculares: caracterizadas por
dilatação progressiva das vias aéreas que terminam em formações quísticas ou aglomerados
472
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em cacho de uva. Este achado encontra-se nas
formas graves de bronquiectasias.
Manifestações clínicas
Nas crianças existe habitualmente tosse que pode
ser produtiva (as crianças deglutem as secreções);
por vezes a expectoração é purulenta com cheiro
fétido. As hemoptises são mais raras do que nos
adultos. A recidiva de pneumopatia no mesmo
território ou infecções brônquicas de repetição,
devem fazer suspeitar de bronquiectasias.
Existem outros sinais menos específicos como
atraso do desenvolvimento estaturo-ponderal ou
febre inexplicada. Na anamnese é importante
salientar os antecedentes familiares de doença
respiratória, a consanguinidade assim como os
antecedentes pessoais desde o período neonatal.
O exame objectivo permite evidenciar sinais de
gravidade como a alteração do estado geral,
atraso estaturo-ponderal, deformação torácica,
dispneia, hipoxémia, cianose e hipocratismo
digital. A auscultação permite detectar fervores
nas áreas afectadas, por vezes sibilos e roncos.
As provas de função respiratória revelam
sinais de obstrução, podendo ocorrer também
defeito restritivo nos doentes em que existe destruição avançada do parênquima.
Diagnóstico
A telerradiografia de tórax poderá não revelar
quaisquer sinais anómalos nos estádios mais
precoces. As bronquiectasias são identificadas
como imagens de dilatação brônquica com
espessamento da respectiva parede, hiperinsuflação compensatória, impactação mucóide e
formação quística. Classicamente existem dois
sinais característicos: sinal de “anel de sinete”
(corte de topo do brônquio que é espessado e
maior que o topo da artéria adjacente, o que não
acontece em situações sem patologia em que a
artéria e o brônquio têm tamanhos similares); e
“sinal do carril” (linhas espessadas paralelas que
representam corte longitudinal do brônquio). Nos
casos mais graves pode ocorrer a imagem de
pulmão em favo de mel. No entanto, devem ter-se
em atenção outros sinais como uma condensação
pulmonar que permanece após antibioticoterapia.
FIG. 1
TAC Torácica: Sinais de bronquiectasias no contexto de
hemossiderose pulmonar. (NIHDE)
A broncografia de anteriores décadas foi
substituída pela TCAD (tomografia computadorizada de alta definição), que se tornou o método
“gold standard” para o diagnóstico de bronquiectasias pela elevada sensibilidade e elevada especificidade.
A TAC permite também avaliar as complicações pulmonares associadas às bronquiectasias
(como a bronquiolite obliterante), a extensão e
evolução das lesões, e orientar o tratamento
cirúrgico. (Figura 1)
Através da broncoscopia é possível verificar
ou excluir a presença de corpo estranho, efectuar
a biópsia e colheita de lavado brônquico para diagnóstico etiológico.
Outros exames complementares de diagnóstico devem ser orientados para as etiologias mais
prováveis. É importante salientar a prova do suor,
a intradermorreação de Mantoux e o estudo da
imunidade e alergia.
Tratamento
Globalmente, a actuação tem como objectivos o
tratamento da doença primária, a drenagem das
secreções, o controlo das infecções agudas e a diminuição da colonização bacteriana e da inflamação.
CAPÍTULO 88 Bronquiectasias
As exacerbações agudas são reconhecidas pelo
aumento da expectoração, que se torna mais
espessa e purulenta. A antibioticoterapia deve ser
dirigida empiricamente aos agentes mais frequentes que são: Haemophilus influenza, Streptococcus
pneumoniae e Staphylococcus aureus. A Pseudomonas
aeruginosa e o Proteus vulgaris são menos frequentes. No tratamento das agudizações moderadas prefere-se a terapêutica oral com β-lactâmicos
e macrólidos. O antibiótico deve ser posteriormente ajustado de acordo com o exame bacteriológico da expectoração. A duração do tratamento
é geralmente 2 a 4 semanas. Para exacerbações
mais graves é, por vezes, necessário recorrer à
terapêutica endovenosa.
Nalguns centros procede-se à profilaxia
contínua com macrólidos ou outros antibióticos,
por via oral ou em nebulização.
Existem outros medicamentos que podem ser
utilizados, tais como os broncodilatadores inalados
que diminuem a broncoconstrição, e os corticoesteróides que reduzem a inflamação das vias aéreas.
Outra vertente importante do tratamento é a
cinesiterapia respiratória que melhora a drenagem
pulmonar.
As indicações para cirurgia são limitadas a
doentes com: bronquiectasias localizadas, que
sofrem exacerbações frequentes, com complicações
graves como hemoptises maciças, ou processos
piogénicos como o abcesso pulmonar.
Prognóstico
Apesar de dependente da precocidade do diagnóstico e do tratamento, de factores predisponentes e das complicações, o prognóstico é geralmente favorável devido às terapêuticas disponíveis actualmente, como antibióticos de largo
espectro mais eficazes, e à melhoria dos resultados
cirúrgicos.
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TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
89
SÍNDROMAS DE ASPIRAÇÃO
João M. Videira Amaral
Importância do problema
Existe uma gama muito variada de substâncias,
produtos, corpos estranhos ou até produtos biológicos (como por exemplo, secreções nasofaríngeas e conteúdo gástrico) que podem atingir
intempestivamente a via respiratória e originar
obstrução mecânica e sinais e sintomas que podem culminar em asfixia e morte na ausência de
procedimentos emergentes ou urgentes. Cabe referir ainda a possível acção de determinados
produtos tóxicos aspirados ou inalados, tais como
petróleo, naftaleno, pó de talco, vapores de
mercúrio, pesticidas, produtos clorados, gomalaca, berílio, etc., que poderão originar, para além
de obstrução mecânica, a formação de granuloma
e pneumonite intersticial por acção crónica irritativa e agressiva sobre as estruturas canaliculares
da via respiratória.
O objectivo deste capítulo é abordar sucintamente as situações relacionadas com a aspiração
acidental de objectos de pequenas dimensões na
perspectiva de chamada de atenção para a
necessidade de prevenção.
Etiopatogénese
Qualquer objecto de pequenas dimensões (peças
de jogos ou de brinquedos,botões, feijões ou grãos
de leguminosas secas, rebuçados,pequenas peças
acessórias do vestuário de metal ou plástico,etc.)
que ultrapasse a barreira laríngea pode ser aspirado para as vias respiratórias inferiores originando
obstrução de grau diverso. Se os objectos aspirados forem constituídos por matéria orgânica, o
risco de vida imediato é menos significativo.No
caso de se se tratar de objectos irritantes para a
mucosa brônquica, o edema da respectiva parede
contribui agravar a diminuição do calibre da via
respiratória.
Manifestações clínicas
A noção precisa de aspiração de corpo estranho é
rara sobretudo em crianças pequenas com ausência de testemunhas. Esta circunstância implica,
por isso, elevado índice de suspeita.
Por outro lado, a história de início súbito de
tosse disfónica e dificuldade respiratória ( sibilância ou estridor, cianose e retracção torácica,
apneia, etc.) é muito típica e sugestiva.
Dum modo geral, os sinais e sintomas dependem da localização do corpo estranho na via respiratória.
Localizando-se na traqueia com obstrução
total, surgirão asfixia e retracções torácicas marcadas . Se a obstrução for parcial e alta, como consequência surgirão estridor inspiratório e expiratório assim como retracção costal superior ; se a
obstrução for baixa e parcial, os sinais serão
sibilância e estridor inspiratório.
Se a localização for o brônquio principal, os
sinais mais típicos são a tosse , sibilância e, por
vezes, hemoptise.
Se o corpo estranho se alojar em brônquio
lobar ou segmentar serão notórios diminuição do
murmúrio vesicular, sibilos e roncos, com sibilância localizados ao lado afectado. Pela inspecção,
poderá notar-se diferença quanto ao grau de
expansão dos dois hemitóraxes.
No caso de haver atraso no diagnóstico, poderão surgir episódios recorrentes de sibilância
diagnosticados como “asma, pneumonia ou bronquiectasias”, não sendo de excluir em tal circunstância, pneumonia secundária.
Torna-se importante frisar que a possibilidade
da presença de corpo estranho nas vias respiratórias deve ser sempre admitida no diagnóstico
diferencial de todo e qualquer tipo de problema
respiratório, designadamente na criança pequena,
valorizando sempre, claro está, a anammese.
Exames complementares
A suspeita de aspiração de corpo estranho implica proceder a exame radiográfico do tórax (deven-
CAPÍTULO 89 Síndromas de aspiração
475
cesso educativo incidindo sobre as próprias (cuidado com os objectos dados às crianças pequenas para
brincar: objectos pequenos não!).
Esta acção educativa deve começar na escola
pré-primária.
Tratamento
FIG. 1
Padrão radiográfico de atelectasia pulmonar (segmento do
lobo superior à direita) por aspiração de corpo estranho não
radiopaco. (NIHDE)
do idealmente ser feito em inspiração e em expiração, contemplando igualmente as incidências
em decúbito bilateral); poderá não revelar qualquer sinal anómalo ou, pelo contrário, sinais
directos e indirectos. De referir os seguintes sinais:
enfisema notório na fase de expiração por acumulação progressiva de ar nos casos de obstrução
parcial e mecanismo valvular; atelectasia; sinais
retracção com desvio do mediastino; (Figura 1)
imagem do próprio corpo estranho caso seja radiopaco. Como complemento poderá haver necessidade de recurso à vídeo-radioscopia.
A broncospia constitui uma técnica obrigatória, quer para a confirmação diagnóstica, quer
na perspectiva de intervenção terapêutica para a
remoção do corpo estranho.
Prevenção
Na maior parte das vezes a aspiração de corpo
estranho não constitui uma situação de emergência com asfixia e risco de vida. O grau de urgência/emergência depende da localização do corpo
estranho e do grau de dificuldade respiratória.
No entanto, se a criança for admitida no
serviço de urgência em apneia e tiver idade superior a 1 ano, deverá proceder-se à manobra de
Heimlich de imediato; se tiver menos de 1 ano
deverá proceder-se à manobra de percussão forte
do dorso.
No entanto, o procedimento de eleição em situações de emergência /asfixia e história convincente de aspiração é a broncoscopia com broncoscópio rígido para remoção do corpo estranho.
Nos casos em que a história não é convincente
poderá utilizar-se inicialmente o broncoscópio
flexível para confirmar o diagnóstico; em segunda
linha, uma vez confirmado o diagnóstico, procede-se a broncoscopia rígida para remoção do
corpo estranho.
Em função do contexto clínico (sinais sugestivos de sobreinfecção) poderá estar indicada a
antibioticoterapia.
BIBLIOGRAFIA
Chernick V, Boat TF. Kendig’s Disorders of the Respiratory
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Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
Este tipo de acidentes que surge com mais frequência entre os 6 meses e os 3 anos, pode ser prevenido
através duma vigilância adequada por quem é
responsável pelos cuidados a prestar à criança, e da
escolha apropriada de brinquedos, alimentos ou
peças de vestuário para a mesma. Tratando-se de
crianças mais velhas, a prevenção passa pelo pro-
2007
Marik PE. Aspiration pmeumonitis and aspiration pneumonia.
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Taussig LM, Landau LE. Pediatric Respiratory Medicine. St
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476
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
90
HEMOSSIDEROSE PULMONAR
Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida
Definição e importância do problema
A designação de hemossiderose pulmonar idiopática corresponde a um estado patológico de causa
desconhecida, associado a episódios repetidos de
hemorragia intra-alveolar com acumulação de
ferro nos macrófagos na forma de hemossiderina,
subsequente fibrose pulmonar e anemia ferropénica. O termo é por vezes usado incorrectamente como sinónimo de hemorragia pulmonar.
A deposição de hemossidermia secundária a
hemorragia alveolar difusa pode surgir como
doença primária, ou secundariamente a doença
cardíaca ou a doença vascular sistémica. Na idade
pediátrica a forma primária surge mais frequentemente do que a forma secundária.
Relativaemente à hemossiderose pulmonar
primária, trata-se de uma patologia muito rara,
com uma incidência de entre 0,23 a 1,23 por
milhão de crianças. Em geral ocorre entre 1-7 anos
e mais raramente na idade adulta. Quando surge
em idade inferior a 10 anos apresenta igual
distribuição por sexos; no entanto, em crianças
com mais de 10 anos ocorre mais frequentemente
no sexo masculino (2/1).
Com base nesta hipótese foi estabelecida uma
classificação que considera as seguintes formas
clínicas de hemossiderose pulmonar: 1) primária
englobando a forma idiopática, ou não associada a
doença subjacente, a forma associada à hipersensibilidade às proteínas do leite de vaca ou síndroma de Heiner, e a forma associada a
glomerulonefrite progressiva ou síndroma de
Goodpasture; 2) secundária englobando diversas
etiologias: estenose mitral, a insuficiência cardíaca
congestiva, a miocardite, conectivites, vasculites –
por exemplo púrpura de Henoch-Schonlein, doença celíaca, diabetes, doenças malignas, diversas
“noxas – por exemplo citotóxicos e imunossupressores, radiação, monóxido de carbono, etc..
Sob o ponto de vista de localização das lesões,
a extenção destas é variável, distinguindo-se as
chamadas formas difusas e as formas focais. Será
dada ênfase a duas das formas de hemossiderose
pulmonar primária atrás referidas: idiopática e
síndroma de Heiner.
Anatomia Patológica
Macroscopicamente o pulmão tem peso elevado,
com áreas de consolidação vermelho-acastanhadas.
Histologicamente evidenciam-se sinais de degenerescência intensa, divisão e hiperplasia das células
epiteliais alveolares (pneumócitos tipo II) e dilatação
capilar alveolar localizada intensa, sem sinais de
capilarite. Há vários graus de fibrose intersticial
pulmonar e hemorragia nos espaços alveolares com
deposição de hemossiderina dentro dos septos
alveolares e nos macrófagos intra-alveolares.
1. IDIOPÁTICA
Etiopatogénese e classificação
Manifestações clínicas
A etiopatogénese não está esclarecida. Alguns
estudos sugerem um mecanismo imunológico
(por vezes a prova de Coombs é positiva, há
crioaglutininas circulantes ou mastócitos nos
pulmões).
A favor da patogénese de base imunológica na
forma idiopática é a verificação de forma secundária associada a doença celíaca com remissão das
queixas após a instituição de uma dieta sem glúten.
Em geral surgem antes dos 10 anos de idade,
caracterizando-se por episódios recorrentes de
tosse, dispneia, pieira e cianose, que duram entre
2 a 4 dias. As crianças pequenas apresentam
vómitos com o sangue deglutido. No decurso da
doença surgem anemia ferropénica moderada a
grave com palidez, taquicardia, prostração e
hemoptises. A figura 1 mostra sinais de hipocratismo digital por insuficiência respiratória
CAPÍTULO 90 Hemossiderose pulmonar
477
FIG. 1
Sinais de hipocratismo digital no contexto de hemossiderose
pulmonar. (NIHDE)
crónica no contexto de hemossiderose pulmonar.
Deve valorizar-se a tríade clássica: anemia
ferropénica, hemoptises e infiltrados alveolares
detectados pela radiografia do tórax.
Exames complementares
Uma vez que os macrófagos alveolares não
conseguem metabolizar o ferro da hemoglobina,
este acumula-se no seu interior provocando anemia
ferropénica com níveis de ferro sérico e medular
muito baixos. Assim, esta patologia é caracterizada
pelo paradoxo de uma anemia ferropénica com
ferro depositado no tecido pulmonar, o que
condiciona fibrose. A anemia é tipicamente
microcítica e hipocrómica com reticulocitose.
Os níveis de bilirrubina sérica estão aumentados
bem como a excreção urinária de urobilinogénio.
Em geral, após um episódio agudo há
leucocitose com desvio à esquerda (neutrófilos
imaturos no sangue periférico). Em cerca de 15 a
20% dos casos verifica-se eosinofilia.
Pela deglutição de saliva com sangue, a
pesquisa de sangue nas fezes pode ser positiva.
Em cerca de 20% das crianças há hepatoesplenomegália e linfadenopatia.
Na radiografia do tórax executada após uma
episódio agudo pode observar-se infiltrado alveolar uni ou bilateral, migratório, e que pode sofrer
remissão completa após a fase sintomática.
(Figura 2).
A tomografia axial computadorizada do tórax
FIG. 2
Hemossiderose pulmonar: radiografia do tórax (AP)
evidenciando opacidades dispersas em ambos os campos
pulmonares. (NIHDE)
(TAC) revela opacidades alveolares difusas de
predomínio inferior na fase aguda. (Figura 3).
Durante a fase aguda a cintigrafia pode
demonstrar sinais de hemorragia. A capacidade
de difusão do monóxido de carbono está aumentada (uma vez que este se liga aos eritrócitos
presentes nos alvéolos).
A broncoscopia com lavado broncoalveolar
pode revelar a presença de macrófagos com
depósito abundante de hemossiderina (apenas se
a hemorragia tiver ocorrido há mais de 2 ou 3
dias); no entanto, este achado apenas comprova a
ocorrência de hemorragia pulmonar e não a
etiologia. O exame cultural é negativo.
A negatividade doutros exames específicos
como ANA, ANCA, factor reumatóide, anticorpo
antifosfolípidos e anticorpos antimembrana basal
do glomérulo exclui certas formas secundárias.
478
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Tratamento
FIG. 3
Hemosiderose pulmonar: TAC torácica evidenciando
opacidades dispersas e sinais de bronquiectasias. (NIHDE)
O aspirado gástrico também pode conter
macrófagos com hemossiderina.
A biópsia pulmonar na forma idiopática é
característica e demonstra a ausência de deposição de imunoglobulinas ou complemento na
membrana basal alveolar. Este dado exclui
síndroma de Goodpasture.
A referida biópsia inicialmente deve ser feita
por fibroscopia (biópsia transbrônquica retirandose amostras de diferentes lobos e segmentos). Se
não for possível o diagnóstico por esta técnica,
deverão ser colhidas amostras maiores e a biópsia
deverá ser realizada por toracoscopia ou em
“pulmão aberto”.
O estudo da função pulmonar demonstra um
padrão de insuficiência respiratória restritiva
(pela fibrose) e obstrutiva (por irritabilidade
brônquica).
A detecção de autoanticorpos deve ser negativa.
Diagnóstico
Não existe qualquer achado patognomónico desta
entidade. Por isso, o diagnóstico baseia-se na
clínica, nas alterações radiológicas e na biópsia
pulmonar após exclusão de outra causa de
hemorragia pulmonar difusa e recorrente.
A tríade “achados radiológicos do tórax,
hemoptises e anemia ferrofénica” é sugestiva
como hipótese inicial, como foi referido.
Durante a fase aguda está indicada a utilização de
corticóides sistémicos (prednisona, 1mg/Kg/dia)
com repercussão na diminuição da morbilidade e da
mortalidade. Quanto ao seu uso a longo prazo com
doses baixas, dada a baixa incidência desta patologia,
não existem estudos controlados que comprovem a
sua eficácia, mas admite-se que poderão evitar
exacerbações e até prolongar a sobrevivência. Alguns
autores defendem o uso de imunossupressores (por
ex. ciclosfosfamida) associados à corticoterapia. Os
resultados, no entanto, variam conforme as séries de
doentes analisados.
A anemia pode ser corrigida com ferro excepto
numa fase mais avançada de doença crónica em
que a síntese de hemoglobina está suprimida. Em
certos casos pode ser necessária a transfusão de
concentrado eritrocitário.
Prognóstico
Cerca de cinquenta por cento dos doentes morre
dentro de 1 a 5 anos após o diagnóstico devido a
hemorragia pulmonar aguda ou insuficiência
respiratória progressiva.
2. SÍNDROMA DE HEINER
As crianças com a forma de hemossiderose
pulmonar associada a hipersensibilidade às proteínas do leite de vaca (síndroma de Heiner) têm um
quadro clínico típico de hemossiderose pulmonar
idiopática associado a rinite crónica, otite média
recorrente, sintomas gastrintestinais e atraso do
crescimento. A hipertrofia do tecido linfóide
nasofaríngeo pode ser suficientemente obstrutiva
conduzindo a cor pulmonale secundário.
A patofisiologia ainda não está totalmente
compreendida, mas algumas crianças têm
anticorpos (IgE) contra o leite de vaca e melhoram
após supressão do leite no regime alimentar. A
corticoterapia é útil, principalmente durante os
episódios agudos. Esta entidade tem melhor
progóstico do que a anteriormente descrita.
BIBLIOGRAFIA
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91
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Definição e importância do problema
idiopathic pulmonary haemosiderosis. Arch Dis Child
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A fibrose quística (FQ) é uma doença hereditária
multissistémica que resulta de mutações no gene
do CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), uma proteína transportadora que
se localiza nas membranas apicais das células
epiteliais de várias mucosas, nomeadamente da
via aérea, da via biliar, intestino, ductos pancreáticos, glândulas sudoríparas, entre outras.
Este transportador de membrana está relacionado com o transporte de iões; em caso de
ausência ou défice funcional, verifica-se aumento
da viscosidade das secreções. Daqui resulta a
disfunção multiorgânica, típica da FQ, com
repercussão mais importante no pulmão e
pâncreas, caracterizando-se essencialmente por
doença pulmonar crónica e insuficiência pancreática.
Aspectos epidemiológicos e genética
Trata-se da doença autossómica recessiva mais
frequente na população caucasiana com uma
incidência estimada de 1/1.600 a 1/2.500 entre
caucasianos (1/17.000 entre africanos e 1/90.000
entre asiáticos). Em Portugal uma pessoa em cerca
de 30 é portadora de uma mutação. Uma em cada
3600 crianças nasce com esta doença.
Estão descritas mais de 1.000 mutações do
gene da FQ no cromossoma 7, sendo no entanto
a mutação ΔF508 a que determina a deleção da
fenilalanina na posição 508, e a mais frequente
(corresponde a cerca de 67% dos casos de FQ em
todo o mundo, variando de região para região,
com uma frequência entre 45 e 55% no sul da
Europa).
480
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Fisiopatologia
As mutações do gene determinam alterações na
função com ausência ou diminuição da produção da
CFTR; consequentemente há alteração do transporte
transmembranar de cloro, bem como diminuição da
actividade dos canais de sódio das células epiteliais
da via aérea, de que resulta diminuição da secreção
de cloro e aumento da reabsorção de sódio.
Ocorrem ainda alterações estruturais na membrana
celular, com repercussão em várias funções da
mesma (por exemplo o aumento do número de
receptores para a Pseudomonas nas células epiteliais
das vias aéreas é uma das alterações ultraestruturais). Assim, o espectro de alterações
funcionais é vasto e complexo, estando a desvendarse progressivamente.
Por outro lado, admite-se que as alterações funcionais dependam da mutação envolvida, e as
manifestações clínicas variem consoante estas
alterações. Assim, diferentes mutações determinam quadros clínicos particulares, com gravidades
diferentes. Por exemplo, a mutação ΔF508, está
habitualmente associada a manifestações clássicas,
incluindo doença respiratória crónica e insuficiência pancreática, com consequente síndroma de má
absorção, e o genotipo ΔF508/R117H a um
fenotipo ligeiro. A síndroma de má absorção está
relacionada com o défice de secreção, quer enzimática, quer de bicarbonato. O défice de enzimas
pancreáticas é agravado pela deficiente alcalinização do conteúdo duodenal, com inactivação dessas
mesmas enzimas.
O genotipo não parece ser determinante em
termos de prognóstico.
Manifestações clínicas
No período neonatal pode manifestar-se como
íleo meconial (15% dos doentes), peritonite meconial, icterícia (com hiperbilirrubinémia directa
elevada) mais prolongada e importante do que o
habitual, ou alcalose hipoclorémica (resultante de
perda de sais). O referido quadro de oclusão
intestinal neonatal é quase patognomónico da FQ;
por isso torna-se obrigatória a investigação de FQ
em tal circuntância (tripsina imunorreactiva,
prova de suor logo que possível e/ou estudo
genético) – ver adiante.
As manifestações mais frequentes (51% dos
casos nos EUA) da FQ são respiratórias, nomeadamente sibilância recorrente e infecções respiratórias de repetição, com colonização sucessivamente por Staphylococcus aureus, Haemophilus
influenzae e Pseudomonas aeruginosa (colonização
crónica estabelecida com uma prevalência de
cerca de 80%, aos 18 anos).
A colonização por estes agentes pode classificar-se em intermitente e crónica (se houver isolamento bacteriano em 6 meses consecutivos). A
colonização por Pseudomonas aeruginosa começa
por ser intermitente e depois persistente, uma vez
que a bactéria tem a capacidade de adquirir uma
alteração da expressão génica que permite a produção de um biofilme que dificulta a sua eliminação (forma mucóide). Após colonização definitiva verifica-se deterioração acelerada da função
pulmonar. A colonização por este último agente é
influenciada por vários factores, nomeadamente o
genotipo, o sexo (as crianças do sexo feminino são
colonizadas mais precocemente), a presença de
insuficiência pancreática e a eficácia de isolamento dos doentes em cada centro.
Outro agente que pode colonizar as vias aéreas
dos doentes com FQ é a Burkholderia cepacea. A
infecção por este agente multirresistente aos
antibióticos associa-se a deterioração importante
da função pulmonar e a mau prognóstico, podendo manifestar-se de três formas diferentes: colonização crónica assintomática, deterioração progressiva e evolução rápida fatal.
Podem surgir infecções por outros agentes,
como Stenotrophomonas maltophilia, Achromobacter
xylosoxidans e Aspergillus fumigatus, muitas vezes
assintomáticas; um dos quadros é a chamada aspergilose broncopulmonar alérgica.
A infecção recorrente e/ou persistente pelos
germes microbianos referidos conduz a uma
resposta inflamatória intensa, com hipertrofia e
hiperplasia das glândulas secretoras e lesão progressiva das vias aéreas, com evolução para bronquiectasias e outras alterações irreversíveis do
tecido pulmonar.
Surge, assim, uma doença pulmonar crónica
obstrutiva, com insuficiência respiratória progressiva; são habituais os períodos de exacerbação da sintomatologia, nomeadamente com
tosse mais frequente, incremento de secreções
CAPÍTULO 91 Fibrose quística
brônquicas, agravamento da dificuldade respiratória, febre com perda de peso (superior a 5%),
hemoptises, e/ou agravamento radiológico e das
provas de função respiratória (diminuição do
volume expiratório máximo por segundo /VEMS
superior a 10% do valor basal e/ou da capacidade
vital forçada).
Outra complicação respiratória possível é o
pneumotórax espontâneo (5 a 8% dos casos de
FQ), que pode resultar de mecanismos valvulares
(obstrução de vias aéreas por secreções), com ruptura de espaços aéreos periféricos para a pleura.
Trata-se de uma situação com mortalidade significativa e alta taxa de recorrência.
Além das vias aéreas inferiores, também as
superiores são afectadas: sinusopatia e polipose
nasal, frequentes.
Em cerca de 2% dos doentes surge um quadro
clínico atípico, caracterizado apenas por doença
sinopulmonar crónica, sem insuficiência pulmonar e com prova de suor normal (cloro < 40
mEq/L) ou no valor limite (40 a 60 mEq/L),
através de iontoforese com pilocarpina.
Verifica-se igualmente na infância má progressão ponderal (cerca de 40% dos casos), relacionada com o maior consumo energético e com a
síndroma de má absorção resultante da insuficiência pancreática (em cerca de 85 a 90% dos
casos). Esta última conduz a diarreia crónica por
má absorção (dejecções volumosas, fétidas e gordurosas), edema relacionado com a hipoproteinémia, anemia, défice de vitaminas lipossolúveis, com aumento do tempo de protrombina
(por défice de vitamina K), neuropatia periférica,
encurtamento de semi-vida dos eritrócitos (por
défice de vitamina E), etc.. De referir que são também característicos os episódios recorrentes de
pancreatite aguda.
Mais rara e tardiamente poderá surgir diabetes
mellitus em relação com a lesão pancreática crónica (3% das crianças 14% dos adultos).
Outras manifestações frequentes são o refluxo
gastro-esofágico, a síndroma de oclusão intestinal
distal (10% dos casos), o prolapso rectal (< 1% de
pacientes), a litíase biliar (5%), a desidratação
hiponatrémica ou alcalose metabólica graves, o
atraso pubertário e a atrésia do canal deferente
com infertilidade masculina (azoospermia em >
95% dos casos). Nas adolescentes pode surgir
481
amenorreia secundária. Raramente surge cirrose
biliar com hipertensão portal.
Diagnóstico
O diagnóstico é efectuado no primeiro ano de vida
em 70% dos casos, e até aos 8 anos em 90%.
Existem situações de diagnóstico tardio, associadas a quadros clínicos menos exuberantes.
É feito com base na clínica (uma ou mais características fenotípicas clássicas) e história familiar
(consanguinidade, irmão ou primo em primeiro
grau com FQ), e/ou resultado do rastreio neonatal
positivo e confirmado por duas provas do suor
positivas (doseamento no suor de Cl > 60 mEq/L),
e/ou detecção de duas mutações do gene da
fibrose quística, e/ou evidência de anomalias características do transporte do ião cloro através do
epitélio nasal – por método biofísico. (Quadro 1).
De referir que as provas do suor podem
apresentar resultados falsos positivos e falsos
negativos, tal como é sintetizado no Quadro 2.
Alguns genotipos (3849+10KbC>T) estão
associados a valores normais de cloro no suor.
Em relação ao estudo genético por ADN
salienta-se que: habitualmente apenas são
estudadas as mutações mais frequentes, que
correspondem a aproximadamente 90% das
existentes; em aproximadamente 1% dos casos de
fibrose quística não são detectadas mutações; e em
cerca de 18%, apenas um dos genes mutantes é
identificado.
Pode ainda existir mais do que uma mutação
QUADRO 1 – Diagnóstico de FQ
Presença de sinais clínicos típicos
(respiratórios, gastrintestinais ou génito-urinários) ou
Familiar próximo com FQ ou
Rastreio neonatal positivo
+
2 provas de cloro no suor > 60 mEq/L ou
Identificação de 2 mutações FQ ou
Alteração da diferença dos potenciais nasais
482
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Prova do suor em diversas
situações clínicas
1. VALORES FALSOS POSITIVOS
Causas metabólicas
Fucosidose
Glicogenose tipo I
Mucopolissacaridoses
Defice da desidrogenase da glicose 6-fosfato
Hipotiroidismo
Diabetes insípida resistente à vasopressina
Insuficiência supra-renal
Colestase familiar
Hipoparatiroidismo familiar
Anorexia nervosa
Disfunção autonómica
Doença celíaca
Hipogamaglobulinémia
Doenças da pele e glândulas sudoríparas
Má-nutrição
Displasia ectodérmica
Dermite atópica
Causas iatrogénicas
Infusão de prostaglandinas E1
2. VALORES FALSOS NEGATIVOS
Erros metodológicos
Amostra insuficiente
Evaporação parcial da amostra
Erros de cálculo
em cada gene, com múltiplas combinações
possíveis, que contribuem inclusivamente para
modificar o fenotipo. Nalguns países, laboratórios
comerciais testam hoje entre 30-80 das mutações
de CFTR mais comuns. A metodologia utilizada
poderá ser a sequenciação completa da zona
codificante dos 27 exões do gene CFTR com as
regiões intrónicas adjacentes.
O estudo da chamada diferença de potenciais
nasais, método biofísico mais preciso que a prova
de suor para detecção de alterações no
funcionamento do CFTR, é muito complexo e
moroso, não se efectuando presentemente em
Portugal.
Outros exames complementares importantes
incluem os estudos da função pancreática,
nomeadamente através dos doseamentos de
gorduras fecais (72 horas), da quimiotripsina e da
elastase fecais, entre outros.
O doseamento da tripsina imunorreactiva
sérica (TIR) nos recém-nascidos (utilizando o cartão
para a prova de Guthrie no âmbito do diagnóstico
precoce) e a detecção de azoospermia obstrutiva
após a puberdade (análise do esperma e ecografias, com confirmação por biópsia testicular),
também podem contribuir para o diagnóstico.
Outro aspecto quase patognomónico da fibrose
quística é a pansinusite, detectada por radiografia
ou tomografia axial computadorizada dos seios
perinasais.
Actualmente é já possível o diagnóstico prénatal, por pesquisa das mutações em células fetais
obtidas por biópsia das vilosidades coriónicas, ou
amniocentese.
Nalguns países é efectuado o rastreio neonatal
com base no doseamento de TIR.
Vigilância e tratamento
A FQ implica um acompanhamento regular da
criança e família, por uma equipa multidisciplinar, que inclui pediatra com experiência em FQ,
médico de família enfermeira, dietista, fisioterapeuta e psicóloga, entre outros.
Nesta perspectiva está indicada a vigilância
regular trimestral englobando:
Avaliação seriada de determinados parâmetros
1. altura (deve manter-se acima do percentil 5)
2. peso (sinal de alarme: perda de peso em 2
meses consecutivos)
3. índice nutricional (que se deve manter
>90%) de acordo com a fórmula
Peso actual (Kg)
x 100
Peso ideal para a altura
(Nornal – 90 a 110%; baixo peso – 85 a 89%; má-nutrição
ligeira – 80 a 84%; má-nutrição moderada – 75 a 79%; mánutrição grave – <75%)
4. sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos,
saciedade precoce, dor abdominal)
5. sintomas respiratórios (tosse, expectoração,
tolerância ao esforço)
6. sintomas sugestivos de diabetes (poliúria,
polidipsia, perda de peso súbita)
CAPÍTULO 91 Fibrose quística
7. oximetria para avaliação de saturação de
O2-Hb por método transcutâneo (em todas
as consultas)
8. provas de função respiratória (periodicidade
de 3 a 6 meses, após os 5 anos)
9. análises de sangue: velocidade de sedimentação, hemograma, transaminases, fosfatase
alcalina, tempo de protrombina, amilase, glicémia em jejum, ureia, creatinina, ácido
úrico, ionograma sérico, cálcio, fósforo,
gasometria, electroferese das proteínas,
colesterol, triglicéridos, vitaminas A, D e E,
ferro, ferritina, transferrina, imunoglobulinas, RAST para Aspergillus (anualmente)
10. exame cultural da expectoração (3/3 meses
e durante as exacerbações respiratórias)
11. radiografia de tórax póstero-anterior e de
perfil (de 2 em 2 ou 4 em 4 anos, em
doentes estáveis)
12. TAC de alta definição de tórax (eventualmente de 5 em 5 anos)
13. ecografia abdominal (anual)
14. vigilância de efeitos tóxicos da terapêutica
(audiograma, função renal)
Suprimento nutricional os cálculos são feitos
na base de 150% das necessidades calóricas de uma
criança saudável da mesma idade e sexo) incluindo
suplementos vitamínicos, vitaminas liposolúveis
A, D, E e K, suplementos de enzimas pancreáticas –
500 a 2.000 unidades de lipase/kg/refeição) e
inibidores da secreção ácida gástrica (inibidores da
bomba de protões e antagonistas H2). Pode
eventualmente ser necessário proceder a
gastrostomia ou jejunostomia para alimentação por
débito contínuo durante a noite rendibilizando o
suprimento nutricional.
Prevenção de infecções respiratórias através
de vacinação anual contra o vírus influenza e
contra pneumococo (vacina conjugada ou polissacarídea). Deve evitar-se infantário antes dos 12
meses. Deve evitar-se o contacto entre doentes
com fibrose quística colonizados por agentes
microbianos diferentes.
Promoção do processo de depuração das
vias aéreas através de cinesiterapia respiratória,
broncodilatadores fluidificantes das secreções e
mucolíticos (N-acetil cisteina, DNAse recombinante). Nalguns centros tem sido aplicada a
inalação com soluto salino hipertónico.
483
Diminuição da inflamação das vias aéreas
com anti-inflamatórios (maior benefício abaixo
dos 15 anos de idade e em doentes colonizados
por Pseudomonas aeruginosa), nomeadamente com:
1 – prednisolona em dias alternados (reduz o
declínio da função pulmonar, mas não
melhora o quadro clínico, nem diminui o
número de hospitalizações; por outro lado
aumenta a incidência de diabetes, de atraso
no crescimento e de cataratas. Não está
provada a eficácia de corticóides inalados.
2 – ibuprofeno em altas doses (risco de
hemorragia digestiva e de nefrotoxicidade).
Nalguns centros o ibuproferro administrado
durante períodos longos (4 anos) acompanhado de doseamento sérico com nível 50100 µg/mL contribuiu para diminuir a
gravidade da doença respiratória.
3 – azitromicina (demonstrou-se, com efeito a
acção anti-inflamatória deste macrólido
acompanhando a acção de diminuição da
virulência da P. aeruginosa.
Outros fármacos estão em investigação,
nomeadamente, inibidores da elastase ou outras
proteases (alfa 1-antitripsina, entre outros fármacos).
Tratamento das infecções respiratórias
crónicas com antibioticoterapia cíclica ou diária,
para supressão do crescimento bacteriano e das
exacerbações (Quadro 3): a antibioticoterapia deve
ser dirigida sempre que é isolado um agente
microbiano nas secreções respiratórias, mas pode
ser empírica (especialmente nos lactentes em que
é difícil obter amostras adequadas). Muitas vezes
são isolados vários agentes, sendo necessária
antibioticoterapia múltipla.
Existem estudos que defendem a terapêutica
(incluindo terapêutica por via endovenosa) no domicílio; e outros que referem uma menor eficácia,
maior duração e menores intervalos entre ciclos de
antibioticoterapia com a terapêutica em ambulatório.
A antibioticoterapia por via IV poderá ser
efectuada no domicílio em situações de estabilidade clínica, apoio de enfermagem de cuidados
continuados, vontade e esclarecimento dos
pais/família no presuposto de que tal modalidade
de tratamento tem início no hospital. Nalguns
centros utiliza-se a antibioticoterapia no domicílio
484
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Antibioticoterapia na fibrose quística
Agente isolado
Antibioticoterapia em Ambulatório
Antibioticoterapia em Internamento
Haemophilus influenzae
Amoxicilina: 50-100mg/kg/d, 8/8h, 2 a 3
semanas, PO
Se β-lactamase (+):
Cefuroxima-Axetil: 30-40mg/Kg/d, 12/12 h
2-3 semanas PO
Flucloxacilina: 50-100 mg/kg/d, 6/6 ou
8/8h, 2 a 3 semanas, PO
Amoxicilina - ácido clavulânico: 150
mg/kg/de amoxicilina 8/8 h, 14 dias, ev
ou
Cefuroxima: 100-150mg/Kg/d, 8/8 h, 14
dias, ev
Flucloxacilina: 100 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8
h, 14 dias, ev
Se resistente:
Vancomicina: 40 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8 h,
14 dias, ev
Ceftazidima: 150-300 mg/kg/d, 8/8 h)
(máx 6 gr)+ Tobramicina: 10 mg/kg/d,
8/8 ou 12/12 h, 14 dias, ev
Staphylococcus aureus
Pseudomonas aeruginosa
Clindamicina: 20-30 mg/kg/d, 6/6 h, 2
semanas , PO
Colistina: 1 a 2 milhões U, 12/12 h, em
aerossol + Ciprofloxacina, 30 mg/kg/d,
12/12 h, 3-4 semanas, PO
Infecção crónica
Tobramicina: 300mg/kg, 12/12 h, em
aerossol, ciclos de 28 dias “on–off”
Abreviaturas: PO: “per os”; ev: via endovenosa
por via inalatória (aerossóis) tendo validade as
regras definidas para terapêutica IV. Existe mais
experiência com a tobramicina.
A terapêutica antibiótica frequente implica a
possibilidade de aparecimento de estirpes resistentes e de toxicidade (renal, neurológica entre outras).
Outras medidas
Ácido urso-desoxicólico
Para retardar a progressão da lesão hepática, o
ácido urso-desoxicólico tem utilidade em pacientes com elevação das transaminases ou sinais de
hipertensão portal.
Terapêutica da insuficiência respiratória
com oxigenoterapia, ventilação não invasiva e, em
situações graves, transplante cardiopulmonar.
Terapêutica da oclusão intestinal (íleo
meconial ou síndroma de oclusão intestinal distal)
com N-acetilcisteína, clisteres hiperosmolares
(gastrografina) ou intervenção cirúrgica.
Transplante hepático
Poderá estar indicado o transplante hepático em
situações graves.
Infecção crónica
Ciclos de 4/4 meses
Ceftazidima: 150-200 mg/kg/d, 8/8 h +
Tobramicina: 10 mg/kg/d, 8/8 ou 12/12
h, 14 dias, ev
Prognóstico
O prognóstico embora muito melhor em relação a
décadas anteriores graças a um diagnóstico mais
precoce, a mais adequado suporte nutricional, e a
terapêutica antibiótica mais agressiva, é ainda
reservado.
Trata-se de uma doença crónica com importante morbilidade e mortalidade, que cursa com
vários episódios de agudização e múltiplos internamentos, conferindo uma esperança de vida
limitada à terceira década de vida. É de referir que
a sobrevida é inferior no sexo feminino, embora
existam estudos demonstrando que o género não
influencia a esperança de vida.
O agravamento das provas de função respiratória constitui o principal factor de mau
prognóstico, e a insuficiência respiratória a principal causa de morte.
Como medidas em fase experimental, que
são promissoras, citam-se a vacina anti-Pseudomonas aeruginosa, administração de antiprotease em aerossol, e a terapia génica, entre
outras.
CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória
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Na fisiopatologia respiratória da criança, para
além das doenças próprias do grupo etário, há
que considerar a sua exposição potencial a todos
os agentes causadores de doença respiratória nos
adultos. Por outro lado, os mecanismos de resposta broncopulmonar aos agentes agressores na
criança são diferentes, estando condicionados
pelas imaturidades anatómica, funcional e
imunológica. Se doenças como a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) e doenças com
supuração são comparativamente mais raras na
criança, (excepto a fibrose quística e a doença de
cílios imóveis) a maior susceptibilidade a algumas
doenças víricas e bacterianas com grande resposta
secretora e inflamatória pode condicionar alterações estruturais broncoalveolares numa fase
maturativa facilitando o aparecimento de sequelas. Por outro lado, tal resposta inflamatória em
vias aéreas de menor dimensão poderá explicar a
frequência da sibilância já desde a primeira infância, chegando alguns estudos a referir a sua ocorrência em 40% do universo deste grupo etário. Daí
a importância da reabilitação respiratória
pediátrica (Rrp) definida como um conjunto de
acções duma equipa interdisciplinar dirigidas à
criança com doença respiratória com o objectivo
de restaurar a anatomia e a função pulmonares,
diminuir a incapacidade, aumentar a independência individual e a integração social, e diminuir a
frequência das exacerbações e dos internamentos
hospitalares.
Na Rrp aplicam-se uma série de técnicas como
a cinesiterapia respiratória, a inaloterapia, a
readaptação ao esforço, a cinesiterapia vertebral,
etc.. Como particularidade da Rrp está o facto de
486
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
os seus métodos estarem em grande parte condicionados pela capacidade de colaboração da criança. Tal colaboração está intimamente ligada à
sua idade, e depende do entendimento que aquela tem do que se lhe pede e da sua capacidade de
repetir o gesto. Tal capacidade vai, em geral, mas
não de modo uniforme, aumentando ao longo dos
anos. Crianças há colaborando precocemente no
que lhes é solicitado, e outras com perturbação do
desenvolvimento em que isso não é possível. Tal
facto exigirá uma grande perícia do técnico de
reabilitação com utilização de manobras em que o
carácter passivo e activo-assistido será predominante.
Para um funcionamento eficaz da função respiratória é necessário um conjunto de três
condições: vias aéreas permeáveis que permitam a
passagem do ar desde o exterior até aos pulmões;
a integridade da caixa torácica associada à normal
acção muscular que lhe permita funcionar como
bomba inspiradora e expiradora do ar respondendo ao estímulo respiratório central com os seus
mecanismos reguladores; uma correcta relação
ventilação/ perfusão o que implica um adequado
suprimento de sangue pela circulação pulmonar
realizando-se as trocas gasosas através duma normal barreira alvéolo-capilar.
A Rrp actua principalmente na restauração da
primeira das condições acima enunciadas, menos
na segunda e só indirectamente procura interferir
na terceira. Para conseguir tais objectivos a Rrp
utiliza as estratégias de limpeza das secreções das
vias aéreas, de treino dos tempos inspiratório,
expiratório e seu sincronismo, e de utilização de
O2 como terapêutica, promovendo a readaptação
ao esforço.
Actuação prática
Permeabilização das vias aéreas. É fundamental
manter a permeabilidade das vias aéreas e, no que
diz respeito à reabilitação das doenças broncopulmonares, será quase invariavelmente, a primeira
acção a promover. Sem a manutenção duma via
aérea minimamente permeável será difícil avançar
para outras técnicas. O aumento das secreções
brônquicas acontece frequentemente como resultado de múltiplas situações patológicas afectando
a árvore tráqueo-brônquica e o parênquima pul-
monar como as laringotraqueobronquite, bronquiolite, pneumonia, bronquiectasia e asma brônquica, sobretudo na fase secretora.
Na fibrose quística a presença de secreções
espessas e muitas vezes infectadas é uma constante e um factor fisiopatológico fundamental na
evolução da doença.
Situação particular é o caso das unidades de
cuidados intensivos. Como se sabe, um dos efeitos
secundários da ventilação mecânica (iatrogénico)
é o aumento da produção da muco e a sua acumulação por impedimento dos mecanismos fisiológicos de limpeza. Em qualquer situação em que
for necessária a entubação endotraqueal e/ ou a
ventilação mecânica, mesmo sem doença broncopulmonar de base, é fundamental promover
uma adequada cinesiterapia respiratória sendo
insuficiente a simples aspiração do tubo endotraqueal. Todas as situações que cursam com
retenção e espessamento das secreções criam as
condições para o aparecimento de sobreinfecções
e o desenvolvimento de atelectasias com desequilíbrio da relação ventilação/ perfusão concorrendo para acentuar as alterações gasométricas que
se somam às da doença base. Neste enquadramento se percebe a importância desta etapa da
Rrp. Situações há em que a limpeza eficaz e criteriosa das secreções brônquicas é o objectivo principal, quase único da intervenção da Rrp.
A maneira como a cinesiterapia respiratória
consegue restaurar a permeabilidade das vias
aéreas depende dum conjunto de técnicas
próprias exigindo treino e arte na sua aplicação a
um grupo etário que vai desde o nascimento à
adultícia e cuja descrição ultrapassa os objectivos
deste livro.
O primeiro passo é promover uma adequada
humidificação das secreções, sobretudo nas situações em que estas se apresentam secas e aderentes.
Pode ser conseguido tal desiderato na criança com
uma abundante ingestão de líquidos, fluidificantes ou através da humidificação do ar inalado.
De seguida promove-se a libertação e mobilização
de secreções podendo, para o efeito, ser utilizadas
técnicas vibratórias e de percussão cujos efeitos
acessórios devem ser rigorosamente ponderados.
Com as secreções soltas nas vias aéreas há que
promover a sua deslocação da periferia para a orofaringe a partir da qual podem ser deglutidas ou
CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória
expelidas. Tal pode ser conseguido com técnicas
de estimulação da tosse eficaz, aceleração do
fluxo expiratório, drenagem postural, drenagem
autogénica, etc.. Estas técnicas devem ser utilizadas na sua exigência, duração e frequência de
acordo com a criança e a situação a tratar. Por
outro lado, nas crianças com dificuldade respiratória ou com alterações gasométricas presentes
ou latentes, todas estas técnicas deverão ser executadas com monitorização da saturação em O2
que pode ser efectuada, de forma cómoda com
pulsoxímetro, ponderando a necessidade do
ajuste ou introdução de suplemento de O2. Uma
respiração progressivamente menos rude a caminho da normalidade, e mesmo uma subida dos
valores da saturação em O2, podem ser sinais de
cinesiterapia eficaz.
Melhoria da capacidade inspiratória. A inspiração é, em condições normais, a fase activa da respiração com preponderância do papel do diafragma. Excluindo as doenças neuromusculares, são
raras as situações em que há um verdadeiro défice
de força muscular dos músculos inspiratórios.
Entre estas estão as das crianças sujeitas a longos
períodos de ventilação mecânica em que poderá vir
a instalar-se um verdadeiro défice por desuso.
Assim, para a melhoria da capacidade respiratória,
pode justificar-se a inclusão dum cuidadoso programa de fortalecimento do diafragma e dos intercostais externos através de manobras de facilitação
e cargas externas manuais ou mecânicas. O que
acontece na esmagadora maioria das situações é
uma incoordenada utilização destes músculos, tornando-se fundamental um programa de correcção
das assinergias ventilatórias. Nas doenças neuromusculares da primeira infância em que haja
tendência a baixa CV (capacidade vital) pode intalar-se uma menor expansibilidade da parede torácica por defeito com síndroma restritiva. Nesta
patologia os objectivos essenciais da ajuda ventilatória externa são manter a distensibilidade pulmonar e a mobilidade torácica.
Melhoria da função expiratória. A função
dos músculos expiratórios (abdominais e intercostais internos) é sobretudo importante no
mecanismo da tosse e no exercício físico. Para
além do treino em força (por meio do uso de
objectos e aparelhos de treino de sopro) deve ser
procurada a eficácia no treino da tosse produtiva.
487
Em toda as patologia em que a acumulação de
secreções seja um problema, sobretudo quando a
tosse é pouco eficaz, será um dos treinos a realizar.
Se na fase expiratória se verificar um encerramento precoce das vias aéreas (como no enfisema ou
na fase de crise da asma) será treinada a chamada
expiração “filada” (com lábios semicerrados),
lenta e suave, para criar uma pressão expiratória
positiva activa e assim facilitar o tempo expiratório combatendo a hiperinsuflação.
Correcção das assinergias ventilatórias. Em
muitas das patologias respiratórias há perturbação da sinergia dos movimentos respiratórios.
Pode observar-se uma deficiente utilização do
diafragma, por vezes em situação funcional prejudicada (em posição de distensão, como nos
quadros de hiperinsuflação), esboçando um movimento paradoxal de ascensão na fase inspiratória.
Em situações de desadequada utilização dos músculos inspiratóros acessórios, como é frequente
nas crises de dificuldade respiratória, há um indevido desvio da predominância inspiratória para
os andares superiores do tórax, com horizontalização dos arcos costais e anteversão dos ombros,
acrescentando-se mais um factor de desvantagem
ventilatória a um quadro de dificuldade. A
tendência do asmático em forçar a inspiração
associada ao encurtamento e ineficácia da expiração tem como resultado a distensão pulmonar
com crescente deficiência ventilatória.
A cinesiterapia utiliza técnicas de relaxamento,
de posicionamento e de massagem para diminuir
a tensão muscular, diminuindo o excessivo gasto
energético associado à incoordenada utilização
muscular; promove também a transferência da
parte mais importante da mecânica ventilatória do
andar torácico superior para o andar abdóminodiafragmático; e utiliza o treino de movimentos
inspiratórios submáximos, nasais e expiratórios
suaves e prolongados com deslocação do volume
corrente para o volume de reserva expiratória. Em
situações sequelares de doenças pleurais com
retracção e assimetrias torácicas pode lançar-se
mão de técnicas de correcção postural, cinesiterapia vertebral e tonificação muscular específicas.
Todos estes treinos são inicialmente efectuados e
aprendidos em repouso e, em fase posterior, são
aplicados ao exercício e na realização das actividades de vida diária.
488
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Oxigenoterapia. O oxigénio como meio terapêutico é também utilizado em reabilitação tal
como por outras especialidades que tratam estes
doentes. São diversas as patologias respiratórias
que cursam com hipoxémia (insuficiência respiratória) aguda ou crónica a que se pode associar
ou não a hipercápnia (insuficiência ventilatória).
A baixa crónica de pressão arterial de oxigénio
(PaO2) na criança está habitualmente associada a
hipertensão pulmonar, a policitémia e a restrição
de crescimento estaturo-ponderal. Interferindo no
desenvolvimento das funções mentais superiores
e na capacidade de esforço físico, limita o direito
fundamental da criança a brincar, criando incapacidade e desvantagem perante os seus pares. A
correcção da hipoxémia na criança é, assim, uma
necessidade ainda mais premente que no adulto.
Deve procurar manter-se a PaO2 entre 65 e 90
mmHg e uma saturação em O2 acima 90%.
Especial atenção deve ser prestada ao período
nocturno e ao esforço físico. Durante a noite, por
menor eficácia do centro respiratório e prejuízo
funcional do diafragma, para além do agravamento da hipoxémia pode vir a associar-se a hipercápnia o que coloca o problema na forma de administração do O2. A causa para a dessaturação arterial durante o exercício pode ser múltipla e de difícil caracterização se não for procurada durante o
mesmo. Tal pode ser conseguido, nas crianças
capazes de colaborar, através duma prova de
avaliação cárdio-respiratória, como adiante se
desenvolve. O suplemento de O2 deverá ser
aumentado de forma a permitir uma maior tolerância ao esforço. No dia a dia da criança a utilização de oxigénio em meios portáteis (garrafas
transportáveis) e disponibilizado através da via
nasal facilita a sua actividade e melhor integração
entre os seus pares.
O exercício físico. Como já foi referido, a
actividade física, muitas vezes limitada na criança
com doença respiratória, é um dos factores mais
importantes no desenvolvimento psicomotor. A
criança tem cansaço e dispneia e tem tendência
para o sedentarismo quando não são os adultos a
limitar-lhe a actividade. Com efeito, um programa
de exercício físico correctamente aplicado melhora a capacidade de esforço, diminui o cansaço
para o mesmo esforço, facilita a integração da criança no seu grupo, melhora a sua auto-estima
contribuindo para o seu desenvolvimento psicomotor.
O exercício físico usado desta forma terapêutica em crianças com patologia respiratória deve ser
prescrito como um “medicamento”. Pode ter contra-indicações, alguns riscos, devendo ser doseado individualmente e com precauções para cada
criança no pressuposto de que muitas dos problemas clínicos respiratórios podem ser acompanhados de doença cardiovascular primária ou
secundária.
Nas crianças com doença respiratória ou cardíaca que apresentem dispneia ou incapacidade de
esforço, e a quem se queira indicar exercício físico
duma forma adaptada e mais segura, aconselha-se
a realização duma prova de esforço em unidade de
avaliação cárdio-respiratória com equipamento
apropriado de monitorização e pessoal treinado.
Ao longo da prova de esforço são registados e
vigiados os sinais vitais pulso,pressão arterial, respiração), ECG, consumo de O2, produção de CO2,
QR (quociente respiratório), equivalentes ventilatórios, ventilação/minuto e taxa metabólica. A
evolução da prova e a interpretação dos resultados
permite, na maior parte dos casos, identificar se a
causa da limitação ao exercício é pulmonar, cardíaca, por broncospasmo, etc.. Os parâmetros registados durante a prova servirão de base para a prescrição do tipo de exercício indicado caso a caso
conforme a tolerância. Esta prova pode servir
igualmente para avaliar o sucesso de algumas
intervenções terapêuticas, nomeadamente nos
casos de transplante pulmonar ou cardíaco.
Nota final
Não há estudos comparativos sobre a eficácia da
reabilitação respiratória nas crianças com doença
pulmonar, o que pode estar associado à dificuldade na individualização dos diversos componentes implicados na acção terapêutica. Está
provado, contudo, que a reabilitação melhora o
bem-estar das crianças com esta patologia, diminui
a taxa de hospitalizações e, associada a outros programas terapêuticos, prolonga a sobrevida.
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489
PARTE XV
Dermatologia
492
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
93
INTRODUÇÃO À
DERMATOLOGIA PEDIÁTRICA
António Pinto Soares
A Dermatologia Pediátrica, com um grande incremento nos últimos trinta anos, nalguns países
constitui uma subspecialidade em plena expansão.
Na realidade, as particularidades da pele num
período da vida caracterizado pelo crescimento e
desenvolvimento, a importância das manifestações dermatológicas no reconhecimento da
maior parte de doenças genéticas complexas, bem
como todas as manifestações mais comuns neste
grupo etário, ou ainda a especificidade das subtilezas clínicas, justificam o interesse e a sua individualidade.
Salientando-se que a epiderme constitui a
camada mais importante da pele, a este propósito
cabe especificar algumas das referidas particulariedades: diminuição da espessura do extracto córneo, um maior número de folículos vellus, menor
poder tampão e maior relação superfície/volume
cororal, tanto mais marcados quanto menor a
idade da criança. Tal implica maior susceptibilidade a agentes externos, e maior perda de
líquidos transpidérmica.
Acresce ainda, o grande número de queixas na
área da Dermatologia, o impacte no desenvolvimento e auto-estima das doenças cutâneas na criança e em particular na adolescência; e, por último, a necessidade de um tratamento adequado às
características da pele no recém-nascido, na criança e no adolescente.
Nos capítulos seguintes, cuja bibliografia é
apresentada em conjunto no final da Parte XV, são
abordados os problemas dermatológicos com que
o médico de família e o pediatra mais frequentemente lidam, e cuja orientação e terapêutica são
considerados, dum modo geral, do respectivo foro
na ausência de complicações. Alguns dos problemas dermatológicos são também abordados
noutras partes do livro, designadamente
(Infecciologia, Imunoalergologia, etc.).
CAPÍTULO 94 Dermatite seborreica
94
DERMATITE SEBORREICA
Teresa Fiadeiro
Definição
Define-se seborreia como aumento do teor em lípidos na superfície cutânea; trata-se dum estado fisiológico constitucional da pele (seborreica) que fica
lisa, brilhante, untuosa, com dilatação dos poros
foliculares, por vezes acompanhada de ligeiro
eritema difuso. Localiza-se nas regiões em que as
glândulas sebáceas são mais numerosas e desenvolvidas – as regiões seborreicas: couro cabeludo,
fronte, pirâmide nasal, pregas axilares e inguinais.
A pele seborreica é com frequência sede de
diversas dermatoses que por ela estão condicionadas ou que dela dependem, como sucede na
dermatite seborreica, caracterizada por lesões
eritemato-descamativas, de escamas amarelas e
untuosas, cujos limites são mais ou menos difusos
ou, em regra, bem marcados, circulares ou circinados, pouco ou não pruriginosas.
493
terceiro mês, prolongando-se até cerca dos 6 meses e
podendo reapareccer no adolescente. Iniciam-se,
habitualmente, com lesões descamativas do couro
cabeludo, a chamada «crosta láctea» (Figura 1) constituída por crostas amareladas, untuosas, mais ou
menos aderentes ao couro cabeludo que frequentemente atingem também a região retroauricular. A
erupção pode afectar a face com lesões eritematosas
e descamativas localizadas predominantemente na
fronte, supracílios e sulcos nasogenianos (Figura 2).
A região cervical, sobretudo nas pregas, é um
local também frequentemente atingido.
As lesões podem envolver outras áreas do
corpo (Figura 3), particularmente zonas intertriginosas e pregas de flexão, como o umbigo, axilas,
pregas inguinais e anogenitais. São geralmente
FIG. 1
Crosta láctea (dermite ou dermatite seborreica).
Etiopatogénese
A etiopatogénese ainda não está totalmente esclarecida. Sendo uma doença que afecta preferencialmente as “áreas seborreicas” do couro cabeludo,
face e pregas de flexão proximais, crê-se que possa
haver alguma relação com a secreção sebácea,
nomeadamente com uma alteração qualitativa
desta, nas crianças afectadas.
Também o papel de agentes microbianos, como
a Candida albicans e o Pityrosporum ovale, parece não
ser desprovido de importância.
Manifestações clínicas
As lesões surgem, em geral, entre a segunda e a sexta
semanas de vida e só excepcionalmente depois do
FIG. 2
Eritema e descamação amarelada da face (dermite seborreica).
494
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 3
Lesões eritematosas das pregas de flexão (dermite seborreica).
secas mas podem ser exsudativas, sobretudo
quando atingem as pregas.
Caracteristicamente não são pruriginosas e
não perturbam a criança, a qual não evidencia
qualquer alteração do estado geral.
