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TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Tratado de Clínica Pediátrica Iº Volume JOÃO M. VIDEIRA AMARAL Editor-Coordenador Copyright © de 2008 João M Videira Amaral Tratado de Clínica Pediatra 1ª Edição não comercial, patrocinada e distribuída pela ABBOTT, 2008 Rua…. Alfragide… Telefone…… Facsimile……. …………….. abbott@abbott.com www.abbott.com ADVERTÊNCIA 1. Todos os direitos estão reservados, não sendo permitida a reprodução total ou parcial desta edição por meio electrónico,mecânico, fococópia ou outros sem prévia autorização escrita dos detentores dos direitos de autor. 2. Sendo a Medicina uma área do conhecimento em constante e rápida evolução, nomeadamente no que respeita a fármacos, e embora tenha sido feito todo o esforço por parte de editor e autores quanto à correcção e actualização das respectivas doses, cabe salientar que a responsabilidade final da prescrição cabe ao médico que a institui. 3. Sendo consensual que na prática clínica existem variantes de actuação, nem os autores, nem o editor poderão ser responsabilizados por erros ou pelas consequências que advenham do uso de informação aqui contida. Os produtos mencionados no livro devem ser utilizados conforme a informação veiculada pelos fabricantes. Impressão e acabamento: IDG………………….??? Depósito Legal nº ……………….????? Capa: ………………… Registo IGAC: NE-3076/08 ISBN 978-989-20-1277-3 Autores (por ordenação de capítulos) João M. Videira Amaral Professor Catedrático Jubilado de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM/UNL). Médico-pediatra. Chefe de Serviço e Director ex-officio da Clínica Universitária de Pediatria do Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa. Isabel Peres Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. João Carlos Gomes-Pedro Professor Catedrático de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FM/UL). Médico-pediatra. Chefe de Serviço e Director do Departamento da Criança e da Família, e da Clínica Universitária de Pediatria do Hospital de Santa Maria, Lisboa. Margarida Guimarães Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Maria do Carmo Vale Mestre em Bioética pela FM/UL. Assistente Convidada de Clínica Pediátrica da FCM/UNL. Médica-pediatra. Assistente Graduada de Pediatria. Coordenadora da Unidade de Desenvolvimento (UD) do HDE, Lisboa. Mário Coelho Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do HDE. Assistente Convidado da FCM/UNL (1995-1999). Director Clínico do HDE (2000-2006). Francisco Abecasis Médico radiologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Radiologia (SR) do HDE. Isabel Griff Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Virgínia Loureiro Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Vitória Matos Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Maria Helena Portela Médica fisiatra. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Medicina Física e Reabilitação (SMFR) do HDE (1998-2006). Maria do Céu Soares Machado Alta Comissária da Saúde. Professora Associada de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Médica-pediatra neonatologista. Chefe de Serviço e Directora do Departamento da Criança do Hospital Fernando Fonseca, Amadora (1996-2006). Presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente. Eugénia Soares Médica radiologista. Chefe de Serviço de Radiologia no SR do HDE. Luís Nunes Professor Agregado de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra geneticista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Genética (SG) do HDE. Leonor Bastos Gomes Médica neurorradiologista.Chefe de Serviço de Neurorradiologia no SR do HDE. Teresa Kay Médica geneticista. Assistente Graduada no SG do HDE. Assistente livre de Pediatria da FCM/UNL. Rosa Maria Barros Médica patologista clínica. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Patologia Clínica (SPC) do HDE. Raquel Carvalhas Bióloga- geneticista. Assistente de Saúde no SG do HDE. Antonieta Viveiros Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Antonieta Bento Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Isabel Daniel Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Maria de Jesus Feijoó Médica pediatra-geneticista. Directora do Serviço de Genética Médica do Hospital Egas Moniz ex-officio. Coordenadora do CERAC. Maria de Lurdes Lopes Médica pediatra-endocrinologista. Assistente Graduada de Endocrinologia Pediátrica no HDE. Doctorat pela Universidade de Genève, Suíça. Assistente Convidada de Pediatria da FCM/UNL (1999-2006). VI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Rosa Pina Médica pediatra-endocrinologista.Assistente Graduada de Endocrinologia Pediátrica no HDE. Assistente Convidada de Pediatria da FCM/UNL (1995- 2006). Ana Alegria Médica interna de Pediatria do HDE. João Estrada Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria da UCIP e UD do Desenvolvimento no HDE. Mónica Pinto Médica pediatra. Assistente de Pediatria no HDE. Isabel Portugal Médica fisiatra. Assistente Graduada no SMFR de Medicina Física e Reabilitação do HDE. Maria José Gonçalves Médica pedopsiquiatra. Chefe de Serviço e Directora do Departamento de Pedopsiquiatria do HDE (2001-2007). Margarida Marques Médica-pedopsiquiatra. Assistente Graduada de Pedopsiquiatria no HDE. Deolinda Barata Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria e Coordenadora da UCIP do HDE. Membro do Núcleo de Apoio à Família no HDE e do Instituto de Apoio à Criança. Ana Leça Médica pediatra .Assistente Graduada de Pediatria no HDE. Membro do Núcleo de Apoio à Criança e Família no HDE. Consultora da DGS. Mário Cordeiro Professor Auxiliar de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra. António Marques Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP do HDE. Margarida Santos Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP do HDE. Luís Varandas Médico pediatra. Professor Auxiliar de Pediatria da FCM/UNL e do Instituto de Higiene e Medicina Tropical/UNL. Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do HDE. José Ramos Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP do HDE. Isabel Fernandes Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP do HDE. Hercília Guimarães Professora Agregada de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Médica pediatra neonatologista. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Neonatologia do Hospital de São João (HSJ), Porto. Maria do Carmo Silva Pinto Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria e Coordenadora da Unidade de Adolescentes no HDE. Ignacio Villa Elizaga Professor catedrático jubilado de Pediatria e Neonatologia da Faculdade de Medicina da Universidade Autónoma de Madrid,Espanha. Médico-pediatra neonatologista. Director ex-officio do Departamento de Pediatria e Centro de Investigação do Hospital Universitário Gregorio Marañon de Madrid, Espanha. Carla Rego Médica pediatra. Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto(FMUP). Assistente Graduada de Pediatria da Unidade de Gestão da Mulher e da Criança/Departamento Universitário no Hospital de São João, Porto. António Guerra Médico pediatra. Professor Agregado de Pediatria da FMUP. Professorregente da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da UP. Chefe de Serviço de Pediatria da Unidade de Gestão da Mulher e da Criança/Departamento Universitário no Hospital de São João, Porto. Aires Cleofas da Silva Médico pediatra gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria/ Gastrenterologia ex-officio da Clínica Universitária de Pediatria e Departamento da Criança e da Família do Hospital de Santa Maria, Lisboa. J. Rosado Pinto Professor Auxiliar Convidado da FCM/UNL ex-officio. Médico-pediatra imunoalergologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Imunoalergologia (SIA) do HDE .Membro do Board da UEMS. Ângela Gaspar Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do HDE. Mário Morais de Almeida Médico imunoalergologista. Assistente Graduado de Imunoalergologia no SIA do HDE. Graça Pires Médica imunoalergologista. Assistente Eventual de Imunoalergologia no SIA do HDE. Cristina Santa Marta Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do HDE. Autores Paula Leiria Pinto Mestre em Imunoalergologia pela FCM/UNL. Médica- imunoalergologista. Assistente de Pediatria da FCM/UNL. Assistente Graduada de Imunoalergologia e Directora do SIA do HDE. Sara Prates Médica imunoalergologista. Assistente eventual de Imunoalergologia no SIA do HDE. Conceição Neves Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 1 do HDE. António Bessa de Almeida Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do HDE. Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL. Júlia Gallhardo Médica interna de Pediatria do HDE. Ema Leal Médica interna de Pediatria do HDE. Carlos Ruah Doutor em Medicina-ORL pela FCM/UNL. Médico oto-rino-laringologista. Vital Calado Médico oto-rino-laringologista. Chefe de Serviço e Director do serviço de ORL do HDE ex-officio. Maria Caçador Médica oto-rino-laringologista. Serviço de ORL do Hospital Cuf, Lisboa. Luísa Monteiro Mestre em Medicina/ORL pela FM/UL. Médica- oto-rino-laringologista. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de ORL do HDE. Julião Magalhães Cirurgião pediatra. Chefe de Serviço de Cirurgia Pediátrica no HDE. Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL ex-officio. Laura Oliveira Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 2 do HDE. Fátima Abreu Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria na UP do HDE. VII Ana Margarida Reis Médica interna de Imunoalergologia no SIA do HDE. José Cavaco Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na UP do HDE. Mafalda Paiva Médica interna de Pediatria do HDE. Ana Maia Pita Médica interna de Pediatria do HDE. António Teixeira Médico-fisiatra. Assistente Graduado no SMFR do HDE. António Pinto Soares Médico dermatologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Dermatologia (SD) do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos. Teresa Fiadeiro Médica dermatologista. Assistente Graduada no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos ex-officio. Maria João Paiva Lopes Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos. Ana Macedo Ferreira Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos. Ana Fidalgo Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos. Luísa Caldas Lopes Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos. Filipa Santos Médica pediatra-gastrenterologista . Assistente de Pediatria na UGE do HDE. Gonçalo Cordeiro Ferreira Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pediatra gastrenterologista. Director do Serviço 1 e Director Clínico do HDE. José Guimarães Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço Universitário de Pediatria do Hospital de São Francisco Xavier (HSFX), Lisboa. José Cabral Médico pediatra- gastrenterologista. Assistente Graduado de Pediatria. Coordenador da UGE do HDE. António Amador Médico pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 2 do HDE. Isabel Afonso Médica pediatra. Assistente de Pediatria na UGE do HDE. Joaquim Sequeira Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na Unidade de Pneumologia (UP) do HDE. Rui Alves Cirurgião pediatra. Assistente Graduado de Cirurgia Pediátrica no HDE. Assistente Convidado de Pediatria da FCM/UNL. VIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Sara Silva Médica interna de Pediatria do HDE. Raul Silva Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do HDE. Assistente Convidado de Pediatria da FCM-UNL. Inês Pó Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente Graduada de Pediatria na UGE do HDE. Maria de Lurdes Torre Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Departamento da Criança do HFF, Amadora/Sintra. Isabel Gonçalves Médica pediatra. Chefe de Serviço de Pediatria no Hospital Pediátrico de, Coimbra. Helena Flores Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço 1 do HDE. Mário Chagas Médico pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPOLFG). Ana Teixeira Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço de Pediatria do IPOLFG,Lisboa. Duarte Salgado Médico neurologista. Assistente Graduado de Neurologia no IPOLFG, Lisboa. Índice Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIX Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXI Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIII Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXV Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIX 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais - aspectos gerais da habilitação e reabilitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 Maria Helena Portela 11 Continuidade de cuidados à criança e adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Maria do Céu Soares Machado I VOLUME PARTE III Genética e Dismorfologia 69 12 Importância da Genética na Clínica Pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 PARTE I Introdução à Clínica Pediátrica 1 1 A Criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 13 Doenças multifactoriais . . . . . . . . . . . . . . . 71 João M. Videira Amaral 2 3 Os superiores interesses da criança . . . . . 17 5 Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas 14 Hereditariedade mendeliana . . . . . . . . . . . 73 Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas João Gomes-Pedro 15 Anomalias cromossómicas . . . . . . . . . . . . . 76 Ética, humanização e cuidados paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 16 Diagnóstico pré-natal . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral 4 Luís Nunes Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Formação em Pediatria na pós-graduação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 17 A consulta de Genética . . . . . . . . . . . . . . . . 85 João M. Videira Amaral 18 Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 Investigação e clínica pediátrica . . . . . . . . 35 Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Maria de Jesus Feijoó João M. Videira Amaral PARTE IV PARTE II 6 Clínica Pediátrica Hospitalar e Extra-Hospitalar 39 Clínica pediátrica hospitalar . . . . . . . . . . . 40 Mário Coelho 7 Aspectos metodológicos da abordagem de casos clínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 9 Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina 20 Baixa estatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina Francisco Abecasis, Eugénia Soares e Leonor Bastos Gomes Desenvolvimento e Comportamento 119 21 Desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Aspectos do Serviço de Patologia Clínica num hospital pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . 59 22 Desenvolvimento e intervenção . . . . . . . 123 João M. Videira Amaral 8 Crescimento Normal e Patológico 103 19 Crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 A Imagiologia em Clínica Pediátrica . . . . 49 Rosa Maria Barros,Antonieta Viveiros,Antonieta Bento, Isabel Daniel, Isabel Griff, Margarida Guimarães.Virgínia Loureiro, Vitória Matos PARTE V Maria do Carmo Vale Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale 23 Comportamento e temperamento . . . . . . 128 Maria do Carmo Vale X TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 24 Deficiência mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132 Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 25 Perturbações da linguagem e comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 26 Habilitação da criança com dificuldades na comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 PARTE VIII Clínica da Adolescência 215 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 Maria do Carmo Silva Pinto 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226 Maria do Carmo Silva Pinto Isabel Portugal 27 Aprendizagem e insucesso escolar . . . . . 140 Maria do Carmo Vale 28 Perturbações do sono . . . . . . . . . . . . . . . . 144 Maria do Carmo Vale e João M.Videira Amaral 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 Mário Coelho 30 Perturbações do espectro do autismo . . 154 Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 PARTE IX Aspectos da Relação entre Medicina Pediátrica e Medicina do Adulto 233 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto . . . . . . . . . . . . . . . . 234 João M. Videira Amaral 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 João M. Videira Amaral 47 Doença aterosclerótica . . . . . . . . . . . . . . . 250 João M. Videira Amaral Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale PARTE VI Pedopsiquiatria 163 32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica . . . 164 Maria José Gonçalves 33 Perturbações da ansiedade . . . . . . . . . . . . 167 Maria José Gonçalves e Margarida Marques 34 Depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Maria José Gonçalves e Margarida Marques PARTE X Fluidos e Electrólitos 255 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral 49 Desidratação aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral 50 Reidratação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral 35 Psicoses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Maria José Gonçalves e Margarida Marques 36 Perturbações do comportamento . . . . . . 175 Maria José Gonçalves e Margarida Marques PARTE XI Nutrição 273 51 Nutrientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274 Ignacio Villa Elizaga 52 Alimentação com leite materno . . . . . . . 288 PARTE VII Ambiente, Risco e Morbilidade 179 37 A criança maltratada . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 Deolinda Barata e Ana Leça 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção . . . . . 188 Mário Cordeiro 39 Intoxicações agudas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 António Marques e Margarida Santos 40 Viagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 Luís Varandas 41 Acidentes de submersão . . . . . . . . . . . . . . 207 José Ramos e Isabel Fernandes 42 Sindroma da morte súbita do lactente . . 210 Hercília Guimarães João M. Videira Amaral 53 Leites e fórmulas infantis . . . . . . . . . . . . . 294 Carla Rego e António Guerra 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos . 302 Aires Cleofas da Silva 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida . . . . . . . . . . . . . . 308 António Guerra 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 317 Ignacio Villa Elizaga 57 Obesidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321 Carla Rego Índice 58 Síndromas de má-nutrição energético-proteica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328 Ignacio Villa Elizaga 59 Carências vitamínicas . . . . . . . . . . . . . . . . 334 João M. Videira Amaral 60 Regimes vegetarianos e erros alimentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340 João M. Videira Amaral 61 Alterações do comportamento alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342 João M. Videira Amaral PARTE XII Imunoalergologia 347 62 Doenças alérgicas na criança – epidemiologia e prevenção . . . . . . . . . . . 348 J. Rosado Pinto 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352 Ângela Gaspar 64 Asma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359 Mário Morais de Almeida 65 Rinite alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373 Graça Pires 66 Alergia de expressão cutânea . . . . . . . . . 376 Cristina Santa Marta 67 Alergia medicamentosa . . . . . . . . . . . . . . 383 Paula Leiria Pinto 68 Alergia alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388 Sara Prates 69 Imunodeficiências primárias . . . . . . . . . . 392 Conceição Neves 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 396 António Bessa Almeida, Júlia Galhardo e Ema Leal XI 77 Otomastoidite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . 419 Maria Caçador e Carlos Ruah 78 Patologia inflamatória aguda laríngea . . 421 Carlos Ruah 79 Avaliação audiológica . . . . . . . . . . . . . . . . 424 Luísa Monteiro PARTE XIV Pneumologia 435 80 Anomalias da parede do tórax . . . . . . . . . 436 João M. Videira Amaral 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 438 Julião Magalhães e João M. Videira Amaral 82 Pneumonia adquirida na comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442 Laura Oliveira e Fátima Abreu 83 Derrame pleural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 450 Fátima Abreu 84 Pneumonia recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . 454 José Guimarães 85 Bronquiolite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459 António Amador e Joaquim Sequeira 86 Bronquiolite obliterante . . . . . . . . . . . . . . 466 José Guimarães 87 Bronquite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 469 João M. Videira Amaral 88 Bronquiectasias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 470 Ana Margarida Reis e José Cavaco 89 Síndromas de aspiração . . . . . . . . . . . . . . 474 João M. Videira Amaral 90 Hemossiderose pulmonar . . . . . . . . . . . . 476 Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida 91 Fibrose quística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 479 Ana Maia Pita e José Cavaco 92 Reabilitação respiratória . . . . . . . . . . . . . . 