No adolescente as lesões localizam-se no
couro cabeludo, sobrancelhas, pestanas e região
do manúbrio esternal (tórax); é o aspecto de localização em V.
Diagnótico diferencial
O diagnóstico é clínico e a distinção deve fazer-se
com:
– dermatite atópica – por vezes a destrinça é
difícil; não há estigmas de atopia e a ausência
de prurido é característica importante. Mas,
ocasionalmente, a dermatite seborreica pode
progredir para dermatite atópica;
– psoríase – as lesões podem ser semelhantes e
será a evolução a ajudar na distinção;
– doença de Letterer-Siwe – raramente, na fase
em que a doença afecta essencialmente as pregas, sobretudo as inguinais, poderá haver alguma confusão diagnóstica; o aparecimento de
lesões papulares e purpúricas permitirá a distinção.
Tratamento
Estão indicados produtos com acção emoliente,
tanto no banho diário, como em aplicação tópica
após este.
Para a remoção das crostas, para além dos agentes emolientes de limpeza, podem utilizar-se óleos
minerais; se forem mais aderentes podem usar-se
agentes com acção queratolítica, como por exemplo,
vaselina salicilada com ácido salicílico em baixas
concentrações (2-3%) e por períodos curtos de contacto com a pele dado o risco de intoxicação (salicilismo). Seguidamente a lavagem com champôs de
tratamento (por exemplo, com cetoconazol ou ácido
salicílico).
Se as lesões forem mais inflamatórias poderão
usar-se corticóides tópicos de baixa potência
(hidrocortisona a 1%) em curtos períodos. No caso
de sobreinfecção, nas áreas intertriginosas poderá
ser necessário o recurso a agentes antibacterianos
ou a antifúngicos tópicos.
Prognóstico
A dermatite seborreica é uma doença benigna e
autolimitada que, muitas vezes, cura espontaneamente em poucas semanas.
CAPÍTULO 95 Dermatite atópica
95
DERMATITE ATÓPICA
Maria João Paiva Lopes
Definição e importância do problema
A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crónica exsudativa e pruriginosa de
expressão cutânea muito frequente na infância.
Pode ser provocada por agentes endógenos e
exógenos.
A sua prevalência tem vindo a aumentar nos
últimos anos, sobretudo nos países mais desenvolvidos, (cerca de 10 – 15% em crianças com menos
de 5 anos). Alguns estudos do Norte da Europa referem valores mais elevados, atingindo 20%.
Este aumento de prevalência tem sido atribuído a vários factores, como a poluição, maior
exposição a ácaros, aditivos alimentares, diminuição da prevalência do aleitamento materno e
maior acuidade diagnóstica.
Tal como foi referido no capítulo 66 admite-se
hoje como mais correcta a designação de síndroma eczema/dermatite atópica (sigla: SEDA);
alguns autores consideram os termos dermatite
atópica e eczema atópico sinónimos.
Etiopatogénese
Existe uma associação entre a DA e outras
doenças, como asma e rinite alérgica; os mecanismos patogénicos envolvidos nestas patologias
são em larga medida semelhantes, sendo frequente a agregação familiar. A importância da
genética na etiologia da DA está demonstrada em
vários estudos, nomeadamente comparando a
incidência em gémeos monozigóticos com a que
se verifica em gémeos dizigóticos e outros
irmãos; foram descritas alterações genéticas relevantes nos cromossomas (3q21, 1q21, 17q25 e
20p), com efeitos na inflamação e imunidade
495
cutâneas; vários aspectos permanecem, porém,
obscuros e continuam ainda em investigação.
Verifica-se na pele destes doentes uma colonização constante por Staphylococcus aureus, o que
facilita a instalação de quadros de impétigo.
Esta colonização tem ainda um papel relevante
na manutenção de processos inflamatórios crónicos através da estimulação directa de linfócitos T
pelos superantigénios que estas bactérias produzem. Algumas proteínas estafilocócicas podem
interferir com a síntese de IgE, IL-4 e IFN-gama e
podem induzir a libertação de histamina e de leucotrienos.
Recentemente tem-se dado ênfase ao papel de
péptidos antimicrobianos chamados catelicidinas
(LL-37) e beta-defensinas (HBD-2) que existem na
pele humana normal e cuja expressão está aumentada em doenças inflamatórias como a psoríase. A
combinação de LL-37 e HBD-2 tem efeito sinérgístico bactericida para S. aureus. Na pele de
doentes com DA demonstrou-se uma significativa
depleção destes péptidos, quer em lesões agudas
quer em lesões crónicas. Estes dados indicam uma
possível explicação para a frequente colonização
da pele por S. aureus na DA.
Comparando a pele de indivíduos saudáveis
com a de indivíduos com lesões agudas e crónicas
de DA, notam-se as seguintes diferenças:
1) Nos casos não afectados e nas situações de
DA aguda verifica-se aumento de células
expressando IL-4 e IL-13;
2) Na DA aguda não se verifica número significativo de células que expressam IFN-gama
ou IL-12;
3) Nos casos de DA crónica as lesões cutâneas
evidenciam menor número de células que
expressam IL-4 e IL-13, mas aumento do
número de células que expressam IL-5, GMC5F, IL-12 e IFN-gama em comparação com a
DA aguda.
Histologicamente verifica-se espongiose linfocitária.
Manifestações clínicas
A DA inicia-se em cerca de 75% dos doentes nos
primeiros 6 meses de vida e em cerca de 90% nos
primeiros cinco anos; é raro o início da doença após
a idade pediátrica. Pode haver remissão espon-
496
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tânea em 60% dos casos com evolução recorrente
nos restantes. Evolui com episódios de agudização
caracterizados por prurido intenso. As localizações
características variam com a idade.
A DA caracteriza-se, nas fases de agudização,
pelo aparecimento de pápulas ou placas eritemato-descamativas, ásperas, muito pruriginosas,
por vezes com edema e exsudação. À medida
que evoluem para a cronicidade, as placas tornam-se mais espessas e liquenificadas, com acentuação do reticulado normal da pele. Em todas as
fases o prurido é um sintoma constante e assume
importância pela sua intensidade, levando a
coceira incoercível e perturbações do sono e da
qualidade de vida.
Nas crianças até aos 2 anos de idade as lesões
localizam-se sobretudo na face, na região retroauricular -onde podem produzir fissuração- e nas
superfícies de extensão dos membros superiores e
inferiores. Podem, porém, generalizar-se e atingir
grande parte da superfície corporal.
À medida que a criança cresce, as lesões passam a estar localizadas sobretudo nas pregas de
flexão dos membros, continuando a ser comum o
envolvimento facial, cervical e retroauricular
(Figura 1), evidenciando carácter acentuadamente
exsudativo nas pálpebras, bochechas, preservando o maciço centrofacial.
De referir, por comparação, que nos adultos é
também este o padrão habitual, sendo frequente o
eczema palpebral, muitas vezes persistente e
criando dificuldades terapêuticas.
Há várias alterações cutâneas características
da DA que podem ser observadas mesmo nos
FIG. 1
Eczema atópico grave afectando a face.
períodos de remissão da doença, nomeadamente a
xerose generalizada, a prega de Denni-Morgan
(prega transversal nas pálpebras inferiores), a
pitiríase alba (manchas hipopigmentadas residuais), a queratose pilar (micropápulas foliculares
nas superfícies de extensão proximais dos membros, ásperas), o dermografismo branco, a queilite
(cieiro), e a dermatose plantar juvenil.
Verifica-se maior susceptibilidade a irritantes,
produtos de limpeza comuns, detergentes, químicos, e a alergénios de contacto. Tal resulta da deficiência da função barreira da pele, provavelmente
relacionada com alterações na composição lipídica
do cimento intercelular. Têm sido registadas deficiências de alguns ácidos gordos essenciais e de
ceramidas cuja correcção induz melhoria clínica.
Este tipo de manifestações, semelhante às do adulto, é notório no adolescente.
Outro aspecto importante na prática clínica é a
maior susceptibilidade dos doentes com DA às
infecções, traduzindo-se num maior risco de
quadros infecciosos graves, por exemplo a disseminação de infecção pelos vírus Herpes simplex
do que resulta o chamado eczema herpeticum.
(Figuras 2 e 3).
Tratamento
Evicção de factores de exacerbação
O primeiro passo para uma terapêutica eficaz é a
educação do doente e da família, esclarecendo o
carácter crónico da doença e a necessidade de manter cuidados de forma regular, como a evicção de
factores de agravamento, estresse, agentes irritativos, químicos, plasticinas, agentes infecciosos,
alergénios. Neste contexto está indicada a utilização
de produtos de higiene não agressivos (óleos dispersíveis, syndets*), preferência por texteis de fibras
não irritantes e calçado arejado não oclusivo. O
algodão deverá ser recomendado no vestuário, bem
como a utilização de roupas ligeiras, largas e leves.
Na maioria dos casos não está indicada qualquer
restrição alimentar. As excepções a esta regra (sintomalogia desencadeada pela ingestão de alimentos), devem ser analisadas pelo médico assistente.
No lactente e na primeira infância os alimentos
(*) Syndets: detergentes sintéticos ou “sabão sem sabão”, com pH neutro ou ligeiramente
ácido, bom efeito detergente, fazendo pouca espuma. Também chamados “Pains”, podem
apresentar-se em formas sólidas ou líquidas.
CAPÍTULO 95 Dermatite atópica
497
Nas áreas de xerose, (pele anormalmente seca) a
hidratação deverá ser efectuada ao longo do dia
de forma repetida.
FIG. 2 e 3
Eczema herpeticum (NIHDE).
podem estar implicados na exacerbação clínica
das lesões, (10 a 40% dos casos) consoante as populações, estando a frequência em Portugal no
limite inferior do intervalo referido.
Os quadros de maior gravidade e extensão,
bem como a má resposta à terapêutica implicam a
detecção de sensibilização alergénica, particularmente aos ácaros domésticos.
Hidratação cutânea
Emolientes – Uma formulação emoliente adequada com efeito de poupança de esteróides deverá
conter ácidos gordos essenciais, óleos, substâncias
calmantes, suavizantes e antipruriginosas. Deve ser
de fácil aplicação, com textura conveniente e não
ser excessivamente gorda para que não constitua
um factor de rejeição a uma aplicação diária por
períodos prolongados, embora suficientemente
gorda para impedir a evaporação. Podem ser utilizados, quer na prevenção, quer na manutenção.
Em períodos de maior exacerbação pode
reforçar-se o efeito emoliente com banhos de imersão, (10 a 15 minutos) a temperaturas tépidas,
seguidos da aplicação imediata de emolientes.
Terapêutica farmacológica
Corticosteróides – Em formulações tópicas (preferencialmente cremes), constituem a terapêutica efectiva de primeira linha. O tipo de fármaco varia consoante a apresentação clínica, a localização das lesões
e o período previsível de utilização, verificando-se
maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas.
Os corticosteróides tópicos têm sido nas últimas décadas a terapêutica de primeira linha da
DA. É importante a selecção criteriosa do produto
a usar em cada caso, devendo a escolha depender
da idade do doente, da área anatómica a tratar (há
maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas),
e também das características das lesões (dimensão, exsudação, liquenificação). Os potenciais
efeitos secundários, locais e sistémicos, constituem limitação ao seu uso prolongado.
A corticoterapia tópica não deverá ser prescrita em períodos prolongados, não só pelo risco
de efeitos secundários, como também pela possibilidade de sensibilização. Os cremes deverão
ser reservados para lesões agudas, e as pomadas
para lesões de maior cronicidade. A hidrocortisona a 1%, de menor potência, é o esteróide.
tópico de primeira escolha para a face. No
restante tegumento deverão ser preferidos corticosteróides de maior potência, com reduzidos
efeitos sistémicos (metil-prednisolona a 0.1%;
fluticasona a 0.05%). Estes fármacos deverão ser
aplicados idealmente após o banho à noite.
A prescrição de corticóides sistémicos deverá
reservar-se a ciclos muito curtos para permitir a
redução da intensidade das lesões e facilitar a
instituição de formas terapêuticas menos agressivas; a prednisolona (1mg/Kg/dia, em períodos geralmente inferiores a 1 semana) é de elevada eficácia, podendo proceder-se a uma diminuição progressiva da dose para obviar recorrências.
Antibióticos – A antibiototicoterapia é frequentemente necessária na terapêutica da DA.
Utiliza-se habitualmente ácido fusídico tópico nas
situações de impetiginização ligeira das lesões de
eczema, sendo de evitar a aplicação tópica de produtos contendo penicilina ou sulfamidas, devido
498
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ao risco de sensibilização. Nos quadros de impétigo manifesto dever-se-á optar por antibiótico
sistémico cujo espectro inclua S. aureus. Com
efeito, a infecçção cutânea é comum, particularmente com o S. aureus. As combinações de corticóides e antimicrobianos para uso tópico devem
ser reservadas às formas de DA infectada, circunscrita. A terapêutica anti-infecciosa sistémica é de
extrema importância nas formas infectadas graves;
a flucloxacilina, os macrólidos e as cefalosporinas
são os antibióticos sistémicos de eleição.
Anti-histamínicos – Os anti-histamínicos
sistémicos (hidroxizina, loratidina, cetirizina) são
úteis para reduzir o purido, considerando-se neste
contexto preferíveis as moléculas mais antigas,
com efeitos sedativos. Não devem ser utilizados
anti-histamínicos tópicos.
Inibidores tópicos da calcineurina – Actualmente dispomos de uma excelente alternativa à
corticoterapia tópica: os chamados imunomoduladores tópicos – tacrolimus e pimecrolimus.
Trata-se de macrólidos imunossupressores que se
ligam a um receptor intracelular (imunofilina)
formando um complexo que inibe a calcineurina
e, em consequência, a transcrição nuclear de
vários mediadores inflamatórios, tais como interleucinas, TNF-alfa, IFN-gama, etc.. A sua actividade imunossupressora é complexa, sendo
capazes nomeadamente de inibir a desgranulação
de mastócitos, diminuir a expressão de receptores
para interleucinas (IL-8), e de diminuir a expressão de moléculas de adesão.
De acordo com os dados disponíveis a sua
aplicação tópica é bastante segura, sendo a
absorção sistémica reduzida. O efeito secundário
mais frequente é uma sensação transitória de
ardor ou picada no local de aplicação, que não
impede habitualmente a continuação do tratamento e que se desvanece à medida que este prossegue, acompanhando a melhoria cutânea. Ao
contrário dos corticosteróides tópicos, os imunomoduladores tópicos não provocam atrofia da
pele e não induzem taquifilaxia.
Estas novas terapêuticas têm sido muito úteis,
rapidamente alcançando o estatuto de fármacos de
primeira linha, quer como terapêutica de manutenção, quer como alternativa aos corticosteróides nas
crises de agudização, sobretudo em áreas de maior
susceptibilidade aos efeitos secundários destes.
O tacrolimus (ou FK506) é uma pomada comercializada em duas concentrações: 0,03% e
0,1%. Está comprovada a sua eficácia e segurança
em adultos e em crianças.
O pimecrolimus, na forma de creme a 1%, tem
maior especificidade cutânea e melhor tolerância,
havendo estudos que comprovam a sua segurança
em bebés a partir dos 3 meses de idade. Tem uma
afinidade para a calcineurina cerca de 3 vezes
inferior à do tacrolimus.
Imunossupressores – A ciclosporina A é uma
boa alternativa que tem sido usada com sucesso.
Com doses iguais ou inferiores a 5mg/kg/dia
obtêm-se habitualmente remissões rápidas. As
taxas de recorrência são altas (cerca de 75% às 6
semanas).
Também o micofenolato de mofetil e a azatioprina são imunossupressores eficazes que podem
ser úteis no controlo de situações refractárias,
embora o seu uso seja limitado pela potencial toxicidade.
Outros fármacos – Os inibidores dos leucotrienos foram tentados como terapêutica adjuvante mas não revelaram grande eficácia.
Os estudos com interferão gama e alfa tiveram
resultados clínicos muito variáveis, globalmente
pouco animadores e com efeitos secundários
sistémicos importantes.
Está descrita uma excelente resposta ao basiliximab, um anticorpo monoclonal anti CD 25
(cadeia a do receptor da IL2) que tem sido usado
em transplantes renais.
Fototerapia – A fototerapia com radiação ultravioleta B (UVB) e a fotoquimioterapia com radiação ultra-violeta A, após fotossensibilização com
psoralenos (PUVA), são também opções terapêuticas de segunda linha, muito úteis e eficazes em
doentes com idade e capacidade para colaborar.
Em suma, salienta-se que a DA é uma doença
com evolução crónica e início precoce, que afecta
muito gravemente a qualidade de vida, de forma
considerada equivalente à da diabetes insulino –
dependente.
Todas as atitudes terapêuticas devem ser
cuidadosamente avaliadas no sentido de evitar os
efeitos acessórios que a sua aplicação crónica ou
prolongada pode acarretar.
São referidas a seguir algumas regras gerais
CAPÍTULO 96 Acne
importantes a seguir (e algumas a reiterar), nos
cuidados com a pele em idade pediátrica, e
aplicáveis em diversas situações anteriormente
descritas.
1 – A regra fundamental para um banho deve
ser “água” qb. e pouco detergente”. Excluindo as
zonas que acumulam mais sujidade, como a zona
das fraldas, um banho diário não é indispensável.
No entanto, acentuar a interacção mãe-filho, o que
é muito mais importante do que uma real
necessidade do banho.
2 – Uma vez que a hiper-hidratação pode
aumentar a espessura da camada córnea pelo
edema celular que o excesso de água provoca,
pode haver uma diminuição da sua coesão com
consequentes menor resistência e alterações da
pele. Assim, no recém-nascido e crianças pequenas a sua duração não deve exceder os 5 minutos
e na criança mais velha 10-15 minutos.
3 – O produto ideal para o banho deverá
respeitar o pH cutâneo, a camada lipídica superficial e o ecossistema da pele.
4 – Podem ser utilizados sabões supergordos
ou “syndets”.
5 – Nos casos da pele dita normal não há
necessidade de produtos especiais para o banho.
Devem no entanto incorporar uma base suave,
com adição de agentes humidificantes e complexos gordos. Na face podem usar-se leites e loções
de limpeza sem enxaguamento e “syndets”. No
corpo podem usar-se sabões neutros “syndets” ou
geles de banho; é admissível o uso esporádico de
emolientes suaves (leites hidratantes).
6 – Os emolientes devem ser usados preferencialmente após o banho, com a pele ainda húmida.
7 – Nos casos da pele seborreica podem ser
usados produtos com zinco cuja função é diminuir
o excesso de produção de sebo.
8 – Nos casos de pele seca com elasticidade
diminuída, xerose e descamação, têm prioridade a
hidratação e lubrificação. Os sabões devem ser
supergordos ou “syndets” (sólidos ou líquidos);
podem ser também usados óleos de banho e banhos coloidais (que utilizam cereais que removem
por adsorsão os detritos lipo e hidrofílicos e deixam uma camada superficial protectora). É aconselhável o uso de emolientes sob a forma de emulsões O/A ou (consultar Glossário e Parte
Imunoalergologia).
499
96
ACNE
Ana Macedo Ferreira
Definição e importância do problema
Define-se a acne como inflamação dos folículos
pilosos e das glândulas sebáceas, com retenção de
sebo, geneticamente determinada, evoluindo em
ciclos, com acentuado relevo na juventude.
A chamada acne vulgar é, assim, uma doença
inflamatória crónica multifactorial da unidade
pilo-sebácea caracterizada pela formação de pápulas eritematosas, pústulas, e menos frequentemente nódulos e pseudo-quistos, podendo determinar a formação de cicatrizes. Tem o seu início
em regra na adolescência, afectando em grau variável 90% dos rapazes de 16 anos e menor percentagem de raparigas do mesmo grupo etário.
Em regra surge mais precocemente no sexo feminino. No que respeita à nomenclatura são
consideradas duas situações: acne propriamente
dita (mais frequente e como tal mais importante
na prática clínica) e erupções acneiformes (em
regra precipitadas por agentes externos nos quais
se incluem os medicamentos).
Etiopatogénese
Os factores genéticos podem ter influência, tanto
na gravidade como na persistência da doença.
Não constituindo uma entidade, a acne antes
engloba um conjunto de situações que se diferenciam pelos aspectos clínicos e etiopatogénicos,
possuindo em comum a localização pilo-sebácea
dos processos iniciais da sua patogénese.
O mecanismo acneico decorre em dois tempos:
tem início na obstrução mecânica e não inflamatória do folículo pilo-sebáceo – com a formação
do comedão; prossegue com a fase inflamatória
que inclui manifestações clínicas diversas – pápu-
500
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
las, pústulas e nódulos. A esta diversidade associam-se intensidade, evolução e prognóstico extremamente variados.
Recorda-se, a propósito, a definição de comedão (designação popular: ponto negro) – pequena
saliência esbranquiçada em cujo centro há um
ponto negro, formada por substâncias gordurosas
acumuladas numa glândula sebácea. Localizamse preferencialmente no rosto.
As fases do desenvolvimento da afecção são
seguidamente descritas.
Hiperprodução sebácea
A produção activa das glândulas sebáceas sob a
influência androgénica é a condição sine qua non
da acne. Este fenómeno poderá ocorrer na presença de: níveis aumentados de secreção hormonal; ou níveis normais de secreção mas grande
biodisponibilidade de androgénios livres;ou
níveis de secreção normais mas com aumento de
resposta no órgão alvo (hiperactividade da 5-alfaredutase ou aumento do número de receptores
androgénicos). No sexo feminino uma percentagem significativa de pacientes com acne tem alteração do balanço hormonal androgénico e, consequentemente, apresenta também outros sinais de
hiperandrogenismo (hirsutirmo, alopécia androgenética ou alterações menstruais).
A testosterona é o androgénio mais importante
na acne por actuar simultaneamente na proliferação das glândulas sebáceas e na lipogénese. A
maior parte da testosterona plasmática (> 90%)
encontra-se ligada a globulinas, pelo que só uma
pequena porção é biologicamente activa. A testosterona livre (~3%) liga-se a receptores celulares
antes de penetrar na célula sebácea onde, por
acção da 5-alfa-redutase tipo I, se transforma em
di-hidrotestosterona (DHT). Esta, por sua vez,
liga-se a um receptor, e este complexo DHT-receptor actua no núcleo celular condicionando aumento da produção sebácea.
O sebo é uma mistura complexa de glicéridos,
ácidos gordos, escaleno, colesterol e seus ésteres,
excretados por mecanismos holócrinos de forma
contínua. Na acne a taxa de escaleno e ceras está
muito elevada, havendo uma marcada diminuição
de linolatos. O défice de linolatos torna o epitélio
folicular mais permeável aos ácidos gordos, o que
leva a exacerbação da hiperqueratose e aumento da
proliferação bacteriana.
Recorda-se que a superfície cutânea lipídica,
designada por “filme lipídico”, é composta por
mistura de sebo, produto de secreção das glândulas
sebáceas, e de lípidos derivados da desintegração
das células epidérmicas durante o processo de queratinização.
Alteração de queratinização
Na acne regista-se alteração da queratinização
infundibular com tradução histológica (microcomedões) e clínica (comedões abertos e fechados). Este fenómeno depende de: alterações
qualitativas do sebo, factores hormonais, flora
microbiana, desregulação do fenómeno de renovação do epitélio pilo-sebáceo e de citocinas.
Proliferação bacteriana e inflamação
Se bem que a acne não seja definitivamente uma
doença infecciosa, é indiscutível o papel etiológico do Propionibacterium acnes que, para além
de produzir lipases, regula a produção de ácidos
gordos livres (comedogénicos e irritantes)
através do seu equipamento enzimático. Assim,
este microrganismo participa na reacção inflamatória acneica com substâncias biologicamente
activas (lipases, fosfatases e hialuronidases) que
contribuem para o aumento da permeabilidade
do epitélio folicular, e com a produção de factores quimiotáxicos que atraem polimorfonucleares neutrófilos, com consequente activação
do complemento.
Mitos e verdades
Outros factores podem ser considerados como
tendo influência no processo acneico; tais factores
ocupam, no entanto, um campo minado de mitos
e “verdades” populares, por vezes muito distanciados da realidade científica. Dieta: a relação
causal de certos alimentos com o aparecimento de
lesões carece de relevância científica. Radiação
ultra-violeta: a convicção generalizada do efeito
benéfico da exposição solar na acne, também
carece de aceitação científica. Efectivamente, verifica-se agravamento das lesões em 20% dos
doentes no período estival. Estresse: é um factor
reconhecido de agravamento das lesões com especial enfâse na acne escoriada dos adultos jovens e
adolescentes.
CAPÍTULO 96 Acne
Manifestações clínicas
Nas fases iniciais predominam ou existem apenas
lesões não-inflamatórias, os comedões abertos
(pontos negros) e fechados (pontos brancos)
(Figura 1). Estes últimos, de visualização mais
difícil, são cobertos por pele normal e possuem
maior tendência para evoluir para a inflamação.
As lesões inflamatórias da acne podem ser
superficiais ou profundas. As superficiais (pápulas
e pústulas) são geralmente de diâmetro inferior a
5mm, com duração variável. As profundas são
pápulas de maiores dimensões e nódulos, levando
com frequência à formação de cicatrizes. A lesão
predominante determina uma classificação para
designar a acne (comedónica, pápulo-pustulosa,
nodular); de referir que a doença acneica é
“dinâmica”, variando no tempo o tipo de lesão
preponderante. (Figuras 2, 3, 4). São descritas as
seguintes variantes clínicas:
Acne neonatal (pustulose cefálica neonatal):
Ocorre em 20% dos recém nascidos saudáveis;
surge às 2 semanas e geralmente regride pelos 3
meses de idade. Caracteriza-se por pequenas
pápulas inflamatórias agrupadas no dorso do
nariz e região malar. A sua patogénese relacionase com a colonização destes folículos pelo
Malassezia furfur, pelo que a classificação da acne
neonatal está actualmente a ser revista. Responde
ao tratamento tópico com cetoconazol creme;
trata-se de uma situação de carácter transitório.
Acne infantil: Esta designação diz respeito às
lesões de acne que surgem entre os 3 e os 6 meses
de vida. Apresenta-se com múltiplos comedões
que, por vezes, podem induzir cicatrizes punctiformes (Figura 5). A patogénese reflecte o balanço
hormonal intrínseco deste estádio de desenvolvimento, desempenhando as hormonas maternas
um papel secundário. Tipicamente regride nos
primeiros anos de vida.
Outras variantes: Acne escoriada, acne iatrogénica, acne cosmética, acne pomada, acne ocupacional, acne mecânica, acne relacionada com alterações hormonais, etc..
FIG. 1
Acne comedónica.
FIG. 2
Acne pápulo-pustulosa moderada.
Tratamento
Medidas gerais
Para que um tratamento da acne seja bem sucedi-
FIG. 3
Acne pápulo-pustulosa marcadamente inflamatória.
501
502
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
sobre a sua natureza, os objectivos dos medicamentos a utilizar, como os usar, bem como sobre a
duração provável do tratamento. De salientar que
o método de tratamento deve ser seleccionado em
função de cada caso, e nunca padronizado. É
igualmente importante esclarecer o paciente sobre
um grande número de mitos/falsos conceitos,
explicar o carácter instável das lesões, chamar a
atenção para o agravamento temporário causado
por alguns tratamentos, assim como, elucidar e
compensar o desconforto secundário a algumas
medicações.
FIG. 4
Acne nodular grave
Cuidados cosméticos
Deverá actuar-se com suavidade, remover o óleo,
respeitando o filme hidrolipídico. Para a limpeza
de pele utilizam-se sabões supergordos ou surgras
que deixam um fino filme lipídico na pele. Trata-se dos chamados sabões anti-seborreia.
Nos cuidados complementares incluem-se
cremes hidratantes, bases, protectores solares,
todos eles devendo cumprir o requisito de serem
oil free e portanto não comedogénicos.
Terapêutica tópica
Está indicada nas acnes ligeiras a moderadas e
igualmente acompanha a terapêutica sistémica
nas formas graves. Compreende essencialmente
queratolíticos anti-seborreicos e, por vezes,
antibióticos associados. São utilizados preparados
com retinóides tópicos (adapaleno, isotretinoína,
tretinoína), antibióticos tópicos (eritomicina e clindamicina), outros (ácido salicílico, peróxido de
benzoílo em gel ou creme a 5% ou 10%, ácido azelaico).
FIG. 5
Acne infantil (agravada após aplicação tópica de corticóide)
do, para além de uma escolha acertada dos agentes terapêuticos, é indispensável que o doente
e/ou sua família compreendam a sua patologia e
adiram ao esquema proposto.
A primeira consulta deverá incluir uma avaliação do impacte psicológico da doença, explicação
Terapêutica oral
Está indicada nas acnes moderadas a graves, nos
doentes com dismorfofobia e quando as cicatrizes
são um evento esperado. Inclui: os antibióticos
que alteram a função enzimática dos microrganismos patogénicos mais do que o seu número; e a
isotretinoína que, em 1992, veio revolucionar a
terapêutica da acne. A isotretinoína é a única terapêutica que actua simultaneamente em todos os
factores etiopatogénicos da acne: reduz até 90% a
secreção sebácea, tem acção comedolítica, actuando na diferenciação das células foliculares,
diminui a colonização do P. acnes e, finalmente,
CAPÍTULO 97 Dermatite das fraldas
tem propriedades anti-inflamatórias ao inibir a
quimiotaxia dos neutrófilos.
Notas importantes:
1) As formas graves de acne deverão ser
encaminhadas para o dermatologista.
2) Os antibióticos por via oral classicamente
indicados são os macrólidos e as tetraciclinas (estas últimas a partir da adolescência).
3) A isotretinoína é teratogénica, razão pela
qual somente deverá ser prescrita excluindo
gravidez.
4) Os retinóides e o peróxido de benzoílo são
irritantes, o que implica aplicação gradual e
controlada em quantidades reduzidas.
503
97
DERMATITE DAS FRALDAS
Teresa Fiadeiro
Definição
A dermatite das fraldas (ou eritema das fraldas) é
uma dermatose exclusivamente localizada (pelo
menos, nas fases iniciais) à área que está coberta
pela fralda e que só ocorre nos períodos da vida
em que a mesma é utilizada.
No entanto, múltiplas dermatoses podem afectar a região anogenital das crianças nesta fase da
vida, desde as que são causadas directamente pela
acção irritativa das fraldas (dermatite de contacto
irritativa primária), a doenças raras como a histiocitose de células de Langerhans (doença de
Letterer-Siwe), sem qualquer relação com o uso
das mesmas. Assim, a dermatite das fraldas é um
termo lato que engloba várias patologias de etiologia multifactorial.
Destas é, sem dúvida, a dermatite irritativa
primária, a situação mais frequente e que, por
isso, será a abordada em pormenor.
Etiopatogénese
A dermatite das fraldas é considerada um protótipo da dermatose irritativa de contacto; esta
pode resultar de agressão inespecífica da pele por
contacto repetido com diversas substâncias irritantes (dermatite irritativa, mais frequente na
idade pediátrica), ou de reacção alérgica por
mecanismo de hipersensibilidade retardada. A
dermatite irritativa de contacto considerada em
geral pode resultar do contacto prolongado ou
repetido com várias substâncias tais como saliva,
suor , sumo de citrinos, detergentes, sabões,
medicamentos, etc..
Durante muito tempo admitiu-se que a amónia,
resultante da degradação da ureia urinária era o
504
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
factor causal primordial na génese dermatite das
raldas. Hoje sabe-se que o primeiro factor é a
perda da integridade da barreira cutânea. Crê-se
actualmente que esta perda de integridade se
deve ao aumento local da temperatura e humidade resultantes da oclusão pela fralda, a que se
alia uma fricção e maceração contínua da mesma
pelo tecido da mesma.
Secundariamente, o contacto da pele com as
fezes, devido à acção de enzimas proteolíticas e
lipolíticas destas, determina um acréscimo de irritação e agressão numa pele já alterada; agressão
essa, tanto mais acentuada quanto mais elevado
for o pH local. Precisamente, quando a criança
ingere leite de vaca cujo pH é superior ao do leite
materno, o pH local aumenta.
Quanto à influência de microrganismos, apenas está demonstrado o papel da Candida albicans
que, muito frequentemente, sobreinfecta uma dermatite irritativa primária, determinando a persistência e agravamento da mesma.
FIG. 1
Dermatite irritativa afectando superfícies convexas
Manifestações clínicas
A dermatite irritativa das fraldas caracteriza-se
por uma área de eritema brilhante, por vezes
semelhante a uma queimadura, que afecta principalmente as superfícies convexas que estão em
contacto mais íntimo com a fralda – região glútea,
face interna das coxas, púbis, genitais e região
abdominal inferior (aspecto em W); poupa, habitualmente, o fundo das pregas (Figura 1).
Ocasionalmente pode observar-se descamação
das áreas afectadas ou até lesões papulares, erosões
e pústulas, estas particularmente evidentes no caso
de sobreinfecção por Candida ou Staphylococcus
(Figura 2). Se as lesões se verificarem também nas
pregas e atingirem a região perianal em continuidade e sem intervalos de pele sã, também há
que admitir sobreinfecção por Candida.
Uma forma rara que corresponde a um quadro
grave de dermatite irritativa é a dermatite erosiva
ou doença de Sevestre-Jacquet evidenciando
lesões papulares com erosão, dando o aspecto de
cratera (Figura 3).
Diagnóstico
O diagnóstico é geralmente feito com base na
FIG. 2
Dermatite irritativa com candidíase secundária
FIG. 3
Dermatite erosiva de Sevestre-Jacquet
CAPÍTULO 98 Psoríase
anamnese e na observação clínica. É de extrema
importância o conhecimento das lesões primárias,
e a sua relação com as lesões que ocorrem secundariamente; igualmente importante é conhecer a
distribuição das lesões iniciais, o que pode permitir diferenciar as diversas entidades. Se a dermatose evoluir sem diagnóstico e tratamento,
torna-se difusa e de características inespecíficas.
Tratamento
São fundamentais medidas de ordem geral, obedecendo à regra: “pouca humidade e muito ar”. A
mudança da fralda deve ser efectuada o maior
número de vezes possível de modo que o tempo
de contacto da fralda suja com a pele seja mínimo.
É aconselhável a exposição da zona afectada ao ar
havendo condições ambientais de temperatura.
Poderá utilizar-se o secador de cabelo na posição
de frio. As modernas fraldas descartáveis, com
materiais cada vez mais absorventes, nunca deverão ser substituídas pelas antigas fraldas de algodão; com efeito, é errada a ideia de menor agressão
das antigas segundo a qual, sendo estas muito
menos absorventes, iriam condicionar um agravamento da dermatose.
A higiene local e o banho diário devem ser
efectuados só com água ou com produtos de acção
suave, de preferência, com efeito emoliente, e dispersíveis na água. Não são aconselháveis os toalhetes de limpeza disponíveis no mercado.
Em cada muda de fralda deverá ser aplicado
em toda a área um creme de barreira contendo
óxido de zinco que, para além da acção protectora, exerce uma acção antisséptica e cicatrizante.
Não deve ser utilizado pó de talco.
Se houver sinais de sobreinfecção por Candida
albicans, deverão ser aplicados tópicos com acção
anti-fúngica (por exemplo à base de nistatina ou
de imidazol).
Se o processo inflamatório for muito intenso,
poderá recorrer-se ao uso de corticóides tópicos,
mas sempre de baixa potência (hidrocortisona a
1%) e em períodos curtos. Efectivamente, havendo
uma área significativa de pele lesada em relação à
totalidade da superfície corporal da criança, a
absorção transcutânea de qualquer tópico aí aplicado, aumenta muito, conduzindo facilmente a ocorrência de efeitos sistémicos que podem ser fatais.
505
98
PSORÍASE
Ana Fidalgo
Definição e importância do problema
A psoríase é uma doença cutânea autoimune inflamatória crónica, de predisposição genética, mediada por linfócitos T, e caracterizada por lesões
eritematosas bem delimitadas, com escama
prateada. A morfologia, gravidade clínica e duração da doença são muito variáveis.
Trata-se de um problema relativamente frequente que afecta cerca de 2 % da população
mundial, sendo mais prevalente na raça caucasiana. Existem dois “picos” de incidência: o
primeiro entre os 20-30 anos, e o segundo entre os
50-60 anos. A prevalência de psoríase na idade
pediátrica é cerca de 0,5 a 1%.
Etiopatogénese
A etiopatogénese incompletamente compreendida
relaciona-se com: acentuação da cinética proliferativa epidérmica; auto-agressão imunitária contra
as células córneas; alteração de sistemas de mediação e regulação celular – nucleótidos cíclicos
poliaminas e derivados do ácido araquidónico. Na
prática são considerados:
• Factores genéticos A psoríase é determinada
geneticamente, de forma poligénica e multifactorial, sendo fortemente influenciada por factores
ambientais. Em aproximadamente um terço dos
doentes há antecedentes familiares da doença.
Existem diversas associações com alguns fenótipos
HLA (HLA-Cw6, HLA-A13 e 17 e HLA-B8) que
parecem determinar a data de início e a expressão
fenotípica da doença.
• Factores desencadeantes O início da psoríase pode estar relacionado com factores desencadeantes, e surgir em qualquer idade.
506
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A acção de factores externos ou internos pode
desencadear psoríase em indivíduos geneticamente predispostos.
• As infecções estreptocóccicas, em particular
faringites, constituindo factores desencadeantes ou agravantes, conduzem a psoríase
tipo guttata.
• O estresse psicológico pode precipitar ou
exacerbar a psoríase.
• Factores endócrinos e metabólicos: a gravidez e a hipocalcémia podem induzir psoríase pustulosa.
• Fenómeno isomorfo ou de Köbner: ocorre
em 25% dos doentes; corresponde à indução
de lesões psoriásicas em locais de traumatismo cutâneo.
• Os fármacos : lítio, β-bloqueantes, interferão,
anti-inflamatórios não esteróides e IECA.
Nas crianças os fármacos mais frequentemente implicados são os antimaláricos e os
corticóides.
• Outros: o consumo elevado de álcool e tabaco tem sido associado à psoríase.
Na psoríase surge resposta imune efectora de
perfil T helper 1. As lesões cutâneas resultam da activação local do sistema imune, e da acumulação
selectiva de linfócitos Th 1 (CD4+ e CD8+) que desencadeiam e mantêm a doença ao libertar citocinas
e/ou outras moléculas inflamatórias, induzindo a
hiperproliferação e diferenciação anormal de queratinócitos, de células endoteliais, fibroblastos, e mastócitos. Sobressai igualmente inflitrado denso de
polimorfonucleres com característico epidermotropismo. A cronicidade resulta da estimulação linfocitária persistente por antigénios de provável origem
epidérmica ainda desconhecidos.
Manifestações clínicas
O quadro clínico na criança é semelhante ao do
adulto. A lesão característica é a placa eritematodescamativa, bem delimitada, com escama prateada espessa. O eritema é vermelho vivo e a remoção sucessiva da escama origina pontos hemorrágicos (sinal de Auspitz). As placas localizam-se
predominantemente nas superfícies de extensão
das extremidades (cotovelos e joelhos), couro
cabeludo e na região lombo-sagrada. Nas crianças
as lesões tendem a ser menos espessas, descamativas e mais pruriginosas. A face, o couro cabeludo
e as pregas são afectados com maior frequência
comparativamente ao adulto.
As principais formas clínicas da psoríase são
as seguintes:
• Psoríase guttata:
É mais frequente em crianças e adultos jovens.
Surge de forma súbita, habitualmente 1-2 semanas
após faringite estreptócoccica, sob a forma de pápulas, redondas ou ovais, com escama discreta ou
ausente, dispersas de forma grosseiramente simétrica pelo tegumento, mas com predomínio pelo tronco
e extremidades proximais. Esta forma persiste 3 a 4
meses e pode ter remissão espontânea e recorrências.
• Psoríase em placas:
Nesta variante existem placas eritemato-descamativas características nas superfícies de extensão
(joelhos e cotovelos) e/ou couro cabeludo e tronco. (Figuras 1 e 2)
• Psoríase inversa:
Afecta predominante ou exclusivamente as
áreas de atrito, em particular a área das fraldas e
axilas. As lesões mantêm o eritema vivo e bordo
bem definido, mas a escama é reduzida ou
ausente. (Figura 3)
• Psoríase pustulosa:
Variante rara na criança, quer na sua forma
generalizada, quer na forma localizada às palmas
e plantas onde se observam pústulas.
• Psoríase eritrodérmica:
É a forma rara, e habitualmente grave, com
eritema e esfoliação de quase todo o tegumento.
Pode ser congénita.
• Psoríase artropática:
Surge artrite inflamatória seronegativa similar à
artrite reumatóide em 5-30% dos doentes com
psoríase. O início pode ocorrer na puberdade,
sendo geralmente ulterior ao quadro cutâneo, na
forma de artrite assimétrica mono ou oligoarticular.
• Alterações ungueais:
A alteração mais frequente é o ponteado
ungueal (40%); raramente surgem onicólise ou
alterações da coloração.
Diagnóstico
É essencialmente clínico, baseado no aspecto das
CAPÍTULO 98 Psoríase
507
lesões, distribuição e evolução. A história familiar
e as alterações ungueais apoiam o diagnóstico. O
diagnóstico diferencial na infância estabelece-se
essencialmente com a dermite da área das fraldas,
com o eczema numular, a pitiríase rosada e a
epidermofitia.
Tratamento
FIG. 1
Psoríase em placas
FIG. 2
Psoríase em placas no tronco.
Deve ser adaptado a cada caso individual, em função
da idade do doente, localização e extensão da
doença, evolução e resposta a tratamentos anteriores.
As medidas gerais incluem banhos com óleos
essenciais, aplicação de emolientes, eventualmente com agentes queratolíticos. Na psoríase em
placas pode efectuar-se tratamento com corticóides de fraca a moderada potência e análogos
da vitamina D, isolados ou em combinação.
Para as lesões da face e pregas dispomos actualmente dos novos imunomoduladores tópicos
(tacrolimus e pimecrolimus) que são eficazes, bem
tolerados, e destituídos de efeitos acessórios
(atrofia e metabólicos).
A psoríase guttata aguda associada a infecção
estreptocóccica deve ser tratada com antibioticoterapia dirigida.
A fototerapia com ultravioletas B (UVB) pode
ser usada no tratamento da psoríase guttata e
psoríase em placas crónica extensa e/ou refractária.
A fotoquimioterapia habitualmente não está indicada nas crianças. A helioterapia é benéfica e aconselhada com prudência.
Os retinóides sistémicos, em particular a
isotretinoína, são eficazes nas psoríases em placas,
guttata, eritodérmica e pustulosa. Os seus potenciais efeitos no crescimento ósseo limitam o seu
uso na infância.
Outras terapêuticas de intervenção (ciclosporina A, metotrexato) são uma alternativa para casos
particulares.
Prognóstico
FIG. 3
Psoríase inversa
A psoríase é uma doença crónica com impacte
importante na qualidade de vida. Cursa com
períodos de remissão e exacerbação. O envolvimento articular na criança habitualmente é de
carácter não destrutivo e tem bom prognóstico.
508
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
99
Mancha mãe
PITIRÍASE ROSADA (Doença de Gibert)
Ana Fidalgo
Definição e importância do problema
A pitiríase rosada é uma dermatose eritematodescamativa aguda, relativamente frequente, que
afecta predominantemente adolescentes e adultos
jovens, com curso característico de evolução
espontânea para a cura em cerca de 4-6 semanas.
Ocorre em indivíduos jovens saudáveis, entre
os 10 e 35 anos, com um “pico” de incidência na
adolescência, sendo rara antes dos 2 anos e nos
idosos. Não existe predilecção racial e os dois
sexos são afectados com um ligeiro predomínio no
sexo feminino. Nos climas temperados, é mais
comum na Primavera e Outono.
Etiopatogénese
Embora a causa seja ainda desconhecida, a etiologia vírica parece ser a mais provável. Dois vírus
do grupo Herpes têm sido implicados: HHV-7, e
menos frequentemente, HHV-6. A evidência epidemiológica de mais casos familiares (agregação)
e/ou contactos íntimos, de sintomas prodrómicos
em alguns doentes, o curso autolimitado e a raridade de recorrências, sugere um processo de defesa imunológica contra um agente infeccioso.
Alguns fármacos podem causar erupções
cutâneas semelhantes à pitiríase rosada: captopril,
β-bloqueantes, isotretinoína, griseofulvina, entre
outros.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Em cerca de 80% dos casos a doença segue um
curso clínico característico (pitiríase rosada clássica) e de fácil diagnóstico. Numa minoria, e sobretudo em crianças, pode assumir formas atípicas.
FIG. 1
Pitiríase Rosada: distribuição das lesões na forma clássica ou
típica.
• Pitiríase rosada típica ou clássica
Inicia-se por mancha ou placa eritematosa ou
cor de salmão, descamativa, ovalar, em regra
localizada ao tronco e única (“mancha mãe”), de 2
a 5 cm de diâmetro, que aumenta progressivamente (Fig. 1 e 2). A “mancha mãe” é identificável
em cerca de 50 a 90 % dos casos; menos frequentemente surge na face, região cervical ou
extremidades. Numa minoria dos doentes (5%)
pode ocorrer pródromo de mal-estar geral,
anorexia, febre, cefaleias e artralgias. Após 5 a 15
dias surge, com carácter súbito, erupção constituída por inúmeras lesões semelhantes mas mais
pequenas que a precedente, de dimensões variáveis (0,5-1,5 cm), afectando tronco e extremidades proximais. As lesões são bem delimitadas,
rosadas, ovalares, e o seu maior eixo dispõe-se
paralelamente à grelha costal (linhas de clivagem
de Langer), numa distribuição em “árvore de
Natal”, que é mais evidente no dorso. O centro
das lesões adquire uma escama fina, enrugada,
que progride excentricamente, formando uma
franja circular descamativa característica (em “collarete”) (Fig 3). A face, palmas e plantas são habitualmente poupadas. O envolvimento das
mucosas é raro. Na raça negra as lesões podem
CAPÍTULO 100 Pediculose
509
100
PEDICULOSE
Luísa Caldas Lopes
FIG. 2
FIG. 3
“Mancha mãe” (Pitiríase
rosada).
Erupção exantemática típica
(Pitiríase rosada).
Definição e importância do problema
apresentar um aspecto psoriasiforme.
A erupção é assintomática ou ligeiramente pruriginosa. Não se acompanha de sintomas sistémicos e evolui espontaneamente para a cura, podendo deixar hipo ou hiperpigmentação. Não recidiva.
• Forma atípica
As formas atípicas diferem pela distribuição
ou aparência das lesões; a mais frequente é uma
variante inversa que envolve predominantemente
axilas e região inguinal, eventualmente face e
pescoço, sendo mais frequente em negros. Outras
variantes incluem as formas vesicular, papular,
urticariforme, purpúrica e pustulosa.
Pediculose é a infestação cutânea causada por
piolhos, parasitas hematófagos humanos pertencentes à ordem dos Phthiraptera, na qual se inclui a
subordem Anoplura, que compreende as espécies:
– Pediculus humanus (corporis): do corpo ou roupa
– Pediculus humanus (capitis): do couro cabeludo
– Phthirius pubis: da região púbica.
A pediculose do corpo e a pediculose púbica
atingem preferencialmente adultos com vida
precária e sexual activa, pelo que não são abordadas (Quadro 1).
Diagnóstico
A pediculose da cabeça é uma infestação ubiquitária, verificando-se maior incidência entre os 3 e
os 11 anos de idade. É mais frequente no sexo
feminino. O contacto interpessoal é a forma mais
frequente de transmissão, mas pode verificar-se a
disseminação por fómites.
Os achados clínicos são limitados ao couro
cabeludo, mais frequentemente região occipital e
retroauricular. O sintoma clássico é o prurido marcado, ainda que de intensidade variável.
Na primeira infestação o prurido pode demorar
2 a 6 semanas até se evidenciar; em infestações
futuras desenvolve-se prontamente. Salienta-se,
O diagnóstico é essencialmente clínico, baseado
na distribuição, morfologia e evolução características da erupção cutânea na ausência de sintomatologia sistémica.
A “mancha mãe” e/ou a erupção disseminada
secundária podem assemelhar-se à tinha corporis,
ao eczema numular ou à psoríase guttata.
O diagnóstico diferencial estabele-se essencialmente com as toxidermias.
Tratamento
A doença é autolimitada com remissão espontânea
em 6 a 12 semanas. O tratamento é sintomático
com emolientes e, se houver prurido, com anti-histamínicos orais e corticoterapia tópica. Em formas
clínicas extensas, muito pruriginosas e/ou persistentes, poderá estar indicada corticoterapia tópica
ou sistémica de curta duração.
Manifestações clinicas e diagnóstico
QUADRO 1 – Formas de Pediculose
Parasita (piolho)
Pediculus humanus var. capitis
Pediculus humanus var. corporis
Phthirus pubis
Doença
Pediculose da cabeça
Pediculose do corpo
Pediculose púbica
510
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
assim, a possibilidade de ocorrência de surtos
epidémicos em creches e escolas. Poderão surgir
complicações (piodermites). Alguns indivíduos assintomáticos podem ser considerados “portadores”.
O diagnóstico é feito pela identificação do parasita ou pelos ovos (lêndeas, em geral muito
numerosas) na haste do pêlo. Ocasionalmente pode
existir febre baixa, irritabilidade, linfadenopatia ou
infecção bacteriana secundária.
101
ESCABIOSE
Luísa Caldas Lopes
Tratamento
Na pediculose da cabeça são utilizados os
seguintes fármacos em alternativa:
– Lindano (loção a 1%): aplicação tópica à noite
durante 4 minutos com lavagem na manhã
seguinte utilizando champô; a lavagem deve ser
feita a seguir; a aplicação pode ser repetida 1
semana depois; ou
– Malatião (loção a 0,4%): aplicação tópica
(com precaução por ser produto inflamável) à
noite, removendo com lavagem na manhã seguinte; ou
– Piretrinas (champô): aplicação durante 10
minutos, lavando em seguida; pode repetir-se o
procedimento no dia seguinte; como precaução há
que evitar contacto com os olhos; ou
– Permetrina a 1% (creme de lavagem): aplicação em cabelo pouco húmido durante 10 minutos, seguido de lavagem; pode repetir-se 1 semana
depois; resistências frequentes.
Notas importantes:
A escolha terapêutica é baseada na eficácia do
fármaco, potencial de toxicidade e padrões de
resistência. Em todas as preparações tópicas
podem ser realizadas 2 aplicações com 1 semana
de intervalo, atendendo à possibilidade de poder
haver ainda eclosão larvar depois do primeiro
tratamento. É fundamental a remoção mecânica
da lêndeas.
É aconselhavel corte de cabelo (muito curto)
para facilitar, com pente de espaços apertados, a
remoção das referidas lêndeas.
Há que antender à toxicidade do lindano, o
que obrigará a dar prioridade a outros fármacos.
Tratando-se de pediculose púbica e/ou axilar
pode utilizar-se lindano loção a 1% no púbis e/ou
axilas 1vez/semana; ao nivel do pénis e escroto há
que preferir creme ou loção não alcoólica.
Definição e importância do problema
A escabiose (sinónimo: sarna) é uma doença cutânea parasitária provocada por infestação pelo
ácaro Sarcoptes scabiei variante hominis, parasita
exclusivamente humano, que não infesta animais
domésticos ou objectos inanimados.
Trata-se duma doença ubiquitária; todas as
idades, raças e grupos sócio-económicos são susceptíveis. No entanto, existem vários factores
que facilitam a sua disseminação: o atraso do
tratamento de casos primários, a falta de alerta
para a doença e as más condições socioeconómicas. A disseminação da infestação entre
membros da mesma família e contactos próximos é frequente, e um dado que favorece o diagnóstico.
A prevalência é maior em crianças, em adultos
com vida sexual activa e em idosos ou acamados.
Etiopatogénese
O Sarcoptes scabiei var. hominis é um ácaro muito
pequeno, arredondado e translúcido, cuja fêmea
mede cerca de 0.4 mm. Tem 4 pares de patas e
reproduz-se pela postura de ovos fecundados.
O ácaro fêmea penetra na epiderme onde escava
e avança lentamente originando a galeria, na
qual põe os ovos e morre ao fim de 6 semanas.
A duração do macho é bastante inferior. Cada
ovo resulta numa larva de 3 pares de patas e que
se vem transformar em ácaro adulto. Este ciclo
dura cerca de 2 semanas. Na primeira infestação
a sensibilização do sistema imunitário pode
demorar duas a seis semanas. As infestações
subsequentes são reconhecidas em 24 a 48
horas.
CAPÍTULO 101 Escabiose
Manifestções clínicas
A história epidemiológica, a distribuição das lesões
(pápulas, vesículas, nódulos e galerias) e o purido
formam a base para o diagnóstico clínico.
O prurido intenso tem classicamente exacerbação nocturna ou é acentuado por banhos quentes.
As lesões cutâneas têm distribuição característica e
simétrica: os locais envolvidos incluem as pregas
interdigitais, punhos, axilas, regiões retroauriculares, região periumbilical, pés e regiões maleolares.
Nas crianças mais velhas e adolescentes as
lesões têm localização semelhante à dos adultos.
No homem são frequentes lesões no pénis e
escroto. Na mulher, os mamilos e a área genital são
frequentemente afectados. Particularmente nas crianças, imunocomprometidos e idosos, todas as
superfícies cutâneas são susceptíveis, incluindo
couro cabeludo e face.
O sinal patognomónico é a presença de galerias
correspondendo ao trajecto do ácaro em forma de
linha quebrada, com poucos milímetros de comprimento. A restantes lesões cutâneas são pápulas
eritematosas, nódulos e lesões secundárias de
coceira. As crianças têm tendência a ter maior
número de lesões que o adulto.
No decurso da evolução de uma sarna não
tratada podem surgir nódulos (escabióticos),
resultantes da intensificação da reacção inflamatória ao ácaro. Estes nódulos podem atingir
mais de 1 cm de diâmetro, são particularmente
frequentes em crianças e, quando considerados
isoladamente, podem originar problemas diagnósticos.
A eczematização e a impetiginização são complicações frequentes.
Crianças com atraso psicomotor grave ou incapazes de se coçar podem ser infestadas por milhares de ácaros, produzindo hiperqueratose
difusa e liquenificação particularmente proeminente nas mãos, pés e orgãos genitais. Esta forma
de escabiose é designada sarna norueguesa ou sarna
crostosa.
Diagnóstico
O prurido com exacerbação nocturna, o quadro
clínico típico e a presença de familiares com
doença pruriginosa permitem o diagnóstico clíni-
511
co. Se necessário, a confirmação faz-se pela
demonstração em exame microscópio directo do
ácaro em hidróxido de potássio a 10%.
Tratamento
O doente e todos os familiares próximos devem
ser tratados simultaneamente, uma vez que é relativamente frequente a existência de portadores
assintomáticos. É importante ainda recordar que
na primeira infestação o prurido só surge 4 a 6
semanas após o contacto. Apesar de o ácaro atingir preferencialmente zonas quentes e húmidas, o
escabicida deve ser aplicado em toda a superfície
cutânea incluindo face e couro cabeludo, nas
crianças com menos de cinco anos. Para reduzir o
potencial de reinfestação, a roupa de uso pessoal,
a roupa de cama e as toalhas devem ser lavadas no
início e no fim do tratamento.
Após tratamento eficaz a maioria dos doentes
melhora do prurido em 3 dias; contudo, o prurido
e as lesões podem persistir 2 a 4 semanas – é o
prurido pós-escabiótico. Esta reacção não implica
falência terapêutica, mas sim uma reacção
imunológica a toxinas ou ácaros mortos. É ainda
importante recordar que os escabicidas tópicos
determinam sempre um certo grau de irritação
cutânea, pelo que a sua aplicação excessiva agrava
a dermite que frequentemente coexiste com a
escabiose.
O medicamento utilizado deve ser aplicado
minuciosamente ao deitar.
Na idade pediátrica os fármacos utilizados
(ectoparasiticidas) são os seguintes:
Nas crianças com idade inferior a 2 anos:
– Lindano (creme) seguido de banho ao cabo
de 6 horas; pode repetir-se a aplicação tópica
1 semana depois.
Nas crianças com idade igual ou superior a 2 anos:
– Lindano (soluto a 1%), aplicação única ou em
3 noites consecutivas; seguida de banho
cerca de 8 horas depois; se aplicação única,
deve repetir-se 1 semana depois.
Nota: A neurotoxicidade deste produto limita
a sua utilização em crianças pequenas (< 2 anos),
grávidas e em formas clínicas em que existam
muitas abrasões na pele.
512
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
– Benzoato de benzilo (soluto a 30%) com aplicação em 3 noites consecutivas, seguindo-se
banho na manhã seguinte à terceira aplicação.
Outros fármacos:
– Crotamitão formulado a 10% em loção ou
creme; não recomendado em idade pediátrica.
– Permetrina (creme a 5%); não se encontra
comercializado entre nós na concentração
referida, salientando-se a sua menor toxicidade e maior eficácia relativamente ao lindano.
– Invermectina: é o única fármaco de administração oral. Não se encontra disponível no
mercado, apesar de ter utilidade em diversas
doenças parasitárias humanas, das quais se
destacam as filaríases. O seu uso na sarna é
restrito às formas refractárias, sobretudo se
associadas a infecção por VIH em crianças
com idade superior a 5 anos.
102
MOLUSCO CONTAGIOSO
Maria João Paiva Lopes
Definição e importância do problema
A afecção designada classicamente por molluscum
contagiosum ou “molusco contagioso” é uma
doença benigna, autolimitada, causada pela
infecção de queratinocitos por um vírus DNA da
família Poxviridae – o vírus do molusco contagioso
– que tem especificidade para células humanas,
não sendo possível cultivá-lo em ovo ou culturas
de tecidos.
O contágio faz-se por contacto cutâneo próximo. Nos adultos frequentemente a transmissão
faz-se por via sexual. O período de incubação
varia de 2 semanas a 6 meses.
A incidência em Portugal é desconhecida,
sabendo-se que se trata de uma doença muito
comum na infância, a partir do 1º ano de vida. Há
surtos associados à frequência de piscinas, sendo
estas um local de contágio habitual. Algumas
séries apontam para prevalências da ordem dos
30% da população em geral, podendo ultrapassar
os 70% na população seropositiva para VIH (vírus
de imunodeficiência humana).
Manifestações clínicas e diagnóstico
Este tipo de infecção cutânea de causa vírica manifesta-se por pequenos módulos procidentes ou
pápulas na superfície cutânea, de cor rosada ou
branco-pérola, umbilicados e cheias de massa
gelatinosa e pegajosa – o corpo do molusco, habitualmente com dimensões entre 1 e 5 mm.
Ocasionalmente podem observar-se lesões com
cerca de 5-10 mm.
Nas crianças as localizações mais frequentes
são as áreas de atrito do vestuário, como as
regiões cervical, axilar e tronco. A doença pode
513
CAPÍTULO 102 Molusco contagioso
também atingir a face, couro cabeludo e membros.
O aparecimento eventual de lesões em localização
anogenital não implica transmissão sexual,
podendo corresponder a auto-inoculação.
O diagnóstico clínico é, na maior parte dos
casos, bastante simples. Nos doentes seropositivos
para o VIH é importante o diagnóstico diferencial
com criptococose que assume aspectos clínicos
muito semelhantes. Uma manobra útil no diagnóstico diferencial consiste em espremer uma
lesão, com pinça: se esta manobra produzir a
expulsão de uma massa esbranquiçada, confirmase o diagnóstico de molusco contagioso. A referida massa – o corpo do molusco – é constituída por
elementos que distendem as células – (corpo de
inclusão citoplásmico, com 20-30µ), os quais são
agregados de partículas – vírus.
Tratamento
sua rápida destruição, antes que estas se multipliquem. A opção pela terapêutica no domicílio,
quando exequível, é a mais favorável, evitando-se
assim “traumatizar” a criança.