485 PARTE XIII Oto-rino-laringologia 403 71 Faringite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 404 Carlos Ruah 72 Amigdalite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 405 Carlos Ruah 73 Adenoidite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409 Carlos Ruah 74 Rino- sinusite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410 Vital Calado 75 Otite média aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413 Vital Calado 76 Otite sero- mucosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416 Vital Calado António Teixeira PARTE XV Dermatologia 491 93 Introdução à Dermatologia pediátrica . . . 492 António Pinto Soares 94 Dermatite seborreica . . . . . . . . . . . . . . . . . 493 Teresa Fiadeiro 95 Dermatite atópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495 Maria João Paiva Lopes 96 Acne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 499 Ana Macedo Ferreira 97 Dermatite das fraldas . . . . . . . . . . . . . . . . 503 Teresa Fiadeiro XII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 98 Psoríase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 505 Ana Fidalgo 99 Pitiríase rosada (doença de Gibert) . . . . 508 Ana Fidalgo 100 Pediculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509 Luísa Caldas Lopes 101 Escabiose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 510 Luísa Caldas Lopes 121 Hipertensão portal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 581 Maria de Lurdes Torre 122 Insuficiência hepática aguda . . . . . . . . . . 584 Maria de Lurdes Torre 123 Transplantação hepática . . . . . . . . . . . . . . 587 Isabel Gonçalves 124 Pancreatite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 591 Helena Flores 102 Molusco contagioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . 512 Maria João Paiva Lopes PARTE XVI Gastrenterologia e Hepatologia 515 103 Vómitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 516 Mafalda Paiva e Filipa Santos 104 Refluxo gastroesofágico . . . . . . . . . . . . . . 519 Gonçalo Cordeiro Ferreira 105 Dor abdominal recorrente . . . . . . . . . . . . 524 José Cabral 106 Doença péptica e Helicobacter pylori . . . 529 José Cabral 107 Gastrenterite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 532 Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral 108 Diarreia crónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537 Gonçalo Cordeiro Ferreira 109 Doença celíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 540 Gonçalo Cordeiro Ferreira 110 Giardíase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 542 Gonçalo Cordeiro Ferreira 111 Diarreia crónica inespecífica . . . . . . . . . . 543 Gonçalo Cordeiro Ferreira 112 Doença inflamatória do intestino . . . . . . 544 PARTE XVII Oncologia 595 125 Introdução à Oncologia Pediátrica . . . . . 596 Mário Chagas 126 Tumores, ambiente e genética . . . . . . . . . 598 Mário Chagas 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 601 Mário Chagas 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 605 Mário Chagas e Ana Teixeira 129 Leucemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 610 Mário Chagas e Ana Teixeira 130 Linfomas não Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . 615 Mário Chagas e Ana Teixeira 131 Linfomas de Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . . 618 Mário Chagas e Ana Teixeira 132 Neuroblastoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 620 Mário Chagas e Ana Teixeira 133 Tumor de Wilms . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 622 Mário Chagas e Ana Teixeira 134 Tumores do sistema nervoso central . . . . 624 Mário Chagas e Duarte Salgado Isabel Afonso 113 Obstipação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 547 Gonçalo Cordeiro Ferreira II VOLUME 114 Doença de Hirschprung . . . . . . . . . . . . . . 553 Rui Alves 115 Síndroma do intestino curto . . . . . . . . . . 556 Sara Silva e Raul Silva 116 Hepatite vírica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 563 Gonçalo Cordeiro Ferreira 117 Hepatite autoimune . . . . . . . . . . . . . . . . . . 570 Gonçalo Cordeiro Ferreira 118 Colestase do recém-nascido e lactente . . . 573 Inês Pó 119 Doença de Wilson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577 Isabel Afonso 120 Cirrose hepática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 579 Maria de Lurdes Torre PARTE XVIII Hematologia 135 Hematopoiese Ema Leal e A. Bessa Almeida 136 Síndromas hematológicas em idade pediátrica João M. Videira Amaral 137 Anemias. Generalidades João M. Videira Amaral 138 Anemia ferropénica Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida 139 Anemia megaloblástica João M. Videira Amaral Índice 140 Anemias hemolíticas. Generalidades Lígia Braga 141 Esferocitose hereditária Lígia Braga 142 Anemias hemolíticas por defeitos enzimáticos Lígia Braga, Liza Aguiar, Faisana Amod 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina Lígia Braga, João M. Videira Amaral 144 Hemoglobinúria paroxística nocturna João M. Videira Amaral 145 Anemias hemolíticas de causa extrínseca João M. Videira Amaral 146 Policitémia João M. Videira Amaral 147 Neutropénia Ema Leal e A. Bessa Almeida 148 Trombocitopénia Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida 149 Anomalias funcionais das plaquetas João M. Videira Amaral 150 Aplasia medular João M. Videira Amaral 151 Hemofilias 162 Hipertensão arterial e doença renal Margarida Abranches 163 Alterações tubulares renais Isabel Castro 164 Infecção urinária Arlete Neto 165 Anomalias congénitas do rim João M. Videira Amaral 166 Refluxo vésico-ureteral Rui Alves 167 Uropatia obstrutiva Rui Alves 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias malformativas Margarida Abranches e Judite Batista 169 Insuficiência renal aguda Isabel Castro 170 Insuficiência renal crónica Isabel Castro 171 Alterações da bexiga Rui Alves 172 Alterações do pénis e uretra Rui Alves 173 Alterações do conteúdo escrotal Rui Alves e João M. Videira Amaral Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida 152 Doença de von Willebrand João M. Videira Amaral 153 Hipercoagulabilidade e doença trombótica João M. Videira Amaral 154 Coagulação intravascular disseminada Deolinda Barata e Sofia Sarafana 155 Terapêutica transfusional Deonilde Espírito Santo PARTE XX Endocrinologia 174 Doenças da supra-renal .Generalidades Maria de Lurdes Lopes 175 Hiperplasia congénita da supra-renal Maria de Lurdes Lopes 176 Insuficiência supra-renal Maria de Lurdes Lopes 177 Síndroma de Cushing Maria de Lurdes Lopes PARTE XIX Nefro - Urologia 156 Introdução à Nefro – Urologia Judite Batista 157 Glomerulonefrite aguda Ana Paula Serrão e Gisela Neto 158 Glomerulonefrite crónica Ana Paula Serrão e Gisela Neto 159 Síndroma nefrótica idiopática Judite Batista 160 Síndroma hemolítica urémica Ana Paula Serrão 161 Trombose da veia renal João M. Videira Amaral 178 Tumores do córtex supra-renal Maria de Lurdes Lopes 179 Feocromocitoma João M. Videira Amaral 180 Doenças da tiroideia Catarina Limbert 181 Puberdade normal e patológica Guilhermina Romão 182 Diabetes mellitus Rosa Pina 183 Cetoacidose diabética João Estrada e Maria do Carmo Vale 184 Hipoglicémia João M. Videira Amaral XIII XIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA PARTE XXI Neurologia 185 Cefaleias José Pedro Vieira 186 Ataxia José Pedro Vieira 187 Epilepsia Ana Isabel Dias 188 Acidentes vasculares cerebrais Clara Abadesso e José Pedro Vieira 189 Paralisia cerebral Eulália Calado 190 Defeitos do tubo neural Eulália Calado 191 Habilitação para a marcha e ajudas técnicas em crianças com spina bifida Clara Loff 192 Discranias João M. Videira Amaral 193 Alterações da migração neuronal e outras anomalias do SNC João M. Videira Amaral 194 Síndromas neurocutâneas Elisabete Gonçalves, Rita Silva e Eulália Calado 195 Doenças neuromusculares 206 Coarctação da aorta Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku 207 Estenose aórtica António Fiarresga e Sashicanta Kaku 208 Síndroma de coração esquerdo hipoplásico Sofia Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku 209 Estenose pulmonar Anabela Paixão, Marisa Peres e Sashicanta Kaku 210 Tetralogia de Fallot Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku 211 Transposição completa das grandes artérias Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca Anabela Paixão 213 Cardite reumática António J. Macedo e Sashicanta Kaku 214 Endocardite infecciosa Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku 215 Miocardite José Diogo Martins e Sashicanta Kaku 216 Pericardite José Diogo Martins e Sashicanta Kaku 217 Cardiomiopatias José Diogo Martins e Sashicanta Kaku Fernando Tapadinhas e José Pedro Vieira 196 Doenças neurodegenerativas Carla Moço e Ana Moreira 197 Reabilitação neurológica Aldina Alves PARTE XXIII Reumatologia 218 Introdução à clínica das doenças reumáticas juvenis J. A. Melo Gomes 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) PARTE XXII Cardiologia 198 Introdução à Cardiologia Pediátrica Sashicanta Kaku 199 Cardiologia fetal Graça Nogueira e António J. Macedo 200 Não doença e pseudodoença cardíaca em idade pediátrica Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku 201 Cardiopatias congénitas. Grupos fisiopatológicos Anabela Paixão e Sashicanta Kaku 202 Persistência do canal arterial Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku 203 Comunicação interauricular Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku 204 Comunicação interventricular Anabela Paixão, Ana Cristina Ferreira e Sashicanta Kaku 205 Defeitos do septo aurículo-ventricular Mónica Rebelo e António J. Macedo J. A. Melo Gomes 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das AIJ Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes 221 Síndromas auto-inflamatórias juvenis Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil Maria Manuela Costa 223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis Margarida P. Ramos 224 Esclerodermias juvenis Rui Figueiredo e J. A. Melo Gomes 225 Vasculites sistémicas Margarida P. Ramos 226 Febre reumática Maria Teresa Terreri 227 Dores de crescimento J. A. Melo Gomes Índice PARTE XXIV Osteocondrodisplasias 228 Displasias esqueléticas e doenças afins. Conceitos fundamentais Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral 229 Osteogénese imperfeita Ignacio Villa Elizaga 230 Dentinogénese imperfeita Ignacio Villa Elizaga 231 Síndromas de Ehlers-Danlos Ignacio Villa Elizaga 232 Síndroma de Alport Ignacio Villa Elizaga 233 Epidermólise bolhosa Ignacio Villa Elizaga 234 Síndroma de Marfan e aracnodactilia congénita Ignacio Villa Elizaga 235 Cutis laxa, pseudoxantoma elástico e síndroma de Williams Ignacio Villa Elizaga PARTE XXVI Oftalmologia 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica João Goyri O’Neill 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica João Goyri O’Neill 249 Anomalias de refracção (ametropia) João Goyri O’Neill 250 Estrabismo Ana Xavier 251 Ambliopia João Goyri O’Neill e J.L. Dória 252 Obstrução do aparelho lacrimal João Goyri O’Neill e J.L. Dória 253 Glaucoma Cristina Brito 254 Síndroma do “olho vermelho” José Nepomuceno 255 Doenças da retina Cristina Brito 256 Catarata Cristina Brito e J. Mesquita PARTE XXV Ortopedia 236 Introdução à Ortopedia Pediátrica 257 Traumatismos óculo-orbitários J. Mesquita J. de Salis Amaral 237 Osteomielite J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 238 Artrite séptica J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 239 Tumores ósseos J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 240 Desvios axiais dos membros J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 241 Patologia regional específica do membro superior J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 242 Patologia regional específica do membro inferior J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 243 Patologia regional específica do tronco PARTE XXVII Estomatologia 258 Crescimento e desenvolvimento maxilo-facial Rosário Malheiro 259 Oclusão e aspectos da relação molar e da relação incisiva Rosário Malheiro 260 Traumatologia alvéolo-dentária Rosário Malheiro 261 Cárie dentária Rosário Malheiro 262 Principais síndromas alvéolo-dentárias Rosário Malheiro 263 Infecções odontogénicas Rosário Malheiro J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 244 Patologia traumática J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 245 Reabilitação de anomalias congénitas da mão Maria José Costa 246 Reabilitação de anomalias dos membros inferiores M. Madalena de Quinhones Levy XV III VOLUME PARTE XXVIII Urgências e emergências. Tópicos seleccionados 264 Serviços de Urgência e Emergência. Aspectos organizativos João M. Videira Amaral XVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 265 Reanimação cárdio-respiratória Margarida Santos e António Marques 266 Estado de mal epiléptico Rosalina Valente e Gabriela Pereira 267 Coma Rosalina Valente e Gabriela Pereira 268 Choque Lurdes Ventura e Deolinda Barata 269 Sépsis Lurdes Ventura e Deolinda barata 270 Hipertermia maligna Isabel Fernandes e Sérgio Lamy 271 Traumatismos cranioencefálicos Sérgio Lamy e Isabel Fernandes 272 Queimaduras Rui Alves e Maria José Costa 273 Mordeduras e picadas João M. Videira Amaral 287 Brucelose Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 288 Meningite bacteriana pós-neonatal Ana Leça 289 Infecções da pele e dos tecidos moles Leonor Carvalho e Ana Leça 290 Celulite da órbita Ana Leça e Leonor Carvalho 291 Riquetsioses (excluindo febre escaronodular e febre Q) Ana Leça e Mónica Baptista 292 Febre escaronodular Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 293 Febre Q Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 294 Leptospirose Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 295 Doença de Lyme Ana Serrão Neto e Filomena Cândido PARTE XXIX Infecciologia 274 Sistematização das doenças infecciosas e parasitárias João M. Videira Amaral 275 Doenças infecciosas exantemáticas – uma visão global Luís Varandas e Andreia Teixeira 276 Imunizações Ana Leça e João M. Videira Amaral 277 Princípios gerais da terapêutica antimicrobiana A. Bessa Almeida e Ana Rute Ferreira 278 Febre sem foco de infecção detectável Ana Leça e Cristina Henriques 279 Infecções pneumocócicas Maria João Brito 280 Escarlatina Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 296 Febre recorrente Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 297 Infecções por Parvovírus B19 Conceição Neves 298 Infecções por Vírus varicela – zóster Ana Leça 299 Infecções por Enterovírus Ana Leça 300 Mononucleose infecciosa Ana Leça e Raquel Ferreira 301 Meningoencefalites víricas João Baldaia, Dora Gomes e Rute Neves 302 Parasitoses. Abordagem global Luís Varandas 303 Calazar João M. Videira Amaral 304 Malária Luís Varandas 281 Tuberculose Ana Leça 282 Infecçções por Haemophilus influenzae Maria João Brito 283 Doença meningocócica João M. Videira Amaral 284 Infecções por Salmonella João M. Videira Amaral 285 Doença da arranhadela do gato Ana Serrão Neto e Filomena Cândido 286 Tosse convulsa Ana Leça e João Farela Neves PARTE XXX Cirurgia 305 Sistematização dos tópicos seleccionados Julião Magalhães e João M. Videira Amaral 306 Anomalias crânio-faciais João M. Videira Amaral 307 Fístulas e quistos da cabeça e pescoço Julião Magalhães 308 Hérnia diafragmática congénita Julião Magalhães, Rui Alves e João M Videira Amaral Índice 309 Hérnia diafragmática congénita como modelo em investigação: implicações clínicas Jorge Correia-Pinto, Maria João Baptista e Cristina Nogueira-Silva 310 Eventração diafragmática João M Videira Amaral 311 Atrésia do esófago Rui Alves e João M Videira Amaral 312 Onfalocele Rui Alves 313 Gastrosquise e outros defeitos da parede abdominal Rui Alves 314 Hérnias Julião Magalhães 315 Síndromas de oclusão do tubo digestivo Julião Magalhães 316 Estenose hipertrófica do piloro Julião Magalhães 317 Anomalias ano-rectais Rui Alves XVII *Recém-nascido de alto risco 329 Reanimação do recém-nascido no bloco de partos Filomena Pinto, Isabel Santos, Teresa Costa e A. Marques Valido 330 Alterações do crescimento fetal Luís Pereira-da-Silva 331 Recém-nascidos de gestação múltipla Daniel Virella e Ana Dias Alves 332 Embriofetopatia diabética M.R.G Carrapato, S. Tavares, C. Prior e T. Caldeira 333 Problemas clínicos do recém-nascido pré-termo Graça Henriques, Fernando Chaves e João M. Videira Amaral 334 Recém-nascido de mãe toxicodependente João M. Videira Amaral 335 Dor no recém-nascido João M. Videira Amaral 336 Cuidados paliativos ao recém-nascido João M. Videira Amaral 337 Transporte do recém-nascido João M. Videira Amaral 318 Hemorragias do tubo digestivo João M. Videira Amaral 319 Divertículo de Meckel Julião Magalhães 320 Apendicite aguda Julião Magalhães 321 Enterocolite necrosante Rui Alves e João M. Videira Amaral 322 Aspectos da Ginecologia Pediátrica Rui Alves 323 Idades recomendadas para intervenção cirúrgica Julião Magalhães PARTE XXXI Perinatologia e Neonatologia *Feto e recém-nascido 324 Aspectos da Medicina Perinatal Ricardo Jorge Fonseca 325 Introdução à Neonatologia João M. Videira Amaral 326 Adaptação fetal à vida extra-uterina João M. Videira Amaral 327 Exame clínico do recém-nascido João M. Videira Amaral 328 Cuidados ao recém-nascido aparentemente saudável Cláudia Santos, Helena Carreiro e Maria do Céu Machado *Problemas hidroelectrolíticos e metabólicos 338 Balanço hidroelectrolítico no recém-nascido João M. Videira Amaral 339 Alterações do metabolismo do cálcio, fósforo e magnésio Maria João Laje, Cristina Henriques e João M. Videira Amaral 340 Alterações do metabolismo da glucose Maria João Laje, Cristina Henriques e João M. Videira Amaral 341 Insuficiência renal aguda no recém-nascido João M. Videira Amaral *Alimentação e nutrição do recém-nascido de alto risco 342 Alimentação entérica do recém-nascido pré-termo João M. Videira Amaral 343 Nutrição parentérica do recém-nascido Luís Pereira-da-Silva 344 Doença metabólica óssea do recém-nascido pré-termo João M. Videira Amaral XVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA *Problemas respiratórios do recém-nascido 345 Problemas respiratórios. Generalidades Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João M.Videira Amaral 346 Doença das membranas hialinas Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido 364 Convulsões Leonor Duarte e João M. Videira Amaral 365 Encefalopatia hipóxico-isquémica Leonor Duarte 366 Encefalopatia hipóxico-isquémica Leonor Duarte 347 Taquipneia transitória Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido 348 Síndroma de aspiração meconial Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido 349 Síndromas de ar ectópico Marta Nogueira, J. Nona e A. Marques Valido 350 Hemorragia pulmonar João M.Videira Amaral 351 Hipertensão pulmonar persistente João M.Videira Amaral 352 Assistência ventilatória no recém-nascido J. Nona e A. Marques Valido 353 Displasia broncopulmonar e outras formas de doença pulmonar crónica Marta Nogueira e A. Marques Valido PARTE XXXII Doenças hereditárias do metabolismo 367 Importância das doenças hereditárias do metabolismo.Rastreios João M.Videira Amaral 368 Defeitos do metabolismo dos aminoácidos (fenilcetonúria, tirosinémia tipo I , homocistinúria e defeitos do ciclo da ureia) João M.Videira Amaral 369 Defeitos do metabolismo dos hidratos de carbono (incluindo metabolismo intermediário associado a acidose láctica, glicogenoses, defeitos do metabolismo da galactose, frutose, pentose e glicoproteínas) João M.Videira Amaral *Problemas hematológicos e afins 354 Anemia neonatal Ana Nunes 355 Policitémia e hiperviscosidade Ana Nunes e Maria dos Anjos Bispo 356 Trombocitopénia António Vieira Macedo 357 Trombocitopénia António Vieira Macedo 358 Icterícia neonatal João M.Videira Amaral 370 Mucopolissacaridoses João M.Videira Amaral 371 Defeitos do metabolismo dos lípidos (incluindo beta-oxidação dos ácidos gordos mitocondriais,ácidos gordos de cadeia muito longa, transporte das lipoproteínas, lipidoses e mucolipidoses) João M.Videira Amaral 372 Defeitos do metabolismo da purina e pirimidina João M.Videira Amaral 373 Progéria *Infecção do feto e recém-nascido 359 Aspectos gerais da infecção no recém-nascido João M.Videira Amaral 374 Porfírias João M.Videira Amaral Maria Teresa Neto 360 Infecções congénitas Maria Teresa Neto 361 Infecção bacteriana de origem materna Maria Teresa Neto 362 Infecção com origem hospitalar e na comunidade Maria Teresa Neto *Problemas neurológicos e traumáticos 363 Traumatismo de parto Lincoln Justo Silva Índice remissivo, quadros e tabelas no fim do 3º volume Prefácio Há muito que se sentia em Portugal a falta de um Tratado de Clínica Pediátrica. Há anos, quando escrevi o prefácio do livro de JM Palminha & E Carrilho sobre Semiologia Pediátrica, sublinhei esta falta tendo aconselhado a publicação, a seguir, dum Tratado de Clínica Pediátrica. Infelizmente, a doença e a morte do Prof. JM Palminha impediram esta concretização. Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa. Após cerca de três anos de preparação, vai ser publicado o primeiro de três volumes dum Tratado de Clínica Pediátrica Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca todos os pontos da Pediatria, alguns vistos à luz dos últimos estudos. Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil. A maioria dos autores integra colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o Prof. João Amaral formou uma esplêndida equipa. Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos de Pediatria, mas também aos médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos países de língua portuguesa, especialmente Angola, Moçambique, e até Brasil. Neste último país irmão, embora haja muitos livros de Pediatria, nenhum que eu conheça abrange tanta matéria e tão bem explicada como este. Afirmei atrás que coordenar uma obra desta envergadura constitui um trabalho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do João Amaral, a sua persistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa indicada. Além deste imenso trabalho, o Prof. João Amaral ainda intervém como autor de numerosos capítulos do livro. Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso agradecer ao João Amaral o seu esforço. Mas quem está verdadeiramente de parabéns são as Crianças do nosso País. Muito e muito obrigado. Nuno Cordeiro Ferreira Apresentação “O conhecimento é como uma esfera – quanto maior, mais contacto com o desconhecido” Pascal O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa /UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Familiar realizando estágios no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o entendimento da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de informação científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como mais-valia a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes doutras instituições com quem mais convive ou a quem esteja mais ligado. É, pois, de admitir que tal informação (supostamente mais personalizada) podendo servir de suporte à prática clínica durante os estágios no âmbito da pré- e pós graduação, e no desempenho profissional, suscite o confronto com outra informação congénere internacional ou nacional, incluindo a veiculada pela net , alargando horizontes. Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido, resultou o título. O mesmo está dividido em 3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes, integrando na totalidade 374 Capítulos ocupando cerca de 2600 páginas. Houve a intenção de apresentar os tópicos fundamentais da clínica pediátrica hospitalar e extrahospitalar, de complexidade e frequência diversos, de forma simples e de modo prático(clássico), estruturando-os, por razões didácticas, em alíneas tais como, definições, importância do problema, aspectos epidemiológicos, etiopatogénese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognóstico. Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a atitudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada capítulo ou parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião. A obra é o resultado dum esforço colectivo e dedicado de uma plêiade de cerca de 180 Autores convidados, Colegas e Amigos de reconhecida competência a quem foi distribuída a grande série de tópicos de acordo com as respectivas áreas de interesse e de experiência. Como particularidade, há a referir que nalguns dos capítulos os Autores (com a anuência e o aplauso do editor-coordenador), chamaram a si para colaborar, em subalternidade, internos de Pediatria, como forma pró-activa de premiar méritos demonstrados e de estimular a investigação e a publicação. De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer repetições, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor, esforçou-se por uniformizar o estilo linguístico e actualizar textos. Desejo expressar aqui o testemunho do meu enorme reconhecimento a todos os Colegas e Amigos que aceitaram colaborar com grande empenho, neste projecto. Bem hajam pelo inestimável e imprescindível contributo. Ao longo de mais de três anos, sacrificando momentos de lazer e de convívio familiar, saliento o prazer do convívio em múltiplos encontros, imprescindíveis para a prossecução da tarefa. Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores, espero vivamente que o que foi escrito em espírito de missão por todos os Autores seja de utilidade, em prol da saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em geral, aos destinatários: alunos e estagiários universitários, internos de Pediatria e de Medicina Familiar, Pediatras, Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da Saúde. João Manuel Videira Amaral DEDICATÓRIA E MEMÓRIA Dedico este livro a todas as Crianças de Portugal que são o nosso futuro. Considero incluídos os meus nove Netos: Lourenço – 8 anos; Constança – 7 anos; Gonçalo – 7 anos; Francisco – 5 anos; Mafalda – 4 anos; Carlota – 3 anos; Sebastião – 2 anos; João Manuel – 20 meses e Madalena – 1 mês. E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei por inerência horas de convívio. Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico e que me incutiu, desde o 1º ano da faculdade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo tendo como base o estudo perseverante para a actualização permanente. Agradecimentos Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o Prefácio desta obra. Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo contributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início: Prof. Doutor António Guerra Dr. António Pinto Soares Dr. António Valido Dr. Carlos Vasconcelos Prof. Doutor Carlos Ruah Drª. Deolinda Barata Drª. Eulália Calado Drª. Felisberta Barrocas Dr. Francisco Abecasis Prof. Dr. Gonçalo Cordeiro Ferreira Drª. Guilhermina Romão Drª. Helena Portela Profª Doutora Hercília Guimarães Prof. Doutor Ignacio Villa Elizaga Prof. Doutor João Gomes-Pedro Prof. Doutor João Goyri O´Neill Dr. José António Melo Gomes Prof. Doutor José de Salis Amaral Prof. Dr. José Guimarães Dr. José Mesquita Prof. Dr. José Rosado Pinto Drª Judite Batista Dr. Julião Magalhães Profª Doutora Lígia Braga Prof. Doutor Luís Nunes Prof. Doutor Manuel Abecasis Prof. Doutor MRG Carrapato Drª. Maria dos Anjos Bispo Profª Doutora Maria do Céu Machado Drª Maria do Carmo Silva Pinto Mestre Drª Maria do Carmo Vale Drª Maria José Gonçalves Dr. Mário Chagas Drª Micaela Serelha Dr. Vital Calado Drª. Rosa Maria Barros Drª. Rosário Malheiro Prof. Doutor Sashicanta Kaku Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo o trabalho minucioso e dedicado de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE. Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem autorizado a reprodução de tabelas e quadros. Ao Prof. Doutor Renato Procianoy, meu Amigo e interlocutor junto da Sociedade Brasileira de Pediatria, pela permissão em reproduzir alguns quadros e figuras. À Direcção da ABBOTT Laboratórios e particularmente ao Sr. Pedro Moreira, como seu representante, pelo apoio em espírito de grande cordialidade desde a primeira hora, traduzindo-se no patrocínio que viabilizou a concretização do livro, cuja primeira edição é de distribuição exclusiva pela referida empresa. À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e Pedro Alves. Glossário Na eventualidade de o texto consultado integrar expressões e termos aprofundados em capítulos ulteriores, é divulgado este glossário para facilitar a compreensão do leitor. Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada) do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 2022 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida. Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior; sinónmo de zumbido. Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal incorporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados em algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas. Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo. Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para a nutrição. Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de angulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do joelho. Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação. Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determinada articulação. Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade. Bezoar > Concreção calculosa da via digestiva. Reserva-se este nome também para corpo estranho no estômago. Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irredutível de um ou mais dedos. Cavo(ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta(muito afastada do plano horizontal),geralmente com ante-pé plantar em flexão. Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária e bilateral. Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos oleosa e menos oclusiva. Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais emoliente e mais oclusiva. Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos. Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos. Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos. Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos. Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição entram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a perda transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com acção oclusiva(impedem que a água se evapore). Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em que pode predominar um ou outro(óleo em água → O/A; ou água em óleo → A/O). Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o pé Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nascido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a amostra de população no momento do seu nascimento. Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias completos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º dia). Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina: remoção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos pequenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o objectivo de estreitamento da entrada vaginal. Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta Lactente > Sinónimo de bébé Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa. Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade, mas boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto entre duas superfícies articulares Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou dentro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as causas acidentais ou incidentais. Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária (nado-morto). Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias. Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia zero) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vida. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28 dias completos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias. Mutilação genital feminina > Manobras cruentas de ressecção de órgãos genitais externos por razões sociais (clitoridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lábios, e infibulação). Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do XXVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um nascimento ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo. Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos alimentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e o meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos sob todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no organismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com a alimentação, produção e distribuição dos géneros alimentares, etc.. Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer transformação digestiva. Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corrigir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de membro, ou a deficiência de uma função. Osteotomia > Secção cirúrgica do osso. Pasta > Forma de emulsão(pomada) onde se suspendeu pó para absorver exsudado. Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de aplicar e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes iguais de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao fim da adolescência Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudável e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva, nacional ou internacional, a Pediatria torna-se social. Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termina após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: precoce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672 horas completas). A criança neste período é designada recém-nascido. PIB > Soma do valor da contribuição de todos os produtores nacionais, acrescido de todos os impostos (subtraindo subsídios) que não são incluídos na avaliação da produção. PIB per capita > É o PIB dividido pela população em metade do ano. Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de dedos supranumerários nas mãos ou nos pés. Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais emoliente e mais oclusiva. Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com propriedades higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de magnésio), argila, amido, caolino, óxido de zinco. Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afectada. Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 semanas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional. Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional compreendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias (259 a 293 dias). Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais). Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimento intra-uterino) - Criança nascida com peso inferior ao percentil 10 nas curvas de crescimento intra-uterino de Lubchenco independentemente da idade gestacional. Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional (AIG) > Criança nascida com peso compreendido entre o percentil 10 e o percentil 90 nas curvas de crescimento intra-uterino de Lubchenco, independentemente da idade gestacional. Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) > Criança nascida com peso superior ao percentil 90 nas curvas de crescimento intra-uterino de Lubchenco, independentemente da idade gestacional. Recém-nascido de baixo peso de nascimento (RNBP) > Criança nascida com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independentemente da idade gestacional. Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento(RNMBP) > Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos) independentemente da idade gestacional. Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP (extremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000 gramas(999 ou menos) independentemente da idade gestacional. Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos os produtores nacionais acrescido de todos os impostos (menos subsídios) que não são incluídos na avaliação da produção, a que são acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de assalariados e rendas de propriedades) provenientes de fontes externas. Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social e não apenas ausência de doença Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar um movimento voluntário do lado oposto, observada em certas paralisias unilaterais. Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial (membranosa), muscular ou óssea Suspensão > Mistura de líquidos e pós,em geral não miscíveis; têm base aquosa ou alcoólica e espalham-se facilmente; por ex. talco de Veneza, glicerina neutra e água destilada. Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fazendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por “pain”. Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15 anos ou mais que sabem ler e escrever. Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pessoas. Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000 pessoas. Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro ano de vida por cada 1.000 nado vivos. Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de óbitos entre o nascimento e a data em que são completados os 5 anos de idade por mil(1.000) nado-vivos. Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos de crianças nascidas vivas. Glossário Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fórmula: Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas ———————————————————— x 1000 Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela relação: Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672 horas) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso). Esta taxa é subdividida em: a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos ( ou 168 horas completas) /1.000 nado-vivos; b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos(168 horas) e até 28 dias completos(672 horas) /1.000 nado-vivos; Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta) podem considerar RN com peso de nascimento igual ou superior a 1.000 gramas ou 500 gramas, quer no numerador, quer no denominador; b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspondem a 1.000 gramas; Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula: Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas) ————————————————————————— x 1000 Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula: Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas) ————————————————————————— x 1000 Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nadovivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula: Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas) ———————————————————————— x 1000 Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula: Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas) ———————————————————————— x 1000 Nº de nado-vivos com >= 500 gramas Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de nascimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais(nado-mortos + nado-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por mulher, se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse filhos em cada etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada grupo etário. XXVII Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade recrutadas para tarefas próprias para adultos. Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos assistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional de saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas. BIBLIOGRAFIA Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Committee on Fetus and Newborn.American Academy of Pediatrics. Pediatrics 2004;114: 1362-1364 Direcção Geral da Saúde. Orientações Técnicas-2. Vigilância Pré-natal e Revisão do Puerpério. Lisboa: DGS, 2005 Esteves JA, Baptista AP, Guerra-Rodrigo F, Gomes MAM. Dermatologia.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992 Fanaroff AA, Martin RJ. Neonatal-Perinatal Medicine- Diseases of the Fetus and Infant. St. Louis: Mosby, 2002 Garnier M, Delamare V. Dictionnaire des Termes Techniques de Médecine. Paris :Maloine, 2004 Kurjak A. Textbook of Perinatal Medicine. London: Parthenon Publishing, 1998 Manuila L, Manuila A, Lewalle P, Nicoulin M. Dicionário Médico. Lisboa: Climepsi Editores, 2008 OMS. Situação Mundial da Infância 2008. Geneve: UNICEF, 2008 Pinheiro LA, Pinheiro AE. A pele da criança. A cosmética será um mito? Acta Pediatr Port 2007; 38: 200- 208 Polin R, Fox WW. Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Saunders, 1998 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGrawHill, 2002 Taeusch HW, Ballard RA. Avery´s Diseases of the Newborn. Philadelphia: Saunders, 1998 Abreviaturas A AA – aminoácidos AAG- anticorpos antigliadina AAP – American Academy of Pediatrics (Academia Americana de Pediatria) AAS – ácido acetil-salicílico (Aspirina®) ABO – grupos sanguíneos ABO (AB zero) Ác- ácido ou ácidos ACE – angiotensin converting enzyme ou enzima de conversão da angiotensina ACF – anemia de células falciformes ACG – angiocardiograma ACJ – artrite crónica juvenil ACo – acetilcolina AcoE – acetilcolinesterase ACOG – American College of Obstetricians and Gynecologists (Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas) ACTH – corticotrofina ou hormona corticotrópica hipofisária-adrenocorticotropic hormone AD – aurícula direita ADE – acção dinâmica específica ADH – antidiuretic hormone (ou HDA-hormona antidiurética) ADN – ácido desoxirribonucleico ADP – adenosine diphosphate (ou adenosinadifosfato) AE – alimentação entérica (ou enteral) AFP – alfa-fetoproreína Ag – antigénio; símbolo químico de prata A/G – relação albumina-globulina AGL – ácido gordo livre AGNE – ácido gordo não esterificado ou PUFA (Poly unsaturated fatty acid) AGS – adrenogenital syndrome; SAG-síndroma adrenogenital AHAI – anemia hemolítica autoimune AIA – acidente isquémico arterial AIDS – acquired immunodeficiency syndrome; ou SIDA-síndroma de imunodeficiência adquirida AIE – asma induzida pelo esforço AIG – peso do RN adequado para a idade gestacional AIJ – artrite idiopática juvenil AINE – anti-inflamatórios não esteróides ALT – alanina aminotransferase/transaminase glutâmico-oxalacética-TGO ALTE- apparent life threatening event (episódio associado a risco de vida) AME – atrofia muscular espinhal AMP – adenosina-5-monofosfato (monophosphate) AMPc – AMP cíclico AN – anorexia nervosa ANA – anticorpos antinucleares (anti nuclear antibodies) ANCA – anticorpos anticitoplasma do neutrófilo ANDAI – Associação Nacional de Doentes com Artrite Infantil e Juvenil ANP – atrial natriuretic peptide ou PNA A-P – ântero-posterior AR – artrite reumatóide ARA – arachidonic acid ou ácido araquidónico ARC – AIDS related complex (complexo relacionado com SIDA) ARJ – artrite reumatóide juvenil ARM – angiorressonância magnética ARN – ácido ribonucleico ARNm – ARN mensageiro ARNs – ARN solúvel ou de transferência ARP – actividade da renina plasmática As – símbolo químico do arsénio AST – aspartato aminotransferase/transaminase glutâmico-pirúvica ASCA – anticorpos anti Saccharomyces cervisae AT- antitrombina ATM – articulação temporomandibular ATP – adenosina trifosfato (Adenosine Tri Phosphate) ATPase – Na+/K+ - bomba de sódio Au – símbolo químico do ouro AUS – azoto ureico no sangue (vidé BUN) AV – nódulo auriculoventricular A-V – diferença arteriovenosa AVC – acidente vascular cerebral AVP – arginina-vasopressina AZT – azidotimidina (zidovudina segundo denominação internacional) B BT – bilirrubina total (B ou BRB) B1 – primeiro ruído do coração (=S1) Ba – bário BAV – bloqueio auriuloventricular BCC – bloqueante dos canais do cálcio BCG – bacilo Calmette-Guérin BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine) BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB) BHE – barreira hematencefálica Bi – bismuto BIPAP – bilevel positive airway pressure BK – bacilo de Koch BN – bulimia nervosa BO – bronquiolite obliterante BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia) BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação) BPE – baixo peso extremo (<1000 gramas) BPM ou bpm – batimentos por minuto XXX TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Br – bromo BR – biópsia renal BRB – bilirrubina BRD – bloqueio do ramo direito BRE – bloqueio do ramo esquerdo BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme bovina/doença das vacas “loucas” BSP – bromossulftaleína BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue C C – Celsius, carbono Ca – cálcio, carcinoma CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio CAD – cetoacidose diabética Cal – kcal(quilocaloria) Cal – caloria CAMP – adenosinamonofosfato cíclico CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante córtico- suprarrenal diferente da ACTH) CAV – canal atrioventricular comum cc- centímetro cúbico (ou cm3) CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH) Cd – cádmio CDC – Centers of Disease Control CDG – carbohydrate deficient glycoprotein CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico CEC- circulação extracorporal CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas CFRD – cystic fibrosis related diabetes CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH) CH – concentração de hemoglobina CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease, atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a anomalias do SNC, ear anomalies) CHC – carcinoma hepatocelular CI – capacidade inspiratória CIA – comunicação interauricular CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-inflamatória induzida pelo frio CIAV – comunicação interauriculoventricular CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos (OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada CIM – concentração inibitória mínima CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome CIV – comunicação interventricular CK – creatinaquinase/creatinacinase CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar Cl – símbolo do cloro cl – centilitro CM – concentração máxima ou cm – centímetro CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no cromossoma 6 com genes que codificam antigénios (glicoproteínas de superfície) de histocompatibilidade CMO – corticosterona metil oxidase CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões citomegálicas; ou corpos multivesiculares (surfactante) CO – monóxido de carbono CO 2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico Co – cobalto CoA – coenzima A Cox – cicloxigenase CPAP – continuous positive airway pressure ou pressão positiva contínua no final da expiração ou pressão de distensão contínua CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase) CPK-MB – idem –isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica CPT – capacidade pulmonar total Cr – crómio CR – cicatriz renal CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud, compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias CRF – capacidade residual funcional; ou corticotropin releasing factor (factor libertador da corticotrofina) CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da corticotrofina) CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis CRP – C Reactive Protein ou PCR 17-CS – 17 cetosteróide CSP – cuidados de saúde primários CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma Cu – cobre CUM – cistouretrografia miccional CV – capacidade vital,campo visual, coluna vertebral CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças Transmissíveis D D – dalton, densidade D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por ex. D8) DA – dermatite atópica DAG – diacilglicerol DAR – dor abdominal recorrente DB – decibel ou Doença de Behçet DBP – displasia broncopulmonar DC – débito cardíaco DCE – doença crónica do enxerto DD – diagnóstico diferencial DDT – dicloro-difenil-tricloroetano DEXA – dual X ray absorptiometry DGS – Direcção Geral da Saúde DH – doença de Hirschsprung DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO DHEA – di-hidro-epi-andosterona DHEAS – sulfato de di-hidro-epi-andosterona DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh DHRN – doença hemolítica do recém- nascido DHT – di-hidro-testosterona DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas DI – dentinogénese imperfeita DID – diabetes insulinodependente DII – doença intestinal inflamatória DIT – diiodotirosina Abreviaturas DIU – dispositivo intrauterino DK – doença de Kawasaki DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease DMG – diabetes mellitus gestacional DM2 – diabetes mellitus do tipo 2 DMJ – dermatomiosite juvenil DMG – diabetes mellitus gestacional DMO – doença metabólica óssea DMSA – ácido dimercapto-succínico DNA – ou ADN- ácido desoxirribonucleico DNM – doença neuromuscular DOCA – acetato de desoxicorticosterona DOPA – di-hidroxi-fenilalanina DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal DPC – doença pulmonar crónica 2,3- DPG – 2,3 difosfoglicerato DPN – diagnóstico pré-natal DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III, IV DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico DST – doença sexualmente transmissível DT (vacina) – antidifteria e antitétano DTN – defeito do tubo neural DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis DTPA – dietileno-tetra-pentacético DV – dador vivo DVP – derivação ventriculoperitoneal E EAEC – enteroaggregative E. coli EACA – ácido épsilon-aminocapróico EB – epidermólise bolhosa EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de) EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr ECG – electrocardiograma ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan) ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com membrana através de circulação extracorporal ECN – enterocolite necrosante EcoCG – ecocardiograma EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC EEG – electroencefalograma EEI – esfíncter esofágico inferior EH – esferocitose hereditária EHEC – enterohemorrhagic E. Coli EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica EIC – espaço intracelular, contendo LIC EID – espaço intercostal direito EIE – espaço intercostal esquerdo EIEC – enteroinvasive E. Coli ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay EMG – electromiografia/electromiograma EN – eritema nodoso EOG – electro-oculograma EPEC – enteropathogenic E. Coli EPI – enfisema pulmonar intersticial XXXI EPO – eritropoietina ERG – electrorretinograma ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and Nutrition ET – exsanguinotransfusão ETEC – enterotoxigenic E. Coli ETP – exsanguinotransfusão parcial EUA – Estados Unidos da América do Norte EV – endovenoso (e.v. ou intravenoso – IV) F FA – fosfatase alcalina FAO – Food and Agricultural Organization FC – frequência cardíaca FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar auto-inflamatória FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia FDA – Food and Drug Administration Fe – Ferro FeNa – fracção excretada de Na (sódio) urinário FeNO – fracção expirada de NO FEV – forced expired volume FFA – free fatty acids ou ácidos gordos livres FGR – filtração glomerular renal ou GFR FhO2 – fracção ou concentração de oxigénio na hipofaringe FiO2 – fracção ou concentração de oxigénio no ar inspirado FIV – fertilização in vitro FM – feto morto FMF – febre mediterrânica familiar FO – fundo do olho FQ – fibrose quística (mucoviscidose) FR – frequência respiratória ou factor reumatóide FSF – factor XIII de coagulação (fibrin stabilizing factor) FSH – gonadotrofina A, hormona foliculostimulante (follicle-stimulating hormone) FSH-RH – idem hormona libertadora de FSH… releasing hormone FTE – fístula tráqueo-esofágica FvW – factor de von Willebrand G g – grama GABA – ácido gama-amino-butírico Gal – galactose GBM – glomerular basement membrane GEA – gastrenterite aguda GFR – glomerular filtration rate GGT – gama glutamil transferase GH – growth hormone (hormona do crescimento) GHRF – growth hormone releasing factor ou factor de libertação da GH GH-RIH – growth hormone release inhibiting hormone ou somatostatina ou hormona inibidora da libertação da hormona de crescimento GI – gastrintestinal GIG – RN grande para a idade gestacional GINA – global initiative for asthma GMP – guanosina-monofosfato GMPc – guanosina-monofosfato cíclico GM-CSF – granulocyte macrophage colony stimulating factor GNA – glomerulonefrite aguda XXXII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA GnRH – gonadotropin releasing hormone ou hormona libertadora das gonadotrofinas GOT – glutamato-oxalacetato-transaminase ou ALT G-6PD – glucose 6 fosfato desidrogenase GPT – glutamato-piruvato-transaminase ou AST GRISI – Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil Gy – unidade de radiação usada em radioterapia (1 Gy <> 100 rads) H h – hora H – hidrogénio HA – hemaglutinação ou hepatite A HAD – hormona antidiurética (arginina-vasopressina) HAI – hepatite autoimune HAP – hospital de apoio perinatal HAPD – hospital de apoio perinatal diferenciado Hb ou Hgb – hemoglobina HB – hepatite B HbGM - ou HGM – hemoglobina globular média HBIG – imunoglobulina específica para o vírus da HB HbO2 – oxiemoglobina HBsAg – antigénio de superfície do vírus da hepatite B HC – hidrato de carbono HCG – gonadotrofina coriónica humana (human chorionic gonadotropin) HCl – ácido clorídrico (anteriormente Cl H) HCS – somatotrofina coriónica humana HDC – hérnia diafragmática congénita HDE – Hospital de Dona Estefânia HDL – high density lipoprotein ou lipoproteína de alta densidade He – hélio HELLP syndrome – Hemolysis, Elevated Liver Enzymes,Low Platelets ou síndroma com hemólise,enzimas hepáticas elevadas e plaquetas baixas HFF – Hospital Fernando Fonseca Hg – mercúrio HIC – hipertensão intracraniana HIDS – hyper IgD syndrome ou síndroma hiper IgD HIV – hemorragia intraventricular ou human immunodeficiency virus HLA – human leucocyte antigen ou antigénio de histocompatibilidade HMGCoA – Hidroxi-metil-glutaril-coenzima A Hp – Helicobacter pylori HPC – Hospital Pediátrico de Coimbra HPP – hipertensão pulmonar persistente HPT – hormona paratiroideia (ou paratormona- PTH) HPV – vírus do papiloma humano HSD – hidroxi-esteróide desidrogenase HSJ – Hospital de São João HSM – Hospital de Santa Maria HSV – herpes simplex vírus ou vírus herpes simples Ht – o mesmo que Hct HT – hormonas tiroideias HTA – hipertensão arterial Htc ou Ht – hematócrito HV – hepatite vírica HVA – ácido homovanílico HVD – hipertrofia ventricular direita HVE – hipertrofia ventricular esquerda Hz – Hertz I I – símbolo químico do iodo ICC – insuficiência cardíaca congestiva ICSH – interstitial-cell stimulating hormone ou gonadotrofina B, hormona estimulante das células intersticiais IDP – imunodeficiência primária IECA – inibidor da enzima de conversão da angiotensina IF – interfalângicas IFA – immunofluorescent antibody ou anticorpo imunofluorescente IFD – interfalângica distal IFN – interferão IFP – interfalângica proximal IFR – índice de falência renal (ou de insuficiência renal) Ig – imunoglobulina IL – interleucina IGF – insulin-like growth factor ou IGF /factor de crescimento semelhante à insulina IGFBF – insulin-like growth factor binding protein (proteína de ligação) ILAR – International League Against Rheumatism ILGF – insulin-like growth factor ou IGF /factor de crescimento semelhante à insulina im/ IM – intramuscular IMC – índice de massa corporal IMV – ventilação “mandatória”/obrigatória intermitente INE – Instituto Nacional de Estatística IO – idade óssea IOTF – International Obesity Task Force IP – índice ponderal no RN: razão peso(gramas) /comprimento (cm)3 x 100 IPLV – intolerância às proteínas do leite de vaca IPPV ou IPPB – intermitent positive pressure ventilation/breathing ou ventilação com pressão positiva intermitente IRA – insuficiência renal aguda IRC – insuficiência renal crónica ISAAC – International Study of Asthma and Allergies in Chidhood IU – infecção urinária iv/IV – intravenoso (ou endovenoso) IVD – insuficiência ventricular direita IVE – insuficiência ventricular esquerda IVG – interrupção voluntária da gravidez J J – Joule K K – símbolo de potássio, ou Kelvin Kcal – quilocaloria Kg – quilograma Km – quilómetro kPa – capa pascal (medida de pressão); (kPa x 7.5 = mmHg) KR – quiloroentgen kV – quilovolt kW – quilowatt L l – litro L – nível de vértebra lombar (L3=3ª vértebra), ou litro LA – leucemia aguda ou líquido amniótico Abreviaturas Lactente – no sentido restrito, a criança alimentada com leite ou que “recebe” leite; no sentido lato, criança pequena em geral até ao 1 ano Lactante – pessoa (em geral a mãe) que amamenta ou “dá” o leite natural LAF – lymphocyte activating factor ou factor de activação linfocitária LCPUFA – long chain polyunsaturated fatty acid ou ácido gordo poli-insaturado de longa cadeia LCR – líquido céfalorraquidiano LDH – lácticodesidrogenase LDL – low density lipoproteins LEC – líquido extracelular contido no EEC LES – lúpus eritematoso sistémico LH – luteinizing hormone ou hormona luteinizante ou gonadotrofina B Li – lítio LIC – líquido intracelular contido no EIC LIG – RN leve para a idade gestacional LIP – lymphocytic interstitial pneumonia ou pneumonia intersticial linfocitária (PIL) Lis – lisina LLC – leucemia linfóide crónica LM – lesões mínimas LMA – leucemia mielóide aguda LP – líquido pleural LPF – líquido pulmonar fetal LPR – Lipid Research Program LPV – leucomalácia periventricular LSD – dietilamida do ácido lisérgico LTH – luteotropic hormone ou prolactina M M – molar M1 a M7 – tipos morfológicos da classificação das LMA MAG3 – mercaptoacetil triglicina MALT – mucosa associate lymphoid tissue MAP – mean airway pressure (ou Paw) ou pressão média na via aérea MAPA – monitorização ambulatória da pressão arterial MAR – manometria ano-rectal MAS – síndroma de activação macrofágica MBP – muito baixo peso(<1500 gramas) MCF – metacarpo-falângica MCH – mean corpuscular hemoglobin ou hemoglobina globular média MCHC – mean corpuscular hemoglobin concentration ou concentração de hemoglobina globular média mcg(ug) – micrograma MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio ME – meningoencefalite MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke like episodes mEq/L – milequivalente por litro MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers Met Hb – metemoglobina MFR – Medicina Física e Reabilitação Mg – símbolo químico do magnésio mg – miligrama MHC ou CMH – (ver atrás) MHz – mega hertz min – minuto ml – mililitro XXXIII MM – mielomeningocelo MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido de mmc – milímetro cúbito ou mm3 (= μL) Mn – símbolo químico do manganês MNI – mononucleose infecciosa Mo – símbolo químico do molibdénio mol – mole mmol – milimole mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L) mR – mili-roentgen mrad – mili-rad MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm) MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou melanotropina MTF – metatarso-falângica MTX – metotrexato MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt MWS – Muckle-Wells syndrome N Na – sódio NAD,NADH – nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou reduzido) NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and Nutrition NB – note bem NCI – National Cancer Institute NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante) ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg) NHCS – National Center for Health Statistics NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Program (Programa Individualizado de Avaliação do Desenvolvimento do RN) NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia nm – namómetro NO – óxido nítrico NP – nutrição parentérica (ou parenteral) NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva) NR – nefropatia do refluxo NS – não significativo NV – nado vivo O O – oxigénio OD – olho direito OE – olho esquerdo OEA – oto-emissões acústicas OGE – órgãos genitais externos OGI – órgãos genitais internos OI – osteogénese imperfeita OMA – otite média aguda OMS – Organização Mundial de Saúde ONSA – Observatório Nacional da Saúde ORL – Otorrinolaringologia ORS – oral rehydration solute, ou SRO OSM – otite seromucosa XXXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA P P – fósforo ou Pressão ou peso p – pressão P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2 Pa – Pascal PA – pressão arterial ou pancreatite aguda PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico PAF – platelet activating factor ou factor de activação plaquetária PAH – ácido para-amino-hipúrico PAM – pressão arterial média PAN – poliaterite nodosa PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal infections Pa O2 – pressão parcial arterial de O2 PA O2 – pressão alveolar de O2 PAO- pressão arterial ocular PAP – proteína associada à pancreatite PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite gangrenosa, e acne PAR – pressão arterial retiniana PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico PASP – proteína específica do pâncreas Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP) Pb – chumbo PB – prega bicipital PBI – protein binding iodine ou iodo ligado às proteínas PC – paralisia cerebral /doença motora cerebral PCA – persistência do canal arterial PCE – poliartrite crónica evolutiva PCI – paralisia cerebral infantil PCP – poliartrite crónica primária ou pneumocistose pulmonar PCR – proteína C reactiva ou polymerase chain reaction (reacção em cadeia da polimerase) PDA – persistência do ductus arteriosus ou canal arterial (PCA) PDAY – pathobiological determinants of atherosclerosis in youth PDE – phosphodiesterase ou fosfodiesterase PDF – produtos de degradação do fibrinogénio PDGF – platelet derived growth factor, ou factor de crescimento derivado das plaquetas PDHC – pyruvate dehydrogenase complex PEATC – potenciais evocados auditivos do tronco cerebral PEG – polietilenoglicol PEEP, PEP – pressão expiratória positiva ou positive end expiratory pressure PET – positron emission tomography ou tomografia por emissão de positrões PFAPA – síndroma englobando febre periódica, aftas, faringite e adenopatias PG – prostaglandina ou fosfatidil glicerol (phosphatidyl glycerol) pg – picograma pH – logaritmo decimal do inverso da concentração hidrogeniónica em hidrogeniões- grama por litro Phe – fenilalanina PHS – púrpura de Henoch Schonlein PI – perda insensível de água PIG – RN pequeno para a idade gestacional (na prática, sinónimo de LIG) PIF – prolactin inhibiting factor ou factor inibidor da prolactina PL – punção lombar PM – polimiosite juvenil PMI – protecção materno-infantil Pn – peso de nascimento PNA – péptido natriurético auricular (ou ANP) PNB – Produto Nacional Bruto PNET – peripheral primitive neuroectodermal tumors (tumores neuroectodérmicos primitivos periféricos) po – per os ou por via oral PO2 – pressão parcial de CO2 (anidrido carbónico) no sangue PO2 – pressão parcial de O2 (oxigénio) no sangue PPB – prova de provocação brônquica PPC – puberdade precoce central PPF – puberdade precoce periférica PPI – pressão positiva intermitente ou IPPV ou IPPB ou inibidor da bomba de protões (pump proton inhibitor) ou prova de provocação inalatória ppm – partes por milhão PPN – prova de provocação nasal PPO – prova de provocação oral PR – poliartrite reumatóide PRH – prolactin releasing hormone PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization PRIST – paper radio immune sorbent test PSE – prega subescapular PSI – prega supra-ilíaca PSP – phenol sulpha phtalein ou fenolsulfaftaleína PT – prega tricipital PTA – plasma thromboplastin antecedent ou factor XI de coagulação PTC – plasma thromboplastin component ou factor