BIBLIOGRAFIA GERAL
(Parte XV – Dermatologia)
Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non-atopic eczema. BMJ
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Dermatol 2003; 49: 1088-1095
No que diz respeito ao tratamento, vários autores
advogam que não é imperativo tratar estas lesões,
uma vez que elas são autolimitadas, ocorrendo
remissão espontânea em cerca de 6 a 9 meses, em
média. Porém, há casos com evolução arrastada
(3-4 anos), sendo frequente que a auto-inoculação
produza sementeiras, levando ao desenvolvimento de mais lesões. Assim, parece preferível tentar a
terapêutica precoce, enquanto há um número
reduzido de lesões. O objectivo é destruir as mesmas. As modalidades possíveis incluem espremer
(com aplicação prévia de anestésico tópico) com
pinça de bicos finos, curetagem, crioterapia ou
aplicação local de produtos como podofilotoxina,
cantaridina, verrucidas, tretinoína ou, mais recentemente, imiquimod.
Tratando-se de uma doença benigna e autolimitada, é de bom senso escolher uma terapêutica que não seja mais agressiva ou traumatizante
para a criança do que a doença em si. A avaliação
das particularidades de cada caso (idade, localização e número de lesões) deverá orientar a opção
terapêutica, a qual deve ser ponderada em conjunto com a criança e os pais. De notar que é possível e benéfico ensinar os pais a tratar a criança
em ambiente doméstico, seja pela aplicação de
tópicos, seja pela espressão com pinça com aplicação prévia de anestésico tópico. Deve também
ter-se em atenção a vigilância de novas lesões e a
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Dermatitis II : Chairman’s Introduction and Overview. Br J
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PARTE XVI
Gastrenterologia e Hepatologia
516
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
103
VÓMITOS
esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de
passagem. Concomitantemente as contracções
sincronizadas dos músculos da parede abdominal,
diafragma e intercostais aumentam a pressão
intrabdominal e intratorácica com consequente
expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e,
depois, para o exterior pela boca.
Mafalda Paiva e Filipa Santos
Manifestações clínicas e diagnóstico
Definição
Os vómitos, que consistem na expulsão súbita
pela boca do conteúdo do estômago, com esforço,
são um sintoma muito frequente em idade
pediátrica, com múltiplas etiologias. O vómito
deve ser diferenciado da regurgitação que consiste
na expulsão, sem esforço, do conteúdo gástrico
pela boca; esta última situação é frequente nos
lactentes até aos três meses, não tendo geralmente
repercussões importantes.
Fisiopatologia
O vómito resulta da resposta a diversos estímulos,
coordenados pelo sistema nervoso central em sincronismo com os músculos abdominais e torácicos.
Durante o vómito há três fases: a primeira definese como náusea, consistindo na sensação de vómito iminente, em geral associada a outros sinais e
sintomas, nomeadamente palidez, sudação, sialorreia, taquicárdia e anorexia; a segunda consiste
num movimento espasmódico respiratório contra
a epiglote encerrada; e a terceira, (vómito propriamente dito) que consiste na expulsão retrógrada,
súbita e com esforço, do conteúdo gástrico através
da boca.
Embora seja nítida a existência destas três fases,
cada uma delas pode surgir independentemente
das outras. Nem sempre a sensação de náusea
desencadeia o vómito; por outro lado a estimulação faríngea poderá desencadear o vómito sem
ser precedida de náusea.
Durante o vómito o fundo gástrico relaxa-se e
recebe o conteúdo intestinal sob a forma de um
bolus após contracção do intestino delgado. A
contracção do piloro e do antro gástrico mantém
este conteúdo no interior do estômago e o esfíncter
A avaliação de uma criança que tem vómitos
(Quadro 1) deve iniciar-se com a elaboração da
anamenese, caracterizando os vómitos (alimentares, hemáticos, biliosos, com muco), a sua forma
de apresentação (agudos, crónicos ou cíclicos), e a
repercussão no estado geral (nutricional e na
hidratação). É importante analisar a existência de
outros sinais e sintomas (febre, tosse, dor abdominal, obstipação, diarreia) e a sua apresentação
cronológica, considerando sempre as patologias
específicas de cada idade e a existência de contexto epidemiológico. Na maioria das vezes estes
dados permitem o diagnóstico. Os exames complementares são orientados de acordo com a
suspeita clínica: exames laboratoriais (hemocultura, urinocultura, cultural do liquor) quando há
suspeita de infecção; imagiológicos e/ou endoscópicos quando há suspeita de anomalia anatómica/gastrintestinal; e doseamentos específicos
quando a suspeita é de doença metabólica ou
endócrina.
Sendo o vómito um sintoma comum a muitas
patologias, o diagnóstico diferencial varia com a
idade do doente (Quadro 2). As anomalias
congénitas, as doenças genéticas e metabólicas são
mais frequentes no período neonatal; as causas
pépticas, infecciosas e psicogénicas surgem com
maior frequência na criança mais velha.
A estenose hipertrófica do piloro surge em
cerca de 1/500 nascimentos e resulta de uma
hipertrofia muscular das fibras circulares do
piloro (oliva pilórica). É mais frequente no sexo
masculino e manifesta-se nas primeiras semanas
de vida.
No caso de estenose hipertrófica do piloro os
vómitos surgem após um intervalo livre, em geral
2 a 4 semanas sob a forma de vómitos não biliosos,
pós-prandiais, em jacto, sempre cada vez mais
frequentes e abundantes. A criança fica agitada
517
CAPÍTULO 103 Vómitos
QUADRO 1 – Abordagem do doente com vómitos
Doente desidratado ?
Hemáticos
Sim
Não
Reidratação:oral /ev
Caracterizar os vómitos
Biliosos
Não hemáticos/Não biliosos
Criança/adolescente
RN ou lactente
Hemorragia
digestiva alta?
Sépsis
Meningite
Infecção urinária
Causa obstrutiva?
Não
Letargia ou
Alteração do estado
de consciência
Sim
Obstrução?
(Rx, Ecografia)
Não
Tratamento
antibiótico
Não
Sim
Causas:
endócrina?
metabólica?
neurológica?
Cirurgia
Sim
Causas:
neurológica
metabólica
endócrina
Diarreia ?
Febre?
Não
Sim
Doença péptica
Causas anatómicas
Causas
infecciosas
Adaptado de C D Rudolph, 2003
com fome, pode ter perda ponderal e ficar desidratada. O abdómen fica distendido após as
refeições podendo identificar-se pela inspecção do
abdómen ondas peristálticas gástricas da esquerda para a direita. Se não existir distensão abdominal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica.
O diagnóstico ecográfico permite a identificação
do espessamento e alongamento do canal pilórico;
outros exames complementares podem orientar
como a radiografia esofagogastroduodenal que
demonstra o estômago dilatado com atraso do esvaziamento, e o canal pilórico estreito. O ionograma sérico revela alcalose metabólica hipoclorémica e hipocaliémica. (Capítulo 8, Figura 1)
Uma referência a um quadro clínico designado
por vómitos cíclicos. Os vómitos surgem de forma
recorrente por períodos variáveis podendo eventualmente conduzir a desidratação e alterações do
equílibrio hidroelectrolítico e ácido-base. Podem
ser acompanhados de dores abdominais e de febre.
Em geral desaparecem ou atenuam-se após período de sono e repouso. Estão em geral associados a
história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a
situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas
conseguem descrever associação de cefaleias ao
quadro recorrente de vómitos. O diagnóstico
diferencial deve fazer-se com situações de
obstrução intestinal intermitente (volvo, márotação) e com as doenças metabólicas do ciclo da
ureia.
Complicações
As complicações mais frequentes dos vómitos
mantidos são a perda de electrólitos e fluidos
podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura
da pequena curvatura da junção gastroesofágica
(ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de conteúdo gástrico para a via respiratória com consequentemente pneumonia, exposição da mucosa
esofágica ao conteúdo ácido do estômago com
risco de esofagite, etc..
Tratamento
A manutenção do estado de hidratação é fundamental. Quando é identificada a etiologia dos
vómitos a terapêutica é específica. A utilização de
518
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial dos vómitos de acordo com a idade de apresentação
Causa
Infecciosa
Recém-nascido
Sépsis
Meningite
Infecção urinária
Anatómica
Atrésias
Duplicações
Má-rotação/Volvo
Doença de Hirschsprung
Ileos meconial
Estenose pilórica (<Cl-; <K+)
Refluxo gastroesofágico
Erro alimentar
Pseudobstrução intestinal
Gastrintestinal
Lactente
Gastrenterite
Meningite
Otite média aguda
Infecção respiratória
Estenose hipertrófica do piloro
Hérnia inguinal
Doença de Hirschsprung
Invaginação intestinal
Criança maior
Gastrenterite
Otite média aguda
Sinusite
Adolescente
Gastrenterite
Sinusite
Infecção respiratória
Invaginação intestinal
Hérnia inguinal
Bezoars
Hérnia inguinal
Bezoar
Síndroma de artéria
mesentérica superior
Refluxo gastroesofágico
Esofagite
Alergia às proteínas do leite
de vaca
Gastrite
Doença celíaca
Refluxo gastroesofágico
Gastrite
Apendicite
Pancreatite
Hepatite
Enxaqueca
Tumor
Síndroma de Reye
Diabetes mellitus
Refluxo gastroesofágico
Gastrite
Apendicite
Pancreatite
Hepatite
Discinésia biliar
Acalásia
Enxaqueca
Tumor
Neurológica
Hidrocefalia
Hematoma subdural
Hematoma subdural
Metabólica ou
endócrina
Galactosémia
Defeitos do ciclo da ureia
Hipercalcémia
Intolorância à frutose
Urémia
Hiperplasia congénita da
supra-renal (>K+)
Medicamentos
Outras
Adaptado de Kliegman RM et al, 2007
fármacos anti-eméticos está contra-indicada na
maioria dos lactentes e crianças com vómitos
secundários a gastrenterite aguda, anomalias
estruturais do tracto gastrintestinal, emergências
cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas.
Os anti-eméticos estão indicados em situações
seleccionadas: pós operatório, quimioterapia,
alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e
alterações da motilidade gastrintestinal, etc..
Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida
Primperam® (antagonista de dopamina) → 0,1-0,2
mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperidona Molitilium® → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3
vezes/dia); 3) Dimen-Hidrinato (Dramamina®) →
1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos
com movimento ou em casos de alteração
vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista
Síndroma de vómitos
ciclícos
Ingestão de tóxicos
Intoxicação alimentar
Diabetes mellitus
Gravidez
Porfiria intermitente
Psicogénicos
Bulimia
da motilina) → 2-4 mg/kg iv ou PO até 3
vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante betaadrenérgico → 0,5 mg - 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia
(para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina
(Periactin® → 0,25 - 0,5 mg/kg/dia (para os
vómitos cíclicos), etc..
BIBLIOGRAFIA
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519
104
REFLUXO GASTROESOFÁGICO
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Definição e importância do problema
O refluxo gastroesofágico (RGE) consiste na passagem retrógrada do conteúdo gástrico para o
esófago sem náusea e sem esforço. Esse conteúdo
pode ser alimentar, ácido (ou bilioso quando se
acompanha de refluxo duodeno-gástrico)
O material refluído pode atingir a boca e ser
expelido (situação muito frequente no lactente
pequeno) originando episódios de regurgitação,
ou pode ser empurrado de novo para o estômago
pelo peristaltismo do esófago (episódios de refluxo
não regurgitante). Por vezes o conteúdo refluído
pode ser aspirado para a via aérea (principalmente
nos recém-nascidos pré-termo, recém nascidos e
lactentes pequenos ou crianças com lesões neurológicas) originando uma série de sintomas que
vão do laringospasmo à apneia, passando por
recorrência de sibilância ou pneumonia de aspiração.
Se o refluxo for ácido, a permanência desse
conteúdo no lume esofágico pode levar a lesão da
mucosa (esofagite) ou, através de um mecanismo
reflexo (estimulação de receptores vagais), originar
também fenómenos de broncospasmo. Se no
lactente a quantidade de alimentos regurgitados
for muito considerável, poderá surgir insuficiente
ganho ponderal e desnutrição.
Epidemiologia e história natural
O RGE é um fenómeno muito frequente no
lactente pequeno e a principal causa de envio,
neste grupo etário, a consultas de Gastrenterologia Pediátrica.
Na idade pediátrica o RGE pode classificar-se
em primário ou secundário; o secundário é ori-
520
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ginado por obstáculo anatómico gástrico (estenose hipertrófica do piloro) ou infragástrico
(bridas, má-rotação), ou por uma alteração da
motilidade do tubo digestivo superior causada
por fenómeno inflamatório crónico de origem
infecciosa ou imunológica, mais frequentemente
relacionado com intolerância às proteínas do leite
de vaca (IPLV).
O RGE primário divide-se em: RGE funcional
ou não complicado, traduzido apenas por
regurgitação; e RGE complicado, também chamado doença de refluxo gastro-esofágico (DRGE)
que se acompanha de lesão tecidual e sintomatologia variada do foro digestivo, respiratório ou
neurocomportamental.
Cinquenta por cento dos lactentes saudáveis
apresentam 2 ou mais episódios de regurgitação
por dia entre os 2-10 meses de idade, com um
máximo no grupo dos 4 meses. Por volta dos 8-9
meses, com a introdução progressiva da alimentação sólida e o adquirir da posição levantada, há
uma nítida diminuição dos sintomas com
progressivo desaparecimento destes entre os 18
meses(60-80% dos casos) e os 2 anos(98% dos
casos). Cerca de 5-9% das crianças apresentam um
RGE complicado(contra uma prevalência de
DRGE de 4-30% na população adulta). Alguns
grupos de doentes apresentam uma incidência
superior de DRGE que deve ser sistematicamente
investigada: doentes neurológicos, nomeadamente
com paralisia cerebral(70-80%), doentes operados
a atrésia do esófago(30%) e doentes com fibrose
quística (26%).
Fisiopatologia
O principal mecanismo anti-refluxo , na criança
como no adulto, é o tono basal do esfíncter esofágico inferior (EEI) que se quantifica entre 14-34
mmHg, valor bem superior ao gradiente de
pressão abdominotorácica de cerca de 6 mmHg.
Este tono vai sendo progressivamente adquirido
nos primeiros 3 meses de vida e essa hipotonia
“fisiológica” reveste-se de importância no RGE do
pré-termo mais imaturo.
Um outro factor importante para a prevenção
dos episódios de refluxo é a localização intraabdominal do EEI em 2/3 do seu comprimento.
Assim, um aumento brusco da pressão intra-
abdominal irá também reflectir-se na pressão
basal do esfíncter e não causará refluxo. Poder-seia, pois, concluir que dois factores, isoladamente
ou em conjunto, podem estar na base do RGE:
hipotonia do EEI e má-posição esfincteriana
(esfíncter intratorácico ou hérnia do hiato). Se é
certo que estes factores se encontram frequentemente em crianças com RGE grave e problemas
neurológicos, a verdade é que na maioria das
crianças com RGE nenhum deles apresenta
relevância. Num estudo que efectuámos em 78
crianças com DRGE constatámos, ao analisar o
EEI por manometria esofágica, que apenas 12%
dos doentes tinham uma incompetência esfincteriana (tono inferior a 5 mmHg) e que só 18%
apresentavam um esfíncter totalmente intratorácico, sendo as duas anomalias simultâneas em
6% das crianças.
O mecanismo que assume maior relevância na
génese dos episódios de refluxo parece ser a
relaxação transitória inapropriada (fora da
deglutição) de um EEI de tono normal. Esta
relaxação surge mediada por mecanismos reflexos
(vago-vagais) ligados à excessiva distensão do
fundo gástrico, principalmente por líquidos
(mecanismo protector), ou a atraso do esvaziamento gástrico para líquidos ou sólidos. Na
posição supina forma-se, mesmo no período pós
prandial de neutralização ácida, uma bolsa de
ácido na porção gástrica da junção gastroesofágica, o que facilita a acidificação do esófago
durante os episódios de relaxação transitória do
esfíncter que ocorrem naquela posição.
A segunda linha de defesa do esófago quando
surge um episódio de refluxo é o desencadear de
uma onda peristáltica que empurra o conteúdo
refluído de novo em direcção ao estômago. A
neutralização ácida do esófago é completada pela
deglutição da saliva. A gravidade (na posição
erecta) actua também, facilitando a limpeza do
esófago. Na posição supina (frequente no lactente)
perde-se a acção da gravidade e, quando do sono,
perde-se também a capacidade de deglutição da
saliva, pelo que o RGE surgido nessa ocasião pode
assumir maior gravidade. No entanto, a presença
de dismotilidade esofágica parece ser o factor
decisivo para a manutenção do teor em conteúdo
ácido do esófago. Esta dismotilidade pode ser
primária (nomeadamente nas situações de paralisia
CAPÍTULO 104 Refluxo gastroesofágico
cerebral ou atrésia do esófago), ou secundária à
existência de esofagite, criando um ciclo vicioso em
que o refluxo causa esofagite e esta, através das
alterações motoras que condiciona, facilita o
aparecimento de mais refluxo com agravamento do
processo inflamatório. No estudo anteriormente
referido, 58% das crianças com esofagite apresentavam critérios de dismotilidade grave contra 32% de
doentes sem esofagite.
Finalmente, como terceira linha de defesa, encontra-se a capacidade de resistência ao ácido da
mucosa esofágica, o que depende de factores pré-epiteliais, epiteliais e pós epiteliais, e que é variável de indivíduo para indivíduo; tal explica
que, para o mesmo grau de exposição ácida, haja
diferente gravidade de lesão da mucosa.
Manifestações clínicas
A constelação de sintomas e sinais do RGE é muito variada e, nalguns casos, relacionada com a
idade do doente. De uma forma geral podem
classificar-se em 3 tipos: manifestações digestivas;
manifestações respiratórias; manifestações neurocomportamentais.
1) Manifestações digestivas
A) Lactentes: regurgitação simples, regurgitação com insuficiente ganho ponderal,
sintomas /sinais de esofagite; irritabilidade
geral ou durante a alimentação (habitualmente com perda de peso); hematemese ou
melena; sintomas relacionados com anemia
ferropénica.
B) Crianças maiores: pirose; disfagia; dor epigástrica ou retro-esternal; hematemese
/melena ou anemia ferropénica.
2) Manifestações respiratórias (habitualmente
crónicas ou recorrentes)
A) Via superior: otite média recorrente;
laringite recorrente/crónica; laringospasmo
com apneia (lactente pequeno); engasgamento (lactente pequeno).
B) Via inferior: sibilância recorrente (em crianças não atópicas); asma mal controlada
principalmente nocturna; pneumonia de
aspiração.
3) Sintomas neurocomportamentais (principalmente no lactente): irritabilidade; perturbação
do sono; Apparent Life Threatening events
521
(ALTE); pseudo convulsões/hipotonia; síndroma de Sandifer (torcicolo secundário ao
refluxo).
Diagnóstico
O diagnóstico do refluxo regurgitante é clínico.
Na presença de um lactente com regurgitação, em
primeiro lugar é necessário saber se o refluxo é
primário ou secundário; e, neste último caso,
excluir, nomeadamente, a estenose hipertrófica do
piloro. Quando houver relação temporal entre os
sintomas e a introdução de uma fórmula adaptada, há que admitir possível IPLV.
Na presença de um refluxo primário há que
distinguir entre RGE não complicado e DRGE. Para
isso é fundamental proceder uma história clínica
cuidadosa valorizando os seguintes parâmetros
para um diagnóstico afirmativo de RGE funcional
(sem necessidade de exames complementares):
– Regurgitação mais evidente no período pós prandial imediato, principalmente após
refeição abundante;
– Regurgitação ligada a um estado de agitação
do bébé , principalmente quando acordado;
– Regurgitação mais importante com o leite
que com sólidos;
– Bom ganho ponderal, apesar da regurgitação
– Ausência de sintomas ou sinais de esofagite,
nomeadamente irritabilidade, recusa alimentar ou anemia;
– Ausência de sintomas ou sinais respiratórios
ou neurocomportamentais passíveis de
serem atribuídos ao refluxo.
Quando se suspeita de RGE complicado será necessário recorrer a exames complementares para
avaliação de:
A) Consequências do RGE (nomeadamente
esofagite e estenose péptica) sobretudo no
doente com sintomas digestivos:
– A endoscopia digestiva alta com realização
de biópsias é o melhor exame perante a suspeita de esofagite. Estabelece o diagnóstico,
quantifica a esofagite, identifica critérios
histológicos implicando maior cuidado (esófago de Barrett) e evidencia a presença de
estenose péptica.
– A ecografia só tem interesse para exclusão de
obstáculo pilórico.
522
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
– O trânsito esófago-gastro-duodenal permite
também demonstrar a estenose péptica e a
hérnia hiatal sendo particularmente útil para
excluir obstáculo infra pilórico.
B) Relação de causalidade entre o refluxo e
sintomatologia extradigestiva:
– A ecografia com pesquisa de RGE pode
evidenciar a presença de refluxo associado a
patologia respiratória ou neurocomportamental, sobretudo quando não há regurgitações visíveis. É barato e não invasivo , mas
a sua sensibilidade é variável (pode atingir
65%) dependendo da experiência do ecografista. No entanto, não quantifica o refluxo ,
não o relaciona directamente com os sintomas apresentados e limita-se a um curto
período pós-prandial em que muitas vezes o
RGE é não ácido e fisiológico.
– A pH metria de 24 horas é o exame de eleição
para avaliar crianças com manifestações
extradigestivas e suspeita de RGE. Trata-se
dum método estandardizado, quer quanto a
indicações, quer quanto a procedimentos, por
recomendações recentes da ESPGHAN e
NASPGAN. Permite quantificar o refluxo
ácido através do estabelecimento de um
índice de refluxo (tempo total de pH < 4) que
é variável com a idade, sendo considerado
patológico se for superior a 12% no 1º ano de
vida, e a 6% a partir dessa idade. Permite
ainda estabelecer uma relação temporal entre
o episódio de refluxo e o aparecimento dos
sintomas referidos (tosse, sibilância,apneia
etc). Tem, no entanto, limitações já que só
avalia episódios de refluxo ácido, não
detectando episódios de refluxo alimentar
(neutro) que podem estar relacionados com
fenómenos de aspiração. Novas técnicas como
o método de impedância esofágica poderão
contribuir para o estudo dessa situação.
– A cintigrafia esofágica tem interesse limitado
na avaliação de episódios aspirativos.
C) Estudo pré-operatório
Nos casos em que se torne necessário recorrer ao
tratamento cirúrgico do RGE, o estudo deve ser
muito pormenorizado com exames variados:
trânsito esofágico, endoscopia digestiva alta, pH
metria, manometria esofágica e cintigrafia para
avaliação do esvaziamento gástrico.
Tratamento
O RGE não complicado não necessita de tratamento médico. Os pais devem ser tranquilizados,
informando-os de que se trata de uma situação de
imaturidade fisiológica que irá melhorar ao longo
do tempo. Podem ser tomadas algumas medidas
como o espessamento do leite que diminui a
regurgitação por ser mais viscoso, e também por
aumentar a saciedade do lactente , ficando mais
tranquilo após as refeições. A roupa não deve ser
apertada. A posição em que o lactente deve ser
colocado é controversa . Estudos provam que os
lactentes têm um menor índice de refluxo em
decúbito ventral. No entanto, pela associação
entre essa posição e a morte súbita do lactente, os
riscos habitualmente ultrapassam os benefícios,
pelo que não deve ser rotineiramente recomendada; pode utilizar-se em alternativa o decúbito
lateral esquerdo em colchão duro com elevação da
cabeceira.
Se os sintomas persistirem, pode ser tentada
uma modificação da fórmula para um hidrolisado, para excluir IPLV. A criança deve ser vigiada e reavaliada se os sintomas persistirem para
além dos 18-24 meses, ou se se agravarem.
O tratamento farmacológico deve estar reservado para o RGE complicado. Neste caso, para
além das medidas gerais já descritas, e que na
criança maior ou adolescente incluem também a
restrição de produtos alimentares como o café, o
chocolate e as colas ou o tabaco, (pois todos baixam o tono do EEI), há dois grupos de fármacos
que podem ser usados: Os procinéticos e os
inibidores da secreção ácida gástrica.
Sendo a DRGE uma anomalia primordial da
motilidade do andar superior do tubo digestivo,
teria lógica usar principalmente os procinéticos no
seu tratamento. Dos vários utilizados (metoclopramida, domperidona, cisapride, eritromicina) só o
cisapride demonstrou uma acção consistente de
redução do número e duração dos episódios de
refluxo.
No entanto, a associação (se bem que rara em
Pediatria) entre este medicamento e arritmia cardíaca grave por prolongamento do intervalo QT,
limitou o seu uso a casos muito restritos, sob um
estrito protocolo de segurança, e apenas aplicado
em unidades especializadas.
CAPÍTULO 104 Refluxo gastroesofágico
523
QUADRO 1 – Inibidores da secreção ácida
gástrica
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds).
Tipo
Antagonistas H2
Ranitidina
PPI
Omeprazol
Lansoprazol
Omari T, Barnett C, Benninga M et al. Mechanisms of Gastro-
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders
Elsevier, 2007
Dose
Tomas
2-4 mg/Kg/dia
2xdia
oesophageal reflux in preterm and term infants with reflux
disease. Gut 2002; 51: 475-479
Rosbe K, Kenna M, Auerbach A. Extraesophageal reflux in
0,7-3 mg/Kg/dia
0,5-1,5 mg/Kg/dia
1xdia
1xdia
pediatric patients with upper respiratory symptoms. Arch
Otolaryngol Head Neck Surg 2003; 129: 1213-220
Rudolph C, Mazur L, Liptak G, et al. Guidelines for evaluation
and treatment of gastroesophageal reflux in infants and
Assim, o tratamento do RGE complicado
repousa essencialmente nos inibidores da secreção
ácida que são de dois tipos: antagonistas dos
receptores H2 e inibidores da bomba de protões
(PPI). (Quadro 1)
Estes últimos, pela sua acção mais eficaz ao
longo das 24 horas, são os preferidos, principalmente nos tratamentos a longo prazo. No
tratamento da esofagite ou das manifestações
extradigestivas ligadas ao RGE , o seu uso deve
ser de 6-8 semanas. Muitas vezes, no entanto, o
reaparecimento dos sintomas leva à necessidade
de terapêutica mais prolongada.
O tratamento cirúrgico deve estar reservado aos
casos refractários à terapêutica médica bem conduzida, ou com complicações graves como estenose
péptica. Os doentes com patologia neurológica e
RGE têm frequentemente necessidade de terapêutica
cirúrgica. A técnica mais eficaz é a fundoplicatura de
Nissen, com ou sem piloroplastia associada, que
pode ser efectuada por cirurgia laparoscópica em
centros com experiência. Em adultos têm sido
realizados procedimentos por via endoscópica, como
a gastroplastia endoluminal; contudo, não há ainda
experiência suficiente em crianças para avaliar o
sucesso a médio prazo desta técnica.
BIBLIOGRAFIA
Aggett P, Agostoni C, Goulet O et al. Antireflux or
antiregurgitation milk products for infants and young
children : a commentary by the ESPGHAN Committee on
Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 34: 496-98
Colletti R, Di Lorenzo C. Overview of pediatric gastroesophageal reflux disease and proton pump inhibitor therapy. J
Pediatr Gastroenterol Nutr 2003 ; 37 (Sup 1) : S7-11
Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS (eds). Practical
Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia:
Elsevier, 2004
children: Recommendations of the North American Society
for Pediatric Gastroenterology and Nutrition. J Pediatr
Gastroenterol Nutr 2001; 32 (Sup 2): S1-31
Vandenplas Y. Reflux esophagitis in infants and children : a report
from the working group on gastro-oesophageal reflux disease
of the European Society of Gastroenterology, Hepatology and
Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1994; 18: 413-22
524
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
105
DOR ABDOMINAL
RECORRENTE
José Cabral
Importância do problema
Aple, definiu há mais de 40 anos a dor abdominal
recorrente (DAR), como 3 ou mais episódios de
dor abdominal, suficientemente fortes para
interferirem com a actividade diária durante um
período não inferior a 3 meses consecutivos.
Actualmente e por pressões da sociedade, a
maioria dos clínicos considera, erradamente, um
período mais curto de 1 a 2 meses para a definição
da dor abdominal recorrente (ou crónica).
Tem sido descrita uma prevalência de DAR em
10-15% das crianças em idade escolar entre os 5 e
os 14 anos, com uma maior prevalência no sexo
feminino. Note-se que o termo dor abdominal
recorrente se refere a uma descrição sintomática e
não a um diagnóstico.
Sem ter a possibilidade de recorrer a exames
endoscópicos e com limitações nos exames radiológicos, Apley encontrou uma etiologia orgânica
somente em 5% dos casos de DAR mas,
actualmente, nas Unidades de Gastrenterologia
Pediátrica, em 33% dos doentes com dor
abdominal recorrente é identificada uma causa
orgânica. Assim, na grande maioria dos casos de
DAR, os mesmos são classificados como correspondendo a dor abdominal funcional, devendo
para tal ser aplicados os critérios diagnósticos de
Roma II, adiante explanados.
Diagnóstico diferencial
As variáveis que apontam para um diagnóstico
funcional são um exame físico normal (pode haver
dor à palpação profunda abdominal) e a ausência
de sinais de alarme relativamente a doença
orgânica. Mesmo com exame físico normal, estão
indicados exames complementares de diagnóstico
se houver sinais de alarme de doença orgânica
(Quadro 1) apontando determinados sinais,
sintomas, e quadros clínicos e laboratoriais de
alarme para probalidade de determinada patologia de base (Quadro 2). No entanto, não há estudos que tenham avaliado o uso de exames laboratoriais de rastreio (Quadro 3) para o diagnóstico
diferencial entre dor abdominal orgânica e funcional. Estes exames complementares podem
também ser considerados como uma forma de
acalmar os pais, doente e médico quando o
diagnóstico mais provável é de dor funcional, ou
ser necessários se a dor continuar a afectar gravemente o dia a dia do doente. Todavia, os referidos exames complementares devem ser pedidos
na expectativa de resultado negativo para que não
se crie, no seio da família e da criança, ansiedade
pelo receio de doença grave.
Critérios para a definição
de dor abdominal funcional
(critérios de Roma II)
Em 1999 um grupo internacional de gastrenterologistas pediátricos chegou a um consenso para o
diagnóstico baseado nos sintomas das doenças
gastrintestinais funcionais. Estes critérios diaQUADRO 1 – Sinais de alarme:
causas orgânicas de DAR
Dor bem localizada, longe do umbigo
Dor acordando à noite
Vómitos
Alteração dos hábitos intestinais
Diarreia crónica grave
Atraso de crescimento
Perda de peso
Rectorragias, febre, artralgias, exantema
Fístula/fissura anal
Alterações menstruais
Hemorragia oculta
Alterações laboratoriais (sangue ou urina)
História familiar de doença péptica / DII
Idade < 4 anos
DAR: Dor Abdominal Recorrente; DII: Doença Inflamatória Intestinal
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente
525
QUADRO 2 – Sinais de alarme e patologia de base provável
Sinais de Alarme
• Dor: localizada, não periumbilical, com irradiação
para o dorso ou ombro
• Perda de peso, atraso de crescimento, atraso da puberdade
• Alteração dos hábitos intestinais, hemorragia digestiva,
sangue oculto nas fezes
• Sintomas extra-intestinais: febre, exantema, uveíte, artralgia,
disúria, icterícia
• Viagem ao estrangeiro, exposição a água ou leite contaminados
• História familiar de DII, doença péptica
• Imunodeficiência – congénita, adquirida, pós-transplante
• Ingestão medicamentosa – AINES
• Alterações laboratoriais – anemia, VS↑, parasitas nas fezes
Patologia de Base
• Úlcera duodenal, coledocolitíase, pancreatite
• Doença celíaca, DII da puberdade
• DII, doença péptica, doença celíaca
• DII, lúpus eritematoso disseminado
• Hepatite, giardíase, yersinose
• Úlcera péptica, DII
• Infecção oportunista
• Gastrite
• DII, doença celíaca, parasitose
DII: Doença Inflamatória Intestinal; VS: Velocidade de Sedimentação; AINES: Anti-Inflamatórios Não-Esteróides
gnósticos ficaram conhecidos por critérios de Roma
porque a reunião se realizou nessa cidade.
Utilizando estes critérios baseados em sintomas, os clínicos ficam capacitados para fazer o
diagnóstico na maioria das crianças em idade
escolar com dores abdominais, simplesmente
colhendo a história clínica e fazendo o exame
objectivo (que não revela sinais de doença).
Assim, sem utilizar exames complementares, é
possível fazer com que os pais fiquem satisfeitos e
calmos com um diagnóstico baseado na explicação dos sintomas, com o estabelecimento de um
prognóstico e com um plano de tratamento, desde
que se garanta disponibilidade para reavaliação se
houver determinados dos sintomas.
Um estudo recente validou que 72% das crianças
com DAR podiam ser classificadas num dos subtipos
QUADRO 3 – Rastreio nos casos de dor
abdominal funcional
Hemograma completo e VS
Enzimas hepato-biliares e pancreáticas
Exame sumário de urina
Urinocultura
Exame parasitológico de fezes
Pesquisa de sangue oculto nas fezes
Ultrassonografia abdominal (a ponderar)
Teste do hidrogénio expirado (a ponderar)
VS: Velocidade de Sedimentação
dos critérios de Roma II para as doenças gastrintestinais pediátricas. Estes critérios dividem a dor
abdominal em 5 subtipos: (1) dispepsia funcional
(tipo úlcera, tipo dismotilidade, não específica), (2)
síndroma do intestino irritável, (3) dor abdominal
funcional, (4) enxaqueca abdominal e (5) aerofagia.
1. Dispepsia funcional
Chama-se dispepsia à dor ou desconforto
localizados ao epigastro. O desconforto caracterizase por enfartamento, saciedade precoce, flatulência,
eructações, náuseas ou vómitos.
Critérios de diagnóstico
História de, pelo menos, 12 semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 meses precedentes, de (1) dor ou desconforto persistente ou recorrente no epigastro, (2) na ausência (após endoscopia alta) de doença orgânica que explique os
sintomas e (3) na ausência de alívio exclusivo da
dispepsia pela defecação ou da sua associação com
alterações do número e consistência das fezes.
Na dispepsia tipo úlcera a dor epigástrica é o
sintoma predominante. Na dispepsia tipo dismotilidade o desconforto epigástrico é o sintoma predominante. Na dispepsia não específica os sintomas
não preenchem nenhum dos 2 subtipos anteriores.
Recomendações diagnósticas e clínicas
Na anamnese devem ser investigados factores
526
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dietéticos, psicológicos e sociais (familiares com
doença péptica ou Helicobacter pylori). Devem os
sintomas ser caracterizados em função de poderem corresponder a lesões da mucosa (esofagite,
gastrite, úlcera duodenal), devendo estas hipóteses diagnósticas ser excluídas por endoscopia alta.
Um episódio anterior de infecção vírica pode
sugerir a hipótese de gastroparésia pós-vírica.
A suspeita de doença pancreática, hepática ou
biliar deve conduzir à realização de ecografia
abdominal e doseamentos das enzimas hepatocelulares e pancreáticas (ALT, AST, amilase e lipase).
Tratamento
Os medicamentos e alimentos que possam agravar
os sintomas devem ser interrompidos. Poderão ser
utilizados antagonistas dos H2, inibidores da bomba de protões (omeprazol ou lanzoprazol) ou
sucralfato. Nos casos em que há enfartamento
podem ser utilizados procinéticos (domperidona
ou metoclopramida). Nalguns casos poderão ser
utilizados antidepressivos tricíclicos em doses
baixas (consultar alínea seguinte: 2.).
2. Síndroma do intestino irritável
Na síndroma do intestino irritável o desconforto
abdominal ou a dor estão associados à defecação
ou a alterações dos hábitos intestinais.
Critérios de diagnóstico
História precisa de dor, pelo menos durante 12
semanas, não necessariamente consecutivas, nos
12 meses precedentes, de (1) desconforto abdominal ou dor acompanhados de 2 de 3 características: (a) alívio com a defecação, e/ou (b) início
associado a alteração da frequência das dejecções
e/ou (c) início associado a alteração da consistência das fezes; e (2) inexistência de anomalias
estruturais ou metabólicas que expliquem os
sintomas.
Os sintomas seguintes fornecem suporte
cumulativo ao diagnóstico: (1) frequência anormal
de dejecções (mais de 3 vezes por dia ou menos de
3 vezes por semana); (2) consistência anormal das
fezes (duras ou moles/aquosas); (3) defecação
anormal (grande esforço, urgência, sensação de
evacuação incompleta); (4) passagem de muco; (5)
sensação de distensão abdominal.
Recomendações clínicas e diagnósticas
Avaliação nutricional, avaliação do regime
alimentar (ingestão de fibras nos obstipados e
ingestão de açúcares como o sorbitol e a frutose
naqueles com diarreia). Os sinais de alerta para a
possibilidade de doença orgânica são: dor ou
diarreia nocturna, perda de peso, rectorragias,
febre, artrite, atraso da puberdade e história
familiar de doença inflamatória intestinal. Em
termos de exames complementares poderão ser
realizados hemograma, velocidade de sedimentação, coprocultura e exame parasitológico de
fezes (com pesquisa de antigénios para Giardia
lamblia no caso de diarreia), teste do hidrogénio
expirado, ou prova terapêutica com dieta sem
lactose (2 semanas) na suspeita de intolerância à
lactose. No caso de suspeita de doença inflamatória intestinal está indicada a realização de
colonoscopia com biópsias e/ou exames radiológicos.
Tratamento
Os objectivos do tratamento são: tranquilizar os
pais e o doente, e aliviar os sintomas. Nos doentes
com obstipação deve aumentar-se a dose de fibras
na dieta (dose recomendada de fibras diária =
idade em anos + 5 g), leite de magnésia ou
parafinina. Podem utilizar-se antidepressivos
tricíclicos (imipramina ou amitriptilina) em doses
baixas (0,2 mg/kg ao deitar que podem ser
aumentados 0,2 mg/kg por semana até 1 mg/kg
ou 50 mg/dia). A amitriptilina, pela forte acção
anticolinérgica, é ideal não só para reduzir a dor,
mas também para melhorar o sono e a diarreia.
Nos doentes com obstipação é preferível o uso da
imipramina.
3. Dor abdominal funcional
É definida como dor abdominal persistente na
ausência de doença e na qual não se reconhece
nenhum padrão de dor ou de sintomas acompanhantes. A dor não se relaciona temporalmente
com a ingestão de alimentos, defecação ou exercício. São frequentes alguns sintomas extraabdominais como cefaleias, fadiga e dores no corpo. Algumas destas crianças são perfeccionistas
enquanto outras têm dificuldades de aprendizagem que os pais não reconhecem.
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente
Critérios de diagnóstico
Pelo menos 12 semanas de (1) dor abdominal
contínua ou quase contínua numa criança em
idade escolar ou adolescente; (2) sem nenhuma
ou quase nenhuma relação com acontecimentos
fisiológicos (por exemplo: alimentação, período
menstrual ou defecação); (3) com alguma
interferência no dia a dia; (4) com a certeza de a
dor não ser fingida (não há simulação de doença);
e (5) não haver critérios suficientes para se colocar
o diagnóstico de outra doença gastrintestinal
funcional explicando os sintomas.
Recomendações clínicas e diagnósticas
Devem ser investigados factores psicológicos que
incluem ansiedade e/ou depressão na criança e
família, somatização, fobia à escola, e ansiedade
da separação. O exame físico, o crescimento e os
resultados dos exames complementares devem
ser normais (hemograma, VS, exame sumário de
urina, exame parasitológico e sangue oculto nas
fezes, exames bioquímicos correntes, ecografia
abdominal, teste de hidrogénio expirado). Os
exames devem ser realizados de modo criterioso
evitando que causem ansiedade na criança e
família pelo receio de doença grave de difícil
diagnóstico.
Tratamento
Há que tranquilizar e explicar como ocorrem os
sintomas na ausência de alterações nos exames
complementares. Deve ser dado suporte psicológico à criança e família.
4. Enxaqueca abdominal
É uma doença paroxística afectando cerca de 2%
das crianças e caracterizada por dor aguda,
incapacitante, não-cólica, localizando-se na região
periumbilical, que dura horas e é acompanhada
de palidez e anorexia. Na sua manifestação característica há antecedentes pessoais e familiares
de cefaleia típica de enxaqueca.
Critérios de diagnóstico
Consideram-se os seguintes critérios: (1) 3 ou mais
episódios paroxísticos de dor abdominal aguda,
nos 12 meses precedentes, intensa, periumbilical
durando de 2 horas a vários dias com intervalos
527
livres com a duração de semanas a meses, (2)
ausência de doença bioquímica ou estrutural
metabólica, gastrintestinal ou do sistema nervoso
central, e (3) 2 das seguintes características (a)
cefaleias durante os episódios, (b) fotofobia
durante os episódios, (c) história familiar de
enxaqueca, (d) hemicrânia, (e) aura visual,
sensorial ou motora.
Recomendações clínicas e diagnósticas
Quando o quadro de dor abdominal é acompanhado de história típica de enxaqueca, o diagnóstico
é simples e imediato, sendo de presunção nos
outros casos. Todas as outras causas de dor
abdominal grave intermitente devem ser consideradas incluindo a uropatia obstrutiva, a obstrução
intestinal intermitente, a pancreatite recorrente, a
doença hepatobiliar, lesão intracraniana ocupando
espaço, e doenças metabólicas. A doença péptica é
muitas vezes considerada no diagnóstico diferencial porque uma das suas formas de apresentação é o aparecimento de dor nocturna ou de
manhã cedo; diferencia-se da enxaqueca abdominal porque nesta há períodos livres de dor entre
os episódios. O diagnóstico de enxaqueca abdominal pode também ser sustentado pela resposta à
medicação profiláctica para a enxaqueca.
Tratamento
O pizotifen (antagonista dos receptores da
serotonina) tem sido utilizado como profiláctico.
5. Aerofagia
Consiste na deglutição excessiva de ar conduzindo à distensão abdominal progressiva. O desconforto abdominal daí resultante pode limitar a
ingestão de alimentos.
Critérios de diagnóstico
Constituem critérios a verificação de 2 ou mais dos
seguintes sinais e sintomas: (1) deglutição de ar, (2)
distensão abdominal por ar intraluminal e (3)
erutações ou aumento da emissão de gases, pelo
menos durante 12 semanas, não necessariamente
consecutivas, nos 12 meses precedentes
Recomendações clínicas e diagnósticas.
Na sua forma característica a distensão abdominal
528
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Critérios de referência
ao Gastrenterologista
Se não houver resposta à terapêutica inicial
Segunda opinião
Avaliação de doenças menos frequentes
Para realização de exames:
Teste hidrogénio expirado (intolerância à lactose)
Endoscopia alta (dispepsia: úlcera péptica, gastrite por
Hp)
Colonoscopia (diarreia grave ou com sangue: DII)
DII: Doença Inflamatória Intestinal; Hp: Helicobacter pylori
a infecção parasitária e a gastrenteropatia alérgica;
em casos seleccionados poderá estar indicada a
endoscopia alta ou baixa.
O teste do hidrogénio expirado pode ser necessário para documentar a intolerância à lactose ou
distinguir a distensão abdominal da aerofagia que
é provocada por contaminação bacteriana intestinal (Quadro 4).
BIBLIOGRAFIA
Biggs AM, Aziz Q, Tomenson B, Creed F. Effect of childhood
adversity on health related quality of life in patients with
upper abdominal or chest pain. Gut 2004; 53: 180-186
Faure C, Wieckowska A. Somatic referral of visceral sensations
na aerofagia agrava-se ao longo do dia e desaparece durante o sono com a emissão de gases.
Por vezes há história de consumo excessivo de
pastilhas elásticas e bebidas gaseificadas. É
importante averiguar a possibilidade de acontecimentos na família que pudessem ter causado
ansiedade, pois esta é uma causa frequente de
deglutição excessiva de ar. O crescimento é normal. A aerofagia pode ser confundida: com o
refluxo gastro-esofágico (pelos “barulhos” na
garganta ouvidos pelos pais); com a pseudoobstrução intestinal crónica; e com a doença de
Hirschsprung (pela distensão abdominal).
and rectal sensory treshold for pain in children with
functional gastrointestinal disorders. J Pediatr 2007; 150: 6671
Hyams JS. Chronic and recurrent abdominal pain. In Hyman
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Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, et al. Childhood
functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 (Suppl
II): 60-68
Tratamento
Há que tranquilizar, e explicar os sintomas,
podendo ser necessária psicoterapia.
Walker LS, Lipani Ta, Greene JW, et al. Recurrent abdominal
Apoio da gastrenterologia pediátrica
Zeiter DK, Hyams JS. Recurrent abdominal pain in children.
pain: symptoms subtypes based on the Rome II criteria for
pediatric functional gastrointestinal disorders. J Pediatr
Gastroenterol Nutr 2004; 38: 187-191.
Pediatr Clin North Am. 2002; 49: 53-71
O pediatra e o médico de família devem ser
capazes de diagnosticar e tratar a maioria das
doenças gastrintestinais funcionais. Como muitos
destes problemas são habitualmente crónicos e
por vezes não respondem à terapêutica inicial,
pode ser necessário pedir uma segunda opinião e
prosseguir a avaliação de doenças menos frequentes através do envio da criança a centro
especializado. No doente com dispepsia, o
diagnóstico de dispepsia funcional só pode ser
feito com certeza após a realização de endoscopia
digestiva alta.
No doente com síndroma do intestino irritável
pode ser necessário excluir a doença inflamatória
intestinal, a intolerância aos hidratos de carbono,
CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori
106
DOENÇA PÉPTICA
E HELICOBACTER PYLORI
José Cabral
Definições e importância do problema
O termo gastrite significa inflamação microscópica
da mucosa gástrica, não devendo ser utilizado
como um diagnóstico clínico, radiológico ou
endoscópico. A úlcera péptica é o termo para designar lesões profundas da mucosa que ultrapassam
a muscularis mucosa da parede gástrica ou duodenal, enquanto as erosões pépticas não a ultrapassam. Úlcera e erosões pépticas englobam a chamada doença péptica ulcerosa.
A gastrite e a doença péptica ulcerosa podem
ser subdivididas em primárias e secundárias. A
maioria das gastrites primárias são provocadas
pelo Helicobacter pylori (Hp); neste capítulo faz-se
referência apenas a estas.
Dois argumentos implicam o Hp como causa
de gastrite crónica na criança: (1) o facto de todas
as crianças colonizadas pelo Hp terem gastrite
crónica; e (2) o achado de que a erradicação da
bactéria da mucosa gástrica conduz à cicatrização
da gastrite, tanto na criança como no adulto.
Com efeito, o Hp encontra-se na mucosa do
antro gástrico em quase 90% das crianças com
úlcera duodenal e a sua erradicação leva à
cicatrização duradoira da doença ulcerosa duodenal tanto na criança como no adulto.
Apectos epidemiológicos
A infecção por Helicobacter pylori (Hp) é
considerada, no Homem, a infecção crónica mais
prevalente no mundo. Nos países em desenvolvimento, 70 a 90% da população está infectada
por Hp. Nos países desenvolvidos a prevalência é
529
menor, variando entre 30 e 60%. De um modo
geral, a frequência da infecção é mais elevada nos
grupos económicos mais desfavorecidos. Em
Portugal é cerca de 70 a 90% nos adultos, e 50%
nas crianças.
Os dados da literatura sugerem que a taxa de
aquisição da infecção é muito baixa na idade
adulta e que a maioria das infecções é adquirida
na infância (geralmente abaixo dos 5 anos),
podendo persistir durante toda a vida se não for
tratada. O maior factor de risco de aquisição da
infecção na infância são as más condições sócioeconómicas. Outros indicadores de pobreza e de
precárias condições de higiene como a partilha de
camas e um grande número de irmãos constituem
factores de risco adicionais.
Etiopatogénese
O estômago do homem e o de alguns primatas
parecem ser os únicos reservatórios do Hp, não
sendo conhecido qualquer reservatório ambiental.
A fragilidade do Hp em condições laboratoriais
sugere que a viabilidade da bactéria fora do
hospedeiro é limitada, embora haja evidência
sugestiva de que o microrganismo possa sobreviver no ambiente na sua forma cocóide. As unhas
com sujidade e a boca são reservatórios importantes de Hp. A transmissão faz-se essencialmente
por três vias: fecal-oral, oral-oral, gastro-oral.
Como tal, a transmissão interfamiliar e institucional adquire um peso muito importante. De
referir igualmente a transmissão através de doentes sujeitos a ressuscitação boca-a-boca e de leite
de cabra não pasteurizado.
A bactéria já foi detectada nas fezes de crianças
malnutridas com trânsito intestinal muito rápido
e já foi isolada a partir da placa dentária. A forma
gastro-oral parece ser uma via de transmissão
frequente entre crianças, ocorrendo particularmente em infantários e escolas, sobretudo através
da emissão do conteúdo gástrico (vómito).
A transmissão por via endoscópica também foi
documentada quando não são cumpridas as
regras de desinfecção e esterilização dos endoscópios. A água não tratada e a mosca doméstica
poderão ser veículos de transmissão. A taxa de
reinfecção em crianças tratadas, com idade
superior a 5 anos, é apenas 2%. Associados à
530
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
infecção por Hp estão descritos a gastrite, a úlcera
duodenal, a úlcera gástrica, o adenocarcinoma
gástrico e o linfoma gástrico. Alguns estudos seroepidemiológicos têm sugerido um aumento de 2 a
6 vezes do risco de cancro gástrico em portadores
de Hp. O risco de cancro gástrico é mais elevado
em doentes com gastrite predominante no corpo
gástrico, atrofia gástrica e metaplasia intestinal.
Nos doentes com úlcera duodenal (que têm
gastrite predominantemente no antro) não se
desenvolve cancro gástrico. O Hp tem sido
implicado como factor etiológico do linfoma
MALT. A erradicação do Hp conduz à resolução
completa de 75% dos linfomas MALT gástricos.
Múltiplos estudos fazem referência à eventual
acção dos mediadores inflamatórios circulantes
consequentes à infecção pelo Hp com responsabilidade variável nas manifestações de algumas
doenças extradigestivas (doença isquémica
coronária, púrpura de Schönlein Henoch, anemia
ferropénica, etc.).
Manifestações clínicas da infecção
por Helicobacter pylori
A maioria das crianças infectadas é assintomática.
Não existe nenhum quadro clínico específico que
indique a necessidade de rastreio do Hp.
Actualmente não está provada uma ligação entre
gastrite por Hp e dor abdominal na ausência de
úlcera péptica. Considerando que a dor
abdominal recorrente ocorre em 15% das crianças
em idade escolar, não devem estas crianças ser
submetidas a testes não invasivos ou endoscopia
para detectar uma infecção por Hp. Não há
qualquer ligação entre a dor abdominal recorrente
e a infecção por Hp.
Diagnóstico
Para o diagnóstico podem ser utilizados testes
invasivos (que requerem endoscopia com biópsias)
e testes não invasivos.
1) Testes invasivos: exame histológico, exame
cultural (antibiograma), teste rápido da urease e
PCR (reacção em cadeia da polimerase);
2) testes não invasivos: anticorpos no soro e
sangue total, anticorpo na saliva, anticorpo na
urina, antigénio nas fezes, teste respiratório com
ureia marcada com 13C (os quais evidenciam
sensibilidade e especificidade de 95% somente
após os 5 anos de idade).
A biópsia permite não só pôr em evidência as
consequências da infecção por Hp (classificando a
gastrite ao microscópio óptico), como também
visualizar a própria bactéria, cultivá-la (o que
parece ser fundamental, pois permite obter um
teste de sensibilidade aos antibióticos), e fazer o
teste rápido da urease.
Nos doentes seguidos na Consulta de
Gastrenterogia do Hospital Dona Estefânia tem
sido verificada uma taxa de resistências muito alta
em relação à claritromicina (44,8%) e ao
metronidazol (19%) com 8,4% de resistências a
estes 2 antibióticos, o que torna o antibiograma
fundamental para a instituição da terapêutica.
A detecção do Hp por técnicas de biologia
molecular, (das quais a mais divulgada é a reacção
de amplificação genética por método da PCR),
evidencia elevadas sensibilidade e especificidade,
permitindo a tipagem molecular de diferentes
estirpes de Hp.
Estão disponíveis muitos testes para o sangue
total e soro, mas a variabilidade de precisão entre os
kits faz com que a sua sensibilidade e especificidade
oscile, nos diversos estudos, entre os 60 e os 93%.
Por outro lado, a serologia não distingue entre
infecção actual e infecção prévia, uma vez que o
título de anticorpos desce lentamente após a cura.
Portanto, a serologia não é adequada para
monitorizar a resposta ao tratamento.
Os testes na saliva e urina ainda são menos
sensíveis e não podem ser recomendados.
A pesquisa de antigénios nas fezes é um teste
muito promissor para estudos de investigação
epidemiológica, diagnóstico e avaliação do
sucesso do tratamento.
O teste respiratório, com elevadas sensibilidade e especificidade (>95%), tanto em adultos
como em crianças acima dos 5 anos, pode ser
influenciado pelo uso de antibióticos e de agentes
supressores da acidez. Os resultados em crianças
com idades inferiores a 5 anos podem ser
influenciados, tanto positiva como negativamente, pela presença de organismos produtores
de urease na cavidade oral ou por técnica
incorrecta, mas a sua sensibilidade é superior a
90% no grupo dos 2-5 anos.
CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori
Em resumo, o diagnóstico da infecção por Hp
deve basear-se somente na endoscopia com
biópsias preferencialmente com exame cultural e
teste de sensibilidade aos antibióticos, reservandose o teste respiratório para a avaliação da eficácia
terapêutica.
Notas importantes
Somente se deve investigar infecção por Hp:
quando os sintomas de dor abdominal e/ou
vómitos forem sugestivos de doença orgânica
(úlcera péptica/esofagite) e houver necessidade
de endoscopia; se numa endoscopia for observada
uma lesão sugestiva de linfoma MALT e após o
tratamento de infecção por Hp na doença péptica
ulcerosa.
Não está indicada a investigação de infecção
por Helicobacter pylori em situações de dor
abdominal recorrente sem sintomas de dispepsia
nas crianças assintomáticas, mesmo com história
familiar de cancro gástrico ou com úlcera péptica
recorrente familiar.
Somente se deve instituir terapêutica antiinfecciosa de erradicação do Hp quando existir
úlcera duodenal ou úlcera gástrica (rara), história
anterior de úlcera péptica e anemia ferropénica
refractária.
531
(2) OAM=O+A+Metronidazol (M) 20 mg/Kg/dia
até 500 mg, 2x/dia;
(3) OCM=O+C+M.
As opções de 2ª linha (tetraciclinas, quinolonas,
bismuto coloidal) ficam reservadas para as
estirpes de Hp multirresistentes, em esquemas
triplos ou quádruplos com duração de 14 dias.
Recentemente, em adultos com estirpes multirresistentes, têm sido utilizados tratamentos
duplos com doses elevadas de amoxicilina (4x750
mg) e omeprazol (4x40 mg), com taxas de erradicação de 84%.
Estão descritos casos de crianças com anemia
ferropénica refractária que responderam à
terapêutica marcial só após a erradicação do Hp.
Nestas crianças, e se não houver queixas de dor ou
dispepsia que justifiquem uma endoscopia,
poderá ser feito o teste respiratório para rastreio
da infecção por Hp.
Nos doentes com infecção por Hp, tratados, a
resposta à terapêutica deve ser avaliada com
teste não invasivo de confiança. O teste
respiratório da ureia marcada com 13C é de
confiança nas crianças acima dos 5 anos de idade.
BIBLIOGRAFIA
Cabrita J, Oleastro M, Matos M, et al. Features and trends in
Helicobacter pylori antibiotic resistance in Lisbon area,
Portugal (1990-1999). Journal of Antimicrobial Chemothe-
Não há indicação para tratar uma infecção por
Helicobacter pylori nas crianças assintomáticas,
mesmo com antecedentes familiares de úlcera
péptica ou cancro gástrico, ou nos casos de dor
abdominal recorrente não acompanhada de
queixas dispépticas, diarreia persistente ou
dispepsia não ulcerosa.
rapy, 2000; 46: 1029-1031
Czinn SJ. Helicobacter pylori diagnostic tools: Is it in the stool?
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treatment. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2000; 31: 490-497
Shah R. Dyspepsia and Helicobacter pylori. BMJ 2007; 334: 4143
Esquemas de tratamento da infecção por
Helicobacter pylori
Opções de 1ª linha (tratamentos com duração de
7 dias com 3 medicamentos e de acordo com o
teste de sensibilidade aos antibióticos ou a
prevalência de resistência na região):
(1) OAC = Omeprazol (O) 1 mg/Kg/dia até 20 mg,
2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/Kg/dia até 1
grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/Kg/dia
até 500 mg, 2x/dia;
Sherman P, Czinn S, Drumm B, et al. Helicobacter pylori
infection in children and adolescents: working group report
of the first world congress of pediatric gastroenterology
and nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 35: S128S133
532
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
107
GASTRENTERITE AGUDA
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral
Definição e importância do problema
A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico
resultante da inflamação aguda das mucosas do
estômago e do intestino, o qual se traduz por
vómito e diarreia.
A diarreia é um aumento da excreção fecal de
água e electrólitos reflectindo, dum modo geral,
alteração do transporte hidro-elecrolítico no
intestino delgado e cólon, de causa infecciosa
(maioria das vezes), ou em relação com perturbações da motilidade intestinal, menos frequentemente. Trata-se duma patologia muito frequente
em idade pediátrica, estimando-se que nos países
industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios
por ano em cada criança com idade inferior a 5
anos. No Hospital Dona Estefânia cerca de 30%
dos internamentos, independentemente da respectiva duração, têm como causa a GEA. Nos
países em vias de desenvolvimento a GEA é
responsável anualmente por cerca de 5 milhões de
óbitos em crianças com menos de 5 anos.
Fisiopatologia
O transporte de água é um fenómeno passivo e
secundário a gradientes osmóticos através da
parede intestinal; os referidos gradientes osmóticos podem ser gerados pelo transporte activo de
electrólitos, ou pela presença de solutos sem electrólitos, como açúcares e aminoácidos.
Em circunstâncias de normalidade existe uma
secreção activa que contribui para manter a fluidez do conteúdo intestinal facilitando, designadamente, a eliminação de subtâncias potencialmente citotóxicas.
Esta secreção ocorre simultaneamente com
uma absorção hidro-electrlítica sendo que o balanço entre absorção e secreção depende de mecanismos hormonais “informando” o intestino sobre a
necessidade do organismo em sal e água (aldosterona, VIP, HAD, etc.).
Normalmente predomina o processo de absorção; em situações de doença diarreica predomina
a secreção.
Neste processo o electrólito mais importante é
o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a
partir do lume intestinal como resultado dum
gradiente condicionado, por sua vez, pela saída
de Na+ da célula para o meio interno (plasma),
processo comparticipado por uma bomba de
sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na membrana baso-lateral.
A saída activa de Na+ condiciona a electronegatividade necessária para a entrada de Na+ a partir do lume intestinal. Acompanhando a entrada
de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos,
di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais
biliares utilizando, para tal, determinados transportadores que existem na membrana das células
de “bordadura em escova”.
O Cl- e o K+ também são transportados, entrando para o interior da célula.
No processo de secreção tomam parte o
hidrogénio, o bicarbonato e, também o cloro.
Nos processos de transporte iónico (entrada na
célula) participam mediadores intracelulares de
regulalção: por ex. AMPc, cálcio, etc..
Na prática, são descritos três grandes mecanismos fisiopatológicos da doença diarreira: osmótico, secretório, e alteração da motilidade intestinal,
sendo que poderá haver associações dos mesmos
em função do factor etiológico.
Na diarreia osmótica a lesão da mucosa
intestinal provoca uma diminuição da capacidade
digestiva de absorção, fazendo com que os
nutrientes não absorvidos no intestino delgado e
atingindo intactos o cólon, exerçam uma força
osmótica induzindo a saída de água e,
consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais
grave quanto maior a concentração destes solutos.
Como na maior parte dos casos o nutriente em
questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir
o cólon, é digerido pelas bactérias da flora normal
produzindo partículas menores exercendo assim
uma maior força osmótica, agravando a diarreia.
CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda
A diarreia, em geral, não é abundante e melhora
quando se suspende a ingestão do nutriente considerado agressor.
Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são
os resultantes de deficiência (congénita ou
adquirida) de dissacaridases (lactose e sucrase –
isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose,
da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e
de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis
(sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio).
A diarreia secretória é, em geral, provocada
por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas
formas (adesão/invasão do epitélio, produção de
enterotoxinas, citocinas), causando um aumento
da secreção das células intestinais (por activação
do AMP-C e GMP-C).
A diarreia também pode ser motivada por
alterações da motilidade do tracto gastrintestinal
as quais conduzem secundariamente a alteração
no transporte hidro-electrolítico no intestino
delgado e no cólon.
Embora sejam descritos separadamente estes
diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles
coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um
bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com
alteração da absorção e formação de diarreia
osmótica; mas, simultaneamente determinada
proteína que faz da composição do rotavírus, que
actua como enterotoxina, induz aumento de
secreção das células intestinais.
Nota: A diarreia por alteração da motilidade
sem repercussão no transporte hidro-electrolítico
enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas
recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos,
cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episódios de diarrreia aguda com períodos de
normalidade) integrando a entidade designada
por “diarreia crónica não específica”, abordada no
capítulo 111.
Factores etiológicos
Nos países industrializados a causa mais frequente de GEA é a infecção por rotavírus explicando
cerca de 50% dos casos em crianças com menos de
2 anos, sobretudo no Inverno. Outros vírus como
o adenovírus, o coronavírus, o calicivírus e os
astrovírus têm sido igualmente implicados,
embora menos frequentemente.
533
Os agentes bacterianos são menos frequentes
nos países industrializados. O Campylobacter
jejunii, a causa mais frequente das infecções bacterianas nos países industrializados, está muitas
vezes associado a dores abdominais e a fezes com
sangue. A Yersinia origina quadro semelhante. A
Shigella e algumas espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo disentérico caracterizada
por diarreia profusa com sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode igualmente existir febre
alta e convulsões.
O vibrião colérico e a E. coli com produção de
enterotoxinas podem originar diarreia abundante
e desidratação grave surgidas de modo agudo.
A giardíase provoca na sua forma característica diarreia intermitente e má absorção de
gorduras.
Manifestações clínicas
A apresentação clínica da GEA depende de vários
factores, nomeadamente a idade, o estado imunitário e nutricional do hospedeiro, assim como as
características do agente infeccioso (Quadro 1) .
Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia,
assim como as características e duração dos
mesmos. No exame objectivo é necessário pesquisar sinais de desidratação: mucosas secas,
diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea),
depressão da fontanela anterior, olhos encovados,
ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso
fraco e hipotensão.
Se a criança apresentar avidez pela água
apesar de desidratação aparentemente ligeira, há
que considerar a hipótese de se tratar de
desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando
a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à
custa de soluções hipertónicas. Frequentemente
existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as
fezes são ácidas, pela presença de hidratos de
carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode
surgir eritema perianal. O estado nutricional
deverá ser avaliado estando o respectivo compromisso em relação com má absorção de proteínas,
gordura ou hidratos de carbono.
Diagnóstiico diferencial
No que respeita à destriça entre GEA de causa
QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica
Micróbio
Rotavírus
Transmissão
Fecal-oral
Respiratória
Fecal-oral
Água
Crustácios
Fecal-oral
Incubação Duração
2-4d
3-8d
Calicivírus
(E. coli)
EHEC
(E. coli)
ETEC
(E. coli)
EIEC
(E. coli)
EPEC
(E. coli)
EAEC (E. coli)
Salmonella
Adenovírus
Norwalk
3-10d
1-2d
5-12d
2d
1-4d
5-6d
Fecal-oral; água
Respiratória possível
Carne mal cozida;
água
Água
12-72h
4-8d
1-8d
3-6d
10h-6d
1-5d
Fecal-oral; água;
alimentos
Igual
10h-6d
Igual
Ovos, carne;
lacticínios; água
Igual
6-48h
>14d
2-7d
Shigella
Fecal-oral; alimentos
1-7d
48-72h
Dor; febre alta; diarreia
com muco e sangue
Yersinia
Fecal-oral; carne porco;
água; leite
4-6d
1-46d
Campylobacter
Aves; água; leite
1-7d
5-7d
Giardia lamblia
Fecal-oral; água;
alimentos
1-4sem
>1sem
Vómitos, febre, dor; diarreia com sangue, muco e
leucócitos
Febre; dor; diarreia com
sangue;
Dor; flatulência
variável
variável
2-14d
1-20d
0-5d
30m-8h
5-7d
1-2d
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Astrovírus
534
Clínica
Vómitos; febre baixa;
diarreia aquosa
Diarreia
Vómitos
Diarreia
Vómitos; febre
Dor abdominal
Vómitos; dor
Febre baixa
Dor, febre (30%)
Diarreia sanguinolenta
Vómitos; dor; febre
baixa; diarreia aquosa
Febre; diarreia com
leucócitos
Diarreia aquosa grave
Clostridium
dificille
Criptosporidium
Vibrio cholerae
S. aureus
Fecal-oral; piscinas;
água
Marisco; água
Alimentos
Igual
Vómitos; febre; dor; diarreia sanguinolenta
Diarreia com sangue e
muco; febre (raro)
Vómitos; dor; diarreia
aquosa
Diarreia profusa
Vómitos, dor
Predisposição
Hospitalização
Infantário
Época
Inverno
Idade
<2A
<4A
Hospitalização
Infantário
Infantário
Inverno
Complicações
Desidratação; intolerância
aos HC; excreção crónica
Invaginação intestinal
<4A
<4A
SHU; colite hemorrágica;
convulsões
Viagens
Países em desenvolvimento
Idem
Acloridria; mánutrição; anemia de
células falciformes
Infantário; viagens; piscinas
Infantário
Agamaglobuliné
mia; acloridria;
piscinas; infantário; pancreatite
Hospitalização;
antibioticoterapia;
Infantário; piscinas;
imunossupressão
Viagens
<2A
Desidratação
<4A
Bacteriémia; meningite;
osteomielite
Verão
Outono
<5A
Inverno
<1A
Bacteriémia; convulsão;
SHU; perfuração; síndroma de Reiter
Pseudo-apendicite; perfuração; invaginação; exantema; bacteriémia
Bacteriémia; meningite;
colecistite; pancreatite
Má absorção de gorduras;
diarreia crónica ou intermitente
Verão
Verão
Outono
Verão
Diarreia crónica; portador
crónico
Diarreia crónica no imussuprimido
Desidratação rápida
Desidratação
CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda
QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre
diarreia osmótica e secretória
Diarreia
secretória
Substâncias redutoras*
(-)
Na+ fecal
>70 mEq/L
pH fecal
>6
Volume fecal
>200 ml/dia
Resposta ao jejum
não melhoria
Diarreia
osmótica
(+)
<70 mEq/L
<5
<200 ml/dia
melhoria
* A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntarse à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n.
vírica e de causa bacteriana apresentam-se as
seguintes características como orientação; 1) na
GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes;
sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes;
febre mais raramente; 2) na GEA de causa
bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue,
muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente.
Relativamente à destrinça entre diarreia secretória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é elucidativo.
Tratamento
A identificação do agente etiológico na maioria
das vezes não é necessária porque a doença é
autolimitada e o tratamento é idêntico independentemente da causa.
As medidas de suporte consistem em:
1º) Usar soro de hidratação oral para compensar
a desidratação estimada (em 3 a 4 horas).
2º) Usar solução hipo-osmolar (60mmol/L de
sódio e 75-110mmol/L de glicose) que promove a
reabsorção de sódio e água no intestino delgado.
Bebidas com excesso de hidratos de carbono
(cuja concentração exceda a de sódio em 2/1)
agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão
no intestino.
O chá também não é ideal pois tem uma baixa
concentração de sódio e potássio.
Sempre que possível tentar a hidratação oral
com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo
na criança que não aparente sinais de desidratação.
Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5ml)
em cada 5 minutos; e se houver tolerância pode
aumentar-se para 15-30ml em cada 5-10 minutos.
535
Posteriormente, quando a criança se tornar mais
cooperante, deverá ingerir doses crescentes durante cerca de 4 horas.
3º) Não interromper o aleitamento materno
oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto
existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou
diluídas não se justifica
4º) Retomar o regime alimentar habitual após as
4 horas de reidratação.
Nas crianças com diarreia moderada a grave
deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta
para minorar os efeitos da deficiência transitória
de dissacaridases por lesão das células intestinais,
o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após
a diarreia.A intolerância à lactose pode ser
confirmada pela presença de substâncias redutoras nas fezes.
5º) Prevenção de nova desidratação com
suplementos de soluto enquanto existir diarreia
(oferecer 10ml/Kg por cada dejecção) e vómitos
(2ml/Kg por episódio).
6º) Evitar medicação desnecessária. Os antimuscarínicos (ex: loperamida) alteram a motilidade intestinal, diminuindo a diarreia e a distensão abdominal; no entanto, na infecção por bactérias invasivas ou produtoras de citotoxinas é
favorecido o contacto da bactéria com a mucosa
intestinal com agravamento do quadro clínico.
Por consequência, não estão recomendados nas
criança.
Os antibióticos devem ser usados em casos
específicos para diminuir a duração da doença e a
excrecção do microrganismo, sendo necessária
uma coprocultura com antibiograma antes de
inciar a terapêutica.
Nas situações com isolamento de Salmonella a
antibioticoterapia pode prolongar o tempo de
excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda
induzir o aparecimento de estirpes resistentes.
Está indicada apenas na febre tifóide ou na
gastrenterite acompanhada de sinais de doença
sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a
três meses, situações com imunodeficiência,
doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos
estão indicados os seguintes antimicrobianos:
ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprimsulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona.
Situações com desidratação correspondendo a
perda de peso superior a 5%, incapacidade para se
536
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
proceder a reidratação no domicílio, não tolerância
a reidratação oral, e agravamento da situação
clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm
indicação para internamento hospitalar, em geral
de curta duração na ausência de complicações.
A reidratação e a manutenção da hidratação até
que haja resolução da diarreia, assim como o
suprimento nutricional adequado, são as pedras
fundamentais do tratamento.
A reintrodução da alimentação deve fazer-se
atempada e imediatamente uma vez conseguida a
hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente
com leite materno devem manter o aleitamento. As
que já tenham iniciado alimentos sólidos devem
manter o seu regime habitual. Deve começar-se
com alimentos de absorção rápida (arroz, trigo) e
banana (suplemento de potássio). A reintrodução
da alimentação deve ser fraccionada e em curtos
intervalos para garantir melhor absorção.
Os alimentos com elevado teor de açúcar não
são aconselhados porque podem causar diarreia
osmótica.
Quanto a medidas gerais em relação à
alimentação: evicção de carne mal cozinhada, de
leite não pasteurizado, de água não tratada; as
pessoas que manuseiam carne crua deverão lavar
bem as mãos antes de contactar com uma criança.
Em relação à criança viajante para áreas
endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo,
saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com
casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem
ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH
intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias
das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm
utilidade no tratamento e prevenção da doença
intestinal (Capítulo 54).
Prevenção
Hoekstra J H. Oral rehydration solution containing a mixture
Certas medidas gerais são importantes na
prevenção da transmissão de infecções em
infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente,
a avaliação periódica do estado de saúde e de
imunização das crianças e dos prestadores de
cuidados. São fundamentais os seguintes
procedimentos: regras de limpeza e desinfecção
de instalações sanitárias, lavagem das mãos
frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e
cuidados na confecção dos alimentos, formação
em serviço e vigilância do desempenho dos
trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção
diárias de todos os brinquedos, e comunicação
dos surtos de infecção às autoridades de saúde.
A exclusão ou isolamento de crianças nestes
locais, na maioria dos casos não é necessária uma
vez que a transmissão já ocorreu antes do início
dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos
em que o isolamento é necessário o que é
determinado pela autoridade de saúde: diarreia
com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli
produtora de toxina semelhante à Shigella
(incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se
verificarem duas coproculturas negativas para
cada caso.
BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 108 Diarreia crónica
108
DIARREIA CRÓNICA
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Definição
Define-se como crónica toda situação de diarreia
com duração superior a 15 dias. As diarreias
crónicas podem acompanhar-se, ou não, de síndroma de má absorção.
Etiopatogénese
O Quadro 1 resume as principais causas de
diarreia crónica.
A diarreia crónica que se acompanha de
síndroma de má absorção pode ser explicada
habitualmente por três situações de base:
Má-digestão – Como resultado de insuficiência pancreática, ou incapacidade de formação de
micelas por défice quantitativo de sais biliares no
intestino, ou qualitativo (desconjugação por bactérias no intestino contaminado); nesta situação as
fezes são moles, abundantes, gordurosas e fétidas
caracterizadas por: esteatorreia intensa (20-30 g de
gorduras fecais por dia), creatorreia (superior a 3g
de azoto por dia, correspondendo a 20-30 % das
proteínas ingeridas) e presença de produtos de
fermentação de açúcares não absorvidos (cerca de
30 mmol por dia de ácidos voláteis).
Má-absorção – Nestes casos a componente da
digestão está preservada, mas há diminuição da
capacidade de absorção de nutrientes por redução
da superfície de absorção (lesão da mucosa nas
enteropatias, ou redução da superfície total
intestinal na síndroma do intestino curto). As
fezes são moles ou líquidas, raramente gordas,
por vezes ácidas (por grande aumento dos ácidos
voláteis resultantes da fermentação, dos hidratos
de carbono não absorvidos no delgado) e pela
flora bacteriana do cólon. A esteatorreia é mo-
537
derada (< 10g por dia), excepto nas situações de
défice selectivo da absorção de gorduras, bem
como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando
há um forte componente de enteropatia exsudativa.
Fermentação – Nestas situações predominam
os sintomas de má absorção de açúcares, a qual
pode ser primária ou secundária (neste caso
acompanhando as situações de redução das
vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite).
Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por
conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo
ser detectada a presença directa de açúcares fecais
pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest®
> 1%). Apenas a sacarose não origina directamente substâncias redutoras nas fezes, necessitando de tratamento prévio destas por ácido
clorídrico (Capítulo 107).
Na diarreia crónica não acompanhada por má
absorção podem surgir dois tipos de diarreia:
Cólica – Caracterizada por fezes heterogéneas
com pequeno volume e frequência aumentada,
fétidas, com muco, e ocasionalmente com sangue
e/ou pus. A esteatorreia está ausente bem como
os ácidos voláteis; mas nas situações de inflamação importante da mucosa (doença inflamatória do intestino) há creatorreia importante por
exsudação de proteínas. Estas diarreias são também ricas em sódio por diminuição da sua reabsorção cólica.
Não específica – Caracterizada por fezes de
volume e consistência muito variáveis, por vezes
líquidas, por vezes pastosas, muito frequentemente com lienteria (restos alimentares); habitualmente as primeiras dejecções do dia são de
características normais, piorando ao longo do dia;
não há defecação durante o sono.
Manifestações clínicas
A diarreia crónica acompanhada de má absorção
traduz-se por restrição do crescimento estaturoponderal e, ao contrário do adulto em que o
apetite está aumentado, na criança é acompanhada de anorexia, o que agrava a negatividade
do balanço energético-proteico.
Há também sintomas e sinais relacionados com a
má absorção de micronutrientes como o ferro (ane-
538
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Causas de diarreia crónica
Com má-absorção intestinal
Defeito da Digestão
a) Insuficiência pancreática exócrina:
Fibrose quística
Síndroma de Schwachmann
b) Defeito da micelização dos sais biliares:
Colestase
Pseudo-obstrução intestinal crónica ou ansa cega
intestinal (por desconjugação dos sais biliares pelo
crescimento bacteriano intestinal)
Defeito da Absorção
a) Redução da superfície total de absorção:
Síndroma do intestino curto
b) Lesão da parede (enteropatia):
Doença celíaca
Giardíase
Intolerância às proteínas do leite de vaca
Atrofia microvilositária
Enteropatia autoimune
Enteropatia eosinofílica
c) Defeitos selectivos:
1)Absorção de açúcares
Primários:
Intolerância à lactose
Défice de sucrase isomaltase
Má-absorção de glucose-galactose
Secundários:
Intolerância à lactose (Síndroma pós gastrenterite)
2) Absorção de gorduras
Abetalipoproteinemia
Doença de Anderson
Enteropatia exsudativa
Linfangiectasia intestinal
mia ferropénica), o cálcio (raquitismo, hipocalcémia), o ácido fólico (anemia macrocítica), as
vitaminas lipossolúveis A (baixa da visão nocturna,
pele seca), D (raquitismo), E (diminuição dos
reflexos osteotendinosos, oftalmoplegia,ataxia), K
(alterações da coagulação), e ainda do zinco (alterações cutâneas periorificiais, alterações imunológicas, perda da sensação gustativa).
A má absorção proteica pode levar a situações
de hipoalbuminémia e edema, enquanto a má
absorção dos açúcares origina fermentação cólica
com distensão abdominal e eritema perianal
causado pelas fezes ácidas.
Sem má-absorção intestinal
Colite
a) Inflamatória
Doença inflamatória do intestino
b) Infecciosa
Salmonella
Shigella
Yersinia
Campylobacter
E. coli patogénicas
Medicamentos / produtos dietéticos
Abuso de laxantes
Abuso de sorbitol (pastilhas,sumos de fruta)
Antibióticos
Funcionais
a) Diarreia crónica não específica
b) Síndroma do cólon irritável (com predomínio de diarreia)
Diagnóstico
Perante um quadro de diarreia crónica há que
avaliar o impacte sobre o crescimento ponderal e
estatural(neste último caso a repercussão é mais
tardia). Se se verificar uma desaceleração ou
“queda” dos percentis de peso e estatura, há que
suspeitar de síndroma de má-absorção; e, para
além dos exames destinados a estabelecer um
diagnóstico etiológico específico, importa ainda
estudar a repercussão funcional que um quadro
de má absorção de macro e micronutrientes, pode
causar. (Quadro 2).
CAPÍTULO 108 Diarreia crónica
Tratamento
Está dependente do diagnóstico etiológico,
podendo ser de evicção dietética (doença celíaca,
IPLV, intolerância aos açúcares) transitória ou
permanente, ou farmacológica (giardíase, doença
inflamatória do intestino) ou suplementação
enzimática pancreática (fibrose quística).
Nas situações em que a diarreia se acompanha
de desnutrição acentuada há que, independentemente do tratamento etiológico, promover a
reabilitação nutricional através de técnicas de
QUADRO 2 – Exames complementares
na diarreia crónica
Fezes
• Grau de digestão
• Gorduras fecais (na suspeita de esteatorreia)
• pH e substâncias redutoras (fezes frescas)
• Ionograma fecal (suspeita de diarreia secretória)
• Alfa 1 antitripsina fecal (enteropatia exsudativa)
• Quimiotripsina e Elastase fecal (suspeita de
insuficiência pancreática)
• Coprocultura
• Pesquisa de quistos de Giardia lamblia ou de
antigénio de Giardia
Sangue
• Anticorpos “marcadores” de doença celíaca
• IgE específica para proteínas do leite de vaca
• Prova da d-xilose (avaliação indirecta da integridade
da mucosa)
• Hemoglobina, Ferritina
• Cálcio, Fósforo, Fosfatase Alcalina
• Tempo de Protrombina
• Colesterol, Triglicéridos
• Albumina
• Velocidade de sedimentação (doença inflamatória do
intestino)
• Doseamento de vitaminas A, E, D e Zinco (mais
raramente)
Outros
• Endoscopia alta com biópsia do intestino proximal
(enteropatias)
• Colonoscopia (doença inflamatória do intestino, colite
alérgica)
• Prova do suor (fibrose quística)
• Prova de hidrogénio expirado (intolerância primária
ou secundária aos açúcares)
539
suporte como alimentação parentérica exclusiva
ou com alimentação entérica. As técnicas de
suporte nutricional usando a alimentação entérica
(quer contínua quer nocturna, por bomba de
infusão) são muito eficazes, permitindo incrementar a absorção de nutrientes graças ao
emprego de fórmulas semi-elementares, ou
mesmo fórmulas com dipéptidos ou aminoácidos
livres.
São descritas nos capítulos seguintes, com
mais pormenor, três situações clínicas frequentes
que cursam com diarreia crónica na criança: a
doença celíaca, a giardíase e a diarreia crónica
inespecífica
BIBLIOGRAFIA
(Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
540
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
109
DOENÇA CELÍACA
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Definição
A doença celíaca é hoje definida como uma
doença autoimune desencadeada pela exposição
ao glúten (mais propriamente à sua fracção
gliadina) em indivíduos geneticamente susceptíveis (possuidores de antigénios de histocompatibilidade –HLA- de classe II DQ2 e DQ8).
O órgão alvo desta doença é o intestino
proximal, constituindo-se uma lesão da respectiva
mucosa caracterizada por um infiltrado linfoplasmocitário na lâmina própria, infiltrado linfocitário
intra-epitelial, hiperplasia das criptas e atrofia das
vilosidades.
Assim, a forma “clássica” de apresentação desta
doença traduz-se por uma síndroma de máabsorção alguns meses após a introdução do glúten
no regime alimentar (presente nas farinhas de trigo,
centeio ou cevada), com diarreia crónica e/ou
vómitos, inflexão nas curvas ponderais e estaturais
(primeiro naquelas, depois nestas), distensão
abdominal, atrofia das massas musculares e tecido
celular subcutâneo, anorexia e alteração do humor
(irritabilidade, apatia). (Figura 1)
No entanto, e sobretudo nas crianças mais
velhas, as manifestações podem ser mais atípicas
(paucissintomáticas) ou mesmo predominantemente extraintestinais (Quadro 1)
Num estudo recente, em 161 crianças com a
doença e seguidas com regularidade nos últimos
três anos na Unidade de Gastrenterologia do
Hospital Dona Estefânia, 3,7% apresentavam quadros clínicos predominantemente extraintestinais.
Aspectos epidemiológicos
Rastreios sistemáticos em populações europeias
FIG. 1
Lactente com doença celíaca. Distensão abdominal relacionável com meteorismo. (NIHDE)
avaliando a presença de marcadores serológicos
de doença celíaca demonstraram uma maior
prevalência desta (1/140 a 1/300) em relação a
anteriores estudos, baseados unicamente em
formas sintomáticas (1/1000 a 1/2500).
Assim, considera-se hoje que a “condição
celíaca” constitui como que um “icebergue”, do
qual a doença celíaca sintomática (clássica ou
paucissintomática) constitui a ponta visível.
Abaixo do limite da visibilidade encontram-se
as chamadas formas de doença celíaca silenciosa
(sem sintomas, mas com alteração da mucosa
demonstradas por biópsia intestinal) e doença
celíaca latente em que não há sintomas nem
alterações da mucosa intestinal, embora com
desenvolvimento, ao longo do tempo, de achados
histológicos característicos (como no caso de
familiares de 1º grau de doentes celíacos ou em
grupos de risco. (Quadro 2)
Diagnóstico
O índice de suspeita relativamente a doença
celíaca deve ser bastante apurado, principalmente
para as formas paucissintomáticas ou extraintestinais , bem como para os grupos de risco.
O estudo inicial passa pelo estudo dos
marcadores serológicos de classe IgA (antigliadina, antiendomísio e anti transglutaminase
tecidual). Pela suas mais elevadas especificidade e
sensibilidade as recomendações actuais preferem
o uso dos marcadores anti transglutaminase
tecidual (TGT) em detrimento dos antiendomísio
CAPÍTULO 109 Doença celíaca
541
QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da
doença celíaca
QUADRO 2 – Grupos de risco de doença celíaca
(obrigando a rastreio serológico)
Dermatológicas
• Dermatite herpetiforme, alopécia, vitíligo
Hematológicas
• Anemia isolada (ferropénica ou macrocítica por défice
de ácido fólico)
• Anemia hemolítica autoimune, trombocitopenia autoimune
• Trombocitose (hipoesplenismo)
Familiares de 1º grau
Dermatite herpetiforme
Diabetes tipo I
Tiroidite autoimune
Síndroma de Sjögren
Endocrinológicas
• Diabetes mellitus tipo I, tiroidite autoimune
• Atraso estatural isolado, atraso pubertário isolado
Neurológicas
• Epilepsia (com calcificações occipitais), ataxia
Hepáticas
• Hipertransaminasemia, hepatite autoimune
Orais
• Aftas recorrentes
• Hipoplasia do esmalte dentário (dentes definitivos)
Osteo-articulares
• Osteoporose, artralgia/artrite
Ginecológicas
• Infertilidade, abortos de repetição
Psiquiátricas
• Ansiedade/depressão
(mais caros e não quantificáveis) ou dos
antigliadina (AAG) (menos específicos). Em caso
de défice de IgA podem ser analisados os AAG de
classe IgG.
O diagnóstico definitivo deve ser feito pela
biópsia jejunal por endoscopia alta ou com
cápsula de Watson.
As recomendações da ESPGAN de 1970
previam a realização posterior de mais 2
biópsias até ao diagnóstico definitivo da
doença: uma segunda biópsia alguns anos após
a primeira, com um regime estrito de evicção
de glúten e que deveria estar normal, e uma
terceira biópsia após período maior ou menor
de sobrecarga com glúten, devendo haver
critérios de recaída histológica.
Estes critérios foram revistos em 1989,
indicando que essas 2 biópsias suplementares só
estariam indicadas em crianças com menos de 2
anos, em que a dieta foi iniciada sem realização de
biópsia, ou com achados da biópsia não
Hemossiderose pulmonar
Síndroma de Down
Nefropatia IgA
Artrite reumatóide
específicos, ou sem resposta clínica conclusiva à
exclusão do glúten.
Nos restantes, casos após a primeira biópsia, a
monitorização (para além da clínica) deverá ser
feita com os marcadores serológicos (normalização
com a dieta, reaparecimento com a sobrecarga).
Tratamento
O tratamento baseia-se na evicção completa do
glúten da dieta para toda a vida.
Os riscos de abandono da dieta, o que sucede
muitas vezes na adolescência, prendem-se com a
possibilidade de aparecimento na idade adulta de
doenças neoplásicas (adenocarcinoma do delgado, linfoma não Hodgkin do tubo digestivo), ou
outras de grande morbilidade (osteoporose,
infertilidade ou abortos de repetição, doença
neurológica ou psiquiátrica).
Nas formas clássicas com desnutrição grave na
data do diagnóstico é necessário recorrer a técnicas
de suporte nutricional, (usando alimentação
entérica contínua, ou alimentação fraccionada)
empregando sempre fórmulas sem lactose ou semielementares, para além do suprimento de minerais
(principalmente ferro) e de vitaminas deficitários.
BIBLIOGRAFIA
(Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
542
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
110
GIARDÍASE
do trofozoíto no aspirado duodenal, ou na própria
biópsia intestinal (coloração pelo método de
Giemsa).
A detecção de quistos nas fezes é muito difícil
pela excreção descontínua do parasita, pelo que se
torna necessário proceder a colheitas sucessivas
de amostras.
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Tratamento
Aspectos epidemiológicos
A infestação intestinal pelo protozoário Giardia
lamblia é a causa mais comum de diarreia de causa
parasitária nos países desenvolvidos.
Pode aparecer em qualquer idade, mas é especialmente prevalente nas crianças mais pequenas,
sobretudo quando frequentam creche ou jardim de
infância. Nas crianças mais velhas pode associar-se
a défice imunitário, nomeadamente de IgA.
Após a ingestão da Giardia, 25-50 % das
crianças tornam-se sintomáticas, 5-15% tornam-se
excretoras assintomáticas (por períodos superiores a 6 meses) e as restantes não evidenciam
qualquer alteração.
Manifestações clínicas
A Giardia lamblia causa uma inflamação focal da
mucosa do intestino delgado com atrofia parcial
das vilosidades. Estas alterações levam a uma
diarreia crónica persistente ou intermitente com
anorexia, distensão abdominal, ou dor abdominal
na criança mais velha; e, se o diagnóstico se
atrasar, perda de peso e anemia.
A diarreia pode ter algum teor de gordura, ser
fétida, mas não contém habitualmente sangue ou
muco.
A presença de intolerância secundária à lactose
(que pode persistir até algum tempo após a
erradicação da Giardia) origina fezes mais líquidas
e ácidas.
Diagnóstico
O diagnóstico faz-se pela demonstração nas fezes
de quistos ou antigénio (por ELISA) de Giardia, ou
É apenas recomendado para as infestações
sintomáticas. Utiliza-se o metronidazol na dose de
15 mg/Kg/dia em 2-3 tomas diárias durante 5
dias ou o tinidazol em dose única de 40 mg/kg.
BIBLIOGRAFIA
(Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
CAPÍTULO 111 Diarreia crónica não específica
111
DIARREIA CRÓNICA
NÃO ESPECÍFICA
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Aspectos epidemiológicos
A diarreia crónica não específica é um quadro de
causa não orgânica o qual se insere na patologia
funcional do tubo digestivo, classificando-se na
alínea G 3 dos chamados critérios de Roma II
(alterações funcionais gastrintestinais em idade
pediátrica).
É a causa mais frequente de diarreia crónica na
infância, tendo início entre os 6 meses e os 3 anos
de idade, desaparecendo entre os 2 anos (nos
casos de começo mais precoce) e os 4 anos.
Manifestações clínicas
A diarreia crónica não específica revela-se muitas
vezes após um episódio de diarreia aguda ou de
uma infecção respiratória medicada com antibióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia
com 5-6 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes
com muco ou restos alimentares não digeridos
(lienteria).
O tipo de dejecções varia ao longo do tempo,
com períodos sem diarreia ou até com obstipação.
Ao longo do dia, é habitual as primeiras dejecções
serem mais formadas, seguindo-se fezes mais
líquidas. Não há dejecções durante o sono. Não se
encontra eritema do períneo nem distensão
abdominal.
A criança apresenta um bom estado geral, com
humor e vitalidade conservados, sem perda de
peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma
alimentação muito estrita e com uma dieta “anti
diarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar
ligeira inflexão da curva ponderal).
543
As causas deste quadro permanecem ainda
inexplicadas admitindo-se que possa haver uma
alteração da motilidade digestiva levando a uma
maior rapidez do trânsito intestinal com a
chegada ao cólon de uma maior quantidade de
líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia
secretória.
Esta resposta motora inapropriada pode ser
desencadeada pela percepção de determinados
estímulos, quer a nível do sistema nervoso central,
quer a nível periférico, mediados ou não por
fenómenos inflamatórios locais.
Os estímulos podem ser de origem luminal,
incluindo componentes exógenos da dieta (como
o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com
consumo exagerado de sumos de fruta industriais), ou factores de tensão emocional relacionados com o ambiente psicossocial.
Diagnóstico
O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo
efectuar-se um mínimo de exames complementares,
os quais podem incluir a avaliação do grau de
digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má
absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de
Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um
teste de H2 expirado sob regime com lactose para
excluir intolerância a este dissacárido (ou uma
prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem
revestir-se de utilidade.
Tratamento
Em primeiro lugar, deve tranquilizar-se os pais,
explicando-lhes que se trata de uma situação benigna e limitada, a qual não afectará o crescimento
da criança.
Em segundo lugar, deve retomar-se uma
alimentação normal, sem recurso a dietas de
exclusão (ditas adstringentes“anti-diarreicas” que
só conduzem, pela monotonia, a anorexia). O
suprimento de sumos de fruta deve ser limitado,
devendo aumentar-se a ingestão de gorduras
(azeite) e de fibras solúveis pelo seu efeito de
promoção da diminuição da velocidade do trânsito
no intestino delgado, com melhoria sintomática.
Não está aconselhado o uso de produtos antidiarreicos.
544
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
BIBLIOGRAFIA (Capítulos 108 a 111)
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A designação “doença inflamatória do intestino”
(DII) inclui duas doenças crónicas em que se
verifica inflamação do aparelho digestivo: colite
ulcerosa e doença de Crohn.
Apesar de haver alguns factores comuns a
estas doenças, existem características específicas a
cada uma delas que permitem distingui-las.
Iniciam-se cedo na vida adulta, com apresentação
na idade pediátrica em cerca de 20% dos casos.
Caracterizam-se por haver, em alternância,
períodos de remissão e de recaída, sendo a
gravidade muito variável. A etiologia ainda não
está bem definida parecendo, no entanto, haver
vários factores intervenientes.
De acordo com estudos genéticos recentes
(2007) demonstrou-se que os genes PHoxeb, NCF4
e ATG16L1 constituem factores de risco de
contrair doença de Crohn.
Vários estudos sugerem que existe uma
predisposição genética importante, admitindo-se
o papel de genes dos cromossomas 12 e 16,
podendo igualmente estar implicados factores
infecciosos e imunológicos. Parece haver maior
risco de neoplasias. Estima-se uma prevalência de
100 casos por 100.000 habitantes nos EUA com
início dos sintomas em geral entre os 15 e 25 anos,
período a que corresponde o pico de incidência. A
longevidade não parece estar afectada.
Fisiopatologia
A inflamação crónica no intestino leva a várias
alterações fisiopatológicas que resultam essencial-
CAPÍTULO 112 Doença inflamatória do intestino
mente em diarreia, enteropatia exsudativa, hemorragia, dor abdominal e estenoses. É importante o papel das citocinas e dos eicosanóides
pró-inflamatórios os quais aumentam a permeabilidade vascular e originam vasodilatação,
provocando secreção de electrólitos e aumento da
contractilidade do músculo liso. O epitélio inflamado leva a perda de proteínas. As citocinas promovem o recrutamento e a actividade de células
formadoras de colagénio, levando à proliferação
de tecido fibroso com consequente espessamento
da parede e formação de estenoses.
1. Doença de Crohn
O envolvimento do intestino delgado estabelece o
diagnóstico da doença de Crohn. Classicamente, o
íleo terminal é o segmento atingido com maior
frequência, embora qualquer área do tracto
gastrintestinal desde a boca ao ânus incluindo,
claro está, o esófago e o estômago, possam estar
envolvidos. Os termos sinónimos são ileíte terminal, ileocolite ou enterocolite granulomatosa.
O intestino apresenta-se espessado, nodular,
muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas sem caseificação são muito característicos.
Quando a inflamação, que é transmural, se estende para além da serosa, podem existir fístulas para
estruturas adjacentes, como o intestino, bexiga,
vagina ou períneo.
Esta doença tem características de descontinuidade quanto às áreas afectadas, manifestandose pela alternância de zonas sãs com zonas
afectadas. Nas crianças em cerca de 60% dos casos
existe doença ileocólica podendo, no entanto,
ocorrer envolvimento isolado do cólon nalguns
doentes.
Calcula-se uma incidência anual de 6 casos por
100.000 habitantes.
Manifestações clínicas
Discriminam-se as manifestações clínicas mais
típicas por ordem decrescente de frequência:
– Dor abdominal
– Perda de peso
– Diarreia
– Sangue nas fezes
– Lesões perianais
– Febre
545
– Restrição do crescimento
– Úlceras orais
– Artralgia / artrite
– Lesões cutâneas
2. Colite ulcerosa
Ao contrário da doença de Crohn em que a
inflamação é transmural, o processo inflamatório
na colite ulcerosa localiza-se apenas na mucosa.
Inicia-se praticamente sempre no recto, em
continuidade (isto é, sem zonas afectadas
intercaladas com zonas não afectadas), atingindo
extensões variáveis e diminuindo de gravidade
em direcção ao cego.
São frequentes os abcessos das criptas, as
alterações da arquitectura e a depleção das células
caliciais.
Calcula-se uma incidência anual de 2 casos/
100.000 habitantes.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas por ordem decrescente
de frequência são:
– Rectorragia
– Diarreia
– Dor abdominal
– Perda de peso
– Artralgia / artrite
– Febre
– Restrição do crescimento
Existem várias manifestações extraintestinais
da DII que podem, quer preceder os sintomas
gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses
ou anos após o diagnóstico (Quadro 1).
A DII deverá ser sempre admitida como
hipótese de diagnóstico nas seguintes situações:
dor abdominal crónica, hipocrescimento, diarreia
crónica com ou sem sangue, rectorragias, história
familiar de DII, anemia inexplicada na criança
maior e adolescente, e manifestações extraintestinais, mesmo com manifestações gastrintestinais
mínimas.
Diagnóstico
O diagnóstico da DII é sugerido pela combinação
de manifestações clínicas, e confirmado por exa-
546
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais
da DII
Cutâneas
• Eritema nodoso
• Piodermite gangrenosa
• Doença perianal
Hepáticas
• Colangite esclerosante
• Hepatite crónica
• Litíase
• Cirrose
Articulares
• Artralgia
• Artrite
• Espondilite anquilosante
• Sacroileíte
Oftalmológicas
• Uveíte
• Episclerite
• Cataratas
Renais
• Litíase
• Hidronefrose
• Fístula enterovesical
Hematológicas
• Défice de ferro, folatos e vitamina B12
• Anemia
• Trombocitose
• Neutropénia
Vasculares
• Tromboflebite
• Vasculite
mes laboratoriais, imagiológicos, endoscópicos e
histológicos.
Os exames laboratoriais habitualmente requeridos para a avaliação global dos casos são essencialmente: hemograma, plaquetas, velocidade de
sedimentação, doseamento de proteína C reactiva,
de orosomucóide, de ANCA e ASCA.
Os exames imagiológicos habitualmente realizados: (trânsito intestinal, ecografia abdominal,
TAC, etc.) permitem avaliar as situações com
fístulas, abcessos, estenoses, designadamente.
A endoscopia (esófago-gastroduodenoscopia e
colonoscopia) é particularmente importante,
porque pode sugerir de imediato o diagnóstico
pelas alterações visíveis, permitindo, por outro
lado fazer biópsias para confirmação histológica.
Mesmo em zonas de aparência normal se deve
proceder à biópsia pela possibilidade de inflamação microscópica e granulomas, que são característicos da doença de Crohn.
A técnica utilizando a cápsula endoscópica,
embora ainda não muito utilizada em pediatria, é
de grande utilidade por permitir avaliar zonas
habitualmente não acessíveis à endoscopia.
Tratamento
Não existe terapêutica médica curativa para a
colite ulcerosa ou para a doença de Crohn. Os
esquemas terapêuticos destinam-se a combater a
inflamação, conseguindo um crescimento
adequado e mantendo boa qualidade de vida. A
adesão à terapêutica deve ser avaliada com
frequência, uma vez que as interrupções da
medicação são causa frequente de falência de
resultados, principalmente em adolescentes.
Existem vários tipos de agentes terapêuticos:
– 5 ASA (ácido 5 – amino-salicílico)
– Antimicrobianos (mais frequentemente metronidazol, ciprofloxacina)
– Corticóides
– Imunossupressores (azatioprina, metotrexato,
ciclosporina, etc.)
– Anticorpos anti-factor necrosante tumoral
(Anti – TNF-alfa) e monoclonais (infliximab)
Estes fármacos deverão ser utilizados de
acordo com as características da doença, gravidade e resposta terapêutica.
À terapêutica médica deve sempre associar-se
orientação nutricional, apoio psicológico e,
quando indicada, terapêutica cirúrgica (em cerca
de 60% dos casos na doença de Crohn e em 25 % 40% dos casos de colite ulcerosa situações
complicadas).
Prognóstico
A DII é um processo inflamatório crónico que não
pode ser curado por terapêutica médica ou
cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo
que a criança tenha uma boa qualidade de vida.
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A obstipação pode ser definida por dois critérios:
1) diminuição da frequência da defecação
considerando-se anómalo o caso com menos
de três dejecções por semana; ou
2) defecação acompanhada de sintomas sugerindo dor ou desconforto, geralmente associada à passagem de fezes duras, mesmo
para uma frequência superior à considerada
inicialmente.
A encoprese define-se pela expulsão de fezes
(voluntária ou involuntária) em local não apropriado, a partir dos 4 anos de idade (normalmente
após a aquisição dos mecanismos de controlo
esfincteriano). À perda involuntária e repetida de
fezes, habitualmente pastosas ou semiformadas,
sujando continuada ou frequentemente a roupa
interior, dá-se também o nome de “soiling” ou
encoprese no sentido estrito.
A obstipação é uma situação frequente em
idade pediátrica, podendo atingir 3% das queixas
que motivam consultas em cuidados primários e
até 25% dos doentes enviados às consultas de
Gastrenterologia Pediátrica.
O conceito de obstipação funcional refere-se às
situações em que não se evidencia nenhuma causa
orgânica, o que corresponde a 95% dos doentes.
Segundo os critérios de Roma – II, a obstipação
funcional é subdividida nas seguintes formas:
a) Disquézia infantil: situação em lactente saudável com períodos, no mínimo de dez
minutos, de esforço e choro antes de conseguir defecar fezes moles.
b) Obstipação funcional: situação em lactentes
e pré- escolares apresentando fezes duras
(cíbalos) na maioria das vezes, ou fezes
548
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
formadas duas ou menos vezes por semana.
c) Retenção fecal funcional: situação verificada
desde a infância à adolescência, com história
de, pelo menos, 12 semanas de evacuação de
fezes de grande volume e diâmetro com
frequência inferior a duas vezes por semana
(podendo acompanhar-se no intervalo de
períodos de soiling para maiores de 4 anos),
ou postura de retenção, evitando a defecação pela contracção do pavimento pélvico e
dos glúteos.
d) “Soiling” fecal não retencional: situação em
crianças maiores de 4 anos com história de,
pelo menos, 12 semanas de defecação em
local não apropriado, sem sinais de retenção
fecal.
As causas orgânicas de obstipação em idade
pediátrica resultam essencialmente de perturbações da inervação intrínseca do músculo liso
intestinal (de que se destaca a doença de Hirschsprung), de fenómenos inflamatórios ou alérgicos
da mucosa (doença celíaca, intolerância ou alergia
às proteínas do leite de vaca), ou de alterações
endocrinológicas (hipotiroidismo), ou electrolíticas (hipercalcémia).
Etiopatogénese
Na obstipação funcional do adulto são descritos
dois mecanismos: atonia ou hipomotilidade cólica,
e aumento da resistência anal à defecação.
Na criança está implicado na maioria dos casos
este segundo mecanismo.
Para perceber as alterações da dinâmica da
defecação importa analisar como evolui este
processo (simultaneamente maturativo e comportamental) na criança.
A presença de uma zona de alta pressão em
repouso constituída pela contracção tónica do
esfíncter anal interno impede a incontinência
fecal. O esfíncter anal externo, constituído por
músculo estriado sob controlo voluntário, representa apenas 10-15% dessa pressão em repouso;
mas na criança que adquire o controlo da defecação, a sua contracção voluntária quando
aumenta a pressão intrabdominal e o relaxamento
reflexo do esfíncter anal interno, permite manter a
continência e a possibilidade de evacuação em
local socialmente adequado.
O recto funciona como um compartimento de
armazenamento de fezes. A sua distensão pelo
bolo fecal ultrapassando certo limite leva a uma
sensação de preenchimento e a vontade de
defecar. Em simultâneo (se houver integridade da
inervação intrínseca) dá-se o reflexo recto anal
inibidor (RRAI) que leva ao relaxamento do
esfíncter anal interno. A evacuação pode ser
impedida nessa ocasião pela contracção voluntária de esfíncter externo.
O aumento da pressão intrabdominal pela
execução da manobra de Valsalva, o relaxamento
reflexo do esfíncter anal interno, e o relaxamento
voluntário do esfíncter anal externo ao abolir a
zona de alta pressão (resistência) do canal anal,
permitem a defecação. Este fenómeno é ainda
facilitado pelo simultâneo relaxamento voluntário
do músculo puborrectal e pela contracção do levator
ani, que rectificam o ângulo recto anal, anulando
essa resistência suplementar à passagem das fezes.
Na disquézia infantil o lactente não consegue
coordenar o aumento da pressão intrabdominal
com a relaxação pélvica (daí o esforço e o choro
utilizado como manobra de Valsalva incompleta
para evacuar fezes moles). Trata-se de uma
questão simplesmente maturativa.
Os fenómenos de retenção fecal surgem por
exacerbação do processo fisiológico ligado aos
mecanismos de aquisição da continência fecal que
se iniciam pelos 18 meses, estando habitualmente
presentes pelos 28 meses.
Neste período é normal a criança começar a
reter fezes através da contracção voluntária do
esfíncter anal externo e músculos pélvicos.
A presença de períodos de maior endurecimento fecal (por vezes ligados a episódios de
modificação do regime alimentar ou a desidratação) pode levar à constituição de fissuras
anais, causando dor à defecação e esforço de
retenção para a evitar. Esta retenção leva a um
endurecimento ainda maior das fezes, constituindo-se um ciclo vicioso agravado pela
acumulação fecal na ampola rectal. Tal circunstância leva a uma menor sensibilidade à distensão
rectal, decisiva para iniciar a vontade de defecar.
No limite desta situação constituem-se fecalomas na ampola rectal, grande distensão desta e
mesmo do cólon a montante (megarrecto e megacólon funcionais).
CAPÍTULO 113 Obstipação
A tentativa do treino precoce da continência
fecal pode ser o estímulo desencadeante do
processo de retenção exagerada, com recusa da
criança em defecar no bacio, criando-se uma
situação de conflito com pais e educadores.
O aparecimento de encoprese (“soiling”) surge
na sequência desta retenção prolongada das fezes
na ampola rectal. Tal retenção causa uma irritação
da mucosa com secreção que vai erodindo o
fecaloma, havendo, para elevados volumes de
distensão, relaxamento reflexo de esfíncter anal
interno e insensibilidade da criança a pequenas
perdas fecais.
Aspectos epidemiológicos
Até aos 4 anos a prevalência da obstipação é igual
nos dois sexos mas, a partir da idade escolar, o
sexo masculino é mais afectado, nomeadamente
no que respeita a queixas de encoprese numa
razão que pode atingir 6/1.
É frequente encontrar-se na família do doente
outros casos de obstipação, nomeadamente nos
pais e irmãos. No entanto, este facto pode deverse, para além de características genéticas, a
aspectos ambientais partilhados como factores
alimentares. Dentro destes destaca-se a importância da ingestão de fibra na dieta. Há estudos
que demonstram um suprimento reduzido de
fibra no regime alimentar de crianças obstipadas
em relação a controlos; em tais casos também os
respectivos pais, igualmente obstipados, tinham
um suprimento médio em fibras inferior ao dos
pais de crianças não obstipadas. Há, pois, uma
ligação entre factores genéticos e dietéticos nestes
doentes.
Manifestações clínicas
A apresentação clínica varia com a idade. O
lactente amamentado pode evidenciar longos períodos sem evacuar, melhorando com a diversificação alimentar. Nos primeiros meses de vida
predominam as manifestações ligadas à disquézia
infantil: lactentes a fazerem um enorme esforço e
chorando muitas vezes para defecar, acabando
por evacuar fezes moles espontaneamente ou
após estimulação.
Na idade pré-escolar evidenciam-se os sinto-
549
mas de dor à defecação, sangue envolvendo as
fezes ou sujando o papel higiénico, traduzindo a
presença de fissuras; é muito típica a aversão da
criança ao sentar-se no bacio para defecar,
chorando ou gritando quando sente vontade,
tentando reter as fezes através de manobras
variadas (contracção dos músculos das ancas e
glúteos, extensão das pernas, apoio da região anal
encostando-se às paredes).
Num grupo de crianças pequenas encontra-se
uma associação entre a presença de obstipação
crónica e intolerância ou alergia às proteínas do
leite de vaca, o que leva à presença de inflamação
rectal, eritema perineal e fissuras anais com
retenção fecal secundária. A modificação do
regime alimentar com exclusão dos produtos
lácteos leva a uma resolução da obstipação neste
grupo de doentes.
Na criança em idade escolar predominam as
queixas de dor abdominal ou de encoprese.
Muitas vezes os pais não se apercebem de que a
criança encoprética é obstipada e atrasam a sua
vinda à consulta; por vezes, o motivo desta é a
existência de uma falsa diarreia.
Um sinal de retenção fecal importante numa
criança encoprética é a existência ocasional de
defecação muitíssimo volumosa.
A anorexia acompanha frequentemente as
crianças com obstipação prolongada, melhorando
com a aquisição da regularidade da defecação.
Também se verifica a coexistência de encoprese
com incontinência urinária diurna, enurese nocturna, ou com infecção urinária recorrente principalmente no sexo feminino.
Diagnóstico
Na recolha da história clínica deve ser averiguado
se houve atraso, superior a 24 horas, da eliminação
de mecónio. Este achado, bem como uma distensão
abdominal significativa no lactente, episódios de
enterocolite ou atraso ponderal, devem alertar para
a presença de patologia orgânica, nomeadamente
doença de Hirschsprung.
Na observação das crianças com obstipação
deve ser avaliada cuidadosamente a presença de
massa fecal abdominal, havendo uma boa relação
entre a extensão dessa massa e a intensidade sintomática da obstipação.
550
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A observação da região anal deve ser
cuidadosa para detectar anomalias posicionais
(ânus anterior que pode condicionar a obstipação
pela maior angulação rectoanal) e a presença de
fissuras. O toque rectal avalia a tonicidade do
esfíncter anal e a presença de fecalomas na
ampola rectal. Uma ampola vazia, na ausência de
emissão recente de fezes, é sugestiva de doença de
Hirschsprung.
Na primeira observação, numa criança que já
foi submetida a muitos enemas ou supositórios
para evacuar, nem sempre é fácil efectuar-se o
toque rectal em condições adequadas.
Nesta circunstância deve efectuar-se uma
radiografia simples do abdómen em decúbito
dorsal para avaliar a extensão do fecaloma, e de pé
para avaliar a existência de distensão das ansas ou
níveis hidroaéreos, o que sugere causa orgânica.
A manometria anorrectal não tem interesse nas
formas simples de obstipação que respondem ao
tratamento inicial; no entanto, nas formas resistentes, nomeadamente quando da suspeita de
uma forma ultracurta da doença de Hirschsprung,
é um exame fundamental e de primeira linha.
Os achados manométricos mais frequentes na
obstipação funcional são a presença de RRAI para
volumes altos de distensão, diminuição da sensibilidade à distensão rectal traduzindo a presença
de uma mega-ampola e, por vezes, contracção
paradoxal do esfíncter anal externo durante a
tentativa de defecação. Por outro lado, os achados
manométricos nas formas com ou sem encoprese
são sobreponíveis.
Tratamento
Na situação de encoprese com retenção fecal é
necessário um prévio esvaziamento da matéria
fecal acumulada no recto e cólon.
Nos raros casos de “soiling” fecal não retencional não é necessário (ou até é contraproducente) usar terapêutica laxante; por isso, a intervenção deverá ser centrada na reeducação do
comportamento relacionado com os hábitos da
defecação.
O tratamento da obstipação sem encoprese
assenta essencialmente em quatro vertentes:
esvaziamento intestinal, medidas dietéticas, medidas farmacológicas e educação.
Esvaziamento intestinal
Esta fase do tratamento tem por finalidade
evacuar os fecalomas de modo a permitir
recuperar a sensibilidade defecatória à distensão
rectal e diminuir as perdas fecais involuntárias.
O uso de enemas de fosfato hipertónico na
dose de 30 ml/5 Kg de peso ou 135 ml acima dos
20 Kg, uma vez por dia durante um ou dois dias,
complementado com o uso de enemas salinos (até
ao máximo de 500 ml), a que se pode associar 1020 ml de óleo mineral (parafina líquida), é
habitualmente suficiente para libertar um
fecaloma rectal. No entanto, em casos de grande
retenção estercoral é necessário complementar o
uso destes enemas com o de soluções de limpeza
intestinal (à base de polietileno glicol e electrólitos) administradas em meio hospitalar, oralmente
ou por sonda nasogástrica.
Considera-se limpo o intestino quando há
saída pelo ânus de líquido claro, ficando a ampola
rectal vazia, e se verifica presença de ar na bacia
na radiografia simples do abdómen.
Medidas dietéticas
A dieta deve ser menos rica em alimentos adstringentes (arroz, massas, leguminosos secos) e o
consumo de água aumentado, para evitar a dureza
excessiva das fezes. O suprimento diário em fibras
deve ser incrementado, visto as mesmas promoverem a evacuação por um mecanismo duplo: as
fibras não solúveis (celulose e hemicelulose, etc.),
aceleram o trânsito cólico por um efeito mecânico e
amolecem as fezes por fixarem água, enquanto as
fibras solúveis, mais fermentáveis como as pectinas,
aumentam o bolo fecal por incrementarem a massa
bacteriana das fezes. O uso de produtos naturalmente ricos em fibras deve ser encorajado: (legumes
verdes na sopa ou saladas, fruta com casca, pão ou
cereais integrais). Somente na impossibilidade de a
criança os aceitar, deverão ser adicionados
preparados de fibra purificada (farelo, por exemplo)
aos alimentos (sopas, iogurtes).
Nos lactentes em que a obstipação pode ser
considerada secundária a intolerância às
proteínas do leite de vaca, há que substituir esses
alimentos por fórmulas com hidrolisado extenso
ou de soja, seguindo os procedimentos habituais
de exclusão, provocação e reintrodução dos
produtos lácteos.
CAPÍTULO 113 Obstipação
Medidas farmacológicas
O uso de laxantes tem por finalidade amolecer as
fezes e aumentar a motilidade intestinal. O uso de
laxantes osmóticos contribui para aumentar a
hidratação das fezes. Dividem-se em 2 grupos:
hidratos de carbono não absorvíveis como a
lactulose ou o lactitol, fermentáveis pelas bactérias
do cólon; ou moléculas inertes como o polietileno
glicol com ou sem electrólitos.
O uso de óleo mineral (parafina líquida) tem
uma acção emoliente sobre as fezes e pode induzir
secreção hidro-electrolítica no cólon ao ser
convertido pela flora bacteriana em ácidos gordos
hidroxilados. Não deve ser administrado em
crianças com distúrbios da deglutição para evitar
fenómenos aspirativos; se se utilizar, deve ser
dado fora das refeições para obviar a possível má
absorção de vitaminas lipossolúveis.
Aos agentes osmóticos pode ser necessário
adicionar fármacos que promovam a motilidade
do cólon, principalmente nas situações em que
uma grande distensão leva à hipomotilidade
cólica. O sene tem sido dos agentes mais usados
em idade pediátrica com bons resultados, devendo ser evitado por períodos muito prolongados.
As fissuras anais devem ser tratadas com antiinflamatórios e cicatrizantes tópicos.
O tratamento da obstipação deve ser ajustado
551
individualmente com aumento ou redução das
doses, mas sempre por um período inicial nunca
inferior a 3 meses. Posteriormente, deve ser feito o
desmame lento e progressivo do(s) laxante(s),
sempre com o objectivo de obter defecações sem
esforço e ausência de perdas fecais. (Quadros 1 e 2).
Educação
Após o estabelecimento de um diagnóstico de
obstipação funcional deve ser explicado aos pais e
doentes de acordo com a idade que a situação
clínica não é grave mas necessita de um
acompanhamento cuidadoso, com o cumprimento
estrito de medidas dietéticas e terapêuticas para
promover a evacuação intestinal. Também deverá
ser explicado que a encoprese é consequência da
obstipação, que a criança não é propositadamente
preguiçosa ou desmazelada, e que a melhoria da
situação de base levará ao desaparecimento daquela. Por outro lado, deve ser reforçada junto dos
pais a necessidade de não se estabelecer um treino
coercivo nas crianças que até aos 3 anos se
recusam a evacuar no bacio; pelo contrário, deverse-á deixar manter as fraldas. O treino da
defecação deve ser estimulado na criança mais
velha, aconselhando-a a frequentar regularmente
a casa de banho, nomeadamente após as refeições.
A posição ideal da defecação, sentada nos sanitários
QUADRO 1 – Fármacos usados na obstipação funcional
Lactulose
1-3 ml/Kg/dia
2 doses diárias
Obstipação ligeira
Lactitol
1-3 ml/Kg/dia
1 - 2 doses diárias
Obstipação ligeira ou moderada
Leite de magnésia
1-3 ml/Kg/dia
1 - 2 doses diárias
Obstipação ligeira
Idade > 6 meses
Parafina líquida
1-3 ml/Kg/dia
2 doses diárias
Obstipação moderada
Idade > 12 meses
Máximo: 2 doses diárias
Obstipação moderada
Evitar uso prolongado
Sene
1 - 5 anos: 5ml/dose
5 - 10 anos: 10ml/dose
Solução de lavagem intestinal
14-40 ml/Kg/hora até saída
Em meio hospitalar
Esvaziamento em obstipação
de líquido pelo ânus
(oral ou por sonda nasogástrica) grave com encoprese
PEG* com ou sem electrólitos
0,26 - 0,84g/kg/dia
1 dose/dia em 100 ml de água Obstipação moderada ou grave
* Poli – Etileno – Glicol
Idade > 2 anos
552
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Esquema de tratamento da obstipação funcional
Obstipação ligeira
Medidas dietéticas
Obstipação moderada
Medidas dietéticas
Obstipação grave
Medidas dietéticas
Obstipação + encoprese
Limpeza intestinal: (enemas de fosfato e salinos)
e/ou solução de lavagem intestinal
Lactulose ou Lactitol
Lactitol + Parafina líquida+ Sene
Evitar uso prolongado de Sene
PEG + Parafina líquida + Sene
Evitar uso prolongado de Sene
PEG + Parafina líquida + Sene
Evitar uso prolongado de Sene
com os pés bem apoiados para aumentar a pressão
intrabdominal, deve ser explicada a crianças e pais.
A presença de frequentes recaídas nestas
situações deve também ser abordada, pelo que o
cumprimento do plano deve ser rigoroso e
prolongado, sem abandonos causados pela
euforia de melhorias rápidas, ou pelo desânimo
da persistência dos sintomas.
Outras medidas
Pode haver necessidade de acompanhamento
psicológico das crianças com encoprese quando
esta se acompanha de baixa auto-estima, dada a
probabilidade de desenvolvimento de estigmas
depressivos.
BIBLIOGRAFIA
Benninga MA, Voskuijl W., Taminiau JM. Childhood
constipation: is there new light in the tunnel? J Pediatr
Gastroenterol Nutr 2004; 39: 448-60
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Youssef NN, Dilorenzo C. Childhood constipation: evaluation
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CAPÍTULO 14 Doença de Hirschsprung
114
DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG
Rui Alves
Definição
A doença de Hirschsprung (DH) ou megacólon
aganglionar congénito é caracterizada pela ausência de células ganglionares na porção mais distal
do cólon e recto, característica anatomopatológica
que se pode estender proximalmente de modo
variável. Tal afecção é uma causa frequente de
obstrução intestinal no recém-nascido (RN) e na
primeira infância.
A doença de Hirschsprung é classificada como
clássica (envolvimento recto-sigmóide: 75% dos
casos); longa (envolvimento até ao cólon transverso: 17% dos casos), e extralonga (envolvimento
até à válvula íleocecal com possível compromisso
do íleo terminal: 8% dos casos). A aganglionose
intestinal total, a forma mais grave de doença, é
extremamente rara.
A DH surge com uma incidência de cerca de
1/5000 nascimentos, sendo mais frequente no
sexo masculino (4/1). Tem uma incidência
familiar entre 4% e 7%.
Etiopatogénese
As células ganglionares entéricas são originárias
da crista neural. Estas células estão presentes no
intestino anterior à 4ª semana de gestação e
iniciam a sua migração na direcção crânio-caudal
entre a 5ª e a 12ª semana.