IX de coagulação PTH – paratormona ou hormona paratiroideia (HPT) PTI – púrpura trombocitopénica idiopática Q q b p – quanto baste para QG – quociente geral QI – quociente de inteligência QR – quociente respiratório QRS – complexo QRS R R – roentgen RA – reserva alcalina RAA – reumatismo articular agudo ou sistema renina –angiotensinaaldosterona RANU – rastreio auditivo neonatal universal RAST – rádio allergo sorbent test ou doseamento sérico radioimunológico das IgE específicas de antigénios RDS – respiratory distress syndrome ou síndroma de dificuldade respiratória /SDR REM – rapid eye movements ou fase de movimentos rápidos dos olhos durante o sono(sono paradoxal, sonho) RER – retículo endoplásmico rugoso RF – releasing factor ou factor libertador RFC – reacção de fixação do complemento RFI – renal failure índex ou IFR RGE – refluxo gastroesofágico RH – releasing hormone ou hormona libertadora Abreviaturas Rh – Rhesus RIA – radio-immunoassay RMN – ressonância magnética nuclear RMS – rabdomiossarcoma (sarcoma das partes moles mais frequente na criança) RN – recém-nascido RNA – ribonucleic acid ou ácido ribonucleico RNBP – recém-nascido de baixo peso RNBPE – recém-nascido de baixo peso extremo RNMBP – recém-nascido de muito baixo peso RNMD – recém-nascido de mãe diabética RNMTD – recém-nascido de mãe toxicodependente ROT – reflexo osteotendinoso RRAI – reflexo recto-anal inibidor Rrp – reabilitação respiratória pediátrica RT-PCR – reverse transcription polymerase chain reaction RVP – resistência vascular pulmonar RVU – refluxo vésico-ureteral S S – som cardíaco (por ex. S1 ou 1º som cardíaco) ou semana Sa ou Sat – saturação SA – síndroma de Alport SALT – skin associated lymphoid tissue ou tecido linfóide da pele SAN – síndroma de abstinência neonatal SAOS – síndroma da apneia obstrutiva do sono SaO2 ou SatO2 – saturação da hemoglobina em oxigénio SAPHO – síndroma englobando sinovite,acne, pustulose, hiperostose e osteíte SB – spina bifida SC ou sc – subcutâneo SDR – síndroma de dificuldade respiratória Se – símbolo químico do selénio SED – síndroma de Ehlers-Danlos SEDA – síndroma de eczema dermatite atópica SF – soro fisiológico ou soluto salino (NaCl a 0,9%) SGOT – transaminase glutâmico – oxalacética SGPT – transaminase glutâmico-pirúvica SHU – síndroma hemolítica urémica SIADH – síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética SIC – síndroma do intestino curto SIDA – síndroma de imunodeficiência adquirida SIR – síndroma de insuficiência respiratória SLEDAI – systemic lupus erythematous disease activity index SLICC – Systemic Lupus International Collaborating Clinics SM – síndroma de Marfan SMSL – síndroma da morte súbita do lactente SN – síndroma nefrótica SNA – sistema nervosos autónomo SNC – sistema nervoso central SNG – sonda nasogástrica SNN – Secção de Neonatologia SNS – Sistema / Serviço Nacional de Saúde SNV – sistema nervoso vegetativo SPCA – serum prothrombin conversion accelerator ou pró-convertina SPP – Sociedade Portuguesa de Pediatria SR – supra -renal SRAA – sistema renina-angiotensina-aldosterona XXXV SRE – sistema retículo-endotelial SRH – somatopropin releasing hormone ou hormona libertadora da somatotropina SRIF – somatotropin release inhibiting factor ou somatostatina (factor inibidor da libertação da somatotropina SRO – solução de reidratação oral, ou ORS STH – somatotropic hormone ou somatotropina ou hormona somatotrópica, ou hormona do crescimento ou GH Sv – Sviert SWM – síndroma de Wilson-Mikity T T3 – triiodotironina T4 – tetraiodotironina (tiroxina) TA – tensão(ou pressão) arterial TAB – (vacina) anti-tifóide –paratifóide A e B TAC – tomografia axial computadorizada ou TC TASO – título de anti-estreptolisinas O TB, TBC – tuberculose TBG – tyroxine binding globulin ou globulina que fixa a tiroxina TC – tomografia computadorizada, sinónimo de TAC TCAD – TC de alta definição TCE – traumatismo cranioencefálico TCM – triglicéridos de cadeia média TCL – triglicéridos de cadeia longa TC/PET – sigla em inglês de TC com emissão de positrões TeTAB – (vacina) antitetânica-tifóide-paratifóide TFG – taxa de filtração glomerular ou simplesmente FGR/GFR TG – triglicéridos TGA – thromboplastin generation accelerator ou acelerador da formação da tromboplastina TGO – transaminase glutâmico-oxalacética (GOT ou ALT) TGP – Transaminase glutâmico-pirúvica (GPT ou AST) TGT – transglutaminase tecidual TH – transplantação hepática (ou transplante) TIR – tripsina imunorreactiva TIT – teste de imobilização de treponemas TMI – taxa de mortalidade infantil TMM5 – taxa de mortalidade em menores de 5 anos TMO – transplante de medula óssea TMPN – taxa de mortalidade perinatal TMP-SMZ – trimetoprim-sulfametoxazol ou cotrimoxazol TMRA – taxa média de redução anual TN – translucência da nuca TNF – tumor necrosis factor ou factor de necrose tumoral TORCHES – sigla de infecções pré-natais (toxoplasmose, outras,rubéola, citomegalovírus, herpes simples, Epstein-Barr. sífilis,etc.) Torr – abreviatura de medida de pressão (Torricelli); 1Torr = 1 mmHg TP- tempo de protrombina TPI- teste de Nelson (Treponema pallidum immobilization test) ou teste de imobilização treponémica TPN – trifosfopiridinanucleótido TPNH – trifosfopiridinanucleótido reduzido Tracking – estabilidade ou tendência para manutenção de determinada situação ou parâmetro ao longo do tempo TRAPS – TNF receptor associated periodic syndrome TRBAb – thyrotropin receptor blocking antibody TRF – thyrotropin releasing factor (factor libertador de tirotrofina) XXXVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA TRH – thyrotropin releasing hormone (hormona libertadora da tirotrofina) TRSAb – thyrotropin receptor stimulating antibody TSA – teste de sensibilidade aos antibióticos TSH – thyroid stimulating hormone (hormona tirostimulante) TVR – trombose da veia renal TXR – transplante renal U U – urânio, unidade UB – unidades Bodansky UCF – unidade coordenadora funcional UCI – unidade de cuidados intensivos UCIN – UCI neonatais UDP – uridina-di-fosfato UDPG – uridina-di-fosfo-glicose UDPGT – uridina-di-fosfo-glucoronil-transferase UFF – urticária familiar pelo frio UI – unidade internacional UIV – urografia intravenosa ou de eliminação UM – uropatia malformativa UNICEF – Agência das Nações Unidas para a Infância e Família USF – Unidade de Saúde Familiar UTP – uridina-tri-fosfato UV – ultra-violetas (radiações) UVP – Unidade de Vigilância Pediátrica V V – volt, velocidade, ventilação, valência VATS – vídeo assisted thoracoscopic surgery VC – velocidade de crescimento VCA – viral capsid antigen VCI – veia cava inferior VCS – veia cava superior VCT – valor calórico total (propiciado pelos vários nutrientes em %) VD – ventrículo direito VDRL – reacção de aglutinação da sífilis (Venereal Diseases Research Laboratories) VE – ventrículo esquerdo VEB – vírus de Epstein Barr VEMS – volume expiratório máximo por segundo VG – volume globular VGM – volume globular médio VH – vírus da hepatite (A,B,C,D,E,G) VIH – vírus da imunodeficiênca humana VIP – polipéptido vasoactivo intestinal (vasoactive intestinal polypeptide) VLDL – lipoproteínas de muito baixa densidade (very low density lipoproteins) VM – ventilação máxima (ou ventilação mecânica) VMA – ácido vanil mandélico (vanyl mandelic acid) VO – via oral (o mesmo que po) VRE – volume de reserva expiratória VRI – volume de reserva inspiratória VS ou VSG – velocidade de sedimentação (globular) VSR – vírus sincicial respiratório (ou VRS) VTEC – verotoxin-producing E. coli VUP – válvulas da uretra posterior VVZ – vírus da varicela-zoster W W – watt WB – western immunoblot test WHO – World Health Organization ou OMS (Organização Mundial da Saúde) WISC – Wechsler Intelligence Scale WPW – síndroma de Wolff-Parkinson-White X X – cromossoma X Y – cromossoma Y Z Zn – zinco Símbolos > : maior que < : menor que ~ : próximo, semelhante ou cerca de <> : correspondente a PARTE I Introdução à Clínica Pediátrica 2 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 1 A CRIANÇA EM PORTUGAL E NO MUNDO. DEMOGRAFIA E SAÚDE João M. Videira Amaral Factos históricos Os problemas relacionados com a criança somente começaram a suscitar o interesse real por parte dos físicos ou antigos médicos a partir de meados do século XVIII. A criança era considerada uma miniatura do adulto e a doença era interpretada como fazendo parte dum processo de regeneração moral sendo a elevada mortalidade um acontecimento esperado. Após o nascimento, a sobrevivência ficava a cargo da selecção natural e apenas a alimentação fazia parte dos cuidados a ministrar. Recuando à Antiguidade, cabe referir que na Roma antiga foi elaborada uma disposição legal assinada por Rómulo que concedia ao pai da criança o poder de abandonar os filhos nascidos com defeitos congénitos. Portanto, nessa época, o infanticídio era considerado legítimo. Do séc. XV chegaram-nos pinturas da escola francesa que testemunham a atitude de abandono em locais diversos ou de lançamento ao rio de crianças acabadas de nascer, quer com peso deficiente e consideradas inviáveis, quer com diversos problemas incuráveis. Na transição do século XVIII para o século XIX a Medicina englobava essencialmente dois grandes ramos: um, dedicado à realização de partos e ao recém- nascido (Obstetrícia), e outro à Medicina Geral que se ocupava da criança, do adolescente e do adulto. No final do século XIX a Medicina da Criança (ou Pediatria, do grego pais, paidos, criança e iatreia, tratamento) já se encontrava relativamente individualizada da Medicina Geral, mantendo-se, no entanto, durante as primeiras décadas do século XX, a tradição de o recém- nascido continuar a ser seguido pelo médico que tinha realizado o parto. No século XIX, coincidindo com a Revolução Industrial e o fenómeno da emancipação da Mulher, por toda a Europa começou a esboçar-se uma preocupação com os problemas sociais e a higiene pública, relacionando-se a pobreza com a doença. Em 1875 foi publicada a Lei Roussel com o objectivo de proteger as crianças dando-lhes assistência separadamente dos adultos. Multiplicaram-se os estabelecimentos para o acolhimento de crianças abandonadas – os hospícios ou asilos de crianças – aos quais se sucederam as instituições para prestação de cuidados na doença ou verdadeiros hospitais. Em 1802 em Paris foi inaugurado o que foi considerado o primeiro hospital para crianças – o Hopital des Enfants Malades. Na Europa e América do Norte, outros hospitais de crianças foram inaugurados, tais como: em 1834 em Berlim o Charité, e em São Petersburgo o Nicolas, em 1852 em Londres o Great Ormond Street, em 1854 em Nova Iorque o Child’s Hospital and Nursery, em 1855 em Filadélfia o Children’s Hospital e, em 1875 em Toronto o Hôpital Pédiatrique. Portugal foi um país que se colocou na vanguarda dos que se preocupavam com a assistência hospitalar de crianças. Assim, em 1877 foi inaugurado em Lisboa o Hospital de Dona Estefânia e, em 1881, no Porto, o Hospital de Crianças Maria Pia. No final do século XIX a Pediatria, decorrente da Medicina Geral, passara sucessivamente pelas fases históricas designadas classicamente por anátomo-clínica, funcional ou fisiopatológica e etiopatogénica ou microbiológica, e confrontava-se com uma elevada mortalidade, explicada sobretudo por infecções e problemas nutricionais. Assistência à Criança Até ao início do século XX, a figura central na assistência era o médico omnisciente com um papel crucial de amigo e conselheiro, tocando a um só tempo, todos os instrumentos, na arte de curar; CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde na transição para o séc. XX esboçavam-se dois ramos da Medicina: a Medicina Geral e a Cirurgia geral, esta última abrangendo os partos. A necessidade de especialização médica, dado o universo de conhecimentos armazenados pela ciência contemporânea, somente começou a criar força em Portugal na primeira metade do século XX; com efeito, a partir da década de 30, certo número de médicos passou a dedicar-se às crianças incluindo recém-nascidos. Isto ocorreu de modo progressivo e paralelamente à criação, nos grandes centros, de serviços hospitalares de pediatria incipientes, correspondendo à separação progressiva das áreas para assistência às crianças das dos adultos. Os primeiros especialistas de Pediatria reconhecidos pela Ordem dos Médicos surgiram em 1944. O ensino pioneiro da Pediatria nas Universidades portuguesas Nas Universidades portuguesas o ensino das disciplinas de “Gravidez e Partos” e de “Medicina da Criança” passou a ser independente do da Medicina e da Cirurgia a partir de 1898. Na Escola MédicoCirúrgica de Lisboa o primeiro regente da disciplina de “Gravidez e Partos” foi Alfredo da Costa. A disciplina de “Medicina da Criança” foi criada pela Reforma de 1911, tendo como primeiro regente Jaime Salazar de Sousa (Avô), considerado o criador da Pediatria portuguesa e, particularmente, da Pediatria Cirúrgica, no Hospital Dona Estefânia. Na Escola Médico-Cirúrgica do Porto o primeiro professor de Pediatria, a partir de 1917, foi A. Dias de Almeida Jr. que já se dedicava às crianças desde 1894. Em Coimbra o ensino da Pediatria começou em 1917 com Morais Sarmento. Sociedade Portuguesa de Pediatria Entre os eventos que influenciaram o desenvolvimento da Pediatria em Portugal a partir do final da década de 30 do século XX contam-se,em 1938, o início de publicação regular de uma revista dedicada à pediatria e aos pediatras e, em 1948, a fundação duma associação científica de pediatras que foi designada por Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), mantida até aos nosssos dias. A referida revista, órgão oficial da SPP foi de- 3 nominada Revista Portuguesa de Pediatria e Puericultura sendo seu fundador Carlos Salazar de Sousa. Mantendo-se ininterrupta tal publicação desde o seu início, mudou de nome duas vezes: em 1980 para Revista Portuguesa de Pediatria e, mais recentemente, em 1993, para Acta Pediátrica Portuguesa com o subtítulo de “revista da criança e do adolescente”. A criação da SPP, forum privilegiado para troca de experiências e de convívio científicos entre os pediatras, marca um momento alto na evolução da Pediatria no nosso país. Da sua primeira direcção (1948-1950) fizeram parte os pediatras mais representativos desta área da medicina na época: Almeida Garrett, do Porto (presidente) assessorado por Lúcio de Almeida (Coimbra), Manuel Cordeiro Ferreira, Castro Freire, Carlos Salazar de Sousa e Abel da Cunha (Lisboa). Considerando os objectivos da SPP, cabe referir essencialmente: a promoção e difusão dos progressos da Pediatria nas vertentes assistencial, pedagógica e de investigação; o intercâmbio científico com associações congéneres internacionais e países de expressão portuguesa; intervenção junto dos poderes públicos e da sociedade civil na perspectiva de resolução dos problemas relacionados com a criança e o adolescente. Âmbito da Pediatria Na actualidade, a Pediatria deve ser entendida como medicina integral dum período do ser humano compreendido entre a concepção e o final da adolescência. De acordo com esta concepção abrangente, a pediatria compreende toda uma problemática de saúde de um período da existência humana que se inicia mesmo antes da decisão de procriar; efectivamente estão hoje provadas as repercussões das doenças do embrião e do feto e recém-nascido na criança e no adulto. No aspecto conceptual, esta área da medicina não deverá ser, pois, entendida numa perspectiva exclusivamente biológica, nem limitar-se à abordagem de episódios bem delimitados do ser humano (uma pessoa) em crescimento e desenvolvimento, caracterizado por vulnerabilidades de diversa ordem. Embora para a compreensão dos processos pa- 4 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tológicos haja necessidade de descer até às minúcias da biologia molecular, no sentido mais rigoroso do âmbito da Pediatria, esta abrange toda uma resenha de vida em determinado período, pressupondo interacção com o meio físico, biológico, social (a família, a sociedade, o estado, os seus pares). Na medida em que é assumida tal compreensão da Pediatria torna-se difícil delimitar com rigor as suas fronteiras, não devendo ser entendida como uma especialidade. O exercício da clínica da criança e do adolescente implica, pois, para além da competência técnica e profissional, o domínio de conhecimentos, atitudes e aptidões em campos que extravasam largamente o âmbito exclusivamente biomédico. Com efeito, na actualidade, para responder cabalmente aos desafios que a profissão lhe impõe, o médico assistente da criança e adolescente (pediatra ou não) deve ter uma preparação humanista, com domínio de matérias relacionadas com Pedagogia, Direito, Ética, Psicologia, Sociologia, Filosofia, Antropologia, entre outras, e com aptidões e atitudes que o capacitem para o exercício da defesa dos direitos das referidas pessoas com a indispensável cooperação da família e da comunidade. É, pois, indispensável que o médico em causa saiba actuar contra as ameaças de diversa ordem a que, na actualidade, crianças e adolescentes, estão sujeitos, tais como a poluição, a violência no ambiente urbano e rodoviário, o sedentarismo, os erros alimentares, a toxicodependência etc., e compreenda a necessidade de intervenção de todo o sistema envolvente. Por outro lado, torna-se necessário que o referido médico e os serviços de saúde reconheçam que os pais são os primeiros responsáveis pela saúde dos seus filhos tornando-se fundamental assegurar uma verdadeira e eficaz colaboração entre os primeiros e os profissionais de saúde. Aliás, diversos estudos têm demonstrado que os pais e família resolvem a grande maioria dos problemas dos seus filhos sem procurar os serviços médicos; torna-se, por isso, fundamental que os pais possam ter acesso, através dos meios convencionais de comunicação (livros, folhetos, revistas, internet) a informação para os ajudar a tomar decisões esclarecidas quanto à atitude correcta a ter quando o filho adoece. Em suma, o médico devotado à criança e ao adolescente deverá ter um conjunto de atributos que definem o que se chama “profissionalismo”: honestidade e integridade, espírito de responsabilidade, respeito pelos outros (a essência do humanismo), empatia, espírito de colaboração, capacidade de comunicação, a noção correcta dos limites da sua competência, a sensibilidade para a actualização e aperfeiçoamento profissional, e o espírito de altruismo e de advocacia em prol da criança. O objectivo último é privilegiar o bem- estar da criança ou adolescente como pessoas, valorizando as suas potencialidades e minimizando os efeitos das condições adversas da vida. Efectivamente, está provado que experiências emocionalmente gratificantes induzem uma projecção optimista, enquanto as frustrações amortecem e embotam todo o potencial humano de desenvolvimento. O conceito global de Saúde De acordo com o conceito clássico da Organização Mundial de Saúde (OMS) datado de 1946, entende-se por saúde o estado completo de bem – estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade. A saúde depende, pois, de um estado de equilíbrio activo e dinâmico entre o ser humano em qualquer fase de crescimento e desenvolvimento e o seu meio. Numa perspectiva didáctica, podem ser considerados diversos factores com interferência em tal equilíbrio: – factores físicos; relativamente a outras espécies animais o ser humano está provido de recursos mais escassos sob o ponto de vista físico: corre menos, trepa menos, adapta-se mais deficientemente às condições adversas de temperatura e de humidade, por exemplo. As viaturas motorizadas, constituindo “corpos estranhos” nos meios urbanos ou rurais e utilizando formas de energia com características de velocidade e aceleração para as quais o seu organismo não está preparado, podem conduzir a morbilidade que pode ser exemplificada pelas consequências dos acidentes de viação. Outros exemplos perturbadores do equilíbrio com repercussões de grau diverso na saúde são o deficiente ordenamento urbano, as deficientes condições de habitação e da rede viária. CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde – factores biológicos; os micróbios convivendo com o ser humano fazem parte dum ecossistema. Uma das consequências do desequilíbrio no meio comum ao homem e aos micróbios origina as doenças infecciosas, sabendo-se que a transmissão daqueles se pode fazer, não só directamente de pessoa a pessoa, como através de componentes do meio como a água, alimentos, vectores, etc.. Hoje em dia, com a facilidade de transportes por via aérea, tal transmissão pode fazer-se com grande rapidez. – factores sociais; ao longo dos séculos o ser humano, organizado em comunidades com características diversas, deu corpo a um sistema organizativo social e económico complexo caracterizado por produção e troca de bens entre as mesmas (por exemplo produção e distribuição de energia, de água, etc.) na procura de qualidade de vida e aumento de sobrevivência. Daqui se pode inferir as consequências, para o estado de saúde, que poderão resultar da falência de tal sistema. – factores culturais; o ser humano é um ser que herdou cultura dos seus antepassados utilizando os instrumentos próprios da sua civilização, partilhando os bens colectivos da sociedade onde está inserido. Ora, o estado de saúde depende da utilização adequada dos recursos como nutrientes, água e ar; poderá haver perturbação neste equilíbrio se os recursos forem inadequados (por excesso ou por carência) ou se o estado educacional da população não permitir uma utilização racional e equilibrada daqueles. As doenças relacionadas com carências de alimentos (por exemplo subnutrição) ou com excessos (obesidade, diabetes, dependência de drogas, hipertensão, aterosclerose, alcoolismo, etc.) traduzem, na maior parte das vezes, comportamentos desviantes relacionados, quer com aspectos culturais, quer com disfunções dos mecanismos organizativos e educacionais No sentido clássico, Saúde Pública é o conjunto de actividades organizadas pela colectividade para manter, proteger e melhorar a saúde do povo ou das comunidades e grupos de população no meio em que vivem (criação das condições ao ajustamento ecológico: indivíduos – meio ambiente). Habitualmente considera-se que o conceito de Saúde Pública é mais limitado do que o de Saúde, não abrangendo a medicina clínica individual 5 nem as ciências médicas ditas básicas. Saúde na Comunidade é um termo que também se usa nesta acepção. No moderno conceito de Saúde Pública, a noção de ambiente tem um sentido mais lato abrangendo as suas componentes social, física, biológica, assim como aspectos como a cultura e a economia envolventes, e o próprio Estado. Reconhecimento dos Direitos da Criança A partir do início do século XX, o mundo passou a reconhecer cada vez mais a importância do ser humano em crescimento e desenvolvimento o que, ao longo de décadas, tem sido traduzido por um conjunto de eventos, iniciativas e documentos que se encontram sintetizados cronologicamente no Quadro 1. Relativamente ao documento “Saúde para Todos no Ano 2000” cabe referir as suas grandes linhas de orientação correspondendo a outros tantos compromissos dos Estados Membros: – igualdade de acesso à saúde; – promoção da sáude e prevenção da doença; – participação activa da comunidade; – cooperação de todos os responsáveis da saúde promovendo políticas no sentido de reduzir os riscos provenientes do ambiente físico, económico e social; – sistema de saúde privilegiando os cuidados de saúde primários; – cooperação internacional com vista à resolução de problemas que não têm fronteiras como a poluição e a comercialização de produtos nocivos. Sistema de Saúde Português Portugal conheceu nos últimos 30 anos um significativo processo de mudança. Houve mudança não só política, como económica e social e de opções internacionais com a integração na União Europeia, passando de uma estrutura social de subdesenvolvido para país desenvolvido. A testemunhar tal mudança, o relatório da Organização Mundial de saúde (OMS) colocou Portugal em 10º lugar no “ranking” mundial dos melhores sistemas de saúde (2006). Pode afirmar-se que os progressos realizados em Portugal, repercutindo- se no campo da Saúde em geral, e no da Saúde Infantil e Juvenil em especial, tiveram como base o desenvolvimento dos 6 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Reconhecimento dos Direitos da Criança 1919 – Na sequência da degradação social e económica no período pós-Iª Guerra Mundial, por iniciativa de uma inglesa Eglantyne Jebb, foi criada a Union for Child Welfare. 1924 – A Liga das Nações adopta a Declaração de Genebra sobre Direitos da Criança elaborada pela Union for Child Wefare: essencialmente, direito aos recursos para o desenvolvimento material, moral e espiritual; direito à educação, protecção contra a exploração. 1948 – No âmbito da Assembleia Geral da ONU, foi aprovada a Declaração dos Direitos Humanos em cujo artigo 25º é referido especificamente o “direito da criança a cuidados e assistência especiais”. 1978 – Na Conferência Internacional de Alma –Ata é recomendado que, como parte da cobertura total das populações por meio de cuidados primários de saúde, se conceda prioridade máxima às necessidades especiais de grupos vulneráveis incluindo grávidas e crianças. 1979 – A ONU consagrou este ano como “Ano Internacional da Criança”. 1980 – A Assembleia Geral da ONU aprovou por unanimidade a “Convenção sobre os direitos da Criança”. 1984 – Documento-Programa da OMS “ Saúde para Todos no ano 2000” 1990 – Na “ Cimeira Mundial pela Criança” em Nova Iorque os líderes de 71 países assinaram a “Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, Protecção e o Desenvolvimento da criança”. 1994 – No Ano Internacional da Família foi reafirmado o papel primordial das famílias nos programas de apoio e protecção das crianças. 1999 – Foi adoptada a Convenção para a Proibição e Eliminação do Trabalho Infantil (Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho). 2000 – A Declaração do Milénio da ONU definindo Objectivos do Desenvolvimento até 2015 incluindo metas específicas como a redução da taxa global de mortalidade de menores de 5 anos em dois terços, a redução a 50% das pessoas que passam fome, interromper e começar a reverter a disseminação do vírus da imunodeficiência humana(VIH), educação primária universal, plano de luta contra o envolvimento de crianças em conflitos armados, venda de crianças, prostituição e pornografia infantis. 2002 – Assembleia Geral da ONU com a participação de centenas de crianças como membros de delegações e o compromisso de líderes mundiais na construção de um “mundo para as crianças”; foi reafirmado o papel da família na responsabilidade primária pela protecção, educação e pelo desenvolvimento da criança. 2004 – Estratégia global sobre regime alimentar, actividade física e saúde definida pela OMS, com implicações na criança e adolescente 2007 – O relatório “Situação Mundial da Infância 2007” refere que a igualdade de género e o bem estar da criança são indissociáveis: quando a mulher tem maior poder para viver de maneira plena e produtiva, as crianças prosperam. cuidados primários definidos como “cuidados essenciais baseados em métodos de trabalho e tecnologias de natureza prática, cientificamente credíveis e socialmente aceitáveis, universalmente acessíveis na comunidade aos indivíduos e famílias, com a sua total participação e a um custo comportável para as comunidades e para os países à medida que eles se desenvolvem num espírito de autonomia.” Com efeito, em 1979 foi criado o Serviço Nacional de Saúde (SNS) integrando diversos níveis de cuidados de acesso universal, incluindo os relacionados com a promoção da saúde, a vigilância e a prevenção da doença. A Lei de Bases da Saúde em 1990 definiu novas linhas de actuação, nomeadamente o conceito de sistema de saúde englobando o SNS e todas as entidades públicas desenvolvendo actividades de promoção, de prevenção e de tratamento, bem como entidades privadas e os profissionais liberais que estabeleceram acordos com o SNS para a realização de todas ou de algumas daquelas actividades. Em 1993 foi aprovado o estatuto do SNS passando a englobar cinco Administrações Regionais de Saúde (ARS) às quais foi conferida a máxima autonomia e competência para coordenar a actividade de todos os serviços de saúde, incluindo, pela primeira vez, os hospitais. Concretizando, o conceito de SNS engloba CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde diversos níveis de cuidados (os chamados cuidados primários, os cuidados hospitalares e os cuidados continuados) exigindo, para o respectivo funcionamento, recursos humanos e materiais. Cuidados de Saúde Primários (CSP) Os centros de saúde ou estruturas vocacionadas para a prestação dos cuidados primários, de acordo com a filosofia da tutela, deveriam constituirse em “grupos personalizados” formando, juntamente com os hospitais em determinada área definida, as chamadas “unidades locais de saúde” com gestão única. Em 2008 a oferta de cuidados de saúde primários (CSP) pelo SNS em Portugal Continental é assegurada por 378 centros de saúde com 1930 extensões. Em 2006 teve início a reforma e reconfiguração dos CSP, tendo-se verificado a abertura das chamadas unidades de saúde familiar (USF) com o objectivo de melhor articulação com outras valências da saúde e mais fácil acesso dos utilizadores. Cuidados Hospitalares Pediátricos /Hospitais Estatais Em 2008 a rede hospitalar do SNS do continente integrava 94 hospitais organizados em 20 centros hospitalares, incluindo 83 hospitais especializados com assistência pediátrica), 10 hospitais centrais especializados com serviços pediátricos, e 3 hospitais centrais especializados pediátricos. A partir de 2006 o arranque da telemedicina nalgumas instituições tem contribuído para a melhoria da articulação institucional. Em 2008 a Comissão Nacional da Saúde da Criança e do Adolescente (CNSCA) divulgou a chamada Carta Hospitalar de Pediatria que definiu os requisitos mínimos para os serviços que prestam cuidados a crianças e jovens; neste documento são definidos 2 tipos de Serviços de Pediatria: Geral e Especializada (SPG e SPE). No mesmo documento foram estabelecidos os seguintes princípios: 1) SPG para 60.000 indíviduos até 18 anos e 1 SPE para 300.000. 2) Nos SPG, quadro de 7 pediatras com < 55 anos (ou 14 pediatras se existir maternidade). 3) SPE com Urgência de Cirurgia Pediátrica. 4) Desenvolvimento de unidades de internamento de curta duração. 7 Cuidados Continuados Em 2003 foi aprovada a Rede de Cuidados Continuados constituída por todas as entidades públicas, sociais e privadas (incluindo as Misericórdias) com a finalidade de promoção de bem estar e conforto aos cidadãos (incluindo crianças) portadores de doenças crónicas ou de situações de limitação funcional em articulação com os cuidados de saúde primários e hospitalares. Trata-se duma valência lançada em 2006 ainda em fase de desenvolvimento que será abordada em capítulo especial. Recursos Humanos e Financeiros Em 2007, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), para a população de 10.617.575 habitantes (correspondendo, a população de idade inferior a 18 anos, a 2.116.869 habitantes) os custos na área da saúde corresponderam a 9,3% do produto interno bruto(PIB). Em 2006 o peso das verbas absorvidas pelo serviço nacional de saúde (SNS), enquanto parte integrante do sistema de saúde, representou cerca de 13% da despesa efectiva do Estado e 6,1% do PIB. Tal despesa aumentou cerca de 25% desde 1995 (ano em que representava 4,9% do PIB) sendo tal aumento, em percentagem do PIB, o maior entre todos os países da OCDE. Em termos comparativos cabe referir que países como a Espanha, Irlanda e Reino Unido gastaram menores percentagens do PIB com a despesa pública da saúde do que Portugal (respectivamente valores de 5,2%, 4,5% e 6%). A população portuguesa era então servida por cerca de 174963 profissionais da saúde (correspondendo a 3,4% da população empregada). Em 2007 encontravam-se inscritos nas respectivas Ordens 38488 médicos (sendo 66% especialistas – incluindo esta percentagem 1372 pediatras e 40 pedopsiquiatras), 3700 dentistas, 8400 farmacêuticos e 39300 enfermeiros. Os hospitais absorvem 72% dos médicos do SNS. Relativamente à idade dos médicos importa salientar as seguintes percentagens: 17% de idade inferior a 35 anos e 11,4% de idade superior a 65 anos. Para o cumprimento das actividades relaciona- 8 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA das com os CSP, o SNS contava no mesmo ano com 6976 médicos, 6850 enfermeiros e 875 técnicos de diagnóstico e terapêutica. As mulheres dominam nas profissões mais importantes do sistema (51,3% nos médicos e 82,2% nos enfermeiros) Considerando a globalidade de pediatras, 71,6% (ou 983) exercem funções na rede do SNS. De registar o número escasso de pediatras (< 50) considerados remanescentes, com quadro a extinguir nos centros de saúde, o que está de acordo com actual política de saúde que considera a assistência à criança e adolescente nos cuidados primários a cargo do médico de família-clínico geral. A taxa de cobertura em saúde infantil a nível nacional ronda os 90% sendo que 85% das respectivas consultas são efectuadas nos CSP. No respeitante à relação médico/habitante (salvaguardando assimetrias regionais relacionadas com maior concentração populacional e de médicos no litoral) existiam, em 2005, as seguintes ratios: 1 médico/300 habitantes verificando-se assimetrias: Coimbra – 1/197; Bragança – 1/793. Em 2007 verificava-se défice de médicos família: 404 (excepção para a zona centro). Problemas organizativos Diversos estudos recentes têm evidenciado alguns problemas ou pontos fracos do sistema, com repercussão na prestação de cuidados à criança e adolescente: • listas de espera, quer nos centros de saúde, quer nos hospitais; • excessiva procura dos serviços de urgência dos hospitais centrais por oferta insuficiente de consultas nos hospitais e centros de saúde; • deficiente articulação entre os vários níveis de cuidados; • assimetrias regionais qunto à distribuição de pediatras, concentrados sobretudo nos grandes centros de Lisboa, Porto e outras grandes cidades do litoral em contraste com a desertificação do interior; • défice de pediatras para a organização dos serviços de urgência pediátrica de Lisboa e Porto; • elevada prevalência de pediatras com idade superior a 50 anos; • défice de profissionais de enfermagem condicionando o recurso à “importação” de elementos estrangeiros; • escassa relevância dada à investigação ligada aos cuidados de saúde nas diversas vertentes. Numa tentativa de minorar as dificuldades resultantes do excessivo afluxo de doentes pediátricos aos serviços de urgência nas grandes cidades, a tutela determinou, no ano 2000, uma nova metodologia de acesso aos serviços de urgência hospitalar, considerando que o acesso ao Serviço Nacional de Saúde se processava através do centro de saúde. Para atingir tal objectivo foi criado um serviço de atendimento/consultadoria permanente por via telefónica 24 horas/dia (em 1998 em Lisboa e Coimbra e, mais tarde para todo o país) com o nome de Saúde 24-Pediatria dirigido ao grupo etário 0-14 anos, segundo um modelo aplicado nos Estados Unidos a cargo de profissionais com formação específica. Os resultados de tal estratégia que contempla também a comunicação do centro de atendimento com a estrutura hospitalar para a qual o doente poderá ser encaminhado, foram positivos apenas nos dois primeiros anos de funcionamento o que pode ser explicável pelo facto de aquela não ter sido acompanhada doutras medidas complementares de sustentabilidade. Em 2007 teve início um programa de reestruturação dos serviços de urgência hospitalares encerrando alguns com o objectivo de concentração de recursos humanos e materiais noutros hospitais de determinada região tendo em vista a melhoria dos cuidados. Esta medida que contempla a garantia do sistema de transporte tem sido contestada em zonas do interior, desertificadas e de mais difícil acesso. O exemplo da reorganização perinatal Com a década de 80, coincidindo com uma fase de sensibilização dos órgãos do poder para a necessidade de reformas na saúde materno-infantil e de melhoria dos indicadores de saúde perinatal, iniciou- se uma fase de diferenciação da Pediatria em Portugal. Desde então até à actualidade registaram-se progressos notórios no panorama assistencial, quer no âmbito dos cuidados primários (in- CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde cluindo a assistência à grávida), quer no âmbito dos cuidados hospitalares (distritais e centrais). Avançou-se na reorganização da assistência à grávida e recém-nascido, na modernização e reequipamento das instituições, e numa mais efectiva cooperação entre obstetras, pediatras e outros profissionais da área biomédica. Pode afirmar-se que este período representa a conclusão dos passos fundamentais do modelo clássico sequencial de assistência perinatal clássico iniciado com os progressos dos cuidados pré-natais e da assistência ao parto em condições de segurança (pessoal treinado e equipamento adequado) e que culminou com o arranque das unidades de cuidados intensivos neonatais e do sistema de transporte do recém-nascido, da regionalização, e dos centros de diagnóstico pré-natal. Diversos grupos de trabalho e comissões nacionais tiveram um papel crucial, apontando estratégias indispensáveis para tornar efectivos conceitos anteriormente delineados, tendo sido e tomadas medidas consideradas corajosas e inovadoras. Salientam- se as grandes linhas de actuação: a) encerramento das maternidades com número de partos inferior a 1500/ano, sendo que em 2007 o processo é retomado com a decisão de encerramento de mais blocos de partos; b) definição das estruturas nucleares de assistência materno-neonatal reclassificando os hospitais, em dois grandes grupos: hospitais de apoio perinatal (HAP) correspondendo, em geral, aos hospitais distritais, integrando unidades de cuidados intermédios, com competência para prestar cuidados a grávidas e recém-nascidos saudáveis e de médio risco; hospitais de apoio perinatal diferenciado (HAPD) correspondendo, em geral, aos hospitais centrais, com competência para prestar cuidados a recém-nascidos e grávidas de alto risco, integrando unidades de cuidados intermédios e intensivos; c) a criação das estruturas funcionais designadas por unidades coordenadoras funcionais (UCF) constituídas por profissionais de diversas instituições duma região, garantindo correcta articulação entre os cuidados primários e cuidados hospitalares; d) a necessidade de formação de pediatras com competência em Neonatologia; e) chamada de atenção para a enorme importância do conceito de transporte in utero, reiterando o que anteriormente fora estabelecido, mas seguramente não eficazmente concretizado. 9 No âmbito deste plano foram redefinidos em pormenor, quer o equipamento técnico necessário, quer o número de pediatras, obstetras,anestesistas,outros especialistas e enfermeiros, considerados indispensáveis para o funcionamento dos HAP e HAPD. Saúde Infantil e Juvenil no Mundo O estado de saúde duma população pode ser avaliado por certos índices (dados estatísticos relacionados com a mortalidade, morbilidade, condições de vida e de salubridade do ambiente, entre outros). Seguidamente faz-se referência sucinta a alguns dados de mortalidade e morbilidade no âmbito da idade pediátrica traduzindo o panorama dos países em desenvolvimento, dos países industrializados, e de Portugal (que, segundo estatísticas internacionais, faz parte dos 38 países industrializados e desenvolvidos do mundo). Países em desenvolvimento No início da década de 80 a mortalidade no período neonatal (primeiras 4 semanas) representava cerca de 45% da mortalidade no primeiro ano de vida em todas as regiões excepto em África onde a proporção inferior (26%) era explicada pelo elevado número de óbitos pós-neonatais resultantes da malária. No mesmo período, considerando as seis regiões definidas pela OMS, no que respeita à mortalidade no grupo etário 0-5 anos, salienta-se que 42% dos óbitos ocorreram em África e 29 % no sueste asiático. Entretanto, na década de 90, eram divulgados alguns resultados considerados animadores quanto a indicadores de saúde testemunhando concretização de algumas metas (que pareciam inatingíveis na década de 70) em zonas do globo de recursos muito precários: a) diminuição significativa da incidência de seis doenças com elevadas taxas de mortalidade nalguns países mais pobres (mais de 8 milhões de mortes anuais) – sarampo, pneumonia, gastrenterite, tétano, tosse convulsa, subnutrição; b) melhorias quanto à gravidade de sequelas no que respeita a doenças como poliomielite, carência em iodo, oncocercose, tracoma, xeroftalmia, como consequência de acções 10 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA específicas desenvolvidas (políticas de acessibilidade universal e equitativa aos serviços de saúde, acesso universal à educação, maior disponibilidade de alimentos, formação de profissionais de saúde, e apoio de carácter técnico ou organizativo por parte de países de maiores recursos). Em 1994, através da Comissão de Vigilância Epidemiológica da Rússia, foi chamada a atenção dos gestores da saúde para o papel da estabilidade político-económica em diversas regiões e países como garantia de êxito das medidas a levar a cabo para a melhoria do panorama da saúde em geral, e da saúde infantil em especial: o exemplo vem precisamente da Rússia, país em que, com a degradação económica, se verificou declínio da esperança de vida na população, a par do aumento da incidência de doenças infecciosas (respectivamente 290% e 180% em 1993 e 1994). Em 2001 a Organização Mundial de Saúde (OMS) criou o Child Health Epidemiology Reference Group (CHERG) para a obtenção de dados sobre mortalidade infantil em todo o mundo. De acordo com os estudos realizados por aquele grupo de estudo apurou-se que nos anos de 2005 e 2006 morreram em todo o mundo cerca de 11 milhões de crianças com idade inferior a 5 anos correspondendo a grande maioria de tais óbitos (73%) a seis causas principais: problemas respiratórios (19%), diarreia (18%), malária (8%), infecção sistémica do recém-nascido (10%), parto prematuro (10%), complicações do parto (8%). Salienta-se que a infecção sistémica e a pneumonia