Após a 12ª semana de gestação é iniciada a
migração transmural das células para se
formarem os plexos mientéricos e os plexos
submucosos, processo que termina cerca da 16ª
semana.
Há estudos que pretendem demonstrar a
natureza dual da migração dos neuroblastos. Esse
553
segundo ponto de início de migração surge do
centro sagrado da crista neural, mas o processo de
migração transmural é similar ao descrito anteriormente.
A causa da ausência de células neurais na
parede intestinal deriva de vários factores, como:
interrupção da migração crânio-caudal; falência
de diferenciação celular após a migração completa
devido a alterações da matriz extracelular onde
neuroblastos se fixam e se diferenciam; e mecanismo imunogénico mediado pelo “complexo major
de histocompatibilidade”, responsável por
formação de anticorpos antineuroblastos.
Os factores genéticos têm hoje uma importância
fulcral na patogénese da doença de Hirschsprung,
nomeadamente após a identificação da variação
genética responsável pela supressão da expressão
celular das células pluripotenciais da crista neural.
Assim, a doença de Hirschsprung é englobada no
grupo das neurocristopatias, estando intimamente
associada a outra doenças ou síndromas que
partilham a mesma natureza genética como a
síndroma de Waardenburg, a síndroma de Von
Recklinghausen, a síndroma de Smith-Lemi-Opitz,
etc.. Aproximadamente 8% a 16% dos casos de DH
têm concomitantemente síndroma de Down.
O aspecto fisiopatólogico básico desta doença
é a ausência de coordenação celular da actividade
motora das fibras colinérgicas pré-ganglionares, e
do efeito inibitório das fibras adrenérgicas pósganglionares. Assim, desenvolve-se hiperplasia
nervosa colinérgica com aumento de produção
não inibida de acetilcolina pelos neurónios
colinérgicos, e aumento de sensibilidade do músculo liso a esta substância; tal se explica pela
ausência de receptores alfa-2 da mediação noradrenérgica, o que impede a contractilidade do
segmento agangliónico.
O aspecto patológico macroscópico característico deste problema é a dilatação e hipertrofia do
cólon proximal, com abrupta ou gradual transição
(cone de transição), para a porção distal, de
dimensão normal ou diminuída.
Anatomia patológica
O aspecto histológico é caracterizado por uma
ausência de células ganglionares nos plexos
mientérico e subcutâneo, e a presença de troncos
554
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
nervosos não mielinizados hipertrofiados no
espaço normalmente ocupado pelas células ganglionares.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Em cerca de noventa por cento dos doentes com
doença de Hirschsprung o diagnóstico é feito
durante o período neonatal.
O atraso na emissão de mecónio é o sinal
clínico neonatal cardinal desta doença. Cerca de
90% dos recém-nascidos (RN) com DH eliminam
mecónio após as 24 h de vida. Este sinal clínico é
seguido por obstipação, vómitos e distensão
abdominal nos primeiros dias de vida. O exame
rectal apresenta, classicamente, uma ampola rectal
vazia de fezes com uma posterior descarga de
fezes líquidas e semi-líquidas de cheiro fétido. A
estimulação rectal, o uso de clisteres de limpeza,
de laxantes e de emolientes pode fazer regredir o
quadro clínico temporariamente. Nesses casos a
doença reveste-se de uma forma crónica com
períodos de agudização e, manifesta-se clinicamente como um quadro de obstipação crónica
com ou sem distensão abdominal apreciável.
Em cerca de um terço destes doentes surge
como episódio inaugural um quadro de diarreia
aguda profusa. Este sinal clínico é indicativo da
possibilidade de desenvolvimento de enterocolite
grave que permanece como a principal causa de
morte do RN com DH. Nos casos mais graves é
caracterizada por distensão súbita, vómito bilioso,
febre, sinais de desidratação grave, diarreia
sanguinolenta, sépsis e falência multiorgânica.
O diagnóstico da DH depende da conjugação
da clínica com o estudo imagiológico, o estudo
manométrico e, por fim, o estudo histológico.
Os sinais radiológicos característicos em
radiologia convencional são a presença de distensão gasosa de ansas, níveis hidroaéreos e
ausência de conteúdo gasoso na região pélvica
(cut-off sign) (Figura 1). Nos casos de enterocolite,
a distensão gasosa de ansas é muito volumosa,
existindo edema da parede, modelagem e
irregularidade
mucosa
identificável.
O
pneumoperitoneu pode estar presente por necrose
transmural e perfuração da parede de ansa.
O exame radiológico considerado de
excelência para o diagnóstico da doença é o clister
FIG. 1
Sinais radiológicos de oclusão intestinal no RN no contexto de
DH: distensão abdominal e níveis hidroaéreos. (NIHDE)
opaco. Este exame permite identificar a zona de
espasmo rectosigmóide ou cólico e também a zona
de transição (cone de transição) existente entre a
zona de espasmo e a zona de dilatação intestinal.
A retenção de contraste endoluminal por mais de
vinte e quatro horas é muito sugestiva desta
patologia, podendo tornar evidente uma zona de
transição não imediatamente identificável no
início da realização do exame.
A manometria ano-rectal (MAR), baseia-se no
princípio da ausência de relaxamento do esfíncter
interno após a estimulação por aumento de pressão
endoluminal pelo balão da sonda. Este fenómeno é
característico do segmento aganglionar e, por isso,
pode servir como exame de rastreio da doença.
O exame histológico permite o diagnóstico
definitivo. A biópsia pode ser realizada por meio
de acesso laparoscópico (“mapeamento” cólico)
ou, mais simplesmente, por meio de biópsia rectal.
A biópsia rectal pode ser bem sucedida utilizando
uma pinça de sucção, ou por secção cirúrgica. O
estudo histológico permite, por análise imunohistoquímica, identificar a existência, a natureza e
CAPÍTULO 14 Doença de Hirschsprung
maturidade das células ganglionares, assim como
a presença de hipertrofia dos troncos nervosos.
Indicação operatória
A DH tem sempre indicação operatória. O
princípio geral da terapêutica cirúrgica da DH é a
ressecção segmentar do porção recto-sigmóidecólica aganglionar e o abaixamento do cólon
normal gangliónico até à margem do ânus. Até à
realização da cirurgia definitiva o RN é mantido
num programa de descompressão cólica por meio
de clisteres de limpeza denominado classicamente
“nursing”.
Complicações pós-operatórias
555
Todas as complicações decorrentes do quadro
de retenção fecal, estase fecal, proliferação bacteriana e má-absorção, podem ser ultrapassadas com
a resolução cirúrgica da doença.
Prognóstico
Na ausência de complicações mecânicas e funcionais, e de episódio ou episódios de enterocolite pós-operatória, o prognóstico final da DH é
bom, com resultados de cerca de 90% de cura.
BIBLIOGRAFIA
De Lorijn F, Reitsma JB, Voskuijl WP, et al. Diagnosis of
Hirschsprung’s Disease: A prospective comparative
accuracy study of common tests. J Pediatr 2005; 146: 787792
As complicações pós-operatórios na DH são
decorrentes de dois aspectos fundamentais: por
um lado, complicações associadas ao abaixamento
cólico e da anastomose colo-rectal: infecção local,
deiscência e isquémia do segmento cólico mobilizado e estenose da anastomose colo-rectal; por
outro, pode surgir uma complicação funcional – as
células ganglionares embora presentes, têm uma
disposição anómala e displástica condicionando
obstrução funcional cólica distal.
A complicação mais grave é a enterocolite pósoperatória. É caracterizada por distensão abdominal
extrema, hipertermia, diarreia paradoxal profusa e
hemática, e por síndroma séptica. Esta situação
obriga a descompressão intestinal de urgência por
sonda de enteroclise e instituição de antibioticoterapia de largo espectro e de pausa alimentar. A
enterocolite pós-operatória, que pode ocorrer em
cerca de 20% dos casos, constitui a primeira causa de
morte pós-operatória nestes doentes.
Seguimento
O seguimento dos doentes com DH deve ter em
conta, não só a evolução pós-operatória, como
também o status funcional intestinal e o desenvolvimento geral da criança.
Numa situação de boa evolução cirúrgica, com
um bom funcionamento do segmento cólico
mobilizado é provável a ausência de obstipação
grave pós-operatória e boa evolução estaturoponderal associada.
Fujimoto T, Puri P. Persistent enterocolitis following diversion
fecal stream in HD: a study in mucosal defense mecanisms.
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556
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
115
SÍNDROMA DO INTESTINO
CURTO
Sara Silva e Raul Silva
Definição e importância do problema
A síndroma do intestino curto (SIC) é uma
situação clínica caracterizada pela perda superior
a 50% do comprimento do intestino delgado, com
ou sem uma parcela do intestino grosso, do que
resultam aceleração do trânsito intestinal, má
absorção de macro e de micronutrientes, vitaminas, minerais e, consequentemente, má nutrição.
Os cirurgiões geralmente consideram uma
pequena ressecção se o comprimento do intestino
delgado residual (abaixo do ângulo de Treitz, até à
válvula íleo-cecal) medir 100-150 cm, uma grande
ressecção se medir entre 40-100 cm, e ressecção
maciça (intestino ultracurto) se menos de 40 cm.
Até aos anos 70, a grande maioria dos recémnascidos com SIC não sobrevivia à perda de mais
de 15% da área do intestino delgado. Tem-se
assistido, no entanto, a uma melhoria significativa
do prognóstico desta situação que se deve essencialmente ao desenvolvimento das técnicas de
nutrição parentérica, a melhores conhecimentos
sobre estratégias de suporte nutricional e fisiologia
intestinal e, mais recentemente, à possibilidade de
realização de transplantação intestinal.
Efectivamente, hoje em dia existe possibilidade de sobrevivência com 15 cm de intestino
delgado com válvula íleo-cecal, e com 20 cm sem
a referida válvula havendo suporte nutricional
parentérico e normalidade do funcionamento do
restante intestino. De referir igualmente que a
ressecção intestinal em idade pediátrica
(sobretudo nos casos de prematuridade e, dum
modo geral até ao 1 ano) tem melhor prognóstico
do que no adulto dada a potencialidade do crescimento intestinal no primeiro caso.
Factores etiológicos
Na maioria dos doentes pediátricos com SIC, a
situação decorre de problemas que têm a sua
génese no período perinatal. As causas mais
comuns são: enterocolite necrosante (ECN), atrésia
jejunal ou ileal, gastrosquise, doença de Hirschsprung total e anomalias vasculares congénitas. O
Quadro 1 resume as causas.
Numa das Unidades de Pediatria Médica do
Hospital de Dona Estefânia, entre 2000 e 2004, em
10 casos de SIC, 3 foram devidas a atrésia
intestinal, 3 a volvo do intestino médio, 2 a
gastrosquise com atrésia intestinal, 1 a ECN e 1
devida a isquémia mesentérica. Todos os casos
foram submetidos a nutrição parentérica total
(NPT).
Fisiopatologia e manifestações
clínicas
A perda de uma quantidade significativa de
intestino dá origem a um conjunto de alterações
fisiológicas, cujas manifestações clínicas, terapêutica e prognóstico dependem de vários factores:
comprimento e segmento do intestino ressecado;
presença ou ausência de válvula íleocecal; capacidade funcional e adaptativa do intestino residual,
e estado funcional dos órgãos que participam no
processo de digestão e absorção.
QUADRO 1 – Causas de Síndroma do Intestino
Curto
Enterocolite necrosante (ECN)
Atrésia intestinal
Gastrosquise
Volvo do intestino delgado
Pseudo-obstrução intestinal
Aganglionose intestinal total
Malformações vasculares congénitas
Doença inflamatória intestinal *
Tumores*
Enterite da radiação*
*Causas raras
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto
Factor Intrínseco
HCI
Pepsina
Estômago
no
ode
Du
Jejuno
Ferro
Cálcio
Magnésio
Folato
Nutrientes (Glucose)
Vitaminas hidrossolúveis
(Tiamina, vitamina C)
Secretina
Colecistocinina
Nutrientes (Aminoácidos)
Nutrientes (Gorduras)
Enteroglucagina
Ileo
Zinco
Fósforo
Ácidos Biliares
Sais biliares conjugados
Vitamina B12 – Factor Intrínseco
Vitaminas A, D, E, K
Colesterol
Cólo
direitn
o
Cólo
esquern
do
O comprimento do intestino delgado no
recém-nascido (RN) é 217 ± 24 cm às 27-35
semanas de idade gestacional, 304 ± 44 cm após as
35 semanas. No RN de termo é 250 a 300 cm,
crescendo mais 2 a 3 metros até à idade adulta. O
intestino grosso mede 40 a 60 cm no RN de termo,
crescendo até 1.5 a 2 metros na idade adulta.
A perda de um segmento intestinal pode
limitar a digestão ao diminuir a exposição dos
nutrientes às enzimas hidrolíticas da mucosa
intestinal, assim como às secreções pancreáticas e
biliares.
Cada segmento intestinal tem diferentes
funções de absorção:
– Duodeno: glucose, ferro, folato, cálcio,
magnésio e vitaminas hidrossolúveis.
– Jejuno: lípidos e aminoácidos.
– Íleo: ácidos biliares, sais biliares conjugados,
vitamina B12, factor intrínseco, vitaminas
lipossolúveis, zinco, fósforo.
Deste modo, o quadro de má-absorção
dependerá do segmento intestinal ressecado e da
sua extensão. Será mais importante quando a
ressecção envolver o jejuno, uma vez que no
indivíduo saudável quase toda a digestão e
absorção se completam nos primeiros 100 a 150
cm de intestino.
O íleo, para além das suas funções de absorção
únicas – vitamina B12 e sais biliares – tem outras
funções, nomeadamente secreção de substâncias
hormonais, e maior capacidade de adaptação
designadamente para substituir o jejuno nas suas
funções essenciais.
A válvula íleo-cecal tem duas funções
principais: regulação do trânsito intestinal e
prevenção do refluxo bacteriano do cólon para o
intestino delgado. A sua ausência diminui o
tempo do trânsito intestinal (com exacerbação das
perdas de líquidos e nutrientes) e aumenta o risco
de crescimento bacteriano no intestino delgado. A
colonização bacteriana do intestino delgado pode
provocar desconjugação dos ácidos biliares
alterando a formação de micelas, o que poderá
agravar a esteatorreia.
A presença do cólon é importante para a
absorção dos ácidos gordos de cadeia curta, água
e electrólitos. Este segmento intestinal tem a
capacidade de aumentar até 5 vezes a absorção de
água e electrólitos; por outro lado, pode fornecer
557
H2O
HCO3K+
Na+
Oxalato
Secreção/Excreção
Absorção
FIG. 1
Locais de absorção e secreção/excreção no tracto
gastrintestinal (Adaptado de Hwang ST et al).
energia suplementar através da absorção de
ácidos gordos de cadeia curta que são produzidos
pela fermentação dos hidratos de carbono
dependente das bactérias no cólon. (Figura 1)
Após ressecção intestinal extensa, o intestino
restante tem a capacidade de se adaptar anatómica e funcionalmente, de modo a aumentar as
suas funções de digestão e absorção. Estas alterações iniciam-se nas primeiras 24 a 48 horas após
a ressecção e podem prolongar-se para além de
um ano. Vários factores parecem mediar estes
efeitos; o mais importante parece ser a presença de
nutrição entérica que leva a um aumento de
nutrientes não digeridos a nível distal, provo-
558
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cando um aumento na libertação de hormonas
intestinais (péptido YY, substância P, CCK, glucagonlike peptide 2). As alterações de adaptação traduzem-se essencialmente em: aumento do diâmetro,
espessura e comprimento intestinais, aumento da
altura das vilosidades, da profundidade das
criptas, e mais intensa proliferação e migração
celulares para a extremidade das vilosidades.
Esta resposta adaptativa, que é mais acentuada
nas crianças, verifica-se sobretudo no íleo em
relação ao jejuno.
Nos doentes com SIC, a colestase e disfunção
hepática são complicações frequentes que alteram
a capacidade de absorção e utilização de nutrientes. A colestase nestas situações é geralmente
multifactorial, sendo a sépsis, atrofia da mucosa e
o hipercrescimento bacteriano factores predisponentes importantes.
Tratamento
Actualmente, mais de 90% dos doentes com SIC
sobrevivem, recorrendo à NPT. O tratamento é
complexo e requer uma abordagem multidisciplinar
em centro especializado.
Diz respeito essencialmente ao suporte
nutricional, cujo objectivo é manter o crescimento
da criança dentro dos parâmetros normais,
promover a adaptação intestinal e evitar as
complicações resultantes da ressecção intestinal e
da referida NPT (soluções preparadas pelo serviço
farmacêutico em condições de assépsia em câmara
de fluxo laminar).
A primeira etapa inicia-se com a intervenção
cirúrgica cujo objectivo é salvar a vida e preservar
a maior extensão possível de intestino viável.
Geralmente dura 1 a 3 semanas após ressecção
cirúrgica, sendo caracterizada pelo início da NPT,
com especial atenção ao equilíbrio hidro-electrolítico e à hipergastrinémia.
Na segunda fase procede-se ao início da
nutrição entérica contínua, com redução progressiva da NPT.
A terceira fase corresponde à adaptação à
nutrição entérica e ao início da nutrição oral.
A transição de uma fase para outra é variável
de doente para doente, dependendo da evolução
clínica e da eficiência e qualidade do crescimento.
Pode durar meses ou anos.
Sintetizam-se, a seguir, os procedimentos a
seguir nas fases de nutrição parentérica /entérica
e introdução de alimentos sólidos.
Fase 1: Nutrição parentérica (NP)
A nutrição parentérica é administrada por cateter
venoso central e deve ser constituída por uma
mistura equilibrada de glúcidos, proteínas,
lípidos, electrólitos, vitaminas, minerais e oligoelementos de modo a promover o crescimento
adequado. Calculadas as necessidades de fluidos
em função do peso e idade, as necessidades calóricas são aumentadas progressivamente, até se
atingir 100 Kcal/Kg/dia.
A glicose deve ser iniciada ao ritmo de 5-7
mg/Kg/min, com incrementos de 1-3 mg/Kg/min
até se atingir 12-14 mg/Kg/min, evitando hiperglicémia e glicosúria.
Os aminoácidos são iniciados na dose de 1
g/Kg/dia, e aumentados até 3 mg/Kg/dia, em 23 dias.
Os lípidos iniciam-se na dose de 1 g/Kg/dia
com incrementos de 1 g/Kg/dia até 3 g/Kg/dia,
em crianças até ao 1 ano de idade, e até 2
g/Kg/dia em crianças acima de 1 ano. Não devem
exceder 30-40% do valor calórico total, de modo a
prevenir a hiperlipidémia.
Os sais minerais e as vitaminas devem ser
fornecidos de acordo com as necessidade diárias e
grupo etário.
Na fase inicial (primeiras 3 semanas) deve terse em especial atenção os electrólitos, em particular o sódio, sendo por vezes necessário fornecer
soluções com sódio (8-10 mEq / litro da solução)
dependendo das perdas pelo estoma ou do grau
de diarreia. Também nesta fase, por haver hipergastrinémia, inicia-se terapêutica com ranitidina
(0.75-1.5 mg/Kg/dia, por via endovenosa de 6/6h
ou 8/8h). Esta fase prolonga-se por cerca de 1 ano,
pelo que se deve manter a terapêutica. Pode
também ser administrado o omeprazol.
Durante a fase de nutrição parentérica, após
estabilização clínica, é importante a vigilância
laboratorial (Quadro 2).
Fase 2: Nutrição entérica (NE)
A segunda da fase caracteriza-se pelo início da
nutrição entérica, fundamental para estimular a
adaptação intestinal uma vez garantida a estabi-
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto
QUADRO 2 – Esquema de monitorização
de doentes submetidos a NTP
Parâmetros
Diário Semanal* Periódico*
Peso
x
Balanço hídrico
x
Sinais vitais
x
Glicose/acetona urinários
x
Cateter (local e função)
x
Exames laboratorais (sangue)
Sódio, potássio, cloro
x
Bicarbonato
x
Glicose
x
Ureia e creatinina
x
Triglicéridos
x
Cálcio, fósforo e mágnésio
x
Proteínas totais
x
Albumina e pré-albumina
x
ALT
x
Fosfatase alcalina
x
Bilirrubina (total e directa)
x
Selénio
x
Cobre
x
Zinco
x
Ferro
x
559
A progressão deste esquema de alimentação
deve ser regulada pelo número de dejecções/dia,
pelas perdas pelos estomas, pelo pH, identificação de substâncias redutoras fecais, pelo resíduo gástrico e pelos sinais de desidratação
(Quadro 3).
Fase 3: Introdução de alimentos sólidos
Por volta dos 4-6 meses de idade, se o crescimento se
tiver processado com regularidade, podem ser
introduzidos os alimentos sólidos. Começa-se com a
carne, porque é bem tolerada; os alimentos ricos em
hidratos de carbono, como os cereais, vegetais e
frutas devem ser evitados uma vez que causam
sobrecarga osmótica no intestino delgado, aumenQUADRO 3 – Esquema de progressão da
nutrição entérica
A. Dejecções
1. Se < 10 g/Kg/dia ou < 10 dejecções/dia, aumentar
ritmo 10-20 ml/Kg/d
2. Se 10-20 g/Kg/dia ou 10-20 dejecções/dia, não alterar
3. Se > 20 g/Kg/dia ou > 20 dejecções/dia, reduzir ou
suspender alimentação*
* Eventualmente com maior frequência de acordo com a evolução
lidade hidro-electrolítica. É fornecida por sonda
nasogástrica em débito contínuo devendo ser
iniciada logo que ultrapassado o íleos pósoperatório. Habitualmente são utilizadas fórmulas
semi-elementares ou elementares, com o volume
inicial de 10-20 ml/Kg/dia e concentração de 0.20
Kcal/ml, que se aumenta (conforme a tolerância)
até 0.67 Kcal/ml, em crianças até um ano, e até 1
Kcal/ml acima dessa idade. Quando atingida essa
concentração, procede-se ao incremento do volume
(10-20 ml/Kg/dia, com intervalos de 1-3 dias) até
atingir 130-200 ml/Kg/dia com 100-140
Kcal/Kg/dia, com diminuição isocalórica simultânea do suprimento através da NPT. Quando 20%
do valor calórico for fornecido por via entérica, a
NP contínua pode passar a cíclica, sendo reduzida
progressivamente até 12 horas/dia.
Cerca do 5º dia após o início da nutrição
entérica contínua, devem ser fornecidos 3-4 biberões/dia, com volume correspondente ao suprimento em 1 hora da nutrição entérica contínua, a
qual é suspensa nesses períodos.
B. Perdas pelos estomas
1. Se < 2 g/Kg/h, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d
2. Se 2-3 g/Kg/h, não alterar
3. Se >3 g/Kg/h, reduzir ou suspender NE*
C. Substâncias redutoras nas fezes
1. Se < 1%, aumentar ritmo de acordo com débito das
dejecções ou dos estomas
2. Se = 1%, não alterar
3. Se > 1%, reduzir ou suspender NE*
D. Sinais de desidratação
1. Se ausentes, aumentar NE de acordo com débito das
dejecções ou estomas
2. Se presentes, reduzir ou suspender NE*, e
providenciar reidratação
E. Aspirado gástrico (2x/dia)
1. Se < 4x o volume da perfusão/hora, aumentar NE
2. Se > 4x o volume da perfusão/hora, reduzir ou
suspender NE*
*suspender NE durante 8 horas e retomá-la com 3/4 do ritmo anterior
Adaptado de Walker WA, et al, 2004.
560
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Monitorização laboratorial (vitaminas e oligoelementos) nos doentes com SIC, após
suspensão da NPT
Parâmetros
Vitamina B12 e folato
Zinco, crómio, cobre, magnésio, selénio, manganês
Vitaminas A, E, D
Frequência
3/3 meses, nos primeros 6 meses; depois, de 6/6 meses
6/6 meses
3 meses após suspensão da NPT; depois de 6/6 meses
tando as perdas, sobretudo nos doentes com ressecção ileal. Geralmente, após 2 anos, fase em que os
doentes já toleram fórmulas complexas, estes
alimentos podem ser fornecidos em maior
quantidade. Nos doentes sem íleo, mas com cólon
intacto, devem ser evitados alimentos ricos em
oxalatos, tais como chá, colas, chocolate, vegetais de
folha verde, aipo, morangos, para prevenir o
aparecimento de cálculos renais de oxalato de cálcio.
À medida que a NE vai substituindo a NP,
deve ter-se particular atenção aos défices de
vitaminas lipossolúveis – A, D, E e K – fornecendo-as sob forma hidrossolúvel: ADEK®
1ml/dia dos 0-1 ano, 2ml/dia dos 1-3 anos, 3-4
ml/dia após os 4 anos. Deve também proceder-se
aos doseamentos séricos dos oligoelementos e da
vitamina B12, tendo em atenção as manifestações
clínicas dos respectivos défices para tratamento
correcto e atempado (Quadros 4 e 5).
Tratamento das complicações mais comuns
1. Proliferação bacteriana no intestino delgado
Trata-se duma complicação frequente que
provoca lesão da mucosa, má-absorção e translocação bacteriana. Define-se pela presença no
intestino delgado de bactérias do cólon em
número igual ou superior a 105/ml. Clinicamente
manifesta-se por anorexia, vómitos, distensão
abdominal, hematoquesia, dificuldade em tolerar
a NE e perda de peso. Por vezes pode ocorrer um
quadro neurológico caracterizado por alteração
do estado de consciência (incluindo coma),
hiperventilação, acidose metabólica com hiato
aniónico elevado, resultante da acumulação de
ácido D-láctico, (substância não metabolizável na
espécie humana), resultante da fermentação
bacteriana dos hidratos de carbono da alimentação. O diagnóstico é feito pela determinação
sérica do D-lactato, e não do lactato total.
Deve suspeitar-se de proliferação bacteriana no
intestino delgado em doentes sem válvula íleocecal, e
ou com dismotilidade, ou com segmentos intestinais
dilatados. O diagnóstico é difícil, podendo ser confirmado por cultura de líquido duodenal, coprocultura
e pelo teste do hidrogénio expirado.
QUADRO 5 – Clínica e terapêutica das deficiências em micronutrientes
Nutriente
Vitamina B12
Zinco
Ferro
Cálcio
Magnésio
Sinais/sintomas
Astenia, anemia megaloblástica
Alopécia, lesões eczematosas,
diarreia, anorexia
Anemia
Depressão, espasmos musculares,
arritmia
Letargia, tetania
Doses
0,3-2 mcg/dia
0.5-2mg/Kg/dia, oral (zinco – elemento)
300 mcg/Kg/dia, via endovenosa (ev) (zinco-elemento)
1-2 mg/Kg/dia, oral (ferro – elemento)
Dose inicial: Gluconato de cálcio a 10% (9,4 mg de Ca
elemento/ml ou 102 mg de gluconato de Ca/ml):
200 mg/kg de gluconato (2 ml/kg) em 10 minutos via endovenosa
Dose de manutenção: 700-800 mg de gluconato de Ca/Kg/dia
Dose inicial: MgSO4 a 50% (49,3 mg de Mg elemento/ml ou
500 mg de MgSO4/ml): 5-10 mg/Kg de Mg elemento ou 50100 mg/Kg de MgSO4 via intra-muscular ou endovenosa em
60 minutos
Dose de manutenção: 0,4-0,8 ml/Kg/dia (4 doses, via oral)
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto
Dos vários esquemas terapêuticos pode utilizarse por via oral: metronidazol (15 mg/Kg/dia,
8/8h) isolado ou associado ao cotrimoxazol (40-50
mg/Kg/dia, 12/12h); ou gentamicina (5 mg/Kg/
dia), durante 5 dias; deve, entretanto, reduzir-se a
NE e suspender-se os antiácidos.
Esta situação pode ser prevenida, nos doentes
de risco, administrando nos primeiros 5 dias de
cada mês um dos antibióticos acima referidos,
alternando-os para evitar resistências bacterianas.
Em casos de dilatação intestinal acentuada pode
ser necessário proceder a intervenção cirúrgica –
ressecção, modelagem ou alongamento intestinal
– para resolução desta complicação.
Tem-se demonstrado que os probióticos têm
efeito na redução da necessidade de antibióticos e
no controlo de sintomas relacionados com a
proliferação bacteriana intestinal.
2. Colestase relacionada com NPT
É uma situação frequente nos doentes com SIC
e, juntamente com a sépsis, uma das principais
causas de morte. Admite-se que a causa é multifactorial, sendo determinantes a ausência de NE, a
presença de endotoxinas bacterianas e a
hepatotoxicidade directa associada aos componentes da NPT. Manifesta-se por icterícia e
hepatomegália, associadas a elevação das transaminases, fosfatase alcalina e bilirrubina conjugada. A melhor actuação consiste na introdução
progressiva de NE, se possível; em geral a colestase resolve-se com a suspensão da NPT. Deve
prevenir-se a proliferação bacteriana intestinal e a
sépsis, garantir uma mistura adequada de glicose,
proteínas, lípidos e oligoelementos na NPT e
realizar esta última de modo cíclico. Como
terapêutica dirigida utiliza-se o ácido ursodesoxicólico (15-30mg/Kg/dia, 12/12h, por via oral).
3. Sépsis
É uma complicação comum que põe em risco a
vida dos doentes com SIC. São considerados factores
etiológicos importantes a contaminação externa dos
cateteres e a migração bacteriana intestinal. Os
agentes etiológicos são geralmente o Staphylococcus
aureus e as enterobactérias. Por vezes são isolados
fungos como a Candida albicans, que devem ser
sempre considerados como hipótese etiológica em
doentes que terminaram recentemente antibioticoterapia. Qualquer doente com SIC, com cateter
central, em que se inicie febre, letargia ou outros
561
sinais de infecção, deve ser considerado como tendo
sépsis, até prova em contrário. Deve proceder-se a
culturas de sangue colhido de dois locais
simultaneamente (cateter central e veia periférica) e
iniciar antibioticoterapia de largo espectro, mantendo-a até conhecimento do resultado das hemoculturas. Se a infecção for fúngica está indicada
anfotericina B lipossómica, removendo-se o cateter.
Nas infecções bacterianas não há, em princípio,
necessidade de remover o cateter, a não ser em
situações de recorrência de sépsis, choque séptico ou
persistência de hemocultura positiva.
Perspectivas terapêuticas
1. Factores tróficos: o uso de factores tróficos,
nomeadamente glutamina combinada com hormona de crescimento, associados à NE, parece ter
efeitos positivos na adaptação intestinal. Em fase
de investigação, a sua utilização é ainda controversa, parecendo, no entanto, ser promissora
quanto ao prognóstico da situação em análise.
2. Transplantação intestinal: a transplantação
intestinal tornou-se uma opção terapêutica para os
doentes com insuficiência intestinal permanente em
que o crescimento fica na dependência da NPT. A
decisão de indicar o transplante deve ser extremamente bem ponderada, após esgotar todas as
opções terapêuticas, nomeadamente a NPT, o uso de
factores tróficos, e as terapêuticas cirúrgicas alternativas, devido aos riscos e à qualidade de vida
associada ao transplante intestinal. A Associação
Americana de Transplantação considera como
indicações para transplantação intestinal na criança:
doença hepática irreversível associada à NPT
(hiperbilirrubinémia com bilirrubina conjugada
superior a 3mg/dl persistindo para além de 3-4
meses acompanhada de sinais de hipertensão portal
tais como esplenomegália, trombocitopénia ou
circulação venosa superficial colateral marcada),
sépsis recorrente e falta de acessos venosos centrais.
Na situação de doença hepática irreversível, poderá
estar indicada a transplantação hepática e intestinal
combinada.
Prognóstico
O prognóstico após ressecção intestinal depende
da respectiva extensão, da função e capacidade
562
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
adaptativa do intestino residual, das complicações, nomeadamente da doença hepática associada a NPT, da proliferação bacteriana intestinal, e
do número de episódios de sépsis.
Considera-se de bom prognóstico a situação
em que se verifica crescimento adequado, não
dependente da NPT. Em geral, o melhor prognóstico verifica-se em casos de SIC com 40-80 cm de
intestino delgado residual e com válvula íleocecal
intacta; nestes, a independência da NPT durante 1
ano é atingida em 80% dos casos; os doentes com
menos de 40 cm de intestino residual e sem
válvula íleo-cecal permanecem dependentes da
NPT para além dos 8 anos. No entanto, há casos
descritos de SIC com menos de 15 cm de intestino
residual que se tornaram independentes da NPT.
O crescimento e o desenvolvimento dos doentes com SIC são adequados na generalidade,
embora na sua grande maioria se verifique menor
estatura comparativamente à população geral;
verifica-se ainda: maior número de dejecções
diárias (com válvula íleo-cecal, cerca de 2
dejecções/dia; sem vávula, 2-10 dejecções/dia).
São comuns a dificuldade de digestão e absorção
de hidratos de carbono, bem como a intolerância
ao leite e a alimentos condimentados. Existe risco
aumentado de colelitíase, sobretudo nos casos
submetidos a ressecção ileal importante. A hiperoxalúria e os cálculos renais são mais frequentes nos adultos.
Em suma, os importantes avanços conseguidos
com a terapêutica nutricional, a terapêutica médicocirúrgica e o transplante intestinal contribuiram
decisivamente para melhorar as perspectivas dos
doentes com síndroma do intestino curto.
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CAPÍTULO 116 Hepatite vírica
116
563
Os agentes víricos hepatotrópicos causadores
de hepatite aguda são os designados por vírus A
(VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de
referir que apenas os vírus B,C e D causam hepatite crónica. (Quadro 1)
São também agentes de hepatite aguda, no
contexto de compromisso multiorgânico, os vírus
de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex
1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramyxovírus.
HEPATITE VÍRICA
Gonçalo Cordeiro Ferreira
1. Hepatite A
Formas de apresentação
e agentes etiológicos
Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob
duas formas:
Hepatites agudas em que, após o período de
maior ou menor grau de lesão hepática, há uma
recuperação funcional completa (excepto quando
evoluem para hepatite fulminante, situação que
acarreta uma alta morbilidade);
Hepatites crónicas a que corresponde processo
de inflamação hepática que persiste após a
infecção inicial e se mantém por um período
superior a 6 meses.
Epidemiologia
São considerados 3 padrões epidemiológicos de
acordo com as condições socioeconómicas e sanitárias de regiões e países:
Endemicidade elevada: países em desenvolvimento (Ásia, África, América do Sul e Central). A
exposição ao VHA produz-se na infância, estando
a população adulta imune. A infecção é, na maioria
dos casos, assintomática e causada por contacto
interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o
elevado grau de protecção da população que
atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas
hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras;
Endemicidade intermédia: observa-se nos países
QUADRO 1 – Vírus Hepatotrópicos: características
Nome
VHA
Tipo
RNA
VHB
DNA
VHC
RNA
VHD
RNA
VHE
VHG
RNA
RNA
Transmissão
Fecal-oral,
raramente
transfusional
Sexual,
parentérica,
intrafamiliar,
vertical
Parentérica,
sexual,
(menos frequente)
vertical
Sexual ,
parentérica
Fecal-oral
Vertical,
parentérica
Período de incubação
28 dias
(15-50 dias)
Imunização activa
Vacina
Imunização passiva
Imunoglobulina
“standard”
40-160 dias
Vacina
Imunoglobulina
específica
20-60 dias
–––
–––
40-160 dias
Utilizada a vacina
da Hepatite B
Imunoglobulina
específica anti VHB
30-40 dias
Raramente doença
hepática; muitas vezes
coinfecção
–––
–––
–––
–––
564
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com melhoria das condições sanitárias nos últmos
anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes
casos a exposição produz-se na adolescência ou
no adulto jovem, podendo surgir surtos
epidémicos relacionados com transmissão pessoal
ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm
marcadores de seroconversão;
Endemicidade baixa: nos países muito desenvolvidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão,
América do Norte) em que há uma baixa taxa de
seroconversão mesmo nos adultos, havendo
susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou
alimentos contaminados, ou por viagens a países
menos desenvolvidos.
Portugal passou, nas últimas décadas, de um
padrão de endemicidade alta para um de
endemicidade intermédia, e mesmo, nalguns
grupos socioeconómicos (estudo em estudantes
com idade média de 20 anos), de endemicidade
baixa (Quadro 2)
Manifestações clínicas
Em crianças com idade inferior a 6 anos verifica-se
cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas
ou paucissintomáticas com clínica semelhante a
gastrenterite aguda).
Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos
surgem formas sintomáticas. Estas caracterizamse por dois períodos: pré-ictérico com sintomas
gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia,
náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior
excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima
contagiosidade. Subsequentemente surge o
período ictérico com colúria em apenas 5 % das
crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há,
então, melhoria franca da sintomatologia geral e
redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas),
seguindo-se um período de convalescença com
melhoria da icterícia e diminuição das alterações
das enzimas hepáticas.
Ocasionalmente podem surgir formas colestáticas em que predominam sintomas como acolia e
prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos
em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge
novamente agravamento, mas de menor duração.
Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por
VHA na criança pode evoluir para um quadro de
insuficiência hepatocelular aguda – hepatite
fulminante – com alta mortalidade e necessidade
frequente de transplante hepático. São sinais
indicativos desta evolução a manutenção e
agravamento dos sintomas gerais; e, no período
ictérico, a intensificação da icterícia, o aparecimento de alterações comportamentais (irritabilidade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e
de alterações clínicas da coagulação (discrasia
hemorrágica).
Diagnóstico
O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda
faz-se se se verificar elevação das enzimas de
citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos
valores são habitualmente 10 vezes superiores
aos valores normais, mas podem ser 100 vezes
superiores (geralmente entre a terceira e sexta
semana de doença), sem que haja alguma relação
com o prognóstico final. A sua normalização
costuma indicar o final da doença (pela oitava
semana de doença); contudo a sua queda
abrupta na presença de icterícia agravada pode
ser sugestiva de evolução para hepatite fulminante.
A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por
vezes a directa e a indirecta) encontra-se moderadamente aumentada na fase ictérica da doença bem
como as enzimas de colestase (gama - glutamil –
transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas
últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas
nas formas colestáticas da infecção.
A síntese proteica (albumina e factores da coa-
QUADRO 2 – Taxa de IgG anti VHA na população portuguesa
Idade (anos)
1-4
10-14
20-29
1981
Lecour e colaboradores
23,9%
76,4%
96,5%
1992
Marinho e colaboradores
1996
Lecour e colaboradores
35,3%
29,7%
76,1%
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica
gulação) não está geralmente afectada, podendo, no
entanto, haver um ligeiro aumento do tempo de
protrombina. O metabolismo dos hidratos de carbono também não está alterado (normoglicémia).
O diagnóstico etiológico faz-se pela demonstração da presença de anticorpos anti VHA da
classe IgM. Estes surgem entre 25 a 30 dias após o
contacto com o vírus e persistem durante cerca de
2 a 3 meses. Os anticorpos de classe IgG surgem
após 40 dias e persistem indefinidamente.
Tratamento
O tratamento é de suporte, incluindo hidratação e
nutrição adequadas, nomeadamente com suprimento de hidratos de carbono de absorção rápida
(açúcares). Não há necessidade de repouso
forçado ou de dietas restritivas.
Profilaxia
É realizada através de imunoterapia passiva e da
vacina:
– Imunoterapia passiva: para contactos com
menos de 40 anos (a partir dessa idade já existem
em geral anticorpos) de preferência antes de 2
semanas após a exposição; administra-se
imunoglobulina “standard” (polivalente) por via
intramuscular: 0,02 ml/Kg em dose única
(máximo: 3 ml em lactentes e 5 ml em crianças
maiores).
– Vacina: é produzida a partir de vírus
inactivados sendo muito eficaz. Induz imunidade
prolongada e seroconversão rápida (94,6% após a
1ª toma, 100% após a segunda que deve ser
administrada 6 meses depois da primeira). Em
Portugal encontra-se comercializada a vacina
Havrix®, estando a forma Havrix 720 (Junior)
indicada para menores de 15 anos de idade.
A Organização Mundial da Saúde (OMS)
recomenda a vacinação em larga escala nas
crianças que habitam países de endemicidade
intermédia. A Associação Espanhola de Pediatria
(AEP) recomenda a vacinação a todas as crianças
de mais de um ano que frequentem creches ou
jardim-escolas. As recomendações devem incluir,
na idade pediátrica, crianças que viajem para
países de elevada endemicidade ou portadoras de
doença hepática crónica ou de patologia hematológica que necessitem de administração repetida
de sangue ou derivados.
565
2. Hepatite B
Epidemiologia
O VHB pertence à família dos Hepadnavirus (vírus
com tropismo hepático). A infecção por este vírus
tem enorme relevância a nível mundial,
estimando-se que existam 350 milhões de
infectados em todo o mundo.
Consideram-se três padrões epidemiológicos :
– Áreas geográficas de alta endemicidade
(prevalência de portadores do VHB superior
a 8%) na China, Sudeste Asiático, África
negra, bacia do Amazonas e Alasca;
– Áreas de endemicidade intermédia (2-7% de
portadores) na América do Sul, bacia do
Mediterrâneo, Europa de Leste e Próximo
Oriente;
– Áreas de baixa endemicidade (prevalência de
portadores inferior a 2%) na Europa
Ocidental, América do Norte e Austrália.
Globalmente Portugal é considerado um país
de endemicidade baixa, mas nos grandes centros
urbanos a prevalência corresponde a endemicidade intermédia.
A transmissão vírica na idade pediátrica pode
ser: perinatal(vertical através de mãe infectada);
intrafamiliar (horizontal), a de maior significado
no nosso país; ou na adolescência (parenteral
relacionada com a toxicodependência ou sexual).
A infecção pode originar um quadro de
hepatite aguda ou crónica (com alteração das
provas hepáticas) ou de “portador assintomático”
(sem alteração das provas hepáticas e com uma
actividade necroinflamatória hepática mínima).
Manifestações clínicas
Descrevem-se essencialmente duas formas clínicas:
Hepatite aguda: o quadro clínico da hepatite B
aguda é semelhante ao da hepatite A sendo, no
entanto, mais frequente o aparecimento de sintomas
extra-hepáticos: artralgias, renais (glomerulopatias),
cutâneos (acrodermatite papular constituindo a
síndroma de Gianotti-Crosti) ou síndroma tipo
mononucleose. Por outro lado, o risco de evolução
para hepatite fulminante é mais elevado (1%).
Hepatite crónica: é, na grande maioria dos
casos, clinicamente silenciosa, sendo revelada
quando se realizam rastreios analíticos em crianças familiares de doentes ou de portadores do
566
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
VHB, institucionalizadas ou provenientes de
países endémicos.
Diagnóstico
Para o diagnóstico laboratorial da hepatite B
(Quadro 3) são utilizados os seguintes marcadores:
Ag = (antigénio)
Ac = (anticorpo)
Ag HBs: Marcador de infecção actual.
Ag HBe: Marcador de replicação vírica elevada
e de alta contagiosidade.
Ac HBc: Marcador de infecção passada ou
actual (interesse em estudos epidemiológicos)
Ac HBc de classe Ig M: Marcador de infecção
recente.
Ac HBe: Marcador do fim da replicação vírica
activa.
Ac HBs: Marcador da seroconversão natural
ou de resposta vacinal.
DNA VHB: Marcador da replicação vírica e
infecciosidade, podendo ser quantificada a
carga vírica. (Quadro 3)
A hepatite aguda diagnostica-se por elevação
das transaminases, associando-se à presença de
Ag HBs e de Ac HBc de classe IgM.
A hepatite crónica define-se pela presença de
Ag HBs por um período superior a 6 meses. Pode
ser acompanhada de inflamação hepática traduzi-
da por elevação das transaminases, habitualmente
no contexto de replicação vírica activa, ou pode
cursar com transaminases normais, geralmente
sem replicação vírica a que corresponde a situação
de portador assintomático.
História natural da infecção pelo VHB
A infecção pelo vírus da hepatite B (VHB)
adquirida no período perinatal (transmissão
vertical) evolui para a cronicidade em mais de
90% das crianças. A infecção adquirida nos
primeiros 5 anos de vida, habitualmente por
transmissão intrafamiliar (horizontal), evolui para
a cronicidade em 20-30% dos casos. As crianças
infectadas no período perinatal apresentam um
padrão de “tolerância imune” ao VHB, com
replicação vírica activa, presença de Ag HBe,
DNA VHB muito elevado no soro e transaminases
normais. Ulteriormente muitas delas , tal como as
que foram infectadas mais tardiamente, irão
apresentar um padrão diferente com elevação das
transaminases, presença de Ag HBe e DNA VHB,
e manifestações necroinflamatórias demonstradas
na histologia hepática. Cerca de 80% destas
crianças irão apresentar seroconversão anti HBe
perto da puberdade, com normalização das
transaminases, níveis indectetáveis de DNA VHB
(excepto pela técnica de reacção em cadeia da
polimerase ou PCR) e ausência ou presença
QUADRO 3 - Diagnóstico laboratorial do estádio da infecção pelo VHB
Transaminases Marcadores
Elevadas
AgHBs +
Ac HBc IgM +
Hepatite crónica
Elevadas
AgHBs +
“activa”
AgHBe +
AcHBc IgM “Portador” crónico
Normais
AgHBs +
Ac HBe +
AcHBc IgM Seroconversão natural Normais
AgHBs –
AcHBc +
AcHBs +
Contacto antigo
Normais
AcHBc +
com o vírus
Restantes negativos
Estado pós vacinal
Ac HBs +
Restantes negativos
Hepatite aguda
Replicação vírica Comentários
Elevada
Elevada
Na infecção perinatal os RN
têm transaminases normais
Baixa
Nula
Nula
Nula
Útil em estudos epidemiológicos como
indicador de contacto com o VHB
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica
mínima de actividade inflamatória demonstrada
por histologia hepática.
A taxa de diminuição progressiva ou de
depuração do Ag HBe é muito baixa nos primeiros
3 anos de vida (2-10%), aumentando subsequentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração espontânea do VHB com seroconversão anti
HBs é muito baixa(6% num seguimento de 20
anos).
Apesar da aparente benignidade da evolução
da HB na criança, há casos descritos de cirrose
precoce com risco acrescido de carcinoma hepato
celular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no
adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluindo com depuração do Ag HBe pode apresentar
reactivação ou manutenção das alterações hepáticas, comportando risco de evolução na idade
adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular.
A experiência portuguesa é semelhante à das
séries europeias, predominando as formas
adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo
efectuado no Hospital Dona Estefânia compreendendo 187 crianças infectadas comprovou-se
que em 42,7% dos casos a transmissão fôra
horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical.
O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas,
administrando imunoglobulina e vacinando os
seus recém nascidos, e a introdução da vacinação
contra a HB, (inicialmente nos pré-adolescentes e
actualmente desde o nascimento), levaram a uma
redução dos novos casos (redução de 80% dos
casos até aos 14 anos comunicados à Direcção
Geral da Saúde - DGS entre 1995-1999). Assim,
para além das crianças infectadas antes destas
mudanças nas normas de actuação, os novos casos
recebidos nos centros pediátricos correspondem
fundamentalmente a crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, nomeadamente das ex
colónias africanas.
Tratamento
O tratamento de um agente infeccioso deverá ter
como objectivo a sua eliminação do organismo.No
entanto, a constatada impossibilidade de qualquer
pauta terapêutica utilizada levar consistentemente à eliminação do VHB com seroconversão
anti HBs torna os objectivos terapêuticos mais
limitados.
O tratamento de crianças com HB crónica tem
567
como finalidade a diminuição da actividade necroinflamatória hepática através da eliminação da
replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag
HBe (com ou sem seroconversão anti e), e
desaparecimento dos níveis séricos detectáveis do
DNA VHB (resposta virológica). Adicionalmente
procura-se a normalização das transaminases
(resposta bioquímica). Desta forma, obvia-se a
progressão da lesão hepática para cirrose e risco
de carcinoma hepatocelular (CHC). No entanto,
sabendo-se que, mesmo na ausência de cirrose e
de replicação vírica activa, a infecção crónica pelo
VHB pode a longo prazo originar o CHC
(provavelmente após a integração do genoma do
vírus no DNA do hepatocito), será necessário
analisar a mais longo prazo os efeitos desta
terapêutica limitada para avaliar os seus reais
benefícios.
Os fármacos mais utilizados nos últimos anos
no tratamento da HB crónica da criança são o
interferão alfa e a lamivudina. (Quadro 4)
Os efeitos secundários com o interferão são
mais acentuados, tais como síndroma gripal após
a administração, diminuição do número dos
neutrófilos (reversível com a diminuição da dose),
sintomas depressivos na adolescência, perda do
apetite e do cabelo, fenómenos autoimunes
(anemia hemolítica, tiroidite), etc..
Não têm sido descritos efeitos adversos significativos com a lamivudina
Em fase experimental encontram-se estudos
combinando interferão com lamivudina, uso de
interferão peguilado (uma só injecção semanal) e
uso de outro análogo dos nucleótidos (adefovir)
que não induz mutantes resistentes como a
lamivudina.
Os resultados da terapêutica com interferão ou
com lamivudina são semelhantes e apresentam a
curto prazo efeitos positivos em relação ao curso
natural da doença, sendo necessários estudos de
maior duração para comprovar esses benefícios a
longo prazo. Tal como noutras séries europeias, a
casuística do Hospital Dona Estefânia mostra que,
a longo prazo, a seroconversão AgHBs-AcHBs é
semelhante nas crianças tratadas e não tratadas,
mas que, a curto prazo, há uma resposta virológica
mais precoce no grupo tratado.
A lamivudina apresenta menos efeitos
secundários, menos custos e é de mais cómoda
568
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Tratamento da HB
Fármaco
Interferão alfa
Lamivudina
Critérios terapêuticos
AgHBe +
DNA VHB > 105/ml
Transaminases > 2x
Sem lesão hepática
descompensada
AgHBe +
(ou –) com replicação
vírica (DNA VHB +)
Transaminases > 2x
Pode haver lesão hepática
descompensada
Dose
5-6 MU/m2 via subcutânea
3 x semana
Duração
6 meses
3 mg/Kg/dia 1xdia per os
(máximo : 100 mg)
12 meses, podendo prolongar-se
para 18-24 meses se não houver
resposta
Risco de indução de mutantes
resistentes (YMDD)
administração que o interferão; poder-se-á, por
isso, considerar o tratamento de primeira escolha
na HB crónica na criança. No entanto, não se
conhece ainda bem o tempo necessário para
manter o tratamento com este fármaco, sabendo-se
que a emergência cumulativa de mutantes YMDD
ao longo do tempo limita necessariamente o uso de
esquemas terapêuticos de longa duração.
Em suma, os resultados globalmente decepcionantes da terapêutica da HB crónica na criança,
apontam para a importância de prevenção.
Profilaxia
A profilaxia tem duas componentes fundamentais:
– Imunoterapia passiva: a gamaglobulina específica hiperimune (HBIG) utiliza-se nos RN
filhos de mães portadoras do VHB (em simultâneo com o início da vacina) nas primeiras 812 horas de vida, na dose de 0,5 ml.
Nos contactos acidentais com material
potencialmente contaminado (agulhas com
sangue) em crianças não vacinadas, deve ser
administrada na dose de 0,06 ml/Kg (máximo 5
ml), seguindo-se esquema vacinal rápido (0-1-2-12
meses).
– Imunoterapia activa: em Portugal já tem
lugar a vacinação universal dos RN segundo
o esquema 0-1-6 meses. As crianças ainda
não abrangidas por este plano são vacinadas
entre os 11-13 anos.
Em qualquer dos casos não são necessárias
doses de reforço para além das 3 doses da
primovacinação.
3. Hepatite C
Epidemiologia
A infecção pelo VHC atingindo mais de 170
milhões de pessoas em todo o mundo é a causa
mais importante de hepatite vírica crónica nos
países desenvolvidos.
A transmissão ocore fundamentalmente por
via parentérica (hemoderivados contaminados até
ao início dos anos 90, data a partir da qual passou
a ser feito o rastreio serológico sistemático dos
dadores e dos toxicodependentes). A via sexual é
também possível, mas com muito menor frequência que a hepatite B.
Na idade pediátrica o principal meio de
transmissão é o materno-fetal (vertical) com um
risco de transmissão que oscila entre 3-5%,
atingindo 30% quando as mães estão infectadas
em simultâneo pelo VHC e pelo vírus de
imunodeficiência humana (a virémia do VHC é
muito intensa nestes casos).
Num estudo prospectivo que efectuámos no
Hospital Fernando Fonseca e que compreendeu 43
pares mãe-filho seguidos desde o nascimento até
aos 18-24 meses verificou-se uma baixa taxa de
infecção (2,2%).
A excreção do vírus no leite materno não foi
demonstrada, pelo que o aleitamento por mães
VHC + (desde que VIH -) não está contraindicado.
A estrutura genética do VHC não é
uniforme, descrevendo-se 6 genotipos (1-6),
sendo o genotipo 1 o mais frequente na Europa
e EUA.
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica
Manifestações clínicas e história natural
A infecção pelo VHC na idade pediátrica é
geralmente assintomática, havendo uma evolução
para a cronicidade em 70-85% dos infectados.
Os estudos em crianças com infecção vertical
mostram ausência de sintomas ou sinais (como
icterícia ou hepatomegália), mas elevação de
transaminases em 90% dos casos no 1º ano de vida
(dos quais 30% com aumento até 5 vezes o
normal); 23% dessas crianças infectadas evidenciaram sinais de cura aos 3 anos de vida evoluindo
77% para a cronicidade.
Ao contrário da infecção no adulto, na criança
não há associação habitual a outras doenças extrahepáticas autoimunes podendo, no entanto, em
7% dos doentes haver associação com anticorpo
LKM-1.
Diagnóstico
O diagnóstico da infecção pelo VHC baseia-se na
presença do Ac VHC, confirmada por técnicas de
3ª geração (RIBA 3) e na demonstração da virémia
(positividade para RNA-VHC por PCR). A
virémia pode ser intermitente, pelo que uma
determinação negativa não exclui o diagnóstico.
As alterações das transaminases ocorrem
segundo 3 padrões: disfunção persistente (a mais
frequente na data do diagnóstico); alteração flutuante (alternando com períodos de normalidade); normalidade continuada (mesmo na presença
de virémia).
O diagnóstico de cronicidade baseia-se na
demonstração do RNA-VHC, pelo menos 3 anos
após o contacto conhecido (nomeadamente após o
parto). Nestes casos há também presença do Ac
VHC no soro, excepto nos imunodeficientes.
No doente com infecção crónica deve ser
avaliado o genotipo, o qual permite prever a
resposta terapêutica.
Tratamento
A infecção pelo VHC nas crianças tem um curso
habitualmente muito ligeiro ou moderado (75%
dos casos com inflamação hepática leve e 22%
moderada de acordo com dados da biópsia),
apenas apresentando cirrose 2% (ao contrário dos
adultos em que na segunda década da infecção há
progressão para cirrose em percentagem dez
vezes superior).
569
A decisão de iniciar terapêutica só deve ser
tomada em crianças de idade superior a 3 anos
com elevação continuada ou intermitente das
transaminases.
Os esquemas mais utilizados associam o
interferão alfa (na dose de 3-5 MU/m2, via
subcutânea, 3 vezes por semana) ou o Peg
Interferão alfa 2b (na dose de 1 micrograma/Kg, 1
vez por semana) em combinação com a ribavirina
oral na dose de 15 mg/Kg/dia.
O tratamento deverá ter uma duração de 48
semanas para doentes com genotipo 1 e de 24
semanas para doentes com genotipos 2 e 3.
Profilaxia
No que respeita à profilaxia passiva, de referir que
as imunoglobulinas “standard” não são eficazes na
prevenção da infecção
Quanto à activa, pela variabilidade genómica
do vírus, não estão ainda disponíveis vacinas
eficazes.
4. Hepatite D
Resulta dum vírus RNA incompleto que, para
se manter infectante, necessita de uma cobertura exterior, assegurada pelo Ag HBs.
Como tal, a infecção por este vírus só acontece
no contexto de uma coinfecção com o VHB, ou
de uma sobreinfecção de um doente com VHB,
crónico.
Trata-se duma infecção rara na idade pediátrica.
A sobreinfecção nos doentes com hepatite B crónica
aumenta a gravidade desta. O tratamento e
prevenção são os aplicáveis à hepatite B.
5. Hepatite E
Trata-se duma hepatite por vírus com uma
transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, sendo
frequente a existência de surtos epidémicos em
países da América Central, Índia e África do
Norte; esta infecção é rara entre nós.
Não apresenta evolução para a cronicidade,
sendo a incidência maior entre adolescentes e
adultos jovens. Na grávida, principalmente no
último trimestre, tem uma alta mortalidade (até
20%). Não há imunoglobulina específica ou
vacina disponíveis.
570
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
6. Hepatite G
Este vírus pertence à família do VHC com um
mecanismo de transmissão fundamentalmente
parentérica; no entanto poderá haver transmissão
vertical. É factor de coinfecção com outros vírus
hepatotrópicos, mas há dúvidas de que, isoladamente, possa causar algum tipo de infecção
hepática relevante, aguda, fulminante ou crónica.
117
HEPATITE AUTOIMUNE
Inês Pó
BIBLIOGRAFIA
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Marinho RT, Valente AR, Ramalho FJ, et al. The changing
A hepatite autoimune (HAI) é uma doença
inflamatória crónica grave do fígado, progressiva e
rara, que evolui para cirrose e insuficiência hepática e é acompanhada de elevação do teor sérico
de aminotransferase, presença de auto-anticorpos
associados ao fígado e de hipergamaglobulinémia.
Caracteriza-se histologicamente por infiltrado
intenso de células mononucleares nos espaços
porta. De acordo com as características dos autoanticorpos encontrados na data do diagnóstico, a
hepatite autoimune classifica-se em 2 tipos: tipo 1
(com auto-anticorpo, anti-músculo liso); tipo 2
(com auto-anticorpos, anti-fígado-rim microssoma).
Etiopatogénese
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O mecanismo etiopatogénico na HAI é idêntico ao
de todas as doenças autoimunes: aparecimento
duma resposta imunológica exagerada contra os
próprios antigénios, neste caso hepáticos.
A predisposição genética é sugerida pelo
aumento da frequência dos haplotipos HLA
B8/DR3, dos dos alotipos DR3 e DR4, e pela
coexistência de outras manifestações autoimunes.
A HAI está também associada a outros autoanticorpos séricos, para além dos referidos atrás,
importantes para o diagnóstico, embora com
papel desconhecido na etiopatogénese da
entidade. (Quadro 1).
Manifestações clínicas
A doença pode manifestar-se de modo muito
diversificado, desde a detecção de hepatomegália
CAPÍTULO 117 Hepatite autoimune
QUADRO 1 – Auto-anticorpos séricos na HAI
Anticorpos anti-fígado/rim microssoma (LKM)
Anticorpos anti-fígado/citosol (LCA)
Anticorpos anti-músculo liso (SMA)
Anticorpos anti-nucleares (ANA)
Anticorpos anti-fígado/membrana (LMA)
Anticorpos anti-proteína específica do fígado (LSP)
assintomática numa observação de rotina, ao
aparecimento de insuficiência hepática.
Em ambos os tipos de HAI (1 e 2) a doença
predomina no sexo feminino. São frequentes
outras manifestações autoimunes, tanto nos
doentes como nos familiares. Na HAI do tipo 1, as
doenças autoimunes mais frequentes são a
síndroma nefrótica, a colangite esclerosante, a
colite ulcerosa, a trombocitopénia autoimune, a
anemia hemolítica autoimune, a doença de
Behcet, etc.. À HAI do tipo 2, associam-se tiroidite,
vitíligo, hipoparatiroidismo, doença de Addison e
diabetes insulinodependente.
Em cerca de 50% dos casos o quadro surge
insidiosamente com cansaço progressivo e icterícia.
Em menor percentagem as manifestações são
idênticas às da hepatite aguda, por vezes com
insuficiência hepática que pode ser fulminante.
Em 15% dos casos o diagnóstico é feito no âmbito
da avaliação duma esplenomegália, ou hepatomegália, ou de situações com função hepática
alterada. Numa minoria de casos a doença hepática não é muito relevante quando é feito o
diagnóstico, predominando sinais de compromisso extra-hepático. No entanto, em todos os casos
há sempre hepatomegália e transaminases (ALT e
AST) elevadas desde o início da doença.
A doença deve ser sempre admitida como
hipótese em todos os doentes com sinais e
sintomas de doença hepática prolongada ou grave.
Diagnóstico
O padrão histológico é fundamental para
confirmar o diagnóstico. No entanto, o estado
geral precário muitas vezes não permite a realização da biópsia hepática.
A ausência de detecção dos auto-anticorpos,
571
não deverá inicialmente excluir o diagnóstico,
pois os mesmos poderão surgir somente com a
evolução da doença.
Os critérios de diagnóstico habitualmente
aceites são discriminados no Quadro 2.
Na avaliação destes doentes é importante: 1)
proceder a endoscopia digestiva alta para
detecção de sinais hipertensão portal; 2) avaliar a
função hepática com a determinação do tempo de
protrombina e da albumina sérica.
Tratamento
Se a HAI se manifestou desde o início por insuficiência hepática aguda/fulminante, o tratamento indicado é o transplante hepático urgente.
Nos outros casos a terapêutica indicada é a
imunossupressão. O tratamento deve ser iniciado
com prednisolona na dose de 2mg/kg/dia (dose
máxima de 60 mg), que se vai diminuindo
progressivamente se houver redução do valor das
transaminases. O objectivo é manter uma dose
mínima, habitualmente 5 mg/dia, suficiente para
manter as transaminases normais. Nas primeiras 8
semanas de tratamento a avaliação das transaminases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes
necessários da dose de corticóide. O tratamento
deve ser iniciado imediatamente, não se esperando
pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas.
Se não houver normalização das transaminases ou se a evolução não permitir reduzir a dose
de corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de
0,5-2mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais
baixa.
Apesar de, na maior parte dos casos, as
transaminases começarem a baixar logo que se
inicia a terapêutica, a sua completa normalização
poderá surgir somente ao cabo de alguns meses.
As recidivas são frequentes obrigando a novos
acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão
da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para
cirrose depende também dos achados iniciais da
biópsia: se na data do diagnóstico já forem
evidentes os quadros morfológigicos de “bridging”
e da chamada “piecemeal necrosis”, é provável que,
apesar do tratamento, se verifique tal evolução.
A eficácia da terapêutica é determinada pelo
valor das transaminases e gamaglobulinas, e não
pelo título dos auto-anticorpos.
572
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Critérios para o diagnóstico de hepatite autoimune
Histologia
Hepatite de interface (ou de actividade necroinflamatória periportal com infiltração celular ultrapassando o espaço porta)
moderada a grave; hepatite lobular ou necrose“bridging”* portal central sem lesões biliares ou granulomas bem definidos
e sem alterações sugerindo outra etiologia
Bioquímica
Alteração das transaminases, especialmente se a fosfatase alcalina estiver pouco elevada
Alfa-1-antitripsina, cobre e ceruloplasmina séricos normais
Imunoglobulinas séricas
Globulinas séricas totais ou gamaglobulinas ou IgG elevada (1,5 vezes acima do valor normal)
Autoanticorpos séricos
ANA/SMA ou Anti-LKM com títulos > 1:80
Marcadores víricos
Serologia negativa para hepatite A,B,C
Outros factores etiológicos
Consumo de álcool <25g/dia
Ausência de uso recente de drogas hepatotóxicas
*Bridging: processo de fibrose entre dois espaços porta
(International Autoimmune Hepatitis Group Report: Adaptado de Alvarez e colaboradores, 1999).
Nos casos que não respondem a esta imunossupressão poderão ser tentadas outras drogas
imunossupressoras (ciclosporina, tacrolimus).
A maior parte dos autores recomenda
actualmente que o tratamento se mantenha, pelo
menos, 5 anos após a normalização das transaminases.
Após suspensão da terapêutica há que manter
uma vigilância rigorosa das transaminases pelo
perigo de recidiva. Há autores que recomendam
nas hepatites auto-imunes LKM positivas,
manutenção da terapêutica durante toda a vida.
Está indicada transplantação hepática se surgir
insuficiência hepática fulminante, complicações
da cirrose hepática, falência da terapêutica médica, ou aparecimento de efeitos secundários
intoleráveis da medicação.
Estes doentes devem ser sempre seguidos em
centros especializados.
BIBLIOGRAFIA
Alvarez F. Autoimmune hepatitis In: Suchy FJ, Sokol RJ,
Balistreri WF, (eds). Liver Diseases in Children. Philadelphia:
Lippincott, Williams & Wilkins, 2001;187-194
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CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente
118
COLESTASE DO
RECÉM-NASCIDO E LACTENTE
573
uterino – síndroma de Alagille, doença
metabólica, infecção intra-uterina;
• Sinais dismórficos – síndroma de Alagille,
cromossomopatias, síndroma de Zellweger;
• Hipoglicémia – doença metabólica, hipopituitarismo, insuficiência hepática;
• Sopro cardíaco ou manifestações neurológicas – sindromas congénitas específicas.
Diagnóstico
Inês Pó
Definição
A colestase do recém-nascido e lactente define-se
como a redução do fluxo biliar, com consequente
acumulação de pigmentos biliares nos hepatócitos
e canais biliares e aumento da concentração sérica
dos produtos que são excretados em circunstâncias normais pela bílis como bilirrubina, ácidos
biliares, colesterol, etc.; tal processo traduz-se
essencialmente por hiperbilirrubinémia conjugada desde o período neonatal (primeiras 4
semanas de vida) e prolongando-se nos primeiros
meses de vida.
Factores etiológicos e classificação
O Quadro 1 sintetiza os principais factores etiológicos implicados na colestase do recém-nascido e
lactente os quais permitem uma classificação.
Dum modo geral podem estar em causa agentes
exógenos e condições patológicas congénitas
específicas.
Manifestações clínicas
Apesar de serem inúmeras as causas de colestase,
a apresentação clínica é semelhante, reflectindo
sempre a diminuição do fluxo biliar.
Os lactentes com colestase evidenciam icterícia
de intensidade variável, urina escura, fezes claras
e hepatomegália, associando-se em geral sinais de
disfunção de síntese e de necrose hepatocelular.
No exame objectivo alguns aspectos podem
orientar para determinadas etiologias:
• Lactentes com restrição de crescimento intra-
A avaliação do recém-nascido e lactente com
colestase deve ser feita de modo sistematizado. De
tal metodologia vai depender, em grande parte, a
sua evolução, pelo que se aconselha o envio destas
crianças a centros especializados com experiência
neste tipo de patologia. É, de facto, imperativo
reconhecer atempadamente situações com indicação de tratamento médico (galactosémia,
tirosinémia, sépsis) ou de tratamento cirúrgico
que não poderão ser diferidos sob pena de aparecimento complicações e sequelas (por exemplo,
atrésia das vias biliares extra-hepáticas, que
deverá ser operada até às 6 semanas).
Todo o aumento sérico da bilirrubina
conjugada, superior a 15-20% da bilirrubina total,
é patológico e deve ser sempre investigado. Em
todo o recém-nascido com icterícia prolongada
(mais de 15 dias) sobretudo se não estiver a ser
alimentado ao peito, é fundamental excluir
colestase determinando o valor da bilirrubina
total e conjugada.
Durante a avaliação as fezes devem ser
examinadas diariamente durante pelo menos 10
dias, dejecção a dejecção, para determinar se há
acolia contínua ou intermitente. A persistência de
acolia durante 10 dias ou mais sugere atrésia das
vias biliares.
A avaliação de parâmetros bioquímicos que
fundamentam a colestase deve ser feita por
etapas. Numa primeira fase avalia-se a função
hepática (incluindo o estudo da coagulação),
começando por se excluir as situações mais
frequentes. Numa segunda fase, há que proceder
ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é
facilitado pelo algoritmo apresentado. (Quadro 3).
Não há nenhuma análise bioquímica que seja
patognomónica. Durante muito tempo usou-se a
elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de
574
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Colestase do recém-nascido e lactente: factores etiológicos e classificação
Hepatite neonatal
Idiopática
Infecções víricas
Citomegalovírus
Vírus herpes
Rubéola
Reovírus tipo 3
Adenovírus
Enterovírus
Parvovírus B19
Vírus da hepatite B
VIH (vírus da imunodeficiência humana)
Infecções bacterianas e parasitárias
Sépsis bacteriana e endotoxémia (infecção urinária,gastrenterite)
Listeriose
Sífilis
Tuberculose
Toxoplasmose
Malária
Obstrução das vias biliares
Colangiopatias
Atrésia das vias biliares
Quisto do colédoco
Hipoplasia biliar não sindromática
Síndroma de Alagille
Colangite esclerosante neonatal
Perfuração espontânea da via biliar
Doença de Caroli
Fibrose hepática congénita
Estenose da via biliar
Outras
Bílis espessa
Colelitíase
Tumores/massas (intrínsecas e extrínsecas)
Sindromas colestáticas
Colestase intra-hepática familiar progressiva causada por
defeitos de transporte tipo 1 (doença de Byler), tipo 2 e tipo 3
Colestase hereditária com linfedema (sindroma de Aagenaes)
Colestase dos Índios Norte Americanos
Sindroma de Nielsen ( Esquimós da Groenlândia)
Colestase recorrente benigna (defeito no mesmo gene da
colestase familiar progressiva do tipo 1)
Sindroma de Dubin-Johnson neonatal
atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A
grande variabilidade dos resultados tornou o seu
uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar
Doenças metabólicas
Deficiência de alfa 1 antitripsina
Fibrose quística
Hemocromatose neonatal
Endocrinopatias
Hipopituitarismo (displasia septo-óptica)
Hipotiroidismo
Alteração do metabolismo dos aminoácidos
Tirosinémia
Hipermetioninémia
Alteração do metabolismo dos lípidos
Doença de Nieman-Pick
Doença de Gaucher
Doença de Wolman
Doença do armazenamento do colesterol
Doenças do ciclo da ureia (deficiência de arginase)
Alterações do metablismo dos hidratos de carbono
Galactosémia
Frutosémia
Glicogenose do tipo IV
Doenças mitocondriais (cadeia respiratória)
Doenças dos peroxizomas
Sindroma de Zellweger
Doença de Refsum infantil
Outras enzimopatias
Defeitos de síntese dos ácidos biliares
Tóxicos
Drogas
Nutrição parentérica
Alumínio
Outras
Choque/hipoperfusão
Histiocitose X
Lúpus eritematoso neonatal
Cromossomopatias
Trissomia 18,21 (síndroma de Down)
Linfo-histiocitose eritrofagocítica
Doença venoclusiva
Síndroma de Donahue (leprechaunismo)
Eritroblastose fetal
Défice congénito de glicosilação
Adaptado de Suchy FJ,2001
valores normais e a fosfatase alcalina estiver
elevada, poderá tratar-se em presença de colestase
intracelular.
CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente
QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase
neonatal
1ª fase
História clínica
Exame objectivo
Avaliação diária do aspecto macroscópica das fezes
(dejecção a dejecção)
Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina
total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase
alcalina; LDH, amónia, glicemia, alfafetoproteína, colesterol, triglicéridos,
siderémia, ferritina, ácidos biliares, fenotipo de
alfa-1-antitripsina, serologia TORCHES, vírus
da hepatite B, hemoculturas
Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras,
succinil-acetona
Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia
do esqueleto
Histologia: biópsia hepática
Outros: paracentese (se ascite)
LDH: Desidrogenase láctica)
575
A biópsia hepática é o exame mais importante
na avaliação dum lactente com colestase. Nas
crianças com menos de 6 semanas de vida os
achados histológicos característicos de atrésia das
vias biliares (proliferação ductular, alargamento
dos espaço porta com escasso infiltrado
inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e
estase biliar) poderão ainda não estar presentes,
sendo então necessário repetir a biópsia hepática
após algumas semanas. A biópsia pode também
sugerir doenças metabólicas ou de depósito
(tesaurismoses) como causa da colestase.
Nos casos em que não é possível estabelecer o
diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares,
deve ser feita uma laparatomia exploradora com
colangiografia intraoperatória. Este procedimento
deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com
experiência deste tipo de patologia. Recentemente
tem-se usado a colangiorressonância que, apesar
de necessitar de anestesia, é uma técnica menos
invasiva que a anterior.
TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis
2ª fase
Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia,
aminoácidos, galactose-1-fosfato,
uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH,
lactato, piruvato, CDT (transferrina deficiente
em hidratos carbono), estudos genéticos
Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos
Imagem: CPRE, colangiorressonância
Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos
leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele),
fígado, músculo, medula óssea.
A ecografia é importante para o diagnóstico de
defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A
inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia
das vias biliares sendo de salientar que a
importância deste método depende muito da
experiência do imagiologista.
A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marcado
por análogos do ácido iminodiacético pode dar
contributo para estabelecer a destrinça entre a
atrésia das vias biliares e colestase não obstrutivas.
Para aumentar a excreção biliar do isótopo e
aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a
administração prévia de fenobarbital na dose de 5
mg/Kg/dia durante 5 dias.
Tratamento
O tratamento das síndromas colestáticas do recémnascido e lactente depende do diagnóstico e da
data em que o mesmo é realizado.
Os doentes com atrésia das vias biliares extrahepáticas devem ser operados até às 6 semanas de
vida. Depois dos 3 meses de idade há que ponderar a indicação operatória, pois estes doentes
necessitarão de transplante hepático precoce.
Algumas doenças metabólicas também têm
indicação para transplante hepático (deficiência de
alfa-1-antitripsina, doença de Byler, tirosinémia),
dependendo da evolução de cada caso. (capítulo 123)
Os restantes doentes necessitam habitualmente de tratamento médico. Usa-se o ácido ursodesoxicólico nos casos de obstrução incompleta e nas
colestases não obstrutivas, na dose de 10-40
mg/kg/dia, além doutras medidas de suporte.
BIBLIOGRAFIA
Buts JP, Sokal E (eds). Management of Digestive and Liver
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Balistreri WF, Bezerra JA, Jansen P, et al. Intrahepatic
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576
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Algoritmo para o estudo da colestase neonatal
Icterícia neonatal
Hiperbilirrubinemia indirecta
Hiperbilirrubinemia directa
Aleitamento materno
Hemólise
Sépsis
Hipotiroidismo
Estenose hipertrófica do piloro
↑BT / ↑BD
Bilirrubina (+) urina
Acolia e colúria
Colestase
Anamnese
Exame físico
Ecografia
Função hepática
BT/BD, AST, ALT, FA
Insuficiência hepática
Patente
GGT
Normal
Vesícula biliar e via
biliar extra-hepática
Ausente
Gamagrafia hepática
Colangiografia trans-hepática
Colangiorressonância
Elevada
Biópsia
hepática
Ácidos biliares
séricos
Elevados
Colestases
genéticas
Diminuídos
ou normais
Patente
Biópsia
hepática
Hepatite
neonatal
Anomalia do metabolismo
dos ácidos biliares
ABREVIATURAS:
AST – Aspartato amino transferase (transaminase glutâmico – oxalacética ou SGOT)
ALT – Alanina amino transferase (transaminase glutâmico – piróvica ou SGPT)
GGT – Gama glutamil transpeptidase
FA – Fosfatase alcalina
AVBIH – Atrésia das vias biliares intra-hepáticas
AVBEH – Atrésia das vias biliares extra-hepáticas
BT – Bilirrubina total
BD – Bilirrubina directa (conjugada)
S – Síndroma
Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in
Children. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2004; 35-73
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Ausente
AVBIH
AVBEH
S. Alagille
Não sindromática
(Adaptado de Manzanares & Benitez, 2003)
children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins,
2001; 187-194
CAPÍTULO 119 Doença de Wilson
119
DOENÇA DE WILSON
Isabel Afonso
Definição e importância do problema
A doença de Wilson (ou degenerencência hepatolenticular) é uma alteração rara do metabolismo
do cobre, de transmissão autossómica recessiva,
que se caracteriza por acumulação excessiva de
cobre no sistema nervoso central, fígado, rins,
córnea, esqueleto e outros órgãos. A incidência é
calculada entre 1/100.000 a 1/500.000.
Esta doença pode permanecer não diagnosticada até à vida adulta, embora as manifestações
se possam iniciar na infância.
Etiopatogénese
O gene da doença de Wilson (de que se
conhecem mais de 250 mutações) codifica uma
ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa
principalmente (mas não exclusivamente) nos
hepatócitos e que se admite ter papel crucial na
excreção biliar do cobre e na incorporação deste
na ceruloplasmina.
As alterações do funcionamento dos órgãos
ocorrem por depósito anormal de cobre nos
lisossomas devido a excreção biliar inadequada.
Tal resulta de incorporação anormal do cobre em
proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina.
Na doença de Wilson a acumulação de cobre
ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª
década de vida. O cobre é libertado do fígado
quando a capacidade de acumulação é excedida,
sendo então depositado noutros tecidos.
A peroxidação lipídica das mitocôndrias como
resultado da sobrecarga em cobre conduz a
alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo
diversos processos enzimáticos.
O gene anormal ligado à doença de Wilson
577
localiza-se no braço longo do cromossoma 13
(13q14.3).
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas relacionam-se com o
depósito de cobre em órgãos específicos, mais
frequentemente no fígado e no sistema nervoso
central. A forma de apresentação é variável nas
crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As
manifestações hepáticas precedem habitualmente
as manifestações neurológicas durante vários
anos.
A doença hepática manifesta-se habitualmente
por icterícia recorrente, hepatite aguda autolimitada, hepatite autoimune, falência hepática
aguda ou doença hepática crónica.
As lesões neurológicas manifestam-se por
alterações do movimento (tremores, incoordenação motora, perda de controlo da motricidade
fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida
(rigidez, alterações da marcha e compromisso
pseudobulbar).
As alterações psiquiátricas manifestam-se
habitualmente por depressão, comportamentos
neuróticos, alterações da personalidade e, ocasionalmente, deterioração intelectual. (Quadro 1)
Diagnóstico
Pode ser difícil, uma vez que não existe um único
exame complementar que confirme a doença. O
melhor rastreio consiste em determinar o valor da
ceruloplasmina: na maioria dos casos de doença
de Wilson está diminuída. Numa fase precoce o
cobre sérico está elevado e a sua excreção urinária
(normalmente inferior a 40 mcg/dia) elevada
(100-1000 mcg/dia).
Se estiver presente a tríade clássica de doença
hepática, manifestações neurológicas e anel de KayserFleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil.
Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna
necessário um elevado índice de suspeita decorrente da anamnese e do do exame objectivo.
A suspeita clínica implica o encaminhamento
para centros especializados para a realização dum
conjunto de exames complementares tais como
hemograma, provas da função hepática, doseamentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre,
578
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Manifestações clínicas da doença de Wilson
Fígado
Hepatite aguda
Sistema nervoso central
Neurológicas
Oftalmológicas
Anel de Kayser-Fleischer
na córnea
Outras
Renais
Hepatite crónica activa
Psiquiátricas
Cataratas
Esqueléticas
Cirrose
Cardíacas
Insuficiência hepática
fulminante
Anemia hemolítica
Litíase biliar
ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urina
de 24 horas, e no tecido hepático (biópsia).
Os dados histológicos obtidos por biópsia
hepática são sobreponíveis aos encontrados na
hepatite crónica activa: degenerência gorda,
hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e
células de Küpfer de maiores dimensões. A
microscopia electrónica permite identificar
grandes mitocôndrias. Na doença de Wilson o
conteúdo do cobre hepático excede 250
mcg/grama. Nas formas heterozigóticas os valores
são inferiores.
A análise da mutação do gene ATP7B é
particularmente útil quando as alterações clínicas
e bioquímicas não são específicas.
O diagnóstico diferencial das alterações hepáticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e
outras formas de hepatite crónica e cirrose criptogénica.
As manifestações neurológicas podem simular
esclerose múltipla e diversas alterações psiquiátricas.
à penicilamina, a trientina (0,5-2 gramas/dia)
pode ser usada (di-hidrocloreto de trietileno
tetramida).
Deverão ser evitados o chocolate, mariscos e
nozes pelo elevado teor em cobre. A transplantação hepática poderá estar indicada se ocorrer
insuficiência hepática fulminante.
Tratamento
Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson
Prognóstico
Sem terapêutica esta doença é fatal. No entanto,
com terapêutica médica adequada e o regime
alimentar com restrições de cobre (inferior a
1mg/dia) durante toda a vida, a evolução pode
ser considerada favorável.
BIBLIOGRAFIA
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Children. London: Blackwell Science, 1999
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
Agentes quelantes do cobre ou zinco podem
prevenir o desenvolvimento das alterações hepáticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos
assintomáticos afectados, e reduzir as manifestações em indivíduos sintomáticos.
A D-penicilamina (0,5-0,75 gramas/dia) é a
droga mais segura e eficaz (associada a suplemento de vitamina B6 por se tratar do antimetabolito
desta vitamina). É tomada oralmente e geralmente
bem tolerada. Em doentes com hipersensibilidade
2007
Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
CAPÍTULO 120 Cirrose hepática
120
CIRROSE HEPÁTICA
Maria de Lurdes Torre
Definição e importância do problema
A cirrose hepática, o estádio final de muitas doenças
hepáticas, é um processo de fibrose difusa em bandas
ligando áreas centrais e portais, conduzindo à
formação de nódulos parenquimatosos com
consequente distorção da arquitectura hepática,
alteração das estruturas vasculares, desenvolvimento
de hipertensão portal e suas consequências.
Etiopatogénese
São várias as doenças hepáticas, discriminadas no
Quadro 1, que podem progredir para cirrose.
A identificação da causa da lesão inicial
influencia a gravidade e a evolução da doença.
Quando é possível a sua remoção, o prognóstico é
em geral favorável.
A cirrose pode classificar-se em pós-hepatite
(na sequência de hepatite aguda, e crónica), pósnecrótica (secundária a lesão toxica), ou biliar
(secundária a obstrução biliar crónica.
Pode também ser do tipo macronodular com
nódulos de tamanhos variáveis (até 5cm), separados por largos septos, ou de tipo micronodular,
com nódulos de tamanho uniforme (<1 cm),
separados por septos finos. Pode haver formas
mistas (macro e micromodulares).
O processo fibrótico progressivo conduz a
alteração do débito snguíneo em geral, do que
resulta disfunção hepática e aumento da resistência intra-hépatica ao débito sanguíneo que provém
da veia porta.
Manifestações clínicas
Na cirrose hepática compensada a criança pode
579
QUADRO 1 – Causas de cirrose hepática
Doenças biliares
Atrésia das vias biliares
Quisto do colédoco
Síndroma de Allagile, hiplopasia biliar
Colestase intra-hepática familiar
Colangite esclerosante
Doenças hepáticas ou pós-necróticas
Hepatite neonatal
Hepatite B
Hepatite C
Hepatite D
Hepatite autoimune
Drogas e tóxicos
Doenças metabólicas
Défice de Alfa-1 antitripsina
Doença de Wilson
Hemocromatose
Galactosémia, frutosémia, doenças de armazenamento
de glicogénio
Tirosinémia, doenças do ciclo de ureia
Doença de Gaucher, Niemann-Pick tipo C, síndroma de
Zellweger
Vascular
Trombose da veia porta, síndroma de Budd-Chiari
Doença veno - oclusiva
Doenças cardíacas
encontrar-se assintomática, anictérica e evidenciar
provas de função hepática normais
A primeira indicação de doença hepática pode
ser o achado acidental de uma hepato-esplenomegália ou esplenomegália isolada, ou apenas
alteração das transaminases ou da fosfatase
alcalina. Em geral suspeita-se de doença hepática
crónica pelas manifestações clínicas das suas
complicações tais como ascite, hemorragia
gastrintestinal ou encefalopatia hepática.
Mal-estar geral, anorexia, náuseas ou restrição
de crescimento são sintomas frequentes, mas
inespecíficos. A icterícia pode estar presente ou
ausente.
Os sinais físicos incluem eritema palmar e
plantar, aranhas vasculares, dedos em baqueta de
tambor e dilatação das veias da parede abdominal.
Por vezes o fígado é pequeno e não palpável.
Noutros casos está aumentado, é duro e nodular à
palpação.
580
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Diagnóstico
A confirmação do diagnóstico depende da
interpretação da biópsia hepática, a qual confirma
o tipo e grau de actividade da cirrose e contribui
para o diagnóstico etiológico da mesma.
No entanto, as investigações laboratoriais e
imagiológicas devem ser efectuadas antes da
biópsia hepática no intuito da avaliação global da
função hepática e do esclarecimento etiológico.
Nalguns casos de cirrose moderada ou grave,
os resultados da avaliação laboratorial são
normais.
Em geral existe elevação moderada das
aminotransferases e da gama-glutamil-transpeptidase (GGT) com hipoalbuminémia. O tempo de
protrombina encontra-se elevado e não responde
à vitamina K. Em caso de hiperesplenismo existe
anemia, leucopénia e trombocitopénia.
A ecografia abdominal permite identificar a
textura e a presença de nódulos hepáticos, a existência ou não de esplenomegália, e o fluxo no
sistema porta. (Quadro 2)
QUADRO 2 – Exames complementares
Investigação geral
Exames laboratoriais
Hemograma
Bilirrubina total e conjugada
Fosfase alcalina
Gama-glutamiltranferase
Aminotransferases
Desidrogenase láctica
Albumina
Tempo de protrombina
Colesterol total
Alfafetoproteína
Outros exames
Ecografia hepática
Endoscopia digestiva alta
Biópsia hepática
Investigação etiológica específica
Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes
causas (De acordo com as possíveis causas de cirrose
hepática – Quadro 1.)
QUADRO 3 – Complicações de cirrose na idade
pediátrica
Má-nutrição e restrição de crescimento
Hipertensão portal e hemorragia de varizes esofágicas
Hiperesplenismo
Ascite
Encefalopatia
Coagulopatia
Síndroma hepatopulmonar
Infecções bacterianas, peritonite bacteriana
Carcinoma hepatocelular
Complicações
As complicações de doença hepática crónica são
devidas primariamente à deterioração da função
hepática e da colestase.
As complicações mais frequentes são as
alterações progressivas da nutrição e as manifestações de hipertensão portal. O carcinoma hepatocelular pode complicar qualquer forma de cirrose,
em particular nos doentes com tirosinémia do tipo
1 e hepatites B e C crónicas. (Quadro 3)
Tratamento
O tratamento pretende evitar a progressão da
doença hepática e prevenir as suas complicações.
É necessário avaliar o prognóstico de modo a
programar uma terapêutica definitiva através da
transplantação hepática.
Actualmente não existe tratamento eficaz para a
cirrose mas, quando existe patologia tratável (ex.
doença de Wilson, galactosémia ) ou possibilidade
de ser eliminada (fármacos, VHC, VHB), o curso da
doença pode ser alterado com a remissão da
fibrose.
O transplante hepático está indicado nos
doentes com cirrose progressiva ou nas complicações não controláveis.
Prognóstico
A transplantação hepática e a terapêutica específica para muitas das causas de doença hepática
crónica aumentaram a sobrevivência a longo
prazo.
CAPÍTULO 121 Hipertensão portal
A cirrose pós-necrótica tem uma evolução
imprevisível. Sem transplante, a morte ocorre por
insuficiência hepática num período de 10 a 15
anos. Nos doentes com cirrose biliar o prognóstico
é semelhante, excepto nos casos cuja correcção
cirúrgica leva à regressão ou à estabilização da
doença.
Quando surgem complicações como ascite,
hemorragia gastrintestinal e insuficiência renal, a
sobrevivência é muito curta.
BIBLIOGRAFIA
Balistreri WF. Pediatric Hepatology. A half century of progress.
581
121
HIPERTENSÃO PORTAL
Maria de Lurdes Torre
Definição
Clin Liver Dis 2000;4: 191-210
Diniz de Freitas (ed.) Doenças do Aparelho Digestivo. Lisboa:
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Lissauer T, Clayden G (eds). Illustrated Textbook of Paedriatrics. London: Mosby, 2007
Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
É definida como a elevação persistente da pressão
venosa portal > 10-12 mmHg (normal entre 5-10
mmHg). Efectivamente, as complicações de
hipertensão portal não ocorrem até que o gradiente de pressão portal (gradiente entre a veia
porta e a veia cava inferior) exceda os 12 mmHg.
O aumento da resistência ao débito do sangue
portal – a anomalia hemodinâmica primária –
origina esplenomegália e desenvolvimento de
vasos colaterais porta-sistémicos em vários locais
(varizes no esófago distal, gástricas, ano-rectais,
umbilicais e da parede abdominal).
Etiopatogénese
As causas de hipertensão portal podem ser
classificadas de acordo com o nível em que ocorre
a obstrução ao fluxo sanguíneo em:
– Pré-hepáticas
– Intra-hepáticas
– Pós hepáticas. (Quadro 1)
A causa mais frequente de hipertensão portal é
a cirrose hepática.
A trombose da veia porta, a causa mais frequente
de obstrução extra-hepática, pode ser secundária a
cateterismo da veia umbilical (30% dos casos), a
onfalite, a anomalias congénitas ou a sépsis.
A doença venoclusiva é relativamente rara e
ocorre após transplante medular ou em doentes
imunodeficientes.
A síndroma de Budd-Chiari surge geralmente
em adultos jovens e ocorre quando os trombos
desenvolvidos na veia hepática entram na veia
cava inferior. Está relacionada com síndromas
mieloproliferativas ou estados tromboembólicos.
582
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal
Pré-hepáticas
Trombose da veia porta
Trombose da veia esplénica
Intra-hepáticas
Pré sinusoidal
Esquistossomíase
Fibrose hepática congénita
Neoplasias
Quistos hepáticos
Sinusoidal
Cirrose/doença hepática crónica
Pós sinusoidal
Doença venoclusiva
Pós-hepáticas
Trombose da veia hepática (síndroma de Budd-Chiari)
Insuficiência cardíaca direita
Pericardite constritiva
Muitas das complicações podem ser explicadas pelo desenvolvimento de circulação colateral relevante em áreas em que o epitélio da absorção se junta ao epitélio estratificado (sobretudo
esófago e região ano-rectal.
Ao nível do estômago verifica-se ectasia
vascular que origina o quadro designado por
gastropatia congestiva.
Manifestações clínicas
Existem quatro manifestações clínicas principais:
– Hemorragia gastrintestinal
– Esplenomegália
– Ascite
– Encefalopatia porta-cava.
A hemorragia gastrintestinal é a forma de
apresentação mais comum (50-90% dos casos). Na
maioria dos episódios surge por ruptura de
varizes esofágicas, mas o sangramento pode ter
origem noutros locais do tubo digestivo; tal
implica a necessidade emergente de identificar o
local de lesão. As hematemeses são abundantes ou
moderadas, surgindo geralmente após um
episódio de dor abdominal associada a palidez
cutânea. As melenas surgem simultaneamente ou
QUADRO 2 – Diagnóstico de hipertensão
portal
Exame físico
Esplenomegália
Vasos abdominais proeminentes
Ascite
Hemorróidas
Sinais de doença hepática crónica
Exames laboratoriais
Hemograma
Bilirrubina total e fraccionada
Fosfatase alcalina
Gama-glutamiltranspeptidase
Aminotransferases
Desidrogenase láctica
Albumina
Tempo de protombina
Ionograma sérico
Outros exames
Ecografia e eco doppler abdominal
Endoscopia gastrintestinal
Angiografia
depois. Por vezes constituem a manifestação
isolada da hemorragia intestinal.
A esplenomegália moderada é o sinal físico
mais frequente e a forma de apresentação em 25%
dos casos. O baço tem consistência firme ou dura,
dependendo da duração da hipertensão portal. O
hiperesplenismo está associado a anemia, trombocitopénia e ou leucopénia.
A ascite esta associada à hipertensão de causa
sinusoidal ou pós-sinusoidal. É rara na forma présinusoidal.
A encefalopatia porta-cava é dificilmente
diagnosticada na criança. Os sinais e sintomas são
mal definidos e incaracterísticos: perda de
capacidades intelectuais; alterações de consciência e sinais neuromusculares como ataxia e
tremor. Esta situação ocorre nos doentes com
doença hepática grave com derivações portasistémicas.
Outra manifestação frequente é a vascularização abdominal proeminente devida ao
desenvolvimento de colaterais; denomina-se
“cabeça de medusa” quando estes vasos irradiam do
umbigo.
CAPÍTULO 121 Hipertensão portal
583
QUADRO 3 – Tratamento da hipertensão portal
Complicação
Hemorragia por varizes esofágicas
Tratamento
Octreotido intravenoso. Tamponamento com balão para controlar
hemorragia activa. O propranolol pode ser útil na prevenção de
hemorragias recorrentes. Escleroterapia ou laqueação de varizes.
Ascite
Restrição salina, espironolactona, furosemido, albumina, paracentese,
derivação, porta-sistémica, transplantação hepática.
Encefalopatia hepática
Restrição proteica, glucose endovenosa, neomicina, lactulose,
plasmaferese, transplantação hepática.
Hiperesplenismo
Sem intervenção, embolização esplénica parcial, derivação portasistémica, transplantação hepática.
Diagnóstico
Frequentemente o diagnóstico é efectuado através
da anamnese e exame físico; podem, no entanto,
ser realizados vários exames complementares.
A ecografia abdominal permite confirmar e
dimensionar a esplenomegália, a existência de
colaterais vasculares e o seu diâmetro.
A utilização de ecografia doppler dá informação
quanto a velocidade e direcção do fluxo sanguíneo
na veia porta, veias hepáticas e veia cava.
A endoscopia digestiva é usada para detectar e
avaliar varizes gastro-esofágicas e ano-rectais.
A angio-ressonância tem sido utilizada como
alternativa não invasiva à angiografia convencional. A angiografia é importante antes da
realização da derivação cirúrgica porta-sistémica e
de transplante hepático. (Quadro 2)
Complicações
As quatro complicações major podem considerarse simultaneamente as principais manifestações
clínicas:
– Varizes com hemorragia
– Ascite
– Encefalopatia
– Esplenomegália
Tratamento
A actuação terapêutica na hipertensão portal,
sintetizada no Quadro 3, pode ser dividida em
tratamento de emergência da hemorragia aguda
com risco vital, e profilaxia dirigida à prevenção
de hemorragia inicial ou subsequente.
Nos casos de hemorragia aguda por ruptura de
varizes está indicada a ressucitação com fluidoterapia (inicialmente cristalóides IV seguindo-se
transfusão de concentrado eritrocitário). Igualmente:
correcção da coagulopatia com administração de
vitamina K, transfusão de concentrado de plaquetas,
plasma fresco congelado, ou terapêuticas associadas.
Ao doente deverá ser aplicada sonda nasogástrica para documentar eventual hemorragia gastrica.
Para reduzir o risco da hemorragia gástrica,
está indicada a administração de bloqueantes de
receptores H2 por via IV (por ex. ranitidina).
Nos casos de hemorragia mantida está indicada a administração de vasopressina ou de
análogos, com objectivo de aumentar o tono vascular esplâncnico e, consequentemente, o débito
sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minutos, seguido por administração IV contínua
(0,2U/1,73m2/minuto).
Com idêntica acção farmacológica pode
utilizar-se o octreotido (análogo da somatostatina)
IV na dose de 1-5 mcg/kg/hora.
Outra medida emergente á aplicação do tubo
com balão para tamporamento (tubo de
Sengstaken-Blakemore).
Outras medidas são referidas no mesmo
quadro, salientando-se que este tipo de problema
deverá ser tratado num centro especializado.
584
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
BIBLIOGRAFIA
Botha JF, Campos BD, Grant WJ, et al. Portosystemic shunts in
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122
INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA
AGUDA
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syndrome. NEJM 2004; 350: 578-584
Definição e importância do problema
Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
A insuficiência hepática aguda é definida como
doença multissistémica com alteração grave da
função hepática, com ou sem encefalopatia, que
ocorre em associação a necrose hepatocelular num
doente sem doença hepática crónica prévia.
Pela definição mais comum utilizada em
medicina dos adultos considera-se fundamental
para a definição de insuficiência hepática aguda o
aparecimento precoce de encefalopatia (difícil de
detectar em crianças e lactentes); e coagulopatia
até 8 semanas após o início de doença hepática na
ausência de patologia hepática anterior.
Trata-se duma situação rara em idade
pediátrica com uma mortalidade elevada (80%
nos casos não submetidos a transplantação
hepática). A frequência varia com o grupo etário e
a distribuição geográfica.
Etiopatogénese
O Quadro 1 discrimina as principais causas de
insuficiência hepatica aguda. Salienta-se que as
hepatites por vírus C e E são causas raras de
insuficiência hepática fulminante na maioria das
séries publicadas. No que respeita a outros vírus
incluem-se: VEB, herpes simples, adenovírus,
enterovírus, CMV, parvovírus B19, varicela-zoster.
De referir ainda as formas ditas idiopáticas
que explicam cerca de 40-50% dos casos pediátricos.
O mecanismo que conduz à insuficiência
hepática fulminante não está completamente
esclarecido, desconhecendo-se designadamente a
CAPÍTULO 122 Insuficiência hepática aguda
QUADRO 1 – Causas de insuficiência hepática
aguda
Período neonatal
Infecciosa
Herpes vírus
Echovírus
Adenovírus
Metabólica
Hemocromatose neonatal
Galactosémia
Doenças mitocrondriais
Isquémia
Doença cardíaca congénita
Miocardite
Asfixia grave
Período pós-neonatal
Infecciosa
Hepatites víricas
(A, B, D, E, B+D associadas); outros vírus
Fármacos
Paracetamol
Valproato
Isoniazida
Tóxicos
Amanita phalloides
Metabólica
Doença de Wilson
Autoimune
Hepatite
Isquémia
Doença cardíaca congénita
Miocardite
Síndroma de Budd-Chiari
razão pela qual somente em cerca de 1-2 % de
doentes com hepatite vírica surge o referido
quadro.
A destruição maciça dos hepatocitos pode ser
explicada, quer por efeito citotóxico directo, quer
por resposta autoimune hiperimune aos antigénios víricos.
Outros factores associados à lesão do hepatócito incluem: alteração do processo de regeneração, hipoperfusão sanguínea do parênquima,
endotoxémia, e depressão da função do SRE.
O mecanismo da encefalopatia pode relacionar-se com a hiperamoniémia, incremento da
585
actividade dos receptores de GABA e incremento
de nivéis circulantes de compostos endógenos
formados, semelhantes a benzodiazepinas; todos
estes produtos têm o seu processo de depuração
hepática comprometida, num ciclo vicioso.
Existem dois tipos de lesões básicas:
– Necrose hepática extensa com colapso da
arquitectura lobular. É mais frequente nos casos
provocados por vírus hepatotrópicos, intoxicação
por paracetamol e intoxicação por cogumelos.
– Degenerescência hepatocelular com esteatose maciça. Indica infiltração gorda difusa com
necrose hepática pouco extensa. Está associada a
doenças metabólicas e a intoxicação por ácido
acetil-salicílico e ácido valpróico.
A hepatite fulminante conduz a uma falência
multiorgânica que afecta em particular o cérebro e
o rim.
O processo de lesão hepática depende de três
factores:
– Susceptibilidade do hospedeiro (exemplo:
recém-nascido no qual se desenvolve hepatite
fulminante pelo vírus da hepatite B);
– Natureza do agente agressor (exemplo: dose
de paracetamol);
– Capacidade de regeneração hepática deprimida a qual constitui um factor crucial para a
sobrevivência.
Manifestações clínicas
A apresentação clínica varia com a etiologia.
É frequente um quadro de coagulopatia (hematomas fáceis, hemorragia abundante de feridas,
espistaxe), encefalopatia (alteração de personalidade, comportamentos bizarros) e hipoglicémia.
Por definição a encefalopatia ocorre em 100%
dos doentes, (mas de detecção mais difícil em
lactentes, como foi referido atrás).
A icterícia é comum, mas pode não estar
presente nos estádios iniciais.
O agravamento da função renal com
oligoanúria é outro achado frequente.
O prolongamento súbito do tempo de
protrombina > 15 segundos sugere falência hepática.
Existem dois tipos de apresentação:
– Forma fulminante com evolução rápida para
o coma.
– Forma de hepatite benigna com agravamen-
586
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
to súbito na segunda semana de doença, com
aparecimento de febre, anorexia, vómitos, alteração do sensório, hemorragias generalizadas e
deterioração da função hepática.
Diagnóstico
É baseado nos achados de coagulopatia e
encefalopatia em associação a doença hepática de
início recente (< 8 semanas).
O Quadro 2 integra o conjunto de exames
laboratoriais, imagiológicos e neurofisiológicos a
realizar em função dos antecedentes e da doença
actual. Essencialmente, as alterações laboratoriais
incluem elevação da bilirrubina sérica, elevação
dos aminotransferases (> 3000 UI/l) as quais
descrescem na fase em que a função hepática se
agrava. Existe ainda hipoalbuminémia, hipoglicémia, prolongamento do tempo de protrombina e elevação da amoniémia.
QUADRO 2 – Avaliação da insuficiência
hepática aguda
Investigação geral
Exames Laboratoriais (sangue)
Hemograma
Tempo de protrombina e de tromboplastina parcial
Doseamento do Factor V
Bilirrubina total e fraccionada
Aminotransferases
Fosfatase alcalina
Gama-glutamiltranspeptidase
Proteínas totais e albumina
Amónia
Glicose
Ureia e creatinina
Ionograma
Exames imagiólogicos
Radiografia do tórax
Ecografia abdominal
Tomografia axial computadorizada
Ressonância magnética crânio-encefálica
Exame neurofisiológico
EEG
Investigação etiológica
Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes
causas
(Quadro 1)
Tratamento
Não existe tratamento específico para a insuficiência hepática excepto a transplantação hepática.
O tratamento com a aplicação de medidas gerais
tem por objectivo a prevenção e tratamento das
complicações enquanto o doente aguarda a recuperação espontânea, ou um dador compatível para a
referida transplantação hepática. Estes doentes
devem ser internados em unidades de cuidados
intensivos e encaminhados precocemente para
centros especializados.
Prognóstico
O prognóstico em geral é grave se não for
efectuada transplantação hepática. As crianças
com idade inferior a 10 anos têm pior prognóstico.
Os doentes com intoxicação por paracetamol
têm melhor recuperação do que aquela com
outros fármacos hepatotóxicos (53% vs 12%).
A insuficiência hepática por hepatite A tem
uma sobrevivência de 68% enquanto nas outras
hepatites a sobrevivência é cerca de 20%.
Os indicadores de pior prognóstico são a
encefalopatia grave, tempo de protrombina
superior a 50 segundos e bilirrubinémia > 17,5
mg/dl.
Na intoxicação por paracetamol são indicadores de má evolução o pH <7,3 e a creatinina
superior a 3,4 mg/dl.
É importante a avaliação de factores de prognóstico de modo a definir a data mais adequada
para a transplantação hepática.
BIBLIOGRAFIA
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Walker WA, Goulet O, Kleinman RE, et al. Pediatric
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CAPÍTULO 123 Transplantação hepática
123
TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA
Isabel Gonçalves
Definição e importância do problema
A transplantação (ou transplante) é a intervenção
pela qual se opera a transferência de um tecido ou
de um órgão para uma outra parte do mesmo
indivíduo (autotransplante), ou para um indíviduo diferente (heterotransplante).
A transplantação hepática (TH) mudou dramaticamente o prognóstico dos doentes com
hepatopatia crónica (antes invariavelmente fatal).
Tal técnica foi sonhada desde o início do século e
tentada pela primeira vez em 1963, em Denver,
Boston e Paris, sem sucesso. Nessa altura a
imunossupressão disponível incluia apenas
azatioprina e soro anti-linfócito. De 1967 a 1978 a
sobrevida em adultos e crianças que tinham um
dador anatomicamente compatível não ultrapassava 40% e a transplantação era encarada como
terapia experimental.
Em 1978 R. Calne introduziu na prática da
transplantação a ciclosporina associada aos
corticóides em altas doses e, na década seguinte, a
sobrevida dos doentes atingiu 80%. Assim, o
interesse pela TH ressurgiu simultaneamente em
vários centros Europeus e dos EUA.
De facto, as crianças só vieram a beneficiar
deste procedimento na década de 90, quando
alguns cirurgiões conseguiram de forma verdadeiramente inovadora reduzir fígados de dadores
adultos, de modo a obter um enxerto de dimensões adaptáveis a crianças, mesmo para as
que tinham peso inferior a 10 Kg e que até aí eram
praticamente excluídas da transplantação. Este
primeiro marco na história da transplantação
pediátrica permitiu reduzir a mortalidade em lista
de espera de 60% para menos de 20% na maioria
dos centros de TH. Contudo, esta percentagem
587
continuava ainda a ser inaceitável; novas técnicas
começaram a ser divulgadas como o Split Liver,
bipartição do enxerto em 2 fragmentos (geralmente lobo esquerdo), ou segmentos do lobo
esquerdo, implantados numa criança; e lobo
direito a ser implantado num segundo tempo (ou
por outra equipa em paralelo), num receptor
adulto. Esta modalidade de TH, embora eficaz na
redução do tempo de espera e da mortalidade em
lista, implicou um aumento da morbilidade
(maior número de complicações biliares e vasculares) pós-TH, sobretudo no receptor adulto, cujo
enxerto é submetido a um tempo de isquémia
elevado (média de 20 horas).
Figado auxiliar
Uma modalidade de transplante, exclusiva de
Centros de Transplante Pediátrico de referência é
o TH com “fígado auxiliar”. Tecnicamente mais
complexo, é aplicável a 2 tipos de situação:
1 – Hepatites fulminantes, permitindo recuperar a catástrofe metabólica instalada na
insuficiência hepática e substituir o fígado
nativo até que este recupere totalmente.
Em 60 % dos doentes com falência hepática
aguda o TH com “fígado auxiliar” permitiu, ao fim de um ano, abandonar a
imunossupressão face à regeneração do
fígado nativo. O enxerto sofre processo de
atrofia e não necessita de ser removido.
2 – Doenças metabólicas, em que o défice
enzimático no fígado provoca lesões graves
extra-hepáticas, mas não há lesão hepática
progressiva. O fígado auxiliar substitui a
enzima deficiente e permite reter o fígado
nativo até surgir a cura pela terapia génica
(por exemplo: síndroma de Crigler- Najjar
1, acidémia propiónica, etc.).
Dador vivo
Na última década o TH de crianças a partir de
dador vivo (DV) parental tornou-se a variante
técnica mais promissora, com maior sobrevida e
menor lesão do enxerto. Curiosamente, a incidência de rejeição celular aguda não diminuiu,
como seria de esperar, dada a maior proximidade
imunológica do dador e receptor.
588
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Um programa de DV envolve custos mais
elevados , risco de morte do dador que é mínimo
(5 /10000), e morbilidade inferior a 15%.
Inicialmente foi aceite pelas Comissões de Ética
como um procedimento a efectuar em crianças
com doença crónica e relativamente electivas para
permitir uma decisão do dador mais amadurecida,
sem as pressões inerentes às situações de morte
iminente. Progressivamente foi alargada a estas
situações (hepatites fulminantes ou falência aguda
em contexto de hepatopatia crónica). Nalguns
centros o uso de DV em situação aguda ainda é
alvo de polémica. Com efeito, o uso de dadores
vivos contraria um princípio ético básico em
Medicina – primum non nocere, já que constitui uma
mutilação induzida em pessoa saudável com risco
de morte. Eticamente a transplantação com DV é
aceitável se:
– o TH for a única opção terapêutica;
– a possibilidade de obter um dador cadáver
em tempo útil for baixa (esta é infelizmente a
realidade na maioria dos países europeus
incluindo Portugal, porque a política de
distribuição de órgãos é penalizante para as
crianças);
– o receptor tiver uma probabilidade elevada
de sobreviver ao TH, com qualidade de vida;
– o risco de morte para o dador for inferior a
1% e a morbilidade previsível inferior 10%.
Nenhum tipo de pressão deve ser exercida
sobre o potencial dador nos diálogos de decisão (o
que na pratica é utópico).
De facto, há que considerar a superioridade da
sobrevida e a menor morbilidade conseguidas
com a TH de DV.
TH em Portugal na idade pediátrica
Em Portugal o TH pediátrico com DC foi iniciado
em 1994 em Coimbra pela equipa de Transplantação dos Hospitais da Universidade de Coimbra,
chefiada por A.Linhares Furtado.
Foram transplantadas até 2008, 135 crianças,
correspondendo a 15 a casos com DV. A sobrevida
actual é cerca de 98%.
Transplante de hepatócitos
A mais recente e ainda experimental técnica de
transplante destina-se essencialmente ao grupo de
doenças metabólicas cujo defeito enzimático é
predominatemente hepático não determinando
cirrose avançada. Embora teoricamente possa ser
usada em todas as doenças hepáticas, na prática
os doentes com cirrose e hipertensão portal
estabelecida obterão apenas, com este procedimento uma “ponte” para o transplante definitivo.
Até à data foram efectuados transplantes de
hepatócitos num número reduzido de doentes
pediátricos com as seguintes patologias: doença
de Criggler-Najjar, acidémias orgânicas e hepatites fulminantes. Tecnicamente é um procedimento simples, seguro e pouco invasivo para o
doente, já que é apenas necessário inserir um
cateter na veia porta para injecção diária de uma
suspensão de hepatócitos (máximo 1x108 células /
kg); o fundamento é a verificação de que em
poucos dias se verifica uma fixação permanente
dos hepatócitos injectados no fígado receptor,
passando estes a proliferar e a predominar sobre
os hepatócitos doentes, assumindo as funções
metabólicas deficitárias.
Tal como no transplante clássico, é necessário
usar imunossupressão em esquemas sobreponíveis. De referir que a procura de fígados para
obter hepatócitos viáveis enferma dos problemas
da TH clássica, embora permita poupar alguns
segmentos de parêquima que seriam eliminados
por anomalias biliares ou vasculares. No transplante de hepatócitos o laboratório de células é
uma estrutura fundamental e o maior investimento a ter em conta quando se opta pelo arranque da
técnica em determinada instituição. Por este
motivo, raros centros na Europa a iniciaram,
mantendo uma actividade clínica e de investigação nesta área.
Indicações e contraindicações
A atrésia das vias biliares extra-hepáticas constitui
40 – 50 % das indicações para TH em idade
pediátrica (80% se considerarmos a faixa etária
abaixo dos 2 anos). A falência hepatica aguda
representa 10-15%, e o grupo das doenças metabólicas, cerca de 20%. Os restantes 20% englobam várias situações como colestases progressivas
intra-hepáticas, tumores, hepatites víricas, hepatites autoimunes, etc.).
CAPÍTULO 123 Transplantação hepática
As contraindicações absolutas têm vindo a
diminuir ao longo do tempo e actualmente
resumem-se às seguintes situações: coexistência
de sépsis e falência multiorgão, disseminação
metastática tumoral, lesão neurológica grave
associada, doenças com repercussão multissistémica, infecção pelo vírus da imunodeficiência
humana (VIH) (assunto controverso), síndroma
hepatopulmonar (shunts pulmonares que
provocam hipoxémia grave no contexto de doença
hepática crónica), etc..
A avaliação pré-TH
A avaliação pré-TH pressupõe um diálogo
dinâmico entre a instituição que refere a criança e
o centro que procede à transplantação, tentando
prever em cada doente um ponto em que o risco
do referido problema é inferior ao da espera em
lista, a identificação de possíveis contraindicações e a avaliação psicossocial da família . O
estado nutricional dos receptores condiciona
grande parte da morbilidade e mortalidade pósTH , sendo fundamental o internamento nesta
área enquanto se aguarda a cirurgia. Esta é, em
regra, prolongada (12-15 horas), inevitavelmente
invasiva e seguida de várias complicações, com
um padrão previsível no tempo.
Complicações
Poderão surgir as seguintes complicações,
classicamente divididos em precoces (<3 meses) e
tardias ≥ 3meses):
Precoces – Estas podem ainda subdividir-se
em 2 períodos:
A- da fase de estadia em UCI (unidade de
cuidados intensivos), na primeira semana,
reflectindo o grau de função do enxerto, avaliada
em termos de recuperação neurológica, valor de
protrombinémia, alcalose ou acidose.
Podem ainda ocorrer insuficiência renal,
hipertensão arterial grave, sépsis e falência
multiórgão.
B – da fase pós-UCI- (até 3 meses): 40-50% dos
doentes são reoperados por: problemas vasculares
(4 a 20%), biliares (15 a 30%), perfuração intestinal
e peritonite ou drenagem de colecções ou
hematomas.
589
Infecções com ponto de partida abdominal ou
relacionadas com cateteres centrais são também
muito frequentes (pelo menos um episódio em
60% dos doentes), apesar da antibioticoterapia de
largo espectro instituída profilacticamente na
primeira semana.
A rejeição celular aguda tem uma incidência
de 50% no primeiro mês, mas só em menos de
15% dos casos será difícil de reverter após 3 bolus
de 10 mg/kg de prednisolona. Um imunossupressor mais potente que a ciclosporina, (tacrolimus ou FK506) recupera 80% dos enxertos com
rejeição persistente e possibilidade de evolução
para rejeição crónica. Esta ocorre geralmente entre
os 6 meses e 1 ano pós-TH em 2 - 8% dos doentes.
Caracteriza-se histologicamente por ductopenia
(< 50% dos espaços porta não têm ducto biliar) e,
clinicamente, por anorexia, prurido e colestase
progressiva. O retransplante torna-se necessário
em 2/3 dos casos. No restante 1/3 os doentes
mentêm-se estáveis sob imunossupressão reforçada embora com disfunção crónica do enxerto
(DCE).
Tardias – Para além da rejeição há outros
problemas a registar como – infecções víricas de
que se destacam o citomegalovírus (CMV) e o
vírus de Epstein-Barr (VEB). Enquanto o
primeiro tem uma morbilidade insignificante e
um tratamento eficaz (ganciclovir, valgancinclovir), o segundo pode induzir, sobretudo nas
crianças com menos de 5 anos, a síndroma de
proliferação desregulada de linfócitos B, ou
síndroma linfoproliferativa. Com uma incidência de 4 a 10%, a mortalidade era superior a
60 % no inicio da década. Investigações recentes
demonstraram que o diagnóstico precoce, a
suspensão total da imunossupressão e, em casos
seleccionados, o uso de quimioterapia agressiva, podem conduzir à cura da totalidade dos
casos.
Em 4% dos doentes pode surgir no 2º ano pós
TH um tipo de DCE, similar serológica e
histologicamente à hepatite autoimune. Designase como autoimune de novo embora na verdade
seja um processo aloimune. Pouco se sabe ainda
da sua fisiopatologia, sendo o seu tratamento
sobreponível ao usado na hepatite autoimune
(essencialmente reforço da corticoterápia e
reintrodução da azatioprina).
590
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Seguimento
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier,
2007
Em ambulatório as crianças são observadas
semanalmente nos primeiros 3 meses. Depois,
com menor periodicidade. As avaliações clínicas e
laboratoriais efectuam-se de 3 - 3 meses a partir do
1º ano pós-cirurgia. Uma larga maioria (> 80%)
tem uma vida activa e “quase normal” abstraindo
que se mantém a doença crónica, nomeadamente
o “fantasma” da rejeição ou da disfunção crónica
do enxerto. As famílias têm muitas vezes muito
receio da integração escolar e social dos pequenos
transplantados. Tratando-se de crianças imunodeprimidas, o que é facto é que as banais infecções
da comunidade, não têm nelas maior incidência.
As vacinas de vírus vivo e vivo atenuado têm
sido contraindicadas. Há que sublinhar que a
maioria dos doentes tem, ao cabo de um ano pósTH, uma imunossupressão mínima e, em 40 % dos
casos, poderão mesmo ser suspensos os corticóides passando-se a monoterapia. Naturalmente que o ideal seria a suspensão de todos os
fármacos; embora o avanço nesta área tenha sido
enorme nos últimos 8 anos, ainda se continua a
aguardar fármacos que, administrados por um
curto período no pós-TH imediato, induzam uma
tolerância imunológica definitiva . Este será, sem
dúvida, o futuro da transplantação; refira-se que,
por enquanto, o TH é uma terapia curativa para
mais de 80 % das crianças com diversas hepatopatias e, simultaneamente, uma nova doença
crónica com inúmeras complicações. Conseguese, apesar de tudo, uma sobrevida de 90% no 1º
ano com um acréscimo de mortalidade /ano de
0,5 % nos anos subsequentes de acordo Registo
Europeu de TH.
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CAPÍTULO 124 Pancreatite
124
PANCREATITE
Helena Flores
Definição e importância do problema
A pancreatite (processo inflamatório do pâncreas)
é uma doença que afecta todas as idades, sem
predomínio de sexo. Por ser pouco frequente em
idade pediátrica é muitas vezes esquecida e
subdiagnosticada. A noção actual de que o trauma
e a doença multissistémica podem causar pancreatite, bem como o reconhecimento crescente
desta efecção como causa de dor abdominal e
vómitos, tem aumentado a frequência do
diagnóstico. De referir que mais de 50% dos casos
de pancreatite são de origem traumática ou
surgem em concomitância com a parotidite.
Classificação
A Classificação de Marselha-Roma, baseada em
critérios anatómicos, considera dois grandes
grupos de pancreatites: agudas e crónicas.
A pancreatite aguda (PA) é um processo
inflamatório agudo da glândula pancreática e do
tecido peripancreático.
A pancreatite crónica, rara na criança, é
definida pela presença de lesões inflamatórias
crónicas caracterizadas pela destruição do tecido
exócrino, presença de fibrose e, num estado avançado da doença, lesão do tecido endócrino.
A chamada PA recorrente é observada em
cerca de 10% das crianças após um primeiro
episódio de PA sendo mais frequente em crianças
com alterações estruturais, ou associada a doença
sistémica (lúpus eritematoso, fibrose quística) ou
ainda a pancreatite familiar. Estão descritos casos
idiopáticos;
Neste capítulo é abordada apenas a PA.
591
Etiopatogénese
Na pancreatite a “autodigestão” da glândula
pelas suas próprias enzimas é um dos mecanismos essenciais.
Normalmente o pâncreas está protegido deste
fenómeno por: 1 - armazenamento das enzimas
em grânulos de zimogénio; 2 - secreção da maior
parte das enzimas em forma de precursores que
se activam exclusivamente a nível duodenal; 3 co-secreção de inibidores das proteases.
A ruptura de um destes mecanismos de
protecção leva a activação prematura das enzimas
no próprio pâncreas, estando demonstrado
experimentalmente que as enzimas activadas
provocam: destruição proteolítica do tecido
pancreático, necrose dos vasos sanguíneos com
consequente hemorragia, necrose gorda pelas
enzimas lipolíticas, e reacção inflamatória. Estas
alterações ocorrem de modo diverso, desde a
doença ligeira (necrose gorda peripancreática e
edema intersticial) à doença grave (necrose gorda
peri e intrapancreática, necrose do parênquima e
hemorragia). O envolvimento pancreático pode
ainda ser localizado ou difuso, com consequentes
alterações, quer da função exócrina, quer da
endócrina.
Ao contrário dos adultos em que 80% dos
casos de PA estão associados ao alcoolismo e a
QUADRO 1 – Causas de pancreatite aguda
na criança
Causa
Idiopática
Sistémica
Traumática
Estrutural
Fármacos
Infecciosa (vírus)
Litíase
Familiar
Pós-CPRE *
Hipercalcémia
Diabetes
Hipertrigliceridémia
Fibrose quística
(Adaptado de Walker WA et al, 2004)
* CPRE: Colangiopancreatografia retrógada endoscópica
Incidência (%)
22.2%
20.8%
18.6%
10.6%
10.2%
7.7%
3.1%
2.4%
1.2%
0.9%
0.9%
0.8%
0.6%
592
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
doença do tracto biliar, na criança, a etiologia é
variada (Quadro 1).
Nas várias séries publicadas nos últimos anos,
os casos de PA associada a doenças multissistémicas graves têm aumentado. Destas, a
síndroma hemolítica urémica é a principal responsável, sendo que o mecanismo da pancreatite
é desconhecido e provavelmente multifactorial.
O trauma é também uma causa comum de PA
na criança. Na maioria dos casos trata-se de
situação acidental (por exemplo queda sobre o
guiador da bicicleta); no entanto, os casos
descritos resultantes de maus tratos são cada vez
mais frequentes.
As anomalias estruturais do pâncreas constituem um factor predisponente, aumentando o
risco de PA. A mais frequente é o pâncreas
divisum; porém, as anomalias dos ductos pancreático ou biliar comum como os quistos do
colédoco, os coledococelos e pâncreas divisum
parcial, são também responsáveis por um
considerável número de casos. A litíase constitui
igualmente importante factor etiológico desta
doença.
Os vírus são os agentes infecciosos que mais
fequentemente causam PA na idade pediátrica.
Destes, os mais comuns são: os da parotidite,
enterovírus, vírus de Epstein-Barr (VEB), da
hepatite A, citomegalovírus (CMV), da rubéola,
coxsackie, da varicela-zoster, do sarampo e
influenza. Nos países do terceiro mundo e nas
regiões tropicais, a obstrução do canal de Wirsung
pelo parasita Ascaris lumbricoides tem sido
associada a casos de PA.
Uma grande diversidade de fármacos pode
provocar PA na criança, sendo os mais frequentemente implicados o valproato de sódio e os
corticóides.
A chamada pancreatite familiar inclui a forma
hereditária e outras formas de pancreatite que
ocorrem em famílias com uma incidência de PA
superior à da população em geral.
Nos últimos anos alguns factores genéticos tais
como mutações no gene do tripsinogénio catiónico (PRSS1), mutações do CFTR (cystic fibrosis
transmembrane conductance regulator), e mutações
no inibidor da tripsina pancreática (serine protease
inhibitor, Kazal type 1- SPINK1) foram identificados como importantes na génese da pancreatite.
Apesar de a pancreatite idiopática ser ainda a
pancreatite mais frequente, à medida que, cada
vez mais, exames genéticos estejam disponíveis, a
percentagem de crianças com pancreatite familiar
ou associadas a mutações genéticas irá seguramente aumentar.
Manifestações clínicas
A dor abdominal é o sintoma mais frequente.
Geralmente de início súbito, intensa e localizada
ao epigastro pode, contudo, ser gradual, constante
ou intermitente, difusa ou localizada noutros
quadrantes. A irradiação típica para o dorso
referida nos adultos é observada em apenas 10% a
30 % das crianças. Os sintomas acompanhantes
mais comuns são os vómitos, as náuseas e a
anorexia. As refeições são um factor agravante da
dor e dos vómitos.
Na observação o achado mais frequente é a dor
à palpação do epigastro. O abdómen pode estar
distendido, com diminuição dos ruídos hidroaéreos. A criança assume muitas vezes uma
posição anti-álgica, com flexão dos joelhos e das
ancas. Febre baixa, taquicárdia, hipotensão e
icterícia, podem estar presentes. Equimoses nos
flancos (sinal de Grey Turner) ou na região
periumbilical (sinal de Cullen), são raramente
observadas nas pancreatites hemorrágicas graves.
Diagnóstico
O diagnóstico de PA é clínico, laboratorial e
imagiológico. Na ausência de um exame complementar específico que confirme o diagnóstico,
a elevação da amilase ou da lipase séricas (pelo
menos 3 vezes o limite superior do normal), constitui ainda o parâmetro biológico mais clássico.
No entanto, ambas as enzimas podem estar em
níveis normais nalguns casos com evidência
clínica e radiológica de PA. De referir que valores
mais elevados não estão relacionados com a
etiologia, gravidade ou prognóstico da doença.
A amilasémia está elevada quando surgem os
primeiros sintomas e assim permanece na maioria
dos casos durante 5 a 10 dias. Por sua vez, o
doseamento urinário da amilase está aumentado
em todas as situações de hiperamilasémia, mas tal
aumento é mais tardio.
CAPÍTULO 124 Pancreatite
Sendo a lipase quase exclusivamente sintetizada pelo pâncreas, as respectivas sensibilidade e
especificidade são superiores às da amilase. Está
aumentada no início da pancreatite e permanece
elevada durante mais tempo.
Salienta-se, a propósito que a amilasémia pode
estar aumentada na parotidite, anorexia nervosa,
bulimia, litíase biliar, perfuração de úlcera péptica, e certas doenças sistémicas (acidose metabólica, insuficiência renal, queimadura, traumatismo
craniano).
Outras enzimas como a fosfolipase A2, a tripsina, a elastase, a proteína específica do pâncreas
(PASP), e a proteína associada à pancreatite (PAP),
estão elevadas na PA, mas não têm superioridade
diagnóstica em relação à amilase ou à lipase.
Observa-se frequentemente leucocitose, aumento das transaminases, hiperglicémia, hipocalcémia, hiperbilirrubinémia, elevação da fosfatase
alcalina e da glutamil transpeptidase (GGT).
A ecografia endocóspica e a tomografia computadorizada (TAC) abdominais são os exames
mais usados para documentar a PA, determinar a
gravidade e identificar complicações. Os achados
ecográficos mais frequentes são o aumento de
volume do pâncreas e a diminuição da ecogenicidade. A TAC é o exame radiológico de escolha
para avaliar a gravidade e detectar complicações
quando a doença se prolonga. De salientar que
uma TAC com contraste realizada precocemente
no início da doença pode diminuir o fluxo sanguíneo às áreas já isquémicas e, deste modo,
aumentar as regiões de necrose.
A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou a colangiopancreatogrfia por
ressonância magnética (MRCP) devem ser realizadas apenas nos casos de episódios recorrentes
de pancreatite, na suspeita de defeito estrutural,
de distorção ou ruptura ductal e, nalguns casos,
de pancreatite litiásica.
Em 30% dos casos, a radiografia simples do
abdómen evidencia o clássico sinal da “ansa
sentinela”.
Tratamento
O tratamento da PA, essencialmente de suporte,
depende da gravidade da doença.
Os critérios de gravidade estabelecidos para os
593
adultos não são aplicáveis na idade pediátrica.
Recentemente, o Midwest Multicenter Pancreatic
Study Group, baseado nos critérios de Ranson e
Glasgow, propôs um índice de gravidade para a
criança atribuindo 1 ponto a cada um dos
seguintes parâmetros: idade (< 7 anos), peso (< 23
Kg), leucocitose (> 18.500/mmc), lactato-desidrogenase (> 2.000 IU/L), sequestração de fluidos
durante 48 horas (> 75ml/Kg/48h), ureia elevada
durante 48 horas, PA associada a doença sistémica
grave. Das crianças com 0 a 2 pontos, 8.6% têm PA
grave com mortalidade de 1.4%. Com 2 a 4 pontos,
38.5% têm PA grave e mortalidade de 5.8%. Com 5
a 7 pontos 80% têm PA grave e mortalidade de
10%.
As crianças com PA grave devem ser tratadas
em unidades de cuidados intensivos.
A terapêutica da PA ligeira a moderada inclui:
analgesia (meperidina 1 a 2 mg/Kg por via intramuscular ou endovenosa), fluidos endovenosos e
“descanso” da glândula. Até há relativamente
pouco tempo a nutrição parentérica total era considerada a única opção. Contudo, estudos recentes
revelam que a nutrição entérica por sonda jejunal
é bem tolerada. As complicações implicam vigilância clínica rigorosa.
Complicações e prognóstico
Nos casos de PA não complicada verifica-se em
geral recuperação em 4-5 dias.
Durante a primeira semana as potenciais
complicações são em geral as sistémicas: hiperglicémia, hipocalcémia, hiperlipidémia, hipercaliémia, acidose metabólica e coagulação intravascular disseminada.
As complicações tardias ocorrem após a segunda semana de doença e incluem os pseudoquistos e os abcessos. O risco de se desenvolver
quisto ou pseudoquisto é maior na PA causada
por traumatismo abdominal (39%) do que naquelas com outras causas (5%).
As manifestações clínicas dos pseudoquistos
são dores abdominais com náuseas e vómitos e,
mais raramente, icterícia. Uma massa epigástrica é
muitas vezes palpável. A ecografia permite o
diagnóstico.
A remissão espontânea dos pseudoquistos é
frequente, mas estão descritas complicações:
594
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
abcesso, hemorragia, fístulas e ruptura. A punção
percutânea sob controle ecográfico pode permitir
a evacuação definitiva do quisto; por vezes é
necessário tratamento endoscópico ou cirúrgico.
BIBLIOGRAFIA
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PARTE XVII
Oncologia
596
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
125
INTRODUÇÃO À
ONCOLOGIA PEDIÁTRICA
Mário Chagas
Importância do problema
A Oncologia Pediátrica constitui uma subespecialidade em constante mudança. Durante os últimos
60 anos, doenças que eram incuráveis atingiram
probabilidades de cura por vezes superiores a 80%.
Outras, tratadas de início com graves mutilações
impostas por uma cirurgia heróica, são hoje curáveis
sem alterações estéticas ou de função apreciáveis.
Estes resultados ficaram a dever-se, não só aos progressos no diagnóstico e tratamento, mas também à
melhoria dos meios de suporte dos doentes.
Os protocolos cooperativos internacionais permitiram juntar experiências obtendo-se cada vez
melhores resultados.
Recentemente, os conhecimentos adquiridos
em ciências básicas como a Imunologia e a Genética,
vieram abrir novas perspectivas no campo do diagnóstico e do tratamento, levando a supor que os
próximos anos sejam ainda de maior sucesso.
Sendo a Oncologia Pediátrica uma subespecialidade englobada na Pediatria, este capítulo
limitar-se-á a uma apresentação genérica de tópicos que, pela sua importância, deverão ser do conhecimento de todos os médicos. Numa primeira
parte os mesmos serão abordados dando especial
ênfase aos conceitos fundamentais sobre oncogénese, semiologia, diagnóstico e tratamento; e,
numa segunda parte, aos grupos mais representativos da Oncologia Pediátrica: hemopatias
malignas (leucemias, linfomas) e tumores sólidos
(neuroblastoma e tumor de Wilms).
O retinoblastoma é abordado na parte referente à Oftalmologia, noutro volume do livro.
Aspectos epidemiológicos
Contrariamente ao que habitualmente se supõe,
os tumores surgindo em idade pediátrica não são
raros. No mundo ocidental, de acordo com as
estatísticas existentes, uma em cada seiscentas
crianças terá uma neoplasia nos primeiros quinze
anos de vida. A incidência anual de novos casos é
cerca de cento e cinquenta por cada milhão de crianças com menos de quinze anos.
Em Portugal, onde, de acordo com o INE, há
cerca de um milhão e seiscentas mil crianças e
jovens com idade inferior a quinze anos, estima-se
que será de cerca de duzentos e quarenta o
número de novos casos por ano.
Nos Quadros 1 e 2 são discriminadas respectivamente as neoplasias mais habituais na criança,
segundo os dados estatísticos do National Cancer
Institute (NCI) dos EUA, e do Serviço de Pediatria
do Instituto Português de Oncologia de Lisboa
(2005-2007).
Em ambos se poderá verificar que as leucemias
agudas, principalmente linfoblásticas, e os
tumores do sistema nervoso central (SNC), representam metade da totalidade dos casos. Os linfomas (doença de Hodgkin e linfoma não
Hodgkin) representam cerca de quinze por cento
dos tumores. As restantes neoplasias, designadas
por «tumores sólidos», constituem um leque vasto
de tumores diferentes, destacando-se, por ordem
decrescente de frequência, neuroblastoma, sarcoQUADRO 1 – Tumores (T) mais frequentes na
criança (0 a 15 anos) segundo o
NCI (National Cancer Institute)
dos Estados Unidos
CAPÍTULO 125 Introdução à Oncologia Pediátrica
QUADRO 2 – Casuística do Serviço de Pediatria
do IPOFG (Instituto Português de
Oncologia Francisco Gentil),
Lisboa
Patologia
Leucemia Aguda
T. SNC
Linfoma
Neuroblastoma
S. Partes Moles
T. Wilms
S. Ósseo
Retinoblastoma
T. Cel Germinativas
S. Ewing/PNET
Hepatoblastoma
Outros T Malignos
Histiocitose
Tumores Benignos
TOTAL
2005 2006 2007 TOTAL %
33
23
16
9
7
7
2
5
3
3
2
11
5
14
29
24
18
12
10
11
4
2
3
3
2
11
2
11
46
24
15
12
14
5
5
4
2
1
0
4
4
17
108
71
49
33
31
23
11
11
8
7
4
26
11
42
24,9
16,3
11,2
7,5
7,1
5,2
2,6
2,6
1,8
1,7
0,9
5,9
2,6
9,7
140
142
153
435
100
T = Tumores; S = Sarcoma; Cel = Células; SNC = Sistema nervoso central
ma das partes moles, tumor de Wilms, e tumores
ósseos. De acordo com estatísticas internacionais
os tumores sólidos representam menos 40% dos
tumores da criança; e neuroblastoma, rabdomiossarcoma, outros sarcomas das partes moles e
tumor de Wilms, representam mais de metade dos
tumores sólidos.
Apesar de se tratar duma patologia relativamente pouco frequente, ela tem um peso grande
na sociedade contemporânea, já que representa, a
partir do primeiro ano de vida, a segunda causa
de morte, depois dos acidentes.
Uma questão que se coloca actualmente é
saber se a incidência das neoplasias na criança tem
vindo a aumentar ao longo dos anos, à semelhança do que sucede com as neoplasias do adulto. Torna-se difícil, pela variação normal do
número de novos casos/ano, fazer afirmações
seguras. Os estudos estatísticos mais completos de
que dispomos, do NCI, comparando a incidência
de novos casos no quadriénio 1975-1979 com a do
quadriénio 1995-1999, mostram um aumento de
597
11,5% em vinte anos, ou seja, um aumento anual
ligeiramente inferior a 0,6%.
Esta variação não se verificou, no entanto, de
igual modo em todas as neoplasias. Registou-se
sobretudo nas leucemias, tumores do SNC,
osteossarcoma e hepatoblastoma que se terão tornado mais frequentes, enquanto parece ter havido
uma redução no número de novos casos de
doença de Hodgkin, e não ter havido variação significativa noutras neoplasias.
Para ilustrar a dificuldade que existe na interpretação destes dados, refere-se um «surto
epidémico» de tumores do SNC, registado nos
EUA, no final da década de 70 e início da década
de 80. A este “pico” seguiu-se um decréscimo de
incidência nos anos seguintes, não se tendo nunca
registado um aumento da mortalidade nesse
período. Este aparente surto foi explicado posteriormente pelo aparecimento nessa época de novas
e mais sofisticadas técnicas de imagem, primeiro a
tomografia axial computadorizada (TAC) e,
depois, a ressonância magnética nuclear (RMN),
que teriam permitido o diagnóstico mais precoce
destes tumores.
A frequência dos vários tumores nos diferentes
grupos etários é muito característica e serve para
orientação diagnóstica. O neuroblastoma, o tumor
de Wilms, a leucemia mieloblástica aguda, os
tumores do SNC e os tumores das partes moles,
principalmente o rabdomiossarcoma, são as neoplasias predominantes. Por outro lado, a doença
de Hodgkin, o osteossarcoma e o sarcoma de
Ewing, são mais frequentes na pré-adolescência e
adolescência. Virá a propósito referir que se verifica uma continuidade (formas variáveis de transição) entre o sarcoma de Ewing (menos diferenciado) e os PNET (Peripheral Primitive Neuroectodermal Tumors). As leucemias linfoblásticas agudas
têm, por seu lado, um “pico” de incidência entre
os dois e os quatro anos de idade.
Seguimento e resultados globais
Actualmente a probabilidade de cura de uma
criança com cancro é grande. Depende, como se
verá nos capítulos seguintes, do tipo de tumor, seu
estádio evolutivo e tratamento efectuado.
Uma interrogação frequente é saber o que
sucede às crianças consideradas curadas.
598
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Dois estudos recentes, referentes ao seguimento de 20 227 e 13 711 antigos doentes, tratados
entre 1970 e 1986 num caso, e entre 1960 e 1989
noutro, são elucidativos. O primeiro estudo foi
feito nos EUA e o segundo nos países nórdicos.
Em ambos, as populações estudadas em que tinha
sido suspenso o tratamento havia pelo menos 5
anos, estavam sem doença. Curiosamente os
resultados são sobreponíveis nos dois grupos e
mostram que 10% destes ex-doentes virão a falecer nos anos seguintes, a maior parte por recidiva
tumoral (cerca de 67%), outros por segundas neoplasias (12%), outros por toxicidade do tratamento (8%) e os restantes por causas diversas não relacionadas com a doença ou o tratamento. Nestes
estudos verificou-se que 90% dos antigos doentes
estão vivos, sem doença, e com padrões de vida
muito semelhantes a grupos testemunha.
126
TUMORES, AMBIENTE
E GENÉTICA
Mário Chagas
Influência do ambiente
É consensual que os factores ambientais têm um
papel preponderante na génese dos tumores do
adulto e do idoso. A importância das radiações
ionizantes, das substâncias químicas e das infecções víricas na oncogénese é bem conhecida. São
numerosos os exemplos de exposições repetidas
ao longo de anos que acabam por originar a neoplasia. O tabaco é um paradigma dessa situação.
Na criança, é no primeiro ano de vida que a
incidência de neoplasias é maior, reduzindo-se
progressivamente nos anos seguintes, para voltar
a aumentar no início da adolescência. Assim
sendo, se os factores ambientais têm alguma
importância na génese dos tumores pediátricos,
deduz-se que eles terão que actuar muito precocemente, por vezes ainda in utero ou até antes, a
nível das gónadas dos progenitores.
Sendo um tema ainda controverso, apresentamse seguidamente três exemplos que o ilustram.
O primeiro diz respeito a pais que desempenharam profissões, antes ainda da concepção, em
que houve exposição a determinados metais ou
radiações, e em cujos filhos se tem descrito maior
de incidência de neoplasias.
O segundo exemplo é relativo a certas formas
de leucemia mieloblástica da criança, diagnosticadas no primeiro ano de vida, as quais parecem
ser devidas a uma exposição in utero a determinadas substâncias químicas do grupo dos
inibidores da topoisomerase II. Estas leucemias
caracterizam-se por rearranjos genéticos específicos no clone leucémico envolvendo o gene MLL,
CAPÍTULO 126 Tumores, ambiente e Genética
muitas vezes apenas detectado em genética
molecular e não em genética convencional. Sucede
que estes mesmos rearranjos genéticos são
descritos como característicos de neoplasias
secundárias da criança mais velha e do adulto,
que foram tratados alguns anos antes para uma
primeira neoplasia com citostáticos dos grupos
das epipodofilotoxinas ou das antraciclinas. O que
há de comum entre as epipodofilotoxinas e as
antraciclinas é que são ambas inibidoras da topoisomerase II. Ora, algumas substâncias químicas
entram ainda que em pequenas doses na indústria
alimentar, e alguns antibióticos de uso corrente,
do grupo dos inibidores da topoisomerase II,
poderão fazer parte da dieta ou da prescrição
medicamentosa da grávida. Naturalmente que
nem todas as grávidas que se expõem a estas substâncias durante a gestação terão um filho com
leucemia. Admite-se ter de haver uma predisposição genética na mulher grávida que a tornará
particularmente sensível a estes fármacos.
O terceiro exemplo diz respeito a substâncias
químicas que, consumidas ou usadas durante a
gravidez, são implicadas no aparecimento de neoplasias no filho, tais como a marijuana, o álcool, o
benzeno e os pesticidas.
À semelhança do adulto, também algumas
infecções víricas estão na origem de certas formas
de cancro na criança: são bem conhecidas as
relações entre a infecção pelo vírus da hepatite B e
o carcinoma hepatocelular, pelo vírus do papiloma (HPV) e o cancro do colo do útero, e as
relações entre o vírus de Epstein Barr e o linfoma
de Burkitt africano ou a doença de Hodgkin.
Finalmente, a relação entre as radiações ionizantes e as neoplasias é conhecida desde o final do
século dezanove (Marie Curie terá falecido com
leucemia). Ficaram tristemente célebres as crianças que, após irradiação do crânio para tratamento de infestação por pedículos capitis, surgiram com
tumores do SNC ou que, após irradiação dum
timo hiperplásico, surgiram com tumores deste
órgão.
Actualmente o oncologista moderno conhece
bem o risco de incidência de tumores das partes
moles, do osso, ou do SNC, em crianças previamente irradiadas para tratamento de neoplasias
anteriores.
Se os factores ambientais acima referidos são
599
hoje associados à génese das neoplasias da criança, convém notar, contudo, que estes casos são
excepcionais e que para a maioria dos tumores
pediátricos a relação com supostos factores
ambientais não se conseguiu ainda estabelecer.
Genética
Duas grandes classes de genes através de mecanismos complexos estão implicadas na transformação maligna duma célula e no desenvolvimento das neoplasias: os oncogenes, derivados da activação dos chamados proto-oncogenes. E o s genes
supressores das referidas neoplasias. A acção dos
genes supressores implica um mecanismo de inactivação dos mesmos.
Há tumores de transmissão hereditária em que
é possível encontrar história familiar: é o caso do
retinoblastoma e de certos adenocarcinomas da
tiroideia de tipo medular em que, (40%, e 50 a 80%
dos casos, respectivamente), há antecedentes de
igual doença num dos progenitores.
Há famílias em que a incidência de determinadas neoplasias é muito superior à da população
em geral. Cita-se a síndroma de Li- Fraumeni em
que a frequência de leucemia, de tumores das
partes moles, nomeadamente rabdomiossarcoma,
e de carcinoma da mama é em várias gerações da
mesma família muito superior à habitual.
Há crianças com determinadas alterações
genéticas em que há maior incidência de neoplasias. É o que sucede na síndroma de Down em
que o risco de aparecimento de leucemia é vinte
vezes superior ao das outras crianças. É também o
caso da síndroma de WAGR, síndroma caracterizada por aniridia e atraso do desenvolvimento
intelectual, em que é muito grande a probabilidade de tumor do rim (tumor de Wilms). É ainda
o que sucede nas síndromas de instabilidade cromossómica como a síndroma de Bloom, a ataxiatelangiectasia ou a anemia de Fanconi, em que a
ocorrência de linfomas é superior à da população
pediátrica em geral.
Em todos os casos acima referidos há alterações genéticas que predispõem para o aparecimento de neoplasias por mecanismos ainda mal
conhecidos.
Nas últimas décadas foram-se descrevendo
alterações genéticas nas células tumorais, não ve-
600
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
rificadas nas células normais. Algumas dessas
alterações são aleatórias, traduzindo apenas uma
grande instabilidade genética e, portanto, sem significado particular. Outras são, no entanto, específicas e têm hoje importância no diagnóstico,
prognóstico e compreensão da génese do tumor.
A primeira alteração genética característica de
uma neoplasia foi descrita na década de sessenta
do século passado. Trata-se de uma translocação
entre o cromossoma 9 e o cromossoma 22 no clone
celular da leucemia mielóide crónica. Este cromossoma recebeu o nome de Philadelphia em homenagem à cidade onde foi inicialmente descrito.
Muitas outras alterações cromossómicas estruturais (translocações, deleções) e quantitativas, ou
seja com variação do número de cromossomas, se
foram descrevendo posteriormente, com maior
frequência na última década, em leucemias, linfomas e tumores sólidos.
Com o novíssimo advento da genética molecular percebeu-se que estas alterações são responsáveis por rearranjos do material genético, típicos
de cada tumor, e com importância na oncogénese.
Os progressos obtidos nesta nova ciência tornaram-se tão importantes que actualmente muitos
diagnósticos são feitos, não pelos métodos clássicos da morfologia e imunocitoquímica, mas por
Genética.
À medida que os conhecimentos em Genética
vão progredindo, novas noções sobre oncogénese
vão surgindo, ultrapassando o âmbito deste capítulo.
Justifica-se, no entanto, fazer referência à teoria de Greaves, pela visão global que lança sobre
as eventuais causas de uma forma “nova” de
leucemia aguda da criança, que poderá ser considerada como paradigma da oncogénese.
Nos países ocidentais regista-se um pico de
incidência de leucemia aguda linfoblástica na
criança entre os dois e os quatro anos de idade,
não descrito noutras zonas do mundo. Trata-se de
uma leucemia particularmente quimiossensível e,
portanto, de melhor prognóstico. Curiosamente,
esta forma particular de leucemia da criança,
descrita pela primeira vez na Grã-Bretanha no
final da década passada de 40, só foi encontrada
nos EUA na década de 60, primeiro nas crianças
de raça branca, e só depois nas crianças de raça
negra, tendo atingido apenas nos anos 80 o Japão.
A teoria de Greaves admite como possível uma
relação entre o aparecimento deste tipo novo de
leucemia e alterações registadas na vida das crianças destes países, a partir do final da segunda
guerra mundial. Assim, o parto hospitalar em
condições de assepsia em substituição do parto no
domicílio, o curto período de aleitamento materno
e sua substituição por leites dietéticos, a redução
das fratrias e a substituição precoce do ambiente
familiar pelo ambiente do infantário, condicionariam uma anormal estimulação dum sistema imunitário ainda imaturo que levaria à neoplasia.
Mais recentemente verificou-se que muitas
crianças com este tipo «novo» de leucemia apresentam no seu clone leucémico uma translocação
envolvendo os cromossomas 12 e 21, a t (12;21), o
que condiciona uma fusão dos genes TEL e AML1.
Greaves demonstrou, através do exame do
sangue destas crianças armazenado nos cartões de
papel de filtro, (usados para o diagnóstico precoce
de certas doenças no período neonatal e que contêm sangue capilar), que esta t (12;21) era já detectável à nascença, ou seja, 2 a 4 anos antes de as
mesmas adoecerem. Verificou-se posteriormente
que apenas cerca de 1% das crianças nas quais é
detectada esta translocação no período neonatal
adoecerá, de facto, com leucemia, admitindo-se,
assim, ser necessário outro ou outros factores
(infecciosos, na teoria de Greaves) para continuar o
processo de oncogénese.
A teoria multifactorial desenvolvida por este
autor para explicar a génese deste tipo de
leucemia já era aplicada a outras neoplasias como
o retinoblastoma. Na verdade, segundo a teoria de
Knudson, são necessárias duas deleções sucessivas no cromossoma 13 para que o retinoblastoma
surja. Se ambas as mutações ocorrerem numa
célula somática da retina, o tumor é esporádico,
unilateral e mais tardio. Se a primeira mutação se
der na célula progenitora, e a segunda na célula
somática da retina, o tumor é hereditário, muitas
vezes bilateral, e surge muito precocemente nos
primeiros meses de vida.
Reportando-nos ao papel dos genes, (oncogenes e genes supressores) cabe referir que o HPV
19 induz transformação maligna inactivando o
gene supressor do tumor.
O desenvolvimento do cancro pode ainda
estar ligado ao imprinting do genoma que consiste
CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico
na inactivação selectiva de um de dois alelos de
certo gene.
Verifica-se, assim, haver uma relação entre
Genética e ambiente, aspecto subjacente na oncogénese da generalidade dos tumores pediátricos,
desconhecendo-se, no entanto, muitos dos mecanismos íntimos de tal relação.
601
127
ASPECTOS BÁSICOS DO
DIAGNÓSTICO ONCOLÓGICO
Mário Chagas
Manifestações clínicas
Os sinais e sintomas dos tumores da criança são
em geral incaracterísticos, pelo que poderá haver
um período de latência relativamente longo entre
o início das manifestações e o diagnóstico, que
pode ser de semanas ou, nalguns casos, de meses.
Uma das características da maioria dos
tumores da criança é a de serem embrionários,
derivados da mesoderme ou da neuroectoderme
sendo por isso, do ponto de vista histológico, sarcomas. Por este facto, a sua localização raramente
se verifica num órgão específico, ao contrário do
que acontece com os tumores do adulto que são
predominantemente carcinomas de um determinado órgão. Há, naturalmente, excepções, como o
retinoblastoma, quase sempre localizado no globo
ocular, ou o osteossarcoma que é o tumor ósseo
mais frequente, ou ainda o tumor de Wilms, localizado habitualmente num rim. Mas o rabdomiossarcoma e outros sarcomas das partes moles, o
sarcoma de Ewing/PNET, o neuroblastoma, os
teratomas e muitos outros tumores designados
por “sólidos”, podem ter topografia diversa,
sendo a sua sintomatologia variável consoante a
sua localização.
Nestes tumores sólidos a primeira manifestação resulta, em regra, de um efeito de massa que
o tumor exerce sobre as estruturas adjacentes:
assim, o crescimento do tumor provoca dor, quer
por compressão das raízes nervosas vizinhas,
quer por estiramento da cápsula do órgão que o
contém; pode induzir alterações neurológicas
focais, quer por lesão de raízes nervosas, quer por
602
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
compressão da medula espinal por crescimento
intracanal através dos buracos de conjugação;
pode originar estase venosa por compressão vascular; pode induzir dificuldade respiratória por
compressão das vias aéreas. Todos estes sinais e
sintomas dependem, assim, da topografia do
tumor e não do seu tipo.
Se o tumor for intracraniano, crescendo numa
caixa pouco distensível, manifesta-se inicialmente
por sinais de hipertensão intracraniana, de que as
cefaleias matinais persistentes ou que acordam a
criança de noite e que aliviam com o vómito são o
paradigma. Outras vezes, convulsões não febris e
sinais neurológicos focais que variam com a localização do tumor são as manifestações inaugurais.
Qualquer destes sinais e sintomas deverá levar a
um exame neurológico cuidadoso e urgente.
Os tumores torácicos originam, em regra, sintomas e sinais mais precocemente que os tumores
abdominais, devido à menor elasticidade da caixa
torácica: dificuldade respiratória, (quer por compressão das vias aéreas, quer por derrame pleural,
quer, ainda, por efeito mecânico sobre o diafragma), síndroma da veia cava superior por compressão venosa, síndroma de Claude Bernard
Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia), são
manifestações habituais nos tumores localizados
no mediastino. Se a localização do tumor for o
mediastino posterior, as manifestações inaugurais
serão muito provavelmente neurológicas por compressão de raízes nervosas ou da espinal-medula,
podendo também haver, se o tumor atingir grandes
dimensões, outras manifestações acima referidas.
Os tumores abdominais podem atingir grande
volume antes de provocarem sintomas e a sua
primeira manifestação pode ser apenas distensão
abdominal, ou massa que se palpa mas que é assintomática, como sucede com frequência no
tumor de Wilms, muitas vezes detectado pela mãe
ao dar banho ao filho, ou pelo médico em observação de rotina. Outras vezes, a distensão abdominal é extrema e dolorosa, como acontece com o
linfoma de Burkitt. Mais raramente são as manifestações a distância, devidas a focos metastáticos,
que levam a procurar o tumor primitivo, como
sucede com frequência no neuroblastoma abdominal que se pode revelar, por exemplo, por metastização óssea causadora de dor, ou cutânea,
com o aparecimento de nódulos.
Os tumores pélvicos manifestam-se, em regra,
por perturbação da micção e/ou defecação por
compressão directa da bexiga ou do recto, ou por
perturbação do funcionamento dos esfíncteres por
compressão de nervos. Outras vezes, são as
parestesias dos membros inferiores por compressão radicular, as primeiras manifestações.
Se o tumor se localizar no osso, uma dor persistente sem história de traumatismo, uma massa
tumoral palpável, ou uma fractura patológica, são
os sinais e sintomas habituais, quer nos tumores
primitivos como o osteossarcoma ou o sarcoma de
Ewing, quer nos metastáticos como o neuroblastoma.
Nos restantes tumores (leucemias e os linfomas) as manifestações mais comuns são o aumento das dimensões dos gânglios linfáticos (adenomegálias), do fígado (hepatomegália), do baço
(esplenomegália), febre, diátese hemorrágica e dor
óssea. O que se torna difícil é valorizar correctamente estas manifestações. Na verdade, com
excepção da diátese hemorrágica, que é menos
habitual e mais preocupante devendo levar à realização de exames complementares de diagnóstico
urgentes, (começando por um hemograma), as
outras são manifestações de patologia infecciosa
vírica ou bacteriana de fácil resolução.
Assim, adenomegálias (gânglios linfáticos com
diâmetro superior a 1 cm) na região cervical superior ou submandibular são geralmente secundárias
a focos infecciosos bacterianos regionais, tão frequentes na criança, ou infecções víricas (Epstein
Barr, citomegalovírus – CMV), ou outras, como a
toxoplasmose. Caracterizam-se por regredirem
facilmente com antibioticoterapia ou espontaneamente, podendo reaparecer perante novo foco
infeccioso. Será a sua persistência ou um aumento
progressivo, apesar dos tratamentos habituais, que
deverá evocar uma causa neoplásica (linfoma, rabdomiossarcoma, carcinoma da nasofaringe, neuroblastoma), obrigando a um exame mais cuidadoso.
As adenomegálias cervicais inferiores, supra
claviculares ou axilares têm em regra, um significado mais ominoso, sendo mais frequentemente
de origem neoplásica que infecciosa. São persistentes e têm consistência firme. Não têm sinais
inflamatórios, não são dolorosas, e podem fundirse em conglomerados. Deverão evocar entre ou-
CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico
tros, o diagnóstico de neuroblastoma num lactente
ou numa criança muito jovem, de linfoma não
Hodgkin numa criança em idade pré-escolar ou
escolar, ou de doença de Hodgkin em criança mais
velha.
Por outro lado, as adenomegálias generalizadas com ou sem febre, acompanhadas ou não
de hepatosplenomegália, deverão evocar o diagnóstico de infecção, muito provavelmente vírica
(Epstein Barr, CMV, etc.). Também aqui será a não
confirmação do diagnóstico, a persistência das
manifestações, e o eventual aparecimento de
sinais e sintomas mais preocupantes, como diátese
hemorrágica ou dor óssea, que levarão a admitir a
hipótese diagnóstica de leucemia/linfoma.
Há, contudo, alguns sinais/sintomas que são
preocupantes ab initio, e devem orientar o médico
para um diagnóstico urgente. Enumeram-se os
principais (cuja identificação implica o encaminhamento atempado da criança para centro especializado):
– O aparecimento de massa tumoral nas partes
moles do tronco ou membros, num lactente ou
criança jovem, sem história de traumatismo,
deve levar a admitir rabdomiossarcoma, sarcoma de Ewing/PNET, ou neuroblastoma.
– A instalação de estrabismo fixo num lactente,
ou o achado de leucocória (opacificação
esbranquiçada na pupila), também designada como “olho-de-gato”, obrigarão a uma
observação urgente por oftalmologista, com
fundoscopia, de preferência sob anestesia,
com a forte suspeita de retinoblastoma.
– Convulsões não febris, cefaleias persistentes
que acordam a criança de madrugada e que
aliviam com o vómito, sinais neurológicos
focais, são manifestações que sugerem fortemente neoplasia do SNC, tornando fundamental uma observação cuidadosa por neurologista.
– Manifestações de opsomioclonus (mioclonias associadas a movimentos erráticos dos
globos oculares) devem evocar a possibilidade de neuroblastoma.
– A instalação da síndroma de Claude Bernard
Horner (ptose, palpebral miose, endoftalmia)
poderá ser o primeiro sinal de um tumor cervical ou do tórax superior.
– O diagnóstico de miastenia gravis, deve evo-
603
car a possibilidade de timoma ou neuroblastoma.
– Diarreia crónica pode ser a primeira manifestação de neuroblastoma ou de histiocitose
de células de Langerhans.
– Diabetes insípida pode preceder o diagnóstico de histiocitose de células de Langerhans
ou de tumor do SNC.
– Diátese hemorrágica (equimoses/petéquias/
/epistaxes/gengivorragias, etc.) podem traduzir patologia da medula óssea.
– Síndroma febril indeterminada e ou perda de
peso, poderão ser as únicas manifestações de
uma neoplasia oculta durante muito tempo,
impondo esclarecimento.
Caracterização do estádio evolutivo
(estadiamento)
Colocada a hipótese diagnóstica de neoplasia,
duas providências se tornam urgentes: confirmar
o diagnóstico e caracterizar o estádio evolutivo da
doença, ou seja, determinar a grau de extensão da
mesma.
Todas as crianças com cancro têm, à partida,
uma probabilidade de cura a qual varia, naturalmente, com o tipo de tumor e o respectivo estádio
evolutivo; tal probalidade é superior à da generalidade dos adultos com cancro, já que os tumores
da criança são mais químio-sensíveis e rádio-sensíveis que os do adulto.
Actualmente a leucemia linfoblástica aguda, o
linfoma não Hodgkin, a doença de Hodgkin nos
estádios I, II, ou III A, o tumor de Wilms, o neuroblastoma nos estádios 1 e 2, o osteossarcoma ou
o retinoblastoma não metastizados, têm probabilidades de cura superiores a 70%.
Outras neoplasias como a leucemia mieloblástica aguda, neuroblastoma nos estádios 3 e 4,
osteossarcoma metastizado, têm probabilidades
de cura inferiores, por serem tumores menos
químio-sensíveis, ou se apresentarem em estádios
mais avançados.
No entanto, para se atingir os bons resultados
actuais é necessário diagnóstico e caracterização
do estádio correctos que permitam optar pelo protocolo terapêutico mais adequado. Deste último
dependerá finalmente o sucesso do tratamento.
Constituindo uma patologia pouco frequente e
604
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
curável na globalidade dos casos, é de boa prática
concentrar as crianças com cancro num número
reduzido de centros oncológicos, detentores dos
meios cada vez mais sofisticados de diagnóstico e
tratamento. Na verdade, o diagnóstico das neoplasias da criança tem sofrido nos últimos anos
uma grande evolução. Ao exame macroscópico, à
microscopia óptica e à citoquímica tradicionais,
juntaram-se os estudos de microscopia electrónica, de imunologia, de genética convencional e,
mais recentemente, de genética molecular, hoje
indispensáveis para estabelecer o diagnóstico e o
prognóstico na generalidade dos tumores da
criança; contudo, pela sua complexidade e custos
não são exequíveis em centros sem diferenciação
oncológica.
Por isso, actualmente no nosso País existem
apenas quatro centros oncológicos pediátricos,
localizados dois no Porto, no Hospital de S. João e
Instituto Português de Oncologia de Francisco
Gentil, um em Coimbra no Hospital Pediátrico, e
um em Lisboa no Instituto Português de
Oncologia de Francisco Gentil, onde se concentram para diagnóstico, tratamento e seguimento
as cerca de 240 crianças que surgem todos os anos
com cancro.
Nestes centros a marcha diagnóstica inicia-se
com a história clínica (anamnese pessoal e familiar
e observação cuidadosa da criança). As hipóteses
diagnósticas são equacionadas de acordo com os
dados colhidos e com a idade da criança: alguns
tumores são mais frequentes na criança muito
jovem, como o neuroblastoma e tumor de Wilms;
outros no adolescente, como a doença de Hodgkin,
o osteossarcoma, ou o sarcoma de Ewing.
Os exames complementares são solicitados
com base nas hipóteses diagnósticas mais pertinentes, partindo sempre dos mais simples, para os
mais complicados, por exemplo do hemograma
para o mielograma.
Os estudos de imagem a realizar para diagnóstico e definição do estádio (discutidos com o imagiologista: as radiografias convencionais, a ecografia, o ecodoppler, a tomografia axial computadorizada, a ressonância magnética, os estudos isotópicos com gálio, tálio, tecnécio, metaiodobenzilguanidina, ou crómio, a tomografia com emissão
de positrões), têm as suas indicações precisas que
devem ser conhecidas e aplicadas criteriosamente.
A colheita de material para diagnóstico é combinada com os especialistas que vão processar o
material, o qual deverá ser conservado em meios
apropriados tendo em conta a realização de estudos subsequentes.
Esta colheita pode ser feita por punção do
tumor por agulha fina (citologia aspirativa) com
anestesia local, e realizada no próprio gabinete de
consulta se o tumor tiver localização superficial. O
número de células assim obtido é relativamente
reduzido, mas os progressos operados ultimamente quanto ao processamento e ao estudo do
material permitem, muitas vezes, um diagnóstico
seguro. Nos tumores de localização profunda esta
punção terá que ser feita com controlo imagiológico e o doente anestesiado.
Nalguns casos a colheita de líquido ascítico ou
pleural permite obter um número suficiente de
células neoplásicas para se fazer o diagnóstico,
como sucede frequentemente nos linfomas.
Outras vezes o material obtido é insuficiente e
torna-se necessário recorrer a biópsia.
Por qualquer destes meios, o material colhido
é estudado em microscopia óptica e caracterizado
por técnicas de imunofenotipagem, de genética e
biologia molecular e, por vezes, de microscopia
electrónica; desta forma é possível obter informações conducentes a um diagnóstico seguro e
identificar factores prognósticos que permitam
optar pela terapêutica mais adequada.
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico
128
605
conceitos básicos de quimioterapia e radioterapia
e referindo os seus efeitos secundários mais frequentes com os quais o médico oncologista e o
médico da criança têm frequentemente que lidar.
Quimioterapia
ASPECTOS BÁSICOS
DO TRATAMENTO
ONCOLÓGICO
Mário Chagas e Ana Teixeira
Generalidades
As leucemias e linfomas não Hodgkin são tratados geralmente apenas com quimioterapia.
Os tumores sólidos e a doença de Hodgkin
tratam-se, em regra, com quimioterapia numa fase
inicial e, posteriormente, com terapia local: cirurgia e/ou radioterapia. A quimioterapia inicial,
com o seu efeito sistémico, tem a dupla vantagem
de destruir precocemente focos de micrometástases normalmente existentes, (reduzindo assim o
risco de recidiva) e de diminuir as dimensões do
tumor primitivo, permitindo uma remoção cirúrgica mais fácil e com menos sequelas. Da mesma
forma, a quimioterapia inicial permite que os campos a irradiar sejam menores, caso seja necessário
recorrer à radioterapia.
A cirurgia será realizada numa fase inicial apenas: quando o tumor, pelas suas dimensões ou
localização, for facilmente extirpável; ou nas situações em que não haja necessidade de outras formas de tratamento.
O tratamento de uma criança com doença
oncológica e o necessário apoio à sua família
devem envolver um enorme grupo de especialistas, para além dos técnicos de saúde habituais.
Assim, assistentes sociais, educadores de infância,
professores, técnicos de animação, voluntários,
são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante
do grupo de técnicos existente nos centros
oncológicos.
Pela sua importância, apresentamos alguns
A quimioterapia consiste na administração de fármacos citotóxicos que interferem no ciclo de vida
celular. Pode ser utilizada como única forma de
terapêutica de doenças neoplásicas ou em combinação com radioterapia e/ou cirurgia. Em geral,
quanto maior for o índice mitótico das células
tumorais, maior é a sensibilidade e resposta à
quimioterapia, verificando-se o contrário nos
tumores que se apresentam com uma percentagem significativa de células em fase G0, ou seja,
“inactivas”.
Os fármacos utilizados em quimioterapia
podem ser subdivididos em dois grandes grupos:
1. fármacos que actuam em determinadas fases
específicas do ciclo celular (por exemplo,
alcalóides da vinca, metotrexato, 6-mercaptopurina, citosina arabinosido e etoposido)
2. fármacos sem especificidade de fase (por
exemplo, agentes alquilantes, 5-fluorouracilo e actinomicina).
É comum o protocolo de quimioterapia incluir
fármacos de diferentes grupos, de forma a potenciar os mecanismos de acção sobre as células
tumorais. Faz-se referência aos mais utilizados.
1. Alcalóides da vinca
(vincristina, vimblastina, vindesina, vinorelbina)
Os alcalóides da vinca são derivados da planta
Vinca rosea e a sua acção citotóxica resulta da
capacidade de se ligarem à tubulina. Esta proteína
é fundamental na formação do fuso mitótico, ao
longo do qual os cromossomas migram durante a
mitose. Os alcalóides da vinca interferem com a
função do fuso mitótico, impedindo a conclusão
da mitose. Os efeitos secundários mais comuns
resultantes da sua administração são obstipação,
podendo mesmo ocorrer situações de íleo paralítico, e neurotoxicidade periférica (com perda dos
reflexos aquilianos e rotulianos, dificuldade na
marcha e “pé pendente”). Regra geral, estes
efeitos são reversíveis com a interrupção da terapêutica. A vimblastina é menos neurotóxica mas,
606
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ao contrário da vincristina, causa mielossupressão.
2. Antimetabolitos
(metotrexato, citosina-arabinosido, 6-mercaptopurina, 6-tioguanina)
São fármacos estruturalmente semelhantes a
determinados compostos essenciais às células
tumorais e que competem com, ou inibem, esses
mesmos compostos.
2.1. Metotrexato (MTX)
É semelhante ao ácido fólico e inibe a di-hidrofolato redutase, a enzima responsável pela manutenção de níveis adequados de tetra-hidrofolatos
intracelulares. A utilização de MTX causa uma
acumulação de folatos na sua forma oxidada inactiva, conduzindo à morte celular. Após a administração de MTX em doses elevadas, os níveis séricos
deste fármaco devem ser vigiados durante pelo
menos 48 horas, sendo necessária a administração
de ácido folínico de forma a permitir a sobrevivência das células não tumorais. O MTX é hepatotóxico e, em altas doses, nefrotóxico. Em dose baixa
administra-se em regime ambulatório como parte
integrante dos esquemas de manutenção.
2.2. Citosina-arabinosido (Ara C)
É semelhante à desoxicitidina e inibe a
polimerase do DNA, pelo que interfere com a
replicação e transcrição do DNA. Utiliza-se, tal
como o MTX, em doses muito variáveis que nos
protocolos mais intensivos pode chegar a vários
gramas por metro quadrado por dia, durante
alguns dias.
2.3. 6-Mercaptopurina e 6-tioguanina
São compostos semelhantes aos nucleótidos
hipoxantina e guanina. Quando incorporados no
DNA provocam alterações na sua estrutura comprometendo a transcrição. São administrados por
via oral, fazendo parte dos esquemas de
manutenção de quimioterapia.
3. Antibióticos
(antraciclinas, bleomicina, actinomicina D)
Estes fármacos têm uma origem bacteriana ou
fúngica e possuem uma actividade simultaneamente antimicrobiana e antitumoral.
3.1. Antraciclinas
(daunorrubicina; doxorrubicina; epirrubicina;
idarrubicina)
A acção citotóxica destes fármacos resulta de
vários mecanismos, incluindo a inibição da actividade da topoisomerase II (e consequente interferência na leitura do DNA) e a formação de radicais
livres de oxigénio, capazes de causar lesão tecidual
directa. São potencialmente cardiotóxicas, sobretudo
se utilizados em doses cumulativas superiores a 350400 mg/m2. Nos doentes submetidos a esquemas
terapêuticos que incluam doses elevadas de antraciclinas deve realizar-se uma avaliação prévia da
função cardíaca e manter posteriormente um esquema regular de vigilância com ecocardiograma.
3.2. Bleomicina
Consiste numa mistura de glicopéptidos de
origem fúngica capazes de degradar o DNA. Pode
causar toxicidade pulmonar.
3.3. Actinomicina D
Interfere com a síntese de DNA e RNA por
ruptura e distorção da dupla hélice de DNA. Tal
como as antraciclinas, pode potenciar a toxicidade
das radiações ionizantes, pelo que estes fármacos
não devem ser utilizados simultaneamente com a
radioterapia.
4. Agentes alquilantes
(ciclofosfamida, ifosfamida, clorambucil, melfalan,
busulfan)
Formam ligações covalentes com as bases no
DNA, pelo que alteram a sua integridade estrutural impedindo a transcrição. A ifosfamida e a
ciclofosfamida são especialmente tóxicas a nível
renal e vesical, pelo que a sua administração deve
incluir vigilância da função renal, de hiperhidratação e protecção da mucosa vesical.
5. Compostos de platina
(cisplatina, carboplatina)
Tal como os agentes alquilantes, alteram a
estrutura do DNA e inibem a sua síntese. Os
efeitos secundários mais frequentes são
diminuição da taxa de filtração glomerular e surdez, sobretudo com a utilização da cisplatina.
6. Epipodofilotoxinas
[etoposido – (VP 16), teniposido – VM 26)]
Estes fármacos são derivados sintéticos da podofilotoxina, um composto da planta de mandrake.
São inibidoras da topoisomerase II, interferindo
com a transcrição do DNA.
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico
7. Outros
(Asparaginase, hidroxiureia, corticosteróides, anti
corpos monoclonais)
A asparaginase degrada a asparagina sérica
em ácido aspártico e amónia. Tem uma actividade
antitumoral específica atendendo a que, ao contrário das células normais, os linfoblastos não possuem a capacidade de sintetizar asparagina, pelo
que dependem do seu fornecimento exógeno. É
ainda hoje um dos citostáticos mais importantes
no tratamento das LLA. Os seus efeitos
secundários mais frequentes são pancreatite
aguda, disfunção hepática, incluindo alterações
nos factores de coagulação, dislipidémia, hipoalbuminémia, e reacção de sensibilização.
A hidroxiureia, substância análoga da ureia,
impede a síntese do DNA por inibição do sistema
enzimático da redutase dos ribonucleótidos.
Os corticoídes são frequentemente utilizados
em neoplasias hematológicas, atendendo a mecanismos ainda não bem esclarecidos mas que parecem envolver a existência de receptores para estes
fármacos nas células tumorais. Os corticosteróides
são igualmente incluídos em diversos protocolos
terapêuticos no alívio de determinados sintomas,
como quadros de hipertensão intracraniana e dores
ósseas.
Os anticorpos monoclonais e os inibidores da
tirosina-cinase estão a ser utilizados nalguns centros (por ex. imatimib, rituximab, nilotinib, cetuximab, etc.) constituindo exemplo de terapia molecular dirigida, evidenciando ausência da toxicidade nos tecidos normais.
Efeitos secundários da quimioterapia
Os efeitos secundários da quimioterapia são em
geral proporcionais à intensidade do tratamento,
ou seja, ao número de citostáticos usados, às doses
administradas e ao intervalo com que as faixas da
quimioterapia são prescritas. Tal significa que nos
protocolos mais intensivos e que tão bons resultados permitem obter actualmente, estes efeitos
secundários acarretam uma morbilidade muito
importante e, por vezes, até mortalidade.
As náuseas e os vómitos constituem os efeitos
secundários mais frequentes, podendo ser de tal
forma intensos com certos citostáticos que o
doente recusa a continuação do tratamento. Por
607
outro lado, podem conduzir a desequilíbrio hidroelectrolítico grave e a má-nutrição.
Há, todavia, antieméticos muito potentes que
ultrapassam estas complicações com relativa facilidade. Preferencialmente, a terapêutica antiemética deve ser instituída antecipadamente,
antes da quimioterapia, e não apenas após o início
dos sintomas. Os antieméticos mais utilizados em
oncologia pediátrica são os antagonistas da serotonina e a metoclopramida, podendo combinar-se
com a dexametasona e uma benzodiazepina de
forma a obter potenciação de efeitos. A duração da
terapêutica antiemética deve prolongar-se pelo
menos 24 horas após a administração de citostáticos muito emetizantes, como sejam a cisplatina, a
ifosfamida e o melfalan.
A mucosite, sobretudo a nível da orofaringe,
esófago e mucosa intestinal, é um dos efeitos
secundários mais vulgarmente observados manifestando-se por secura e palidez das mucosas,
aparecimento de placas esbranquiçadas, ulcerações, disfagia, dores abdominais, diarreia e proctite. Os fármacos mais frequentemente implicados
são as antraciclinas, a citosina-arabinosido, a actinomicina D e o metotrexato em alta dose. Nos
doentes pancitopénicos a lesão da mucosa do tubo
digestivo pode funcionar como “porta de entrada” para infecções oportunistas potencialmente
graves, sobretudo fúngicas e bacterianas (E. coli,
Klebsiella e Pseudomonas). É importante que as
crianças que recebem quimioterapia mantenham
hábitos regulares de higiene oral, com utilização
de escovas suaves e dentífricos adequados. A terapêutica com nistatina tópica é eficaz nas situações
de mucosite fúngica por Candida, podendo ser
necessária, em casos mais graves, a utilização de
antifúngicos sistémicos, antibióticos e antivíricos
nas crianças neutropénicas febris.
As queixas álgicas causadas pela mucosite não
devem ser negligenciadas, uma vez que podem
perturbar francamente o bem-estar da criança e o
seu estado nutricional. Devem ser utilizados analgésicos de acordo com a gravidade da situação
clínica que incluem, desde anestésicos tópicos, até
perfusões sistémicas de opiáceos; deve igualmente ser instituída uma dieta de consistência e
conteúdo adequados. (ver adiante)
A depressão medular pode resultar da progressão da doença oncológica em si (como no caso
608
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
das leucemias) ou ser consequência da quimioterapia. A incidência de infecções aumenta de forma
inversamente proporcional ao número de neutrófilos, considerando-se risco grave de infecção se se
verificar número absoluto de neutrófilos inferior a
0,5 x 109/l. As infecções são a complicação mais
grave e a principal causa de morte durante a
quimioterapia, exigindo um elevado nível de suspeição clínica, atendendo a que os sinais e sintomas inflamatórios clássicos podem estar
ausentes em doentes neutropénicos. Sempre que o
nível de neutropénia o justifique, estes doentes
devem ser isolados, evitando-se o contacto com
fontes exógenas potencialmente infectantes.
Como foi já referido anteriormente, a integridade
da mucosa digestiva deve ser preservada através
de uma correcta higiene oral e peri-rectal; é igualmente importante evitar a utilização de termómetros por via rectal, assim como a administração de
supositórios e enemas em doentes neutropénicos.
Nas crianças com cateteres venosos centrais os
cuidados de assépsia devem ser rigorosos em
todas as manipulações do cateter, aplicando-se o
mesmo princípio em todos os procedimentos que
impliquem lesão da barreira cutânea, como
punções venosas, lombares ou biópsias ósseas.
A imunossupressão a que estão sujeitas pela
quimioterapia, impede que estas crianças sejam
imunizadas, particularmente com vacinas vivas; e,
se os seus irmãos tiverem que ser vacinados contra
a poliomielite, deverão sê-lo usando uma estirpe
morta. Na verdade, a vacina viva permitindo a
eliminação do vírus pelas fezes, pode ter consequências neurológicas graves no doente. Problema
idêntico se põe com a vacina contra a varicela, já
que as lesões exantemáticas que podem surgir na
criança vacinada são contagiosas.
Quando as crianças frequentam escolas, (e
devem ser incentivadas a fazê-lo fora dos períodos
de neutropénia), os pais e médicos responsáveis
devem ser imediatamente avisados sobre o contacto com crianças com varicela ou sarampo, doenças
que podem ter um efeito devastador, a fim de
serem tomadas medidas de suporte adequadas.
Nas situações de trombocitopénia grave,
sobretudo se o número de plaquetas for inferior a
10-15 x 109/l, o risco de hemorragia gastrintestinal
e do sistema nervoso central é elevado. Estas crianças devem evitar actividades físicas que possam
causar traumatismos, assim como fármacos que
interfiram com o número e actividade das plaquetas, como o ácido acetilsalicílico e o ibuprofeno.
Sempre que se julgue necessário, a trombocitopénia deve ser corrigida através da transfusão de
concentrado plaquetário (geralmente, 1 Unidade
/ 10 kg de peso). A transfusão de plaquetas associa-se com frequência a reacções caracterizadas
por febre e tremores, o que se obvia com a irradiação sistemática do material transfundido e com a
utilização de terapêutica prévia com hidrocortisona e clemastina. (ver Parte Hematologia)
A anemia é um problema comum nas crianças
com doença neoplásica sob tratamento. A decisão
de transfundir (geralmente, 10 ml de concentrado
eritrocitário / kg peso) deve ter em conta, não só
os critérios definidos por cada instituição, mas
também os sinais e sintomas que a criança apresente tais como, hemorragia activa, cansaço
extremo ou dispneia. Os mesmos cuidados de
irradiação do produto a transfundir e de terapêutica prévia atrás indicados devem ser tomados.
A alopécia é um dos efeitos secundários da
quimioterapia mais frequentemente observados
(sobretudo com as antraciclinas, a actinomicina, o
etoposido e os agentes alquilantes). Habitualmente, é reversível com o fim da terapêutica citotóxica.
Tem sido descrito o aparecimento de tumores
secundários, principalmente após a administração
de citostáticos alquilantes, epipodofilotoxinas e
antraciclinas, diagnosticando-se alguns anos após
a utilização destes fármacos. São habitualmente
leucemias mieloblásticas agudas ou linfomas não
Hodgkin, as primeiras por vezes precedidas por
síndromas mielodisplásicas. O prognóstico é geralmente muito reservado.
Radioterapia
A radioterapia consiste na administração de radiações ionizantes com o objectivo de destruir as
células tumorais, por lesão directa a nível do
DNA, e por acção indirecta através da ionização
da água intracelular, o que causa a formação de
radicais livres tóxicos.
Pode ser administrada: externamente (a forma
mais habitual) sendo o feixe de radiações emitido
a uma determinada distância do doente; ou inter-
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico
namente (braquiterapia), a partir de uma fonte de
radiações colocada no tumor.
Um terceiro tipo de técnica consiste na
administração sistémica de um radioisótopo que é
captado preferencialmente pelas células tumorais,
como é exemplo a 131I-metaiodobenzilguanidina
(MIBG terapêutica) em certos estádios de neuroblastoma.
Efeitos secundários da radioterapia
As radiações ionizantes lesam todas as células,
tumorais e não tumorais, dentro do território irradiado. Os efeitos secundários dependem do tipo
de radiação, da dose, da duração do tratamento,
da região anatómica do volume corporal exposto
e da tolerância individual. A pele, o couro cabeludo, a medula óssea e o tracto gastrintestinal são
especialmente sensíveis às radiações. No entanto,
os efeitos adversos tendem a desaparecer após o
término da radioterapia, pela capacidade de renovação/cicatrização destes tecidos. Pelo contrário,
órgãos com limitada replicação celular, como o
encéfalo, a medula espinal, o coração e os rins,
podem sofrer lesões que tendem a aparecer mais
tardiamente e a ser irreversíveis. A idade da criança é igualmente um factor importante, já que
quando um órgão é irradiado durante a sua fase
de crescimento, as sequelas são mais graves. São
exemplos as assimetrias de crescimento dos ossos
irradiados antes do encerramento das cartilagens
de conjugação, ou a radioterapia do sistema nervoso central antes de completado o processo de
mielinização (cerca dos 3 anos de idade), podendo
provocar défice cognitivo e disfunção endócrina
central.
As complicações agudas mais frequentes,
dependendo da área irradiada, são: mal-estar
geral; anorexia; náuseas e vómitos; disfagia; diarreia; cólicas abdominais; cistite; e alopécia. A irradiação do sistema nervoso central pode causar
edema cerebral e uma síndroma de sonolência,
fadiga, meningismo e febre que pode ocorrer até 6
a 8 semanas depois do início daquela.
A pele dos territórios irradiados torna-se especialmente sensível, exibindo lesões que podem ir
desde um vulgar eritema difuso a queimaduras
graves com descamação. Os doentes devem evitar
o uso de roupas apertadas e utilizar, com regular-
609
idade, cremes hidratantes, protectores solares e,
eventualmente, anti-inflamatórios tópicos. A irradiação da medula óssea (como acontece na
radioterapia da coluna vertebral) pode provocar
pancitopenia transitória.
A longo prazo, e como já referido anteriormente, a radioterapia pode provocar alterações no
crescimento e maturação de tecidos e órgãos, e
induzir o aparecimento de segundas neoplasias.
Cuidados paliativos
Os cuidados paliativos a prestar aos doentes
oncológicos são uma componente obrigatória do
respectivo tratamento com o objectivo fundamental de aliviar a dor, mal-estar e sofrimento daqueles, assim como da família e dos próprios prestadores dos cuidados.
Assim, assistentes sociais, psicólogos, educadores de infância, professores, técnicos de animação, voluntariado, são hoje imprescindíveis,
fazendo parte integrante do grupo de profissionais existente nos centros oncológicos. É também
importante uma boa articulação entre a unidade
de Oncologia e outros Serviços de Saúde permintindo o apoio local possível, o que contribui
para a racionalização dos meios.
A dor nos doentes com cancro pode resultar da
lesão do órgão afectado, de lesão óssea secundária
a metástases, ou de compromisso neuropático;
pode ser combatida com fármacos opióides e não
opióides de acordo com protocolos que ultrapassam o âmbito do capítulo. Entre os não opióides
são utilizados o paracetamol e AINE’s em geral.
Noutro grupo etário e em contexto clínico
diverso, o capítulo sobre “Dor no RN” permite
informação complementar (Parte Neonatologia).
No que respeita a medidas gerais de promoção
do máximo (possível) conforto, torna-se fundamental a presença dos pais (por vezes com limitações havendo risco infeccioso) e a atitude de
humanização de todos os profissionais da equipa
assistencial.
Devem ser utilizados analgésicos de acordo
com a gravidade da situação clínica, que incluem
desde anestésicos tópicos (com lidocaína, por
exemplo) até perfusões sistémicas de opiáceos.
Neste caso é frequente o uso de sulfato de morfina em perfusão contínua IV, começando por uma
610
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dose de 0,6 mg/kg/dia. Podem administrar-se em
SOS bolus de 10% da dose da morfina assim calculada nas horas seguintes, para obter uma analgesia adequada. O somatório dos bolus após 24 h
é então adicionado à dose inicial nos dias
seguintes. Também se podem usar adesivos de
fentanil, de absorção transdérmica, que têm uma
duração de cerca de três dias, que obviam à necessidade de haver uma veia canalizada. Existem
tabelas que permitem converter as doses de morfina em fentanil. Deve igualmente ser instituída
uma dieta de consistência e conteúdo adequados.
A depressão medular pode resultar da progressão da doença oncológica em si (como no caso
das leucemias) ou ser consequência da quimioterapia. A incidência de infecções aumenta de forma
inversamente proporcional ao número de neutrófilos
129
LEUCEMIAS
Mário Chagas e Ana Teixeira
Definição e aspectos
epidemiológicos
As leucemias podem ser definidas como um
grupo de doenças malignas provocadas por anomalias genéticas de células precursoras hematopoiéticas do que resulta proliferação clonal anárquica, com diferenciação e maturação anormais de
células (clone leucémico). Poderá tratar-se de uma
célula precursora hematopoiética, quer da linhagem linfóide, T ou B (leucemia linfoblástica
aguda, LLA T ou LLA B), quer da linhagem
mielóide (leucemia mieloblástica aguda, LMA).
As células que constituem o clone leucémico
têm uma taxa aumentada de proliferação e uma
taxa diminuída de apoptose espontânea, o que
leva a disfunção e falência da medula óssea.
As leucemias agudas representam cerca de um
terço das neoplasias da criança.
Cerca de três quartos das leucemias das crianças são
linfoblásticas agudas, sendo as restantes mieloblásticas
agudas. As leucemias mielóides crónicas são muito
raras na criança. As leucemias linfocíticas crónicas
não se verificam.
A incidência anual de novos casos de leucemia
aguda nos países ocidentais é cerca de 40 por milhão de crianças com menos de quinze anos. No
nosso País estima-se que haverá cerca de 60 a 70
casos novos por ano. Destes, aproximadamente 50
serão leucemias linfoblásticas agudas.
O Quadro 2 do capítulo 125 mostra a casuística do Serviço de Pediatria do IPOFG de Lisboa referente a 3 anos.
A LLA tem um pico de incidência máximo
entre os 2 e os 4 anos, que corresponde a uma
forma particular de leucemia com características
CAPÍTULO 129 Leucemias
fenotípicas (linhagem B, CALLA +) e de quimiossensibilidade particulares, que lhe conferem um
bom prognóstico. São menos frequentes antes ou
depois deste grupo etário: no adolescente a LLA
de linhagem T é mais habitual; pelo contrário, no
lactente predomina a LLA de linhagem B, muito
indiferenciada e, em regra, de mau prognóstico.
A LMA tem um pico de incidência ao longo dos
dois primeiros anos de vida, altura em que é quase
tão frequente como a LLA, tornando-se depois
menos frequente (15 a 25% das LA), só voltando a
aumentar de frequência na adolescência.
Etiopatogénese
O capítulo 126, dedicado ao Ambiente e Genética
resume os conhecimentos actuais sobre a oncogénese em geral, referindo os aspectos particulares
relacionados com as leucemias. Como foi aí referido, para a generalidade das neoplasias e também
para a generalidade das leucemias não há uma
causa identificada. Em situações muito pontuais,
identificam-se certos agentes microbianos víricos,
químicos, e radiações ionizantes, bem como
alterações genéticas, que se encontrarão envolvidos na génese das leucemias.
A proliferação incontrolada do clone leucémico num espaço fechado como é aquele em que
está contida a medula óssea, a sua incapacidade
de diferenciação e maturação em células hematopoiéticas normais, e a disseminação por via sanguínea com fixação noutros orgãos, traduzem-se
nas manifestações típicas das leucemias agudas
descritas a seguir.
Manifestações clínicas e exames
de imagem nas LA
As manifestações clínicas das LA são fundamentalmente:
• Dor: tipicamente nos ossos longos ou na
região lombar, corresponde à localização da
medula óssea. A criança tem alguma dificuldade
em a localizar com precisão. Ela não está
relacionada com os movimentos e as articulações
não apresentam, em regra, sinais inflamatórios.
Por vezes é incapacitante e pode ser a única
* M3, M4, M5 (ver explicação adiante)
611
manifestação durante algum tempo, levando ao
diagnóstico diferencial com doenças reumáticas.
• Diátese hemorrágica: é a tradução clínica da
trombocitopénia; valores plaquetários inferiores a
10.000/mm3 são responsáveis por hemorragias
nas mucosas oral e/ou nasal (gengivorragia e/ou
epistaxe); valores entre 10.000 e 50.000/mm3, por
petéquias (pequenas hemorragias punctiformes
de origem capilar), equimoses (hemorragias multipetéquiais) e hematomas (hemorragias volumosas) intramusculares ou subcutâneos.
Por vezes outras causas se podem associar a
este mecanismo de hemorragia, tornando a etiologia da diátese mais complexa, como a falência hepática por infiltração leucémica, ou a libertação
pelas células neoplásicas de proteínas com actividade anticoagulante, como sucede nalgumas formas particulares de LMA, em especial a leucemia
promielocítica (LMA M3).(*) Nestes casos o início
da quimioterapia, com destruição maciça dos
promieloblastos e libertação destas proteínas, pode
originar uma diátese hemorrágica devastadora.
• Anemia: traduz uma progressiva diminuição
do número de glóbulos vermelhos e da hemoglobina por falência de produção; manifesta-se por
palidez da pele e mucosas, taquicardia, tonturas,
etc.. De referir que os valores de hemoglobina encontrados são por vezes muito baixos (3 ou 4 g/dl)
mas relativamente bem tolerados, devido à lenta
instalação da anemia.
• Febre, em regra não muito elevada, está relacionada com os mecanismos fisiopatológicos da
leucemia: libertação de pirogénios pelos blastos
ou pelos macrófagos e linfócitos que procuram
controlar o clone leucémico. Desaparece com o início do tratamento. No entanto, pode ser consequência de infecção, facilitada pela redução do
número de leucócitos normofuncionantes. Na
verdade, muitas crianças podem ter como uma
das primeiras manifestações da doença, infecções
recorrentes ou de evolução arrastada, mais habitualmente do foro ORL, que respondem mal à
antibioticoterapia.
• Organomegália que traduz a infiltração de
vários órgãos pelos blastos circulantes: hepatomegália, esplenomegália e adenomegálias (gânglios
linfáticos maiores que 1 cm) localizadas ou generalizadas, e de dimensões variáveis, são encontradas
com frequência no exame objectivo da criança.
612
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Numa radiografia do tórax pode encontrar-se uma
massa mediastínica, o que é muito sugestivo de
LLA de fenotipo T, mais habitual no adolescente
do sexo masculino; tal traduz infiltração do timo
ou dos gânglios linfáticos dos hilos pulmonares.
Nas LMA não é raro haver infiltração cutânea
inicial pelas células neoplásicas (leucemia cutis).
Esta infiltração também se pode encontrar nas
LLA, mas em formas terminais.
• Cloromas: são massas tumorais de tamanho
variável que se encontram com relativa frequência
nas LMA, principalmente de tipo M4 e M5(*).
Localizando-se preferencialmente na região periorbitária ou ao longo da coluna vertebral, podem
então originar manifestações neurológicas. Algumas vezes estes cloromas precedem o diagnóstico
de leucemia, tendo sido descritos em crianças, ainda
antes de haver envolvimento da medula óssea.
Ainda nas LMA M4 ou M5(*) pode haver
hiperplasia gengival por infiltração.
• SNC: encontra-se igualmente atingido muitas
vezes no início da doença pela migração dos blastos que, por via sanguínea, se vão fixar preferencialmente na pia-máter. O número de células neoplásicas é, no entanto, insuficiente para originar
sintomas na generalidade dos casos. É a chamada
doença subclínica do SNC. Mas se houver infiltração maciça, particularmente a partir dos plexos
coroideus, especialmente ricos em vasos sanguíneos, podem surgir sinais de hipertensão intracraniana, tais como cefaleias e vómitos, ou sinais neurológicos focais.
• Exames de imagem, como a ecografia ou a
tomografia axial computadorizada mostram igualmente que outros órgãos como os rins ou os ovários
estão frequentemente infiltrados no início da doença, apresentando-se de dimensões aumentadas.
No sexo masculino, embora raramente, pode
detectar-se no início da doença aumento do volume testicular que é indolor, sem sinais inflamatórios, sendo os testículos de consistência dura.
Diagnóstico das LLA
O hemograma revela alterações sugestivas: anemia normocítica e normocrómica, quase sempre
trombocitopénia e leucopénia ou leucocitose. O
exame do esfregaço do sangue periférico pode
mostrar a existência de blastos circulantes. Por
vezes não há alterações significativas no hemograma.
O diagnóstico é feito a partir de colheita de
medula óssea, em geral numa crista ilíaca. As
células assim obtidas são sujeitas a exame morfológico e citoquímico usando os corantes clássicos, a tipagem imunológica através de painéis de
anticorpos monoclonais, a estudos de genética
convencional para determinação de alterações no
número e estrutura dos cromossomas e, mais
modernamente, a estudos de genética molecular,
mais sensíveis e específicos que os anteriores.
Assim, é possível diagnosticar uma leucemia se
o número de blastos na medula óssea for superior a
25% da celularidade total, e classificá-la recorrendo
aos estudos morfológicos e imunológicos, de acordo
com a linhagem afectada (linfoblástica, de linhagem
B ou T). As alterações genéticas encontradas, quer
em cariótipo convencional, quer em genética molecular, confirmam o diagnóstico, já que muitas são
específicas de um tipo de leucemia e estabelecem
também o prognóstico. Por exemplo, um clone
leucémico hiperdiplóide, em que o número de cromossomas é superior a 50, é particularmente sensível à quimioterapia com citostáticos do grupo dos
antimetabolitos, sendo de bom prognóstico. Por
outro lado, o achado da translocação (t) (9;22), o
chamado cromossoma de Philadelphia, a que corresponde a fusão molecular BCR-ABL, indica só por si,
a necessidade de recorrer a transplantação de
medula óssea (TMO) uma vez obtida a remissão, já
que os resultados obtidos com quimioterapia convencional são maus. Da mesma forma a t (4;11) com
alterações envolvendo o gene MLL, frequentemente
encontrada em lactentes com LLA, implica um
prognóstico ominoso, que não parece sequer melhorar com TMO. Ao invés, a t (12;21) envolvendo
os genes TEL-AML1 parece conferir à LLA, pelo
menos com alguns protocolos de quimioterapia, um
prognóstico mais favorável.
Diagnosticada a leucemia, torna-se imprescindível detectar a existência de blastos no SNC, um
dos factores prognósticos mais importantes, o que se
consegue por exame morfológico, citoquímico e, se
necessário, imunológico, das células encontradas no
liquor após centrifugação. Em geral não há blastos
detectáveis: é a chamada doença subclínica do
SNC. Um número de blastos superior a cinco por
campo implica pior prognóstico e obriga a uma tera-
CAPÍTULO 129 Leucemias
pêutica mais intensiva para obtenção de melhores
resultados. Este achado é mais frequente em adolescentes do sexo masculino com LLA de fenotipo T, ou
em lactentes com LLA hiperleucocitária de linhagem
B muito indiferenciada. O achado de um número de
blastos inferior a cinco por campo tem actualmente
um significado não totalmente compreendido,
dividindo-se os centros oncológicos sobre a necessidade de intensificar ou não o tratamento.
Tratamento das LLA
O tratamento das LLA é uma história de sucesso
que se foi construindo ao longo dos últimos
cinquenta anos. Actualmente é possível curar
cerca de 75% a 85% das crianças com LLA.
Os protocolos de quimioterapia, com algumas
variações subtis, compreendem uma fase inicial
de indução e de remissão que dura cerca de um
mês. No final a criança deve estar assintomática,
com observação normal, sem alterações no sangue
periférico, e com percentagem de blastos inferior a
5% na medula óssea. Seguem-se uma fase de terapêutica da doença subclínica do SNC, uma fase
de intensificação/consolidação, e um período
final de manutenção. Globalmente a terapêutica
dura cerca de dois anos.
Muito esquematicamente, a evolução da terapêutica ao longo dos anos, até à obtenção dos
excelentes resultados actuais foi a seguinte:
– no final de década de 40 do século passado
iniciaram-se as primeiras tentativas terapêuticas
com citostáticos em monoterapia, tendo o pediatra Farber em Boston, obtido pela primeira vez
uma remissão de curta duração usando um
antimetabolito, a aminopterina;
– na década de 50 foram induzidas associações
de fármacos: antimetabolitos, vincristina, prednisolona e asparaginase; as remissões obtidas
eram mais longas, mas a doença recidivava passados alguns meses, sendo metade das recidivas a
nível do SNC;
– iniciou-se então na década de 60 a terapêutica da doença subclínica do SNC com radioterapia
crânio-encefálica e do neuro-eixo numa primeira
fase e, posteriormente, apenas craniana, associada
a quimioterapia intratecal, o que permitiu a
redução do número de recidivas no SNC para
cerca de 5%;
613
– na década de 70 utilizavam-se sistematicamente esquemas terapêuticos com indução, terapêutica da doença subclínica do SNC e manutenção. Surgiu a definição de grupos de risco,
percebendo-se que a doença não tinha sempre a
mesma gravidade; estes grupos baseavam-se principalmente em critérios clínicos, como a idade e a
organomegália, e em critérios laboratoriais como
o número de leucócitos iniciais, e a classificação
imunológica, ainda que rudimentar, dos blastos;
– na década de 80 aperfeiçoaram-se os critérios
que definem estes grupos de risco, principalmente
com os progressos na classificação imunológica do
clone leucémico e, posteriormente, com o advento
da biologia molecular; à definição destes grupos
de risco, corresponde uma adaptação da intensidade da quimioterapia, de forma a obter os melhores resultados com a menor toxicidade; na
década de 90 ensaiaram-se métodos imunológicos
e genéticos para detecção da doença mínima residual em fases determinadas do tratamento, procurando determinar o seu significado prognóstico.
Assim, actualmente, após o diagnóstico é
imprescindível definir o grupo de risco do doente,
o qual condicionará a escolha da terapêutica.
Em linhas gerais, consideram-se de alto risco os
grupos etários inferior a 1 ano ou superior a 10 anos,
a LLA de linhagem T, a LLA de linhagem B com
mais de 50.000 glóbulos brancos/mm3, e a LLA
com invasão do SNC. Os doentes destes grupos são
sujeitos a quimioterapia mais intensiva que permite
no final obter resultados sensivelmente idênticos
aos do grupo de risco médio ou baixo.
Consideram-se de muito alto risco, a LLA com
t (9;22), a LLA que não está em remissão no final
da indução, e a LLA no lactente com t(4;11). Os
dois primeiros são actualmente propostos para
TMO, discutindo-se a melhor atitude terapêutica
para o terceiro.
Consideram-se de risco baixo/médio os outros
casos, ou seja, as LLA de linhagem B com menos
de 50.000 glóbulos brancos/mm3 no sangue periférico, em crianças com mais de um ano e menos
de dez, e sem invasão inicial do SNC.
Diagnóstico das LMA
O diagnóstico das LMA é feito através da colheita
de medula óssea, em regra efectuada por punção
614
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
da crista ilíaca. Ao contrário do que acontece com
as LLA, convencionou-se ser necessário um
número de blastos superior a 20% e não a 25%,
para a sua confirmação. O procedimento para a
caracterização dos blastos é semelhante em ambos
os tipos de LA: estudos morfológicos, imunocitoquímicos, de fenotipagem e genéticos. A classificação das LMA é mais complexa que a das LLA, já
que mais linhagens celulares podem ser afectadas,
sendo a classificação morfológica FAB (FrancoAmericana-Britânica) a mais usada internacionalmente: M1 e M2 (mieloblástica), M3 (promielocítica), M4 (mielomonocítica), M5 (monocítica), M6
(eritroleucemia), M7 (megacariocítica) e M0
(indiferenciada). A designação M corresponde,
pois, a tipos morfológicos.
Embora os estudos de genética não tenham
actualmente o impacte no diagnóstico e no
prognóstico que têm nas LLA, algumas alterações
são já devidamente valorizadas: t(8;21), inv.16 e
t(15;17) implicam um prognóstico mais favorável,
e são específicas de certos tipos de LMA.
Tratamento das LMA
Ao contrário das LLA, com o tratamento das LMA
não são obtidos tão bons resultados. Globalmente,
a probabilidade de cura ronda os 50%. Isto porque
os blastos se revelam pouco quimiossensíveis e o
aparecimento de resistências é frequente. O
número de citostáticos realmente eficazes é
pequeno, reduzindo-se aos grupos das antraciclinas (doxorrubicina, daunoblastina, idarrubicina,
mitoxantrona), epipodofilotoxinas (VP16, VM26),
alguns antimetabolitos (Ara C) e amsacrina. A
terapêutica de manutenção, tão útil na generalidade das LLA, não parece ter tanto interesse nesta
forma de leucemia, preferindo a maioria dos centros proceder antes a quimioterapia intensiva que
se prolonga por seis a oito meses, com associações
de citostáticos, alguns em altas doses, originando
longos períodos de aplasia medular.
Embora ainda em discussão, de acordo com a
experiência dos maiores grupos cooperativos,
podem ser considerados actualmente três grupos
de risco: risco médio, que corresponderá aos tipos
M1 e M2 com corpos de Auer, e M4 com eosinófilos, em que a probabilidade de cura é vizinha dos
65%; risco alto, que corresponderá aos restantes
tipos FAB em que a probabilidade de cura não
ultrapassará os 30%, e em que se propõe TMO em
primeira remissão; risco muito alto, que corresponde às LMA em que a contagem inicial de
leucócitos é superior a 100.000/mm3, de muito
mau prognóstico; nestas, as terapêuticas são
decepcionantes, mesmo com TMO.
Duas formas particulares de LMA são, contudo, excepção neste panorama pessimista.
A primeira diz respeito a crianças com síndroma de Down que adoecem com LMA que é, em
regra, M7 (classificação FAB). Os megacarioblastos destas crianças são particularmente sensíveis
ao Ara C por razões genéticas, tendo estes doentes
uma muito boa probabilidade de cura com
quimioterapia não muito intensiva.
A segunda diz respeito à LMA M3 (promielocítica) que apresenta quase sempre t(15;17), e a
que corresponde uma arranjo genético envolvendo os genes PML e RARA. É hoje possível induzir,
no início do tratamento, a maturação dos
promieloblastos típicos desta forma de LMA, com
a administração de ácido transretinóico, o que
permite reduzir o risco de coagulopatia característico da fase inicial da terapêutica, já que a destruição dos blastos induzida pelos citostáticos liberta
grandes quantidades de proteínas anticoagulantes. O uso de ácido transretinóico ao longo da
indução e, posteriormente, na manutenção, nesta
forma particular de LMA, adquiriu grande
importância permitindo uma probabilidade de
cura vizinha dos 75%.
A LMA M3 é, pois, um bom exemplo dos progressos registados no tratamento das neoplasias
com a utilização de fármacos que actuam, não por
destruição celular como é típico dos citostáticos,
mas por indução da maturação do clone neoplásico. Esta forma de LA é também um bom exemplo
da importância que a monitorização genética tem
no prognóstico dos doentes, já que a fusão PMLRARA deverá deixar de ser detectada a partir de
determinada fase do tratamento; a sua persistência,
ou reaparecimento, prenuncia uma má evolução.
CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin
130
LINFOMAS NÃO HODGKIN
Mário Chagas e Ana Teixeira
Definição e aspectos epidemiológicos
Os linfomas não Hodgkin são neoplasias de linfócitos maduros ou de células precursoras dos linfócitos que, por mutação genética, perderam as
capacidades de maturação e de apoptose, ou seja,
de autodestruição. Ao contrário dos linfomas não
Hodgkin do adulto, são de grande agressividade.
Os linfomas não Hodgkin são muito menos
frequentes na criança do que no adulto, aumentando a incidência de forma progressiva, com a
idade. Podem encontrar-se, no entanto, em crianças muito jovens, por vezes lactentes.
Depois das leucemias agudas e dos tumores do
SNC, os linfomas (de Hodgkin e não Hodgkin)
são as neoplasias mais frequentes, representando
cerca de 15% da globalidade dos tumores da
criança.
615
dem, na classificação da Organização Mundial de
Saúde, uma das classificações antigas mais
usadas, as categorias histológicas de linfoma de
Burkitt, Burkitt like e linfoma B de grandes células.
Aos linfomas T de células maduras, corresponde a categoria histológica de linfoma anaplásico de grandes células na mesma classificação.
Aos linfomas pré T ou pré B, a categoria de linfoma linfoblástico.
Como sucede com outras neoplasias, são
descritas algumas situações predisponentes de linfomas, em geral relacionadas com imunodeficiência congénita ou adquirida. No entanto, para a
maioria dos casos diagnosticados, não se consegue
encontrar uma causa, como sucede para a generalidade das neoplasias da criança.
1. LINFOMAS B: Linfoma de Burkitt,
Linfoma Burkitt like e linfoma B
de grandes células
Definição
O linfoma de Burkitt é, como se referiu uma neoplasia de linfócitos B maduros que se apresenta
morfologicamente como um linfoma de pequenas
células redondas, não clivadas.
É muito provavelmente o tumor pediátrico
com multiplicação celular mais rápida e crescimento mais veloz.
Classificação
Formas clínicas
A caracterização imunológica dos linfócitos
patológicos veio originar uma classificação simples dos linfomas não Hodgkin da criança, o que
tem vindo a permitir abandonar progressivamente as inúmeras classificações clássicas, baseadas na morfologia e nas características citoquímicas, pouco claras e em regra sem grande relação
com a clínica.
De forma resumida, os linfomas não Hodgkin
pediátricos classificam-se hoje de acordo com a
linhagem linfóide afectada em linfomas B de linfócitos maduros, linfomas T igualmente de linfócitos maduros, e linfomas pré T ou pré B que, como
o nome indica, são linfomas de células precursoras não maduras de linhagem T ou B.
Aos linfomas B de células maduras correspon-
A sua forma endémica foi a primeira a ser descrita,
na década de 50 do século passado na África equatorial pelo cirurgião irlandês Burkitt, de quem
recebeu o nome. É o tumor mais frequente naquela região de África; caracteriza-se pela localização
preferencial no maxilar superior, podendo atingir
igualmente o abdómen e o SNC. Mais tarde relacionou-se este tumor com o vírus de Epstein-Barr,
cujo genoma se encontra quase constantemente no
núcleo do linfócito B neoplásico e, também, com a
malária, já que a área endémica desta doença é
também a área endémica do linfoma de Burkitt.
Admite-se que a infecção pelo plasmódio facilite,
pela imunossupressão que lhe é inerente, a proliferação incontrolada dos linfócitos B infectados
pelo vírus de Epstein-Barr, causando a doença.
616
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Na União Europeia e nos EUA esta neoplasia é
muito menos frequente, sendo a forma típica de
apresentação clínica a de um tumor abdominal de
crescimento muito rápido, localizado de início na
fossa ilíaca direita e estendendo-se depois rapidamente a todo o abdómen, o qual se apresenta
muito distendido e doloroso. À palpação encontram-se várias formações tumorais de consistência
dura. A ecografia ou a TAC revelam várias massas
tumorais intrabdominais, por vezes infiltração
nodular do fígado, baço, ou rins, e adenomegalias
mesentéricas e retroperitoneais. Pode haver ascite
e derrame pleural.
Mais raramente a massa linfóide tumoral, que
se localiza de início preferencialmente na região
terminal do íleo, pode originar um íleos mecânico
precocemente, que é então a manifestação clínica
inaugural. Neste caso, é a cirurgia para resolução
do íleos que permite o diagnóstico.
Em estádios avançados o linfoma pode atingir
o SNC, com massas tumorais que se localizam
principalmente no espaço epidural, e também na
medula óssea (comportando-se então como LLA
de linfócitos B maduros). Menos frequentemente,
o linfoma de Burkitt pode surgir com outras localizações: mediastino, gânglios linfáticos cervicais,
anel de Waldeyer.
Diagnóstico
O diagnóstico é feito por estudos morfológicos,
citoquímicos, imunológicos e genéticos. Os dois
primeiros revelam a existência de um tumor de
pequenas células redondas, não clivadas; os métodos imunológicos permitem a detecção de marcadores de maturidade do linfócito B, e a genética
revela as translocações típicas: t(8;14), t(2;8) e
t(8;22). O material para estes estudos pode obterse por citologia do tumor por agulha fina, ou por
estudo das células existentes em suspensão no
líquido ascítico ou no derrame pleural.
Tratamento
O tratamento do linfoma de Burkitt/LLA B constitui um dos maiores sucessos da oncologia moderna. O elevadíssimo número de células neoplásicas
em divisão acompanha-se de uma enorme capacidade de adquirir resistência à quimioterapia, por
mutação. Os protocolos clássicos revelaram-se,
assim, ineficazes e, excluindo as raras formas
tumorais localizadas que era possível ressecar, nos
restantes casos a única hipótese de cura era a relacionada com megaterapia seguida de transplante
de medula ósea (TMO), o que só era viável se houvesse um dador compatível. Actualmente, com os
modernos protocolos de quimioterapia intensiva, a
probabilidade de cura é superior a 80%.
É importante, para além do diagnóstico, caracterizar o estádio da doença, já que os protocolos de quimioterapia actuais possuem vários
ramos de intensidade crescente. Os estádios intermédios tratam-se durante cerca de 4 meses, e as
formas mais graves, em que há invasão da medula óssea ou do SNC, durante cerca de 8 meses. Os
resultados finais acabam por ser semelhantes.
O linfoma B de grandes células e o linfoma
Burkitt like são variantes histológicas na classificação da Organização Mundial de Saúde; mas são
igualmente neoplasias de linfócitos B maduros.
Surgem em crianças de grupo etário superior e
caracterizam-se pelo aparecimento, não de
grandes massas tumorais como no linfoma de
Burkitt, mas de gânglios linfáticos aumentados
(adenomegálias) preferencialmente em territórios
periféricos, ou profundos (intrabdominais e/ou
torácicos). A localização mediastínica é mais frequente na forma de linfoma B de grandes células
do que no linfoma de Burkitt; neste último é tipicamente abdominal, como foi dito. (Figura 1)
Embora haja diferenças morfológicas entre estes
linfomas B e o linfoma de Burkitt, o tratamento é
semelhante e os resultados são igualmente bons.
2. LINFOMAS PRÉ T e PRÉ B: Linfoma
linfoblástico
O linfoma pré T, constituído por linfoblastos precursores de linhagem T, é tipicamente supra
diafragmático, atingindo o mediastino numa
grande percentagem de casos, e também os
gânglios dos territórios cervicais, supra claviculares e axilares. Dor torácica, dispneia e disfagia
por compressão das vias aéreas ou do esófago,
edema e estase venosa do pescoço e parte superior do tórax por compressão da veia cava superior
– síndroma da veia cava – são as manifestações
mais frequentes. (Figura 1)
CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin
FIG. 1
Linfoma B difuso de grandes células; radiografia do tórax:
adenomegalia mediastínica.
Em estádios mais avançados pode haver
invasão do SNC ou da medula óssea. Esta última
põe problemas de diagnóstico diferencial entre
linfoma e leucemia. Por convenção será linfoma se
o número de linfoblastos na medula óssea for inferior a 25%.
O linfoma pré B, constituído por linfoblastos
precursores de linhagem B, atinge igualmente os
territórios linfáticos periféricos, ou profundos,
tóraco-abdominais, não havendo aqui, contudo,
volumosas massas tumorais, como sucede no linfoma de Burkitt. Pode igualmente em fases
avançadas atingir o SNC ou a medula óssea,
pondo iguais problemas de diagnóstico diferencial com leucemia, utilizando-se o critério acima
referido para fazer a destrinça.
A distinção entre leucemia e linfoma acaba, na
prática, por ser pouco importante, já que o tratamento destes linfomas faz-se com protocolos de
quimioterapia semelhantes aos das leucemias,
com resultados sobreponíveis.
3. LINFOMA T: Linfoma anaplásico
de grandes células
Trata-se de uma entidade nova, durante muito
617
tempo confundida com a doença de Hodgkin,
hoje diferenciada pelas características imunológicas e genéticas da célula neoplásica.
Manifesta-se por adenomegálias nos territórios periféricos ou toracoadominais sem, contudo, haver formação de grandes massas
tumorais, ao contrário do que sucede com o linfoma de Burkitt, ou o linfoma linfoblástico (o
primeiro no abdómen, o segundo no tórax). Pode
infiltrar certos órgãos como a pele, o pulmão ou o
osso, mas raramente atinge o SNC ou a medula
óssea. É, sobretudo, a evolução lenta com períodos de regressão espontânea e a repercussão no
estado geral, com febre e emagrecimento, que
diferenciam este linfoma dos outros e o aproximam do linfoma de Hodgkin.
Não há unanimidade na terapêutica ideal,
sendo tratada por uns centros como uma leucemia
aguda, por outros como uma doença de Hodgkin.
Mais recentemente têm sido referidos bons resultados com quimioterapia semelhante à utilizada
para o linfoma de Burkitt.
618
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
131
LINFOMA DE HODGKIN
Mário Chagas e Ana Teixeira
Definição e aspectos epidemiológicos
O linfoma de Hodgkin, tradicionalmente designado como doença de Hodgkin, tem o nome do
médico que primeiro o descreveu no início do
século XIX. Trata-se dum processo maligno do sistema linforrecticular.
Constituindo cerca de 5% dos casos de cancro
em idade pediátrica, surge nos países industrializados com um primeiro pico de incidência por
volta dos vinte anos, e outro a partir dos cinquenta anos. É, portanto, muito menos frequente na
criança que no adulto. Na idade pediátrica surge
principalmente na pré-adolescência ou adolescência, sendo raro antes dos 7 anos de idade ao contrário dos outros linfomas.
As relações entre esta doença e o vírus de
Epstein Barr são conhecidas, já que o genoma do
vírus se encontra com grande frequência na célula
neoplásica.
A doença de Hodgkin é mais frequente em
crianças com imunodeficiência e tem sido descrito
o seu aparecimento em “epidemias” familiares,
porventura relacionadas com infecções víricas.
Manifestações clínicas
Clinicamente caracteriza-se por ter um início
insidioso, com aparecimento de adenomegálias
principalmente cervicais, supraclaviculares ou mediastínicas. Mais raramente a localização é infradiafragmática. Os gânglios são elásticos, não
dolorosos, sem sinais inflamatórios, de crescimento
muito lento; por vezes apresentam regressão
espontânea durante algum tempo, no que a doença
de Hodgkin se distingue da generalidade dos outros linfomas. Em fases mais avançadas as ade-
nomegálias podem confluir, formando conglomerados mais ou menos volumosos. As adenomegálias do mediastino são assintomáticas de início, podendo ser um achado ocasional em radiografia feita por intercorrência. Mais tarde os
gânglios comprimem as estruturas vizinhas,
podendo originar dispneia, disfagia e rouquidão. A
progressão da doença faz-se em regra por via linfática, atingindo sucessivamente os territórios ganglionares vizinhos. Em fase avançada da doença
surgem manifestações sistémicas: febre, emagrecimento, sudação e prurido. As três primeiras têm
significado prognóstico importante e pressupõem
uma terapêutica mais intensiva. (Figura 1)
Diagnóstico
O diagnóstico é feito por biópsia de um gânglio
que revela as células de Reed-Sternberg e suas
variantes, num fundo de células inflamatórias
(linfócitos, plasmócitos, eosinófilos, histiócitos),
com fibrose. As células de Reed-Sternberg, de
origem desconhecida durante muito tempo,
foram identificadas imunologicamente como células linfóides de linhagem B, englobando-se esta
doença actualmente no grupo dos linfomas.
As referidas células têm grande diâmetro (1545 µm) e são multinucleadas ou com núcleo multilobulado. Curiosamente, no linfoma de Hodgkin,
ao contrário de outras neoplasias, as células neoplásicas não são mais de 1% das células que se
encontram nos gânglios atingidos, sendo as restantes células inflamatórias, o que pode tornar difícil o diagnóstico.
De acordo com as células predominantes no
gânglio e o grau de fibrose, classifica-se a doença
de Hodgkin em: com predomínio linfocitário, com
esclerose nodular, com celularidade mista e com
depleção linfocitária (classificação de Rye). A
primeira tem um excelente prognóstico surgindo,
em geral sob a forma localizada em adolescentes.
A esclerose nodular corresponde ao tipo histológico mais habitual entre nós e nos países desenvolvidos. A celularidade mista surge em crianças
mais jovens. A depleção linfocitária surge associada a formas generalizadas da doença, de prognóstico pior.
Após o diagnóstico é indispensável a caracterização do estádio evolutivo para programar a te-
CAPÍTULO 131 Linfoma de Hodgkin
619
tações sistémicas acima referidas (temperatura
superior a 38 graus Celsius durante pelo menos
três dias, emagrecimento superior a 10% do peso
nos últimos seis meses, e sudação nocturna) está
associada a pior prognóstico.
Tratamento
FIG. 1
Linfoma Hodgki: opacidade esferóide “gigante” com ponto
de partida mediastínico ocupando o campo pulmonar direito
(NIHDE).
rapêutica. Usa-se habitualmente a classificação de
Ann Arbor, com quatro estádios, consoante o
número e localização dos territórios ganglionares
afectados e a eventual infiltração de estruturas não
linfóides, como o pulmão, o fígado, ou a medula
óssea (estádio IV). Considerando os extremos
desta classificação cabe referir: que o estádio I corresponde a compromisso de um único gânglio ou
um só órgão ou local extralinfático; e que o estádio
IV corresponde à forma disseminada com vários
órgãos ou tecidos extralinfáticos afectados, com ou
sem compromissos ganglionar; os estádios II e III
correspondem ao compromisso ganglionar (2 ou
mais gânglios), e/ou extraganglionar, respectivamente dum lado ou dos dois lados do diafragma,
o qual serve como referência topográfica. O estádio é determinado usando várias técnicas imagiológicas como a ecografia, a tomografia axial computadorizada ou a ressonância magnética e através
de estudos isotópicos como as cintigrafias com
gálio e tecnésio; e, mais recentemente, com a tomografia com emissão de positrões. São técnicas complementares, que adicionam à informação
anatómica outros dados sobre a actividade da
doença. Estas técnicas sofisticadas permitem identificação do estádio relativamente rigorosa, sem
necessidade de recurso a técnicas invasivas como a
linfangiografia ou a laparotomia exploradora que
pertencem ao passado.
A presença de uma ou várias das manifes-
A terapêutica é programada de acordo com o estádio do doente e a existência ou não, de manifestações associadas a pior prognóstico. Em pediatria
usam-se esquemas combinados de quimioterapia
e radioterapia com excelentes resultados. Estes
esquemas têm vindo a adaptar-se progressivamente, de forma a reduzir a intensidade da
quimioterapia e a dose e os campos da radioterapia, sem diminuir a probabilidade de cura. Hoje é
possível curar doentes usando doses complementares de radioterapia que não ultrapassam os
20 a 25 Gy, por oposição aos 35-40 Gy usados anteriormente. Igualmente os estádios menos avançados (I, II, III A) são sujeitos a quimioterapia menos
intensiva que os restantes estádios (III B e IV).
A probabilidade de cura é grande (80 a 90%),
mesmo para os estádios mais avançados, com as
modalidades modernas de tratamento: duas a seis
faixas de quimioterapia consoante a extensão da
doença, seguidas de radioterapia.
Os efeitos secundários da quimioterapia são os
habituais, sendo os mais temíveis as neoplasias
secundárias, principalmente leucemia aguda
mieloblástica e linfoma não Hodgkin.
A incidência comparativamente superior
destas neoplasias secundárias nos doentes com
linfoma de Hodgkin em relação a doentes com
outras neoplasias, parece ser devida em grande
parte à imunodeficiência celular que estes apresentam e que persiste, mesmo após a cura. A estes
efeitos somam-se os efeitos secundários da radioterapia: atrofia das partes moles, perturbações do
crescimento ósseo, disfunção da tiroideia, tumores
secundários das partes moles, da mama, da
tiroideia, e ósseos. Isto significa que estes doentes
devem ser seguidos cuidadosamente durante
muitos anos para diagnóstico atempado destas
complicações, que serão tanto mais de recear
quanto maior for a esperança de vida do doente.
Nota: 1 unidade de radiação (1 GYY) = 100 rads
620
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
132
NEUROBLASTOMA
Mário Chagas e Ana Teixeira
QUADRO 1 – Neuroblastoma
Manifestações frequentes
Dor óssea
Marcha claudicante
Hepatomegália
Massa abdominal (a partir da supra-renal)
Palidez
Emagrecimento
Manifestações raras
Definição e aspectos epidemiológicos
Trata-se duma neoplasia de origem embrionária
cujo ponto de partida é o sistema nervoso simpático; constitui o tumor sólido mais frequente no
lactente, e o segundo na primeira década da vida,
logo depois dos tumores do SNC. Representa
cerca de 10% dos tumores da criança.
Manifestações clínicas
O espectro clínico é muito variável existindo muitas
interrogações pelo seu comportamento, por vezes
enigmático. Na verdade, alguns neuroblastomas
metastisados e com repercussão grave sobre o estado geral do doente podem regredir espontaneamente ou com quimioterapia de curta duração,
enquanto neuroblastomas em estádios mais localizados e sem aparente repercussão geral podem
progredir inexoravelmente, apesar dos tratamentos
efectuados.
O tumor primitivo localiza-se ao longo das
estruturas nervosas simpáticas; mais frequentemente no abdómen, na glândula supra-renal ou ao
longo da goteira para vertebral; outras vezes no
tórax, no mediastino posterior; mais raramente na
região cervical ou na pelve (Quadro 1).
No abdómen o tumor pode atingir dimensões
apreciáveis antes de originar sinais e sintomas: os
mais frequentes são a dor e a distensão abdominal
que se manifestam numa criança em regra emagrecida e com aspecto de doença grave, já que geralmente a doença se apresenta num estádio avançado.
No tórax as manifestações são respiratórias,
circulatórias ou neurológicas (síndroma de
Claude Bernard Horner, por exemplo), devido à
compressão das estruturas anatómicas pelo
Nódulos cutâneos
Proptose
Equimoses periobitárias
Adenomegálias
Paraplegia
tumor. Nalguns casos, porém, poderá ser um
achado ocasional numa radiografia do tórax feita
por uma intercorrência.
Na região cervical, uma massa tumoral associada ou não a dor, é o sinal mais frequente.
Como resultado da localização na pelve surgem
alterações do trânsito intestinal ou queixas urinárias, resultantes da compressão do recto ou da
bexiga.
Mas, independentemente das localizações
anatómicas anteriormente referidas, tratando-se
de um tumor paravertebral, pode sempre manifestar-se inicialmente por sinais neurológicos de
gravidade variável, quer por compressão das
raízes nervosas, quer por invasão do canal medular. Neste último caso o tratamento torna-se verdadeiramente urgente a fim de evitar sequelas
neurológicas graves.
Para além destas manifestações relacionadas
com o tumor primitivo, outras podem surgir
resultantes da metastisação tumoral: dor óssea,
por invasão óssea; anemia e trombopénia por
invasão da medula óssea; nódulos cutâneos por
invasão da pele; proptose e equimoses palpebrais
por infiltração da órbita; e, em fases muito
avançadas da doença, pode assistir-se a metastisação pulmonar ou no SNC.
Uma forma peculiar de apresentação que
merece referência é a síndroma de Pepper: surge
no lactente e caracteriza-se por um tumor locali-
CAPÍTULO 132 Neuroblastoma
zado na supra-renal havendo, simultaneamente,
infiltração maciça do fígado. A hepatomegália
resultante é então a primeira manifestação da
doença, observando-se um lactente com estado
geral em regra bom, com abdómen volumoso em
que se palpa o fígado aumentado de volume.
Algumas vezes esta hepatomegalia é de tal forma
exuberante que se instala um quadro de dificuldade respiratória, e/ou edema do escroto e membros inferiores, e/ou vómitos frequentes e mánutrição, devidos à compressão exercida pelo fígado aumentado sobre as estruturas vizinhas.
Mais raramente poderão surgir outras manifestações já referidas anteriormente: opsomioclonus ou diarreia crónica.
O Quadro 1 resume as manifestações clínicas
mais frequentes e menos frequentes do neuroblastoma. A Figura 1 montra um lactente com distensão abdominal e hepatomegádia.
621
FIG. 2
Imagem opaca arredondada paravertebral torácica superior
de neuroblastoma desviando o esófago visualizado com
contraste. (NIHDE)
Diagnóstico
O estudo imagiológico do doente por TAC e ou
ressonância magnética nuclear (RMN) revela um
tumor de localização e dimensões variáveis,
muitas vezes com calcificações, as quais são sugestivas do diagnóstico.
As Figuras 2 e 3 exibem imagens de neuroblastoma de localização intratorácia.
Na Figura 2 (radiografia de tórax) em incidência póstero-anterior observa-se opacidade para
vertebral de contorno arredondado ao nível de D1D4 desviando o esófago contrastado.
A Figura 3 mostra imagem de neuroblastoma
de localização pré-vertebral superior intratorácia
FIG. 1
Lactente com distensão abdominal por hepatomegália
relacionada com neuroblastoma (NIHDE).
FIG. 3
Imagem de TAC torácica de perfil evidenciando tumor
esférico pré-vertebral (neuroblastoma) ocupando
praticamente o terço superior da cavidade torácica. (NIHDE)
(D2-D7) de contorno arredondado e grandes
dimensões (TAC de perfil).
O estudo isotópico com injecção de metaiodobenzilguanidina (MIBG), metabolito que é fixado
electivamente pelas células do neuroblastoma,
permite determinar com precisão a localização do
tumor primitivo e suas metástases, tendo também
importância no seguimento dos doentes.
Tratando-se de um tumor produtor de catecolaminas, estas podem ser doseadas na urina, encontrando-se em geral aumentadas no início da
doença, normalizando com o tratamento. Os ácidos vanilmandélico (VMA) e homovanílico (HVA)
são assim importantes, não só no diagnóstico, mas
também no estudo evolutivo.
622
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
[Nota: valores de referência: VMA (urina):
83±26µg/kg/dia (ou 2-12µg/mg de creatinina);
HVA (urina): 3-16µg/mg de creatinina; catecolaminas totais (urina): 0,4-2µg/kg/dia]
O mesmo se aplica à enolase sérica e LDH, marcadores que, não sendo específicos, se encontram
elevados nas formas mais avançadas da doença.
O diagnóstico é confirmado por exame citológico ou histológico do tumor, obtidos por citologia
por agulha fina ou por biópsia, colhendo-se igualmente material para estudos genéticos, já que
actualmente se identificaram marcadores genéticos com valor prognóstico: deleção do cromossoma 1 e amplificação do gene N MYC, entre outros.
Tratamento
O neuroblastoma é um tumor quimio e radiossensível. O tratamento é programado de acordo com
os critérios que definem o prognóstico do doente
no início. Entre estes destacam-se a idade (inferior
ou superior a um ano), o estádio do tumor (localizado e ressecável, localizado e irressecável, disseminado), os marcadores genéticos (N MYC) e o
tipo histológico (favorável, desfavorável).
Assim, alguns doentes serão apenas sujeitos a
cirurgia, outros serão submetidos a quimioterapia
e cirurgia, outros ainda após quimioterapia e
cirurgia serão sujeitos a megaterapia com auto
transplantação com células estaminais, complementada posteriormente com radioterapia sobre o
leito tumoral.
Alguns protocolos prevêem ainda terapia
sobre a doença residual eventualmente persistente
após os tratamentos anteriormente referidos, a
qual se ensaia com o uso de anticorpos monoclonais, ou com indutores da maturação do neuroblasto, ou ainda com terapia com radioisótopos.
Prognóstico
A probabilidade de cura depende dos vários factores prognósticos acima descritos, sendo muito
elevada nos estádios localizados sem marcadores
genéticos de mau prognóstico e, ao invés, reduzida nos estádios avançados ou com marcadores
genéticos desfavoráveis, apesar das terapêuticas
intensivas a que estes últimos doentes são actualmente sujeitos.
133
TUMOR DE WILMS
Mário Chagas e Ana Teixeira
Definição e aspectos epidemiológicos
O tumor de Wilms, também designado nefroblastoma, é o tumor renal e o tumor abdominal maligno mais frequente na criança, representando
cerca de 5% dos tumores pediátricos (Quadro 2 do
capítulo 125). É um tumor de origem embrionária,
histologicamente formado por três elementos
(estroma, blastema e elementos epiteliais, em proporções variáveis), e com um grau de maior ou
menor malignidade. Poder ser detectado no RN.
Os restantes tumores malignos do rim – sarcoma de células claras, tumor rabdóide e carcinomas
– são muito raros em idade pediátrica.
Atinge o pico de incidência pelos dois a três
anos de idade, embora se possa encontrar em
qualquer outro grupo etário pediátrico.
Etiopatogénese
Em cerca de 1-2% dos casos existem antecedentes familiares desta patologia (hereditariedade autossómica dominante). Em cerca de
20% dos casos foram demonstradas mutações
no gene WT1 localizado em 11p 13.
Cabe referir, a propósito, entre outras, 3
situações associadas a tumor de Wilms, por sua
vez acompanhadas de anomalias cromossómicas e génicas que se relacionam o mesmo
tumor: 1) Síndroma de Beckwith – Wiedemann
(macroglóssia, hemi-hipertrofia, onfalocele, visceromegália) em que existe risco (de 3-5%) de
tumor de Wilms; uma das anomalias consiste
em deleção 11p 15.5 (locus WT2); 2) Síndroma
de Denys – Drash (insuficiência renal precoce
associada a esclerose mesangial, pseudo-hermafroditismo masculino) associada a mutações
CAPÍTULO 133 Tumor de Wilms
no gene WT1; 3) Síndroma WAGR (atrasomental, aniridia, anomalias génito-urinárias)
associada a deleção 11p 13 (loci WT1 w PAX6).
Manifestações clínicas
Muitas vezes o tumor é assintomático, sendo a
mãe ao cuidar do filho, ou o médico em exame
de rotina, que palpa o tumor localizado num
dos flancos, de consistência dura e de limites
precisos. Com localização inicial lombar,
desenvolve-se rapidamente no sentido pósteroanterior, simulando por vezes hepatomegália
ou esplenomegália. Em cerca de 5% dos casos
desenvolve-se bilateralmente. O tumor, que
está contido pela cápsula do rim, é friável, pelo
que a palpação deve ser cuidadosa.
Outras vezes o tumor é sintomático sendo a
dor e a hematúria macroscópica as manifestações mais frequentes.
A hipertensão arterial associa-se frequentemente ao tumor de Wilms pelas alterações vasculares renais por ele provocadas; contudo,
raramente é manifestação responsável pelo
diagnóstico. O tumor de Wilms pode aparecer
associado a alterações morfológicas como criptorquídia, hipospádia, aniridia ou hemihipertrofia.
Algumas crianças com síndromas raras têm
uma maior incidência de tumor de Wilms, pelo
que devem ser vigiadas cuidadosa e longamente. Encontram-se nesta situação as crianças
com síndromas WAGR, Beckwith-Wiedemann,
Denys-Drahs e Sotos. (ver Etiopatogénese)
Diagnóstico
Perante uma criança com dois ou três anos de
idade com um tumor abdominal, o diagnóstico
diferencial é feito, principalmente, entre tumor
de Wilms e neuroblastoma. Os estudos de
imagem são geralmente conclusivos, porque o
tumor de Wilms é em regra um tumor intra-renal
(mais lateral), e o neuroblastoma abdominal tem
como ponto de partida a supra-renal ou os
gânglios simpáticos para vertebrais (mais central
com tendência para expansão centrífuga).
No tumor de Wilms os estudos de imagem
mais informativos são a ecografia com ecodoppler
623
e a tomografia axial computadorizada (TAC),
abdominais, e a radiografia do tórax. A ecografia
confirma a existência de um tumor renal, informa
sobre a sua estrutura sólida ou quística, detecta a
existência de adenomegálias regionais ou de
metástases hepáticas, e verifica a permeabilidade
dos grandes vasos determinando a eventual presença de trombo na veia renal e na veia cava inferior.
A TAC com injecção de produto de contraste
confirma a existência do tumor e permite uma
mais precisa definição da sua localização e dos
seus limites, bem como da capacidade funcional
do rim atingido. Permite igualmente examinar o
rim oposto, excluindo a existência de tumor bilateral.
A radiografia do tórax detecta a existência de
metástases nos pulmões que, com o fígado, constituem os locais mais frequentes de metastisação.
Alguns centros oncológicos privilegiam a TAC
torácica em detrimento da radiografia convencional para detecção de metastisação pulmonar, já
que o seu poder de resolução é maior, embora o
risco de falsos positivos seja significativo. (Figura
5 – Capítulo 8).
Tratamento
O tumor de Wilms é quimio e radiossensível. A terapêutica é, como na generalidade dos tumores
sólidos, constituída por cirurgia, quimioterapia e
radioterapia. Na maioria dos centros oncológicos
dos EUA a cirurgia é a primeira atitude terapêutica.
Na UE em geral, a cirurgia só é inicial em
lactentes com menos de 6 meses em que a probabilidade de se tratar de tumor renal benigno é
grande, ou quando por qualquer razão há dúvida
sobre o diagnóstico. Se assim não for, a terapêutica
inicia-se com quimioterapia, sendo a cirurgia protelada (quimioterapia neoadjuvante). Esta estratégia, entre outras vantagens, permite reduzir o volume tumoral tornando a cirurgia mais fácil.
A radioterapia é hoje reservada para os estádios mais avançados em que, após a cirurgia se
verificou tumor residual, ou em que houve ruptura da cápsula do rim, ou ainda para os tumores
cujo tipo histológico é desfavorável. Da mesma
forma o grau de intensidade da quimioterapia
depende da histologia do tumor.
624
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Prognóstico
A probabilidade de cura de uma criança com
tumor de Wilms é actualmente de 90%, sendo preocupação dos protocolos actuais de tratamento a
redução da toxicidade, sem prejudicar estes excelentes resultados.
134
TUMORES DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL
Mário Chagas e Duarte Salgado
Aspectos epidemiológicos
Os tumores cerebrais primários no seu conjunto
são a segunda neoplasia mais frequente em idade
pediátrica, logo a seguir às leucemias. A sua
incidência ronda 30 novos casos por 1 000 000 de
crianças com menos de 15 anos.
No seu todo, podemos encontrar neoplasias de
baixo grau de malignidade, e outras de uma
agressividade tal que se colocam entre as mais
malignas em oncologia.
O sistema nervoso central no referido período
apresenta particularidades entre as quais se destaca o seu crescimento e maturação, decorrendo
daqui uma diferença fundamental entre as patologias e terapêuticas nesta idade e na idade adulta.
A radioterapia, por exemplo, terapêutica habitual
nos adultos, pode não ter indicação formal nesta
população, devido aos efeitos secundários que
determina a nível cognitivo.
A percepção de que os doentes terão por esta
razão prognóstico mais reservado deve ser combatida. Na verdade, se alguns tumores não são
actualmente curáveis, a maioria das crianças pode
ser curada ou viver com a situação compensada
com um mínimo de limitações.
Manifestações clínicas
A ideia de que o sintoma mais frequente numa
criança com tumor cerebral é a cefaleia está correcta. No entanto, dada a frequência desta queixa
na população em geral, torna-se muito importante
reconhecer as suas características específicas que
são as da hipertensão intracraniana: cefaleias em
CAPÍTULO 134 Tumores do sistema nervoso central
regra nocturnas ou matinais, por vezes associadas
a irritabilidade e prostração, melhorando ao longo
do dia e repetindo-se diariamente. Ao progredirem, são quase sempre acompanhadas de vómitos
matinais, tipicamente pré-prandiais. É com este
quadro que as crianças chegam ao médico, quase
sempre com um período de sintomas inferior a
seis semanas. O exame de imagem revela, em mais
de metade dos casos, sinais de tumor localizado
na fossa posterior, condicionando hidrocefalia
aguda.
A identificação de sinais de localização do
tumor, tais como hemiparésia ou afasia, não é
habitual nesta população, mas é importante saber
que um dos tumores mais frequentes, o glioma da
via óptica, manifesta-se somente por perda da
acuidade visual unilateral; infelizmente a idade
não permite que a criança colabore no diagnóstico, já que a maior incidência do referido tumor se
verifca abaixo dos 3 anos.
A crise epiléptica como forma de apresentação
clínica não é frequente. São geralmente crises parciais, por vezes com uma semiologia atípica como
sejam as crises uncinadas (sensação de cheiro
desagradável) dos tumores da face interna do lobo
temporal.
O Quadro 1 resume os sinais típicos de
hipertensão intracraniana (HIC).
Tipos histológicos
Meduloblastoma
É o tumor mais frequente na criança, com localização na fossa posterior, no vermis do cerebelo. O
seu nome tem origem na célula pluripotencial seu
ponto de partida. Histologicamente faz parte dos
tumores de células pequenas redondas e azuis,
semelhando os tumores da família dos sarcomas
de Ewing/PNET extracranianos.
A abordagem terapêutica actual destes
tumores, de elevada malignidade, passa por uma
remoção cirúrgica, a mais alargada possível,
seguida de radioterapia sobre o leito tumoral e
todo o SNC (cérebro e medula espinal); e, finalmente, de quimioterapia. Com esta abordagem é
possível uma sobrevivência aos cinco anos de
cerca de 65%.
As sequelas derivadas do tumor e da terapêutica não são, no entanto, negligenciáveis, desta-
625
QUADRO 1 – Sinais de HIC
• Vómitos matinais
• Edema da papila
• Cefaleias nocturnas /matinais
• Estrabismo (paralisia do VI par)
• Nistagmo
• Ataxia
cando-se a toxicidade cognitiva e endócrina, tanto
mais acentuada quanto mais novos forem os
doentes.
Astrocitoma pilocítico
Trata-se de um tumor com múltiplas localizações
no SNC. Se histologicamente é um tumor de baixo
grau de malignidade, na clínica a sua malignidade
advém do facto de se encontrar em certas localizações que o tornam irressecável.
As duas localizações mais frequentes ilustram
este aspecto: se, por um lado, a localização cerebelosa permite uma remoção total sem sequelas
major e a cura, já a localização nas vias ópticas
torna impossível uma cirurgia eficaz sob pena de
défices inaceitáveis. É, no entanto, de salientar que
nas melhores séries de doentes a sobrevivência
média aos cinco anos ultrapassa 70%.
Nos últimos anos têm-se desenvolvido protocolos de quimioterapia para estes tumores de crescimento lento, com os quais se obtêm respostas
em regra parciais, mas que permitem “ganhar
tempo” até à introdução de terapêuticas mais definitivas como a radioterapia, que tem toxicidade
muito acentuada nesta população, quase sempre
com idade inferior a cinco anos.
Importa assinalar a associação muito frequente
deste tipo histológico, na localização das vias ópticas, com a neurofibromatose de tipo I. Nestas circunstâncias, e ao contrário de outros doentes sem
esta facomatose, admite-se iniciar o tratamento
sem biópsia do tumor.
Ependimoma
Este tumor, cuja célula de base é a célula do revestimento do sistema ventricular, tem a sua localização mais frequente na fossa posterior (IV ventrículo). Por isso, confunde-se imagiologicamente
com o meduloblastoma. Existem diversos graus
626
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de malignidade, sendo mais frequentes os
tumores menos anaplásicos, o que não invalida o
facto de poderem metastisar, sobretudo pelas vias
do líquor, tal como o meduloblastoma.
A abordagem terapêutica actual assenta, em
primeiro lugar, numa tentativa de remoção total,
seguida de radioterapia sobre o leito tumoral, ou
sobre todo o SNC se houver disseminação leptomeníngea.
É difícil avaliar a sobrevivência média porque
nas séries mais antigas a definição de remoção
total era complicada pela ausência de métodos de
imagem precisos, como é o caso da ressonância
magnética na actualidade. A importância duma
remoção total como principal factor prognóstico
leva muitos neurocirurgiões a tentarem uma
segunda abordagem cirúrgica quando a ressonância magnética revela tumor residual depois de
uma primeira intervenção.
Glioma maligno
Este é, sem dúvida, o grupo de tumores com pior
prognóstico.
Com origem nas células da glia – astrócito e
oligodendrócito – existem vários tipos histológicos; trata-se de um grupo com clara tendência
para a indiferenciação pelo que, com a evolução
no tempo, todos atingem o tipo histológico mais
maligno de glioblastoma multiforme. Na data do
diagnóstico pode encontrar-se um astrocitoma,
um astrocitoma anaplásico, um glioblastoma multiforme, um oligodendroglioma, um oligodendroglioma anaplásico, ou tumores mistos com ou
sem anaplasia, na grande maioria de localização
supratentorial.
A abordagem terapêutica com remoção completa, radioterapia focal e quimioterapia, resulta
para os tumores mais anaplásicos em sobrevivências de 1 a 3 anos. Existem dúvidas quanto à terapêutica dos tumores de menor grau de malignidade; o risco de recidiva é grande dado que o
carácter infiltrativo dificulta a remoção total.
Uma breve referência aos gliomas do tronco
cerebral de evolução rápida conduzindo a défices
neurológicos graves evidentes já no momento do
diagnóstico. Trata-se, em regra, de glioblastomas
que, pela sua localização, não se biopsiam. Até ao
momento, apesar das múltiplas terapêuticas
experimentais, não se conseguiu alterar um dos
prognósticos mais sombrios, em que a sobrevivência é, em regra, inferior a um ano.
Tumores de células germinativas
Têm como base células da linhagem germinativa
que se podem encontrar no SNC em duas localizações típicas: hipotálamo/quiasma óptico e glândula pineal.
Dividem-se em dois grupos: germinomas
puros e tumores secretores – coriocarcinoma, carcinoma embrionário, tumor do saco endodérmico
e teratoma. A designação secretora deve-se ao
facto de estes tumores produzirem marcadores
(alfa-fetoproteína e beta HCG) que se encontram
no soro e liquor e que permitem o diagnóstico sem
necessidade de biópsia. O germinoma é menos
agressivo, curável, sendo também o mais frequente (2/3 dos casos).
A terapêutica convencional do germinoma é a
radioterapia do tumor e de todo o SNC, dada a
facilidade de metastisação pelo liquor. Quanto aos
tumores secretores tem-se tentado combinações
de quimioterapia seguida de radioterapia com
resultados menos animadores.
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