explicaram 26% de todos os óbitos no grupo etário pediátrico. Considerando a relação entre grupos nosológicos e mortalidade nas crianças de idade inferior a 5 anos, foram apurados os seguintes valores percentuais: má- nutrição- 53%, diarreia- 61%, pneumonia -52%, sarampo- 45%. Apesar do reconhecimento dos direitos das crianças e de todas as recomendações dos organismos internacionais, designadamente da ONU, o relatório “Situação Mundial da Infância referente a 2005” mostra claramente que, para cerca de 50% dos dois biliões de crianças e jovens que vivem no mundo, com especial relevância para os dos países pobres em desenvolvimento, o panorama da sáude é total e brutalmente diferente do ideal que se pretende atingir parafraseando Kofi Annan, Secretário Geral das Nações Unidas. Eis alguns dados expressivos dos países em desenvolvimento divulgados no referido relatório: • os gastos militares nos países em desenvolvimento consomem cerca de 140 biliões de dólares por ano, recursos suficientes para acabar, em dez anos, com a pobreza absoluta em todo o planeta e satisfazer as suas necessidades básicas de alimentação, água, saúde e educação; • cerca de 121 milhões de crianças, na imensa maioria vivendo nos países africanos ao sul do Saará, não frequentam a escola sendo-lhes negado o seu direito à educação em contradição com o compromisso dos governantes ao assinarem a Convenção sobre os Direitos da Criança; • diariamente cerca de 30 mil crianças morrem devido a doenças evitáveis, o que se traduz em 11 milhões de mortes infantis por ano; • mais de meio milhão de mães morre anualmente por complicações surgidas durante a gravidez e parto; • mais de 2 milhões de crianças de idade inferior a 15 anos estão infectadas com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) fazendo prever número superior a 18 milhões de crianças órfãs como consequência da síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA) persistindo para além de 2015; • a malária continuará a ser uma das principais causas de morte infantil, pois a disponibilidade e a utilização de mosquiteiros e medicamentos são limitadas por razões comportamentais e financeiras; • a prática da mutilação genital feminina ainda é levada a cabo em cerca de 2/3 das crianças em países africanos desenvolvendose actualmente uma campanha liderada pela UNICEF e o patrocínio e exemplo do governo de Burquina Fasso onde uma importante campanha de educação pública suportada por legislação conseguiu reduzir a respectiva incidência em 32%; • nas áreas rurais mais de 1 bilião de pessoas, (um quinto da humanidade) ainda carece de alimentação adequada, saneamento básico mínimo, água potável, níveis elementares da educação e de serviços básicos de saúde; • mais de 250 mil crianças continuam a morrer CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde em cada semana por diarreia e desnutrição evitáveis, não beneficiando duma medida de baixo custo, o soluto de reidratação oral da OMS; • o sarampo, a tosse convulsa e o tétano, doenças susceptíveis de prevenção com vacinas de baixo custo, ainda matam diariamente 8 mil crianças. No cômputo geral da mortalidade no grupo etário pediátrico nas seis regiões da OMS, a síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA), a infecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência humana) e a tuberculose constituem hoje os principais problemas globais da saúde. Como pontos positivos do panorama da saúde mundial de acordo com o relatório UNICEF 2008 cabe particularizar: o exemplo da China onde se está a operar a Segunda Revolução – a da Saúde, com diminuição da TMM5 de 47% desde 1990; e o doutros países (Butão, Bolívia, Nepal, Laos) com diminuição de 50%. Países industrializados Nos países industrializados de economia evoluída, com uma problemática da saúde completamente diversa, foi também possível na década de 90 obter progressos assinaláveis face ao desenvolvimento da biologia molecular, da tecnologia biomédica, das neurociências, da cirurgia de transplantação, do intensivismo médico-cirúrgico e do projecto do genoma humano. Tais progressos podem ser testemunhados pela análise de alguns indicadores referidos adiante, a propósito da comparação do panorama português com o doutros países. No entanto, nestes países, a par do desenvolvimento em áreas de ponta da medicina, tem emergido dramaticamente outro tipo de problemas, muitos deles em focos degradados das grandes cidades como sejam: a disfunção familiar, a gravidez na adolescência, a delinquência juvenil, o problema das “crianças de rua” , a toxicodependência, a infecção pelo VIH, a violência e o estresse.Tais problemas, criando novas morbilidades, obrigam a programas integrados de intervenção social. Duas situações merecem uma referência especial: a obesidade e as situações de pobreza nos países ricos; 11 • a obesidade corresponde a uma situação da mais elevada prevalência nos países da abundância, aparecendo, no entanto, já nos países em desenvolvimento como a Índia; trata-se, efectivamente da grande epidemia do séc XXI (a abordar no capítulo 57) conduzindo a uma redução da esperança de vida pela co-morbilidade associada; em termos de patologia assiste-se a uma ambivalência insólita pois noutras partes do globo muitas crianças, adolescentes e adultos morrem de fome; • quanto às situações de pobreza nos países ricos, este problema foi recentemente objecto de um documento da UNICEF levado a cabo pelo Innocenti Research Centre no âmbito dos países da OCDE nos quais se inclui Portugal; nele se refere que, entre os referidos países com maior taxa de pobreza se incluem os Estados Unidos da América do Norte e o México(20%); quanto aos de menor taxa, simultaneamente menos populosos, são mencionados a Dinamarca e a Finlândia, com menos de 3%, juntamente com a Suécia e a Noruega, com cerca de 5%. Portugal juntamente com o Reino Unido, Itália, Irlanda e Nova Zelândia surgem com taxas consideradas altas: 15 – 17%. Saúde Infantil e Juvenil em Portugal Como indicadores de desenvolvimento dum país são habitualmente considerados, entre outros, a esperança média de vida da população, a capitação do produto nacional bruto (PNB), o poderio militar, a taxa de mortalidade infantil (TMI) e a taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5). Para avaliar o bem-estar da criança considerase actualmente que a TMM5 constitui o critério mais adequado, pois ele traduz, com maior confiabilidade, as condições de desenvolvimento social e económico, o grau de educação para a saúde da família e cidadãos em geral, a disponibilidade de serviços de saúde materno-infantil incluindo os de assistência pré-natal, a disponibilidade de saneamento básico e a segurança do meio ambiente em que a criança vive. Por outro lado, a TMM5 é menos influenciada TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 1975 38,9 1980 24,3 1981 21,8 1982 19,8 1983 19,3 1984 16,7 1985 17,1 1986 15,9 1987 14,2 1988 13,0 35 1989 12,1 30 1990 10,9 25 1991 10,8 1992 9,2 20 1993 8,6 15 1994 7,9 10 1995 7,4 1996 6,8 1997 6,4 1998 5,9 1999 5,5 2000 5,4 2001 4,9 2002 5,0 2003 4,1 /1000 NV 45 40 5 2003 2001 1999 1997 1995 1991 1993 1989 1985 1987 1983 1981 1975 0 DGS/DSIA Fonte: Direcção Geral da Saúde FIG. 1 Mortalidade Infantil em Portugal. 15,1 1989 14,5 1990 12,4 1991 12,1 1992 10,8 1993 10,1 1994 9,2 1995 9,0 1996 8,4 1997 7,2 1998 6,7 1999 6,3 2000 6,1 2001 5,5 2002 5,9 2003 5,1 35 30 25 20 15 10 5 0 2003 16,6 1988 2001 1987 /100000 (NV+FM) 1999 18,2 1997 19,8 1986 1993 19,2 1985 1995 21,1 1984 1991 22,1 1983 1987 22,8 1982 1989 23,9 1981 1985 31,9 1980 1983 1975 1981 pela falácia dos valores traduzidos pela noção aritmética de “média” do que o PNB per capita. Com efeito, para dar um exemplo, a escala natural não permite que a probabilidade de uma criança rica sobreviver seja mil vezes maior do que a duma criança pobre, ainda que a escala feita pelo homem lhe permita ter um rendimento mil vezes maior; ou seja, é muito pouco provável que uma TMM5 nacional seja afectada por uma minoria rica. A velocidade com que se avança na redução da TMM5 pode ser determinada pela respectiva taxa média de redução anual (TMRA) devendo ser realçado que uma diminuição de, por exemplo dez pontos de uma TMM5 elevada tem significado diferente de uma mesma diminuição de dez pontos a partir de uma TMM5 mais baixa (uma diminuição na TMM5 de 10 pontos entre 100 e 90, representa uma redução de 10%,enquanto a mesma redução de 10 pontos, entre 20 e 10, representa uma redução de 50%). Cabe referir, a propósito, que a não verificação de uma relação fixa entre a TMRA e a taxa de crescimento anual do PNB leva a concluir que há necessidade de reajustamentos nas políticas de saúde e nas prioridades tendo em vista o progresso económico e o progresso social. Escasseando em Portugal as estatísticas nacionais de morbilidade sistematizada, a taxa de mortalidade infantil é ainda o indicador mais utilizado para reflectir a saúde infantil A mortalidade infantil é analisada, geralmente, em função de duas componentes: a mortalidade neonatal, que se refere aos óbitos de crianças com menos de 28 dias de vida, e a mortalidade pós-neonatal, relativa aos óbitos com idade compreendida entre 28 dias e um ano (consultar glossário). A mortalidade neonatal encontra-se associada a anomalias congénitas e a complicações da gravidez e do parto. A mortalidade pós- neonatal está associada às condições de vida, a deficiências sanitárias e a acidentes diversos. O chamado “ponto de civilização”(conceito relacionado com progresso), ou seja o ano a partir do qual a mortalidade pós-neonatal passou a ter uma taxa inferior à da mortalidade neonatal, foi atingido em Portugal em 1974, muitos anos depois de outros países como o Reino Unido, a Alemanha e a França. Até então, efectivamente, tinha-se registado algum progresso no respeitante à mortali- 1975 12 DGS/DSIA Fonte: Direcção Geral da Saúde FIG. 2 Mortalidade Perinatal (28 e mais semanas) em Portugal. dade pós-neonatal, continuando estáveis as taxas de mortalidade neonatal e fetal tardia (NV + FM). As figuras 1 e 2 resumem respectivamente a evolução dos seguintes indicadores: – mortalidade infantil (com taxa de 77,5/1000 em 1960, baixando progressivamente para 7,9/1000 em 1994 e para 3,3/1000 em 2006); – mortalidade perinatal – considerando o limite de 28 e mais semanas – reduzindo-se de 31,9/1000 em 1975 para 12,4/1000 em 1990 e para 5,1/1000 em 2003. Quanto à natalidade (decrescente desde 1960 com 213895 nado vivos) há a registar os seguintes dados: em 1980, com 158352 nado vivos; em 1990 com 108845 nado vivos; em 2003 com 112589 nado vivos; e em 2007 com 102.492 correspondendo à natalidade mais baixa desde 1960. Relativamente à proporção de partos sem assistência, também a evolução é muito significati- 13 CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde /1000 NV 45 40 Finland 35 QUADRO 2 – Taxa de mortalidade de menores de 5 anos referido a determinado ano (TMM5) (nº de óbitos entre a data de nascimento e precisamente os 5 anos de idade por 1000 nado-vivos no referido ano) France 30 Greece Italy 25 Luxembourg Portugal 20 Spain Switzerland 15 TMM5 (em 2007)* 3 4 5 5 8 United Kingdom 10 EU members 5 2003 1999 2001 1997 1993 1995 1991 1989 1987 1983 1985 1981 1979 1977 1975 0 WHO/Europe, 2005 Fonte: Direcção Geral da Saúde FIG. 3 Suécia Noruega Portugal Dinamarca Estados Unidos Mortalidade Infantil na Europa. /1000 NV 30 25 Finland France 20 Greece Italy Luxembourg 15 Portugal Spain Switzerland 10 United Kingdom EU members 5 2003 1999 2001 1995 1997 1991 1993 1989 1987 1985 1981 1983 1979 1977 0 1975 va: 61% no ano de 1950, 0,4% no ano de 2000 e 0,2% em 2006. Em 2004 a mortalidade infantil foi comparticipada em 68% por óbitos neonatais, e em 32% por óbitos pós-neonatais No âmbito da União Europeia (EU), como se pode verificar na Figura 3, Portugal registava em 1985 a mais elevada mortalidade infantil (17,8/1000) relativamente aos países restantes. Nesse ano, a média europeia situava-se nos 9,5 óbitos até ao 1 ano de idade por mil nado vivos. De salientar que em 2004 em Portugal registou a 5ª melhor posição quanto a taxas de mortalidade infantil e de mortalidade perinatal . No referente à TMM5, em 2007, Portugal ocupava o 3º lugar exaequo com outros 11 países, entre 194 (Quadro 2). De assinalar que o nosso país, (1985 – 2001), entre todos os estados membros da EU, registou a maior variação na descida da mortalidade infantil, neonatal e perinatal (redução de 71,9%) em confronto com as médias respectivas da EU (menos 51,6%). No que se refere às taxas de mortalidade infantil no nosso país, é importante salientar grandes variações regionais: em 2003 as taxas oscilaram entre 2,9/1000 e 7,9/1000. A evolução das taxas de mortalidade infantil e perinatal em vários países da EU no período compreendido entre 1975 e 2003 pode ser observada nas Figuras 3 e 4. O Quadro 3 dizendo respeito aos óbitos por grupos etários e às respectivas causas (ano de 2003) sugere as seguintes considerações: a) as qua- WHO/Europe, 2005 Fonte: Direcção Geral da Saúde FIG. 4 Mortalidade Perinatal na Europa. tro causas mais frequentes de mortalidade dos 0-19 anos foram, por ordem decrescente, problemas perinatais, causas externas e acidentes de transporte, as anomalias congénitas e os tumores sólidos; b) no primeiro ano de vida as anomalias congénitas e os problemas do período perinatal representaram mais de 50% dos óbitos respectivos; c) os acidentes de transporte e as causas externas foram mais frequentes entre os 15 e 19 anos; d) elevada dimensão numérica do item doenças não classificadas traduzindo insuficiência de informação clínica nos certificados de óbito relacionável com baixo índice de realização de autópsias em Portugal em comparação com outros países; e) a relação entre o número de óbitos no 1º ano de vida e o número de óbitos dos 0-19 anos foi 475/1336 ou 35,5%; f) a relação entre o * Entre os 24 países do mundo, com melhores taxas, o valor mais baixo, de 3 é representado pela Suécia, e os mais elevados respectivamente de 284 e 260, pela Serra Leoa e por Angola. 14 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Mortalidade por causas e idades (Ano de 2003) Portugal Causas 0–<1 D. Infec. Intest. 1 Infec. Meningoc. 8 Septicemia 4 D. S. T. 1 Infec. VIH Meningite 2 Outras D.I.P. Pneumonia 7 D. Pulm. Crónica 2 Outras D. Resp. 3 Tumor sólido 2 Leucemia 1 Anemia 1 D. Fígado 2 Diabetes mellitus D. Ment. Comport. D. Cérebr. Vascul. 4 D. Card. Reum. Crón.D. Isquém. Card. Outras D. Card. 7 D. Perinatais 238 Anomal. Congén. 117 Ac. Transporte 5 Causas Externas 19 Quedas Afogamento D. Não Classificadas 51 Totais 475 1–4 1 3 2 3 1 6 1 2 2 5 2 1 4 1 21 15 38 3 7 35 153 5–9 10–14 15–19 Total 2 1 1 13 2 8 1 2 2 2 1 1 7 1 1 2 5 2 3 4 22 1 1 2 7 1 2 8 10 15 20 49 5 2 1 14 1 1 3 2 1 1 1 1 1 3 9 19 1 1 1 2 4 3 3 10 27 1 240 11 5 7 161 21 32 108 181 43 44 169 313 3 2 5 13 6 3 10 26 24 35 60 205 133 155 420 1336 Abreviaturas: Intest-intestinal; Infec.-infecção; Meningococ-meningocócica; DST-doenças sexualmente transmissíveis; VIH-vírus da imunodeficiência humana; DIP-doenças infecciosas e parasitárias; Resp-respiratória; Cérebr-vascul-cérebro-vascular; Card-cardíaca; Anomal.-anomalias; Ac.-acidentes; d-doenças. (Idades em anos). D. Ment. Comport.-doenças mentais e comportamentais. Fonte: INE/Direcção Geral da Saúde, 2003 número de óbitos dos 0-19 anos e o número de óbitos em todas as idades foi 1336/109148 ou 1,2% (dados do Instituto Nacional de Estatística/INE). A título comparativo, o Quadro 4 descreve as quatro principais causas de mortalidade infantil nos Estados Unidos em 2002, sobressaindo o papel das anomalias congénitas e dos problemas perinatais. A comprovação da síndroma de morte súbita infantil como causa importante relaciona-se com a taxa elevada de autópsias realizadas neste país, em contraste com o panorama de Portugal. QUADRO 4 – Taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos da América, 2002 (7/1000 em 4021726 nado-vivos) Valor percentual das quatro principais causas – Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20% – Problemas relacionados com baixo peso de nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17% – Síndroma de morte súbita infantil . . . . . . . . . . . . . . 8% – Problemas relacionados com patologia materna, da gravidez e parto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10% Fonte: American Academy of Pediatrics. Annual Summary of Vital Statistics: 2004. Pediatrics 2006; 117: 168- 183 QUADRO 5 – Mortalidade por principais causas (1-19 anos) EUA Causas n’ Lesões acidentais 10.892 Homicídio 2.512 Tumores malignos 2.118 Suicídio 1.712 Anomalias congénitas 1.098 Cardiopatias 812 Gripe e pneumonia 362 Doença respiratória crónica 224 Infecções sistémicas 218 Doenças cerebrovasculares 186 Outras afecções não descritas % 43,2 10,0 8,4 6,8 4,4 3,2 1,4 0,9 0,9 0,7 Taxa/100000 dos 1-19 13,4 3,1 2,6 2,1 1,4 1,0 0,4 0,3 0,3 0,2 Fonte: American Academy of Pediatrics .Annual Summary of Vital Statistics: 2004. Pediatrics 2006; 117: 168- 183 (EUA: Estados Unidos da América do Norte) Para comparação com o panorama nacional de causas de morte entre os 1 e os 19 anos, transcreve-se o Quadro 5 que consta das Estatísticas de Saúde do ano de 2002 dos EUA; salienta-se o papel das lesões acidentais, dos tumores e das anomalias congénitas. São referidos seguidamente alguns indicadores de mortalidade, morbilidade, desenvolvimento, e taxas de imunização, comparando dados de Portugal com os doutros países. (Quadros 6, 7 e 8). Dados de morbilidade Em Portugal a análise de dados sistematizados nacionais sobre morbilidade depara com algumas limitações, estando disponíveis apenas dados parce- 15 CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde QUADRO 6 – Indicadores Básicos (ano de 2006) País Portugal Noruega Austrália Áustria Brasil Canadá Egipto USA França Grécia Costa Rica Eslovénia Espanha TMM5 TMI 5 4 6 5 34 6 36 8 5 5 10 4 5 3,3 3 5 3,5 32 5 26 7 4 4 8 4 3,5 População (milhares) 10579 4533 20731 8316 183913 31958 72642 305410 60257 10976 4173 1967 43646 Nascimentos (Milhares/ano) 105 56 255 71 3728 338 1890 4234 763 113 80 17 468 Fonte: UNICEF, 2008 USD: dólares dos Estados Unidos lares sobre problemas específicos publicados por grupos de investigadores institucionais em revistas científicas, ou obtidos através da consulta das publicações do Instituto Nacional de Estatística (INE), do Observatório Nacional da Saúde (ONSA), do Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis (CVEDT) e do Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas (CERAC) ligaQUADRO 7 – Percentagem de crianças vacinadas ao 1 ano de idade (%) (ano de 2006) País Portugal Noruega Austrália Áustria Brasil Canadá Egipto USA França Grécia Costa Rica Eslovénia Espanha BCG DTP 89 99 – 90 – 92 – 84 99 99 91 88 98 98 – 96 85 97 88 88 87 88 98 92 – 98 HB= Hepatite B Hib= Hemophilus influenzae b PNB /USD Esperança de vida (per capita) (anos) 18170 78 43350 80 21650 81 26720 80 3090 72 36170 80 1350 70 44400 78 34770 80 26610 79 4980 79 18810 78 27570 81 Pólio Sarampo 96 96 90 84 92 93 84 79 99 99 95 – 98 98 91 93 97 86 87 88 88 89 93 94 98 97 HB 95 – 95 83 99 – 98 92 29 88 86 – 83 Hib 93 94 94 83 99 94 94 94 87 88 89 97 98 Fonte: UNICEF, 2008 dos ao Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, ou dos Médicos-Sentinela. No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) funciona desde 2001 um departamento intitulado Unidade de Vigilância Pediátrica (UVP) – fazendo parte da “International Network of Pediatric Surveillance Units”, actualmente em parceria com o ONSA. Os seus objectivos são proQUADRO 8 – Taxa de prevalência de infecção por VIH (ano de 2006) Estimativa de nº em milhares País 15-49 A 0-49 A 0-14 A Mulheres: 15-49 A Portugal 0,4 22 – 4,3 Noruega 0,1 2,1 – <0,5 Austrália 0,1 14 – 1 Áustria 0,3 10 – 2,2 Brasil 0,7 660 25 190 Canadá 0,3 56 – 13 Egipto <0,1 12 – 1,6 USA 0,6 50 – 240 França 0,4 120 – 32 Grécia 0,2 9,1 – 1,8 Costa Rica 0,6 12 – 4 Eslovénia <0,1 <0,5 – – Espanha 0,7 140 – 27 A= idade em anos Fonte: UNICEF, 2008 16 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA mover, facilitar e desenvolver o estudo de doenças raras ou pouco frequentes, importantes para a Pediatria e Saúde Infantil. Os dados são obtidos através dum sistema de notificação mensal mediante envio de cartões para preenchimento de retorno sistemático pelos sócios da SPP e médicos exercendo funções em instituições prestando cuidados à criança e adolescente. Até Janeiro de 2008 foram ou estão a ser investigadas as seguintes doenças: Diabetes mellitus antes dos 5 anos, Síndroma hemolítica urémica, Doença de Kawasaki, Infecção por Streptococcus B até aos 2 meses de vida, Encefalomielite /Mielite, Infecção congénita por citomegalovírus (CMV), Herpes zoster e Varicela com hospitalização, Lesões traumáticas provocadas por andarilhos, Paralisia cerebral aos 5 anos de idade e Infecção congénita por Toxoplasma gondii. De acordo com estatísticas da UNICEF o Quadro 8 refere-se a taxa de prevalência de infecção pelo VIH no ano de 2006; Portugal está entre os países da Europa mais afectado pela infecção VIH/SIDA, sendo considerado de elevada vulnerabilidade ao aumento da incidência. Ainda relativamente aos casos de infecção por VIH/SIDA, no período entre 1/1/1983 e 31/12/2005 (22 anos), o CVEDT recebeu notificação de 12702 casos (entre os 0 e > 65 anos) correspondendo 259 casos à idade pediátrica com a seguinte distribuição por grupos etários: • 0-11 meses . . . 43 (0,3%) • 1-4 anos . . . . . 26 (0,2%) • 5-9 anos . . . . . 19 (0,1%) • 10-14 anos . . . 19 (0,1%) • 15-19 anos . . . 152 (1,2%) Relativamente ao tipo de transmissão, refira-se que, no mesmo período, em 76 casos foi comprovada a transmissão vertical mãe/filho). Com base nas estatísticas do INE e da Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente, são referidas seguidamente diversas formas de morbilidade em idade pediátrica, representativas da situação actual no nosso país; algumas destas situações serão retomadas noutros capítulos. – Acidentes rodoviários: rácio de 1 óbito/3 doentes crónicos com sequelas – Lesões traumáticas por actos de violência (2002-2004): 479 crianças (0-14 anos) hospita- lizadas em instituições do Serviço Nacional de Saúde – Síndroma de hiperactividade: ~50 mil casos (97% em idade pediátrica) – Situações de risco social (incluindo casos de maus tratos) : cerca de 3000 crianças hospitalizadas no ano de 2003, aumentando cerca de 20% em 2004 – Situações de violação dos direitos das crianças (trabalho infantil): Portugal e os EUA, considerados países moderados em relação aos que mais atentados perpetram: China e Nepal – Antes da integração dos novos países que passaram a integrar a Europa dos 27, Portugal era o país da EU com maior incidência de sífilis congénita. Em suma, pode afirmar-se que para a melhoria dos indicadores de saúde infantil e juvenil em Portugal (salientando-se que a mortalidade infantil baixou cerca de 75% entre 1980 e 1998, sendo actualmente, como a perinatal, a 3ª melhor da União Europeia) contribuiram, esssencialmente, os progressos no nível educacional da população, o desenvolvimento da rede de cuidados primários, a melhoria da assistência ao parto e dos cuidados perinatais, o plano nacional de vacinação (com taxas de cobertura que são superiores a 98 % conduzindo a diminuição drástica das doenças infecciosas nos primeiros dois anos de vida), a organizção da assistência perinatal, e o desenvolvimento do intensivismo neonatal e pediátrico incluindo o respectivo transporte. No cômputo geral das causas de mortalidade em idade pediátrica sobressaem actualmente, os problemas perinatais (nas primeiras idades), os tumores, os acidentes e as situações relacionadas com actos violentos (na segunda infância e adolescência). 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Sol 2007, (12 Maio): 12 Teixeira MF, Rodrigues SR. 2006-Retrospectiva Tempo Medicina 2007; (1230-5/2): 3-29 UNICEF – The State of the World’s Children 2006. New York: UNICEF. House Edition, 2006 UNICEF – The State of the World’s Children 2007. New York: UNICEF House Edition, 2007 UNICEF – Situação Mindial da Infância 2008. New York: UNICEF House Edition, 2008 Videira-Amaral JM: Neonatologia no Mundo e em Portugal. – Factos históricos. Lisboa: Angelini, 2004 Villaverde-Cabral M, Silva PA, Mendes H. Saúde e Doença em Portugal. Lisboa: ed. Imprensa de Ciências Sociais, 2002 www.acs.min-saude.pt (acesso em Junho de 2008) A criança passou pela História quase até ao séc. XX sem nunca ter visto ser reconhecida a sua natureza e as suas necessidades irredutíveis, designadamente a de ter direito a direitos fundamentais. A conquista de uma certa visibilidade para a infância, foi uma penosa caminhada da existência humana. A história do destino humano é, uma história de interesses que não, de facto, os da Criança. No séc. II A. C. a primeira infância mereceu de Varrão (escritor latino) uma classificação especial na hierarquização das sucessivas idades do ser humano. Nunca houve vocábulo latino para designar o bebé e a designação de lactente (alumnus) – focalizada, tão só, na propriedade de ser alimentado – determinou até há cerca de 40 anos a nomenclatura científica em vigor. Já na nossa década de 70 em concurso de provas públicas da carreira hospitalar fui «aconselhado» por membros de um júri de provas públicas a não usar a designação de bebé porque só era «cientificamente» tida como correcta a referida nomenclatura de lactente. O termo mais antigo, usado para designar a criança, foi de «puer» significando indistintamente quer a cria animal quer a cria humana. A língua latina consagrou, durante muito tempo, o termo «infans» significando, etimologicamente, aquele que não fala. Tanto a designação central de «puer» como a designação complementar de «infirmitas» (imaturidade moral e intelectual) acentuavam o estatuto deficitário da criança entendida, designadamente, como escrava na ordem social. 18 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Pais Monteiro refere, a este propósito, a associação que S. Paulo faz da criança na sua epístola aos Gálatas: «Enquanto o herdeiro é menor, se bem que seja o senhor de tudo, em nada se diferencia de um escravo». A civilização grega que tanto inspirou e inspira, ainda, a cultura da dita civilização ocidental ignorou, quase por completo, a criança. Sempre numa perspectiva reducionista, ao tratar da infância, Galeno tentou a conciliação entre o corpo e o espírito, porém sempre numa representação etimológica do mal que proviria quer do «interior natural», quer do contexto exterior que hoje identificamos à circunstância ou envolvimento de cada criança. A teologia cristã, nomeadamente em todo o Antigo Testamento, estigmatiza a criança identificando-a inequivocamente ao mal. O Novo Testamento explica muito do mal que a criança integra em função do pecado materno projectado à concepção. Em termos educacionais o pecado original determina todo o mal que a criança necessariamente vai vivenciar. Santo Agostinho congrega, a este propósito o pensamento de então referido à criança – «se a deixássemos fazer o que lhe apetece, não há crime que não a víssemos cometer». Na História da Humanidade o interesse pela criança radicou-se, tão só, na simbologia do mal. A criança foi, século a século, sem grandes variações conceptuais, esse símbolo do mal, da imperfeição, do pecado original, da culpa materna, do lugar do erro, tal como definido na filosofia cartesiana. O eventual «amor» pela criança na era romana concentrava-se no interesse que os filhos representavam como potencial força militar necessária à máquina da guerra. Apesar da representação da criança presente nos sarcófagos dos Séc. III e IV, revelada na vida familiar porventura valorizadora da criança, não há qualquer prova, designadamente através da arte, de amor dos pais pelos filhos, representado esse amor como sentimento de empatia, ternura, respeito ou tão só, interesse providenciado face à criança. Badinter sintetiza sumariamente o sentimento social face à criança – «erro ou pecado, a infância é um mal». A morte de um filho é sentida como um aci- dente banal que nem merece a presença dos pais no respectivo enterro. Montaigne, mais tarde e a este propósito, confessava assim o seu sentir – «perdi dois ou três filhos na ama, não sem pesar mas sem drama». Toda a Idade Média ignora a criança e é desse testemunho a sua ausência ou porventura, a sua representação, na arte. O culto da Virgem Maria, porém, representando, então, Nossa Senhora e o Menino, projecta, sobretudo, a imagem triunfante da mulher criadora em oposição a Eva, a pecadora. As crianças na proximidade da díade divina reforçam o significado do culto já projectado na criança. Até fins da Idade Média, as crianças vestiam como os adultos, sendo, portanto, manifesta a ausência do estatuto infantil que hoje identificamos, entre outras expressões, com o vestuário infantil. Ainda em termos de Arte, poderá ser importante a dúvida sobre o significado da representação do putto (criança nua na pintura italiana do séc. XVI), tão bem simbolizada por Ticiano, num retábulo pintado em 1526. O gosto do putto terá representado um dos primeiros sinais de interesse pela criança que a Arte prodigaliza na sua missão de sempre antecipar, na esfera do sensível, o que só mais tarde o social ou político se encarrega de representar? A cultura religiosa passou, todavia, a configurar, aparentemente, algum do respeito pela infância identificado com a figura do Menino Jesus cujo modelo os artistas do séc. XVI iam buscar a crianças diferentes, designadamente com trissomia 21 ou outras situações que hoje identificamos como síndromas malformativas. Objectos que o Menino manipula, designadamente colheres, são, inequivocamente, alguns sinais de interesse pelo comportamento infantil. Porventura inexplicado é o posicionamento da criança ao colo da Virgem Maria. O designado instinto maternal faz posicionar a criança do lado esquerdo do colo da mãe e é essa a forma de colo que mães ou raparigas já púberes favorecem ao invés de homens ou raparigas prépúberes quando solicitados a colocarem um bebé ao seu colo. Do séc. X ao séc. XVII, apesar da manutenção de uma mortalidade infantil elevadíssima, a convicção da imortalidade da alma da criança passou a ser uma verdade cada vez mais sedimentada, CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança influenciada que foi por uma cristianização progressiva dos costumes. O grande debate teológico da Idade Média, na revisitação de Aristóteles, dizia respeito ao momento em que o feto seria insuflado pelo espírito de Deus, recebendo então uma alma. Até ao sec. XV o Menino é predominantemente posicionado no colo direito da Virgem. O gótico tardio consolida, então, a figura do Menino Jesus do lado esquerdo do colo, configurando, porventura, o instinto materno como marca indelével desse sentimento maternal mais puro representado por uma Virgem Maria cada vez mais envolvida com o seu Menino. A representação de um eventual interesse pela criança trazido pela Arte terá preanunciado uma viragem na história dos sentimentos face à criança. Velasquez retrata a criança filha da nobreza enquanto Goya é mais retratista da infância proletária. A arte da Renascença traz-nos, como novidade, as crianças (putti) na sua plena vitalidade encarnando, porventura, a felicidade na sua identificação com o Paraíso. É notório o contraste desta representação artística face aos quadros medievais de Brughel em que a criança é um epifenómeno das festas exteriores, posicionada num canto das telas, brincando no chão isolada do contexto social. A negligência face à criança na coerência do que temos expressado, faz parte da História da Humanidade. A expressão mais constante desta negligência foi o abandono. De Mause citado por Reis Monteiro escreveu que «a forma de abandono mais extrema e mais antiga é a venda directa de crianças». Esta venda era legal no império babilónico e era, igualmente, uma constante em muitas culturas da Antiguidade. Expressão extrema do abandono era o infanticídio, representado pelo deixar as crianças à mercê da natureza e dos predadores, nos caminhos do mundo. Porventura uma expressão menos drástica do abandono foi representada pela roda em que a criança era entregue, anonimamente, a instituições ditas de caridade ou de assistência. Outra forma de abandono que ocupou durante mais tempo a história foi representado pela entrega de crianças a amas. Fala-se de amas na Bíblia, 19 no código de Hamurabi, nos papiros egípcios, na literatura grega e romana, na tradição burguesa da Europa renascentista. No séc. XVII a procura era excedentária face à oferta. Mal nasciam, as crianças eram levadas para amas, muitas vezes localizadas longe das residências familiares. Mais de 10% das crianças emigradas em função de uma oferta mercenária, morria pelo caminho. De uma forma mais discreta, o abandono com infanticídio continuava, porém, a ser a regra. Não era socialmente dignificada, na aristocracia, a evidência do amor maternal e daí a razoabilidade da tese de que era o clima cultural que ofuscava o instinto em oposição ao conceito de Badinter de não ser o amor materno, ele próprio, um instinto humano. O abandono infantil, sobretudo nas classes sociais mais elevadas era expresso, também, pela entrega das crianças a governantas, a preceptoras e a colégios internos. O processo de emancipação da mulher nos séc. XVII e XVIII inspirava, de facto, muitos dos comportamentos familiares impondo o interesse dos progenitores a qualquer interesse da criança ainda sem direitos, sem privilégios, sem amor. No séc. XVII, a infância não suscitava, ainda, nenhum interesse particular e poderá ter sido causa parcial desta evidência a alta mortalidade infantil que fazia poupar sentimentos vinculadores dentro da família. Com Rousseau opera-se uma revolução do modelo. Ele afirmava: «É preciso deixar amadurecer a infância dentro de cada criança». É assim que, no séc. XVIII passaram as famílias a dar largas à sua euforia sentimental passando as alegrias e as virtudes familiares a invadir a Arte e a Literatura. Da realidade social passou-se à realidade sentimental passando a arte a representar o idílico da família em todo o seu esplendor. Rousseau influencia, de facto, decisivamente, muita da cultura parental, representada nas relações sociais. Da mãe deslavada de amor à «mãe-pelicano» há todo um caminho que, progressivamente, faz nascer o reino da «criança-rainha» conforme expressão de Badinter. O nascimento da Puericultura em 1866 com Caron representa o início do caminho para a escola de virtudes em que são decisivos o médico e a professora. 20 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Surgem então na Europa e especialmente em França os dispensários de saúde infantil centrados na confiança entre os profissionais e a mãe. Nesses dispensários e nos consultórios eram afixados quadros relatando a atenção pública e privada devotada à díade mãe-bebé. De qualquer modo, não era ainda consistente a mudança, em pleno séc. XIX. No popular «livre de famille» em França, a criança era cruel e egoísta e «só era anjo quando estava a dormir». Por outro lado, a criança passa a ser alvo de outro interesse por parte dos artistas do Realismo e do Naturalismo nas Artes Plásticas do séc. XIX. A iconografia da Sagrada Família, até então dominante, desaparece no início do séc. XIX. Aumentam, entretanto, e a ritmo crescente, as encomendas de quadros de representação das famílias burguesas. Chegamos aos primórdios do séc. XX irrompendo, então, as primeiras expressões do denominado interesse pela criança. Esta nova modernidade inspira os artistas do simbolismo, designadamente António Carneiro, que intitula uma sua tela temática de «A vida – Esperança, Amor, Saudade». A criança surge valorizada em si mesma, nomeadamente através do direito a um novo significado do seu bem-estar. É extraordinária a mudança de conceito expresso, por exemplo, no pensamento, direi pediátrico, de Winnicott – «a criança está de boa saúde quando pode brincar ao pé da sua mãe ou de um adulto que valorize a sua criatividade». Em termos sociológicos, poder-se-á dizer que é a partir do séc. XIX e, consolidadamente, a partir do séc. XX, que os poderes públicos passam a considerar alguns dos interesses das crianças, principalmente reportados às suas necessidades especiais, garantidas quando da evidência de qualquer vulnerabilidade e desamparo. Como escreveu Reis Monteiro, «a descoberta da criança, vítima da família e da sociedade, tornou-a objecto de protecção pública e privada». É curioso, porém, constatar que, na segunda metade do séc. XIX, surgem, pela primeira vez, Sociedades Protectoras da Infância, porém depois de criadas as Sociedades Protectoras dos Animais. A expressão «Direitos da Criança» encontra-se, pela primeira vez, num artigo publicado em 1852 nos EUA intitulado «The Rights of the children». Provavelmente, em 1872 é utilizada pela primeira vez a designação «Pediatria» mas é em 1900 que Ellen Kay, citada por Monteiro escreve «O Século da Criança» onde a autora proclama, porventura também pela primeira vez, que «as crianças têm deveres e direitos tão firmemente estabelecidos como os dos seus pais». Na coerência desta evolução fantástica é adoptada em 1924 pela Assembleia da Sociedade das Nações, a Declaração dos Direitos da Criança elaborada por Eglantine Jebb que cinco anos antes (em 1919) tinha, por sua vez, fundado o movimento internacional «Save the Children», criador de símbolos (entre os quais gravatas promotoras do interesse pelas crianças). Em 1948 é proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem onde se assume que a Maternidade e a Infância têm direito a uma ajuda e a uma assistência especiais (Artº. 25º. 2). A UNICEF, designação que sucede à de ICEF, nasce a 6 de Outubro de 1953 mas é a 20 de Novembro de 1959 que, definitivamente, á aprovada, por unanimidade, (por 78 Estados-Membros da ONU) a Declaração dos Direitos da Criança. A Declaração proclama dez Princípios Fundamentais que consagram o que se poderá entender como os interesses Superiores da Criança designadamente face à sua protecção e desenvolvimento. Pela primeira vez a impressão «Interesse superior da Criança» aparece num texto internacional tão significativo como é a Declaração. No seu Princípio 2 pode ler-se. «A Criança deve beneficiar de uma protecção especial… Na adopção de leis com esse fim, o interesse superior da Criança deve ser o factor determinante». Mas é a 20 de Novembro de 1987 que a Assembleia Geral das Nações Unidas adapta e aprova a Convenção dos Direitos da Criança que, direi, é uma efectiva proclamação dos Interesses Superiores da Criança que fazem parte do seu texto em muitos dos seus 54 artigos, definitivamente consagrados em 1989. Como uma autêntica revolução, toda uma literatura científica irrompe numa valorização incessante das competências infantis. Na mesma data da publicação da Convenção, publicámos com a Fundação Gulbenkian uma expressão significativa da evidência científica de então: «Biopsychology of early parent-infant communication». Tal como em relação a todas as Declarações, Convenções ou Proclamações, surgem CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança críticas tendo essencialmente como alvo o exagerado «pedocentrismo» que situava a criança como um objecto jurídico. A este propósito Reis Monteiro comenta ser a criança uma criança, não podendo tudo ser Direito tal como o Direito não pode ser tudo. De qualquer modo, o Direito de Família tornou-se progressivamente pedocêntrico e, a este propósito, reza assim um texto publicado pelo Conselho da Europa em 1989: «As responsabilidades parentais são o conjunto dos poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material da criança, nomeadamente cuidando da personalidade da criança, mantendo relações pessoais com ela, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens.» A interpretação dos vários Estados confere à Convenção a extensão das suas prioridades. A Santa Sé, por exemplo, interpreta os Artigos da Convenção de modo a salvaguardar os direitos primários e inalienáveis dos pais. O poder parental era, assim, reportado ao interesse superior da criança tal como expresso no Código Napoleónico que integra pela primeira vez a expressão «interesse da criança» como norma jurídica aplicável. O interesse superior passou a ser afirmação usada no Direito Internacional a partir de múltiplas menções dos estatutos jurídicos internos de muitos países. No Princípio 7 da Convenção é proclamado que «o interesse superior da criança deve ser o guia daqueles que têm a responsabilidade pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, prioritariamente, aos pais». O interesse superior da criança passou a ser uma «consideração primordial» que fez transcender os próprios direitos parentais e, porventura, até os valores culturais de cada sociedade em função do primado da protecção e do desenvolvimento da criança. O interesse superior da criança terá sido, assim, uma consagração ética que coloca a criança não como objecto mas como sujeito de Direito. Jacqueline Rubellin-Devichi entende que as soluções para a criança nunca são só jurídicas sem prejuízo do valor do direito que assegura os direitos de cidadania à criança desde o seu nascimento. Para Martin Stettler não existe uma definição para o «interesse da criança». Trata-se de uma 21 noção com impacte afectivo e emocional que «convém deixar à apreciação dos pais ou à autoridade competente quando não há acordo» sendo este um pressuposto básico para a mediação. Na Reunião de Lisboa de 1988, os Ministros da Justiça tinham já adoptado uma Resolução tratando da sequência dos direitos da criança no domínio do direito privado. Neste sentido, a Convenção dos Direitos da Criança deverá ser entendida como uma Nova Carta da Revolução dos Direitos do Homem projectando na Criança a consagração fundamental da Declaração dos Direitos do Homem. A Convenção dos Direitos da Criança é a grande proclamação ética centrada na Criança. A nova cultura que deverá inspirar as nossas sociedades e os nossos estados terá de ser construída nesta abordagem de uma ética centrada na criança que, por sua vez, determinará todos as outras disposições legais e políticas, do Ambiente à Educação, da Saúde à Justiça, da Segurança Social à Intervenção Familiar. A criança não será mais, assim, o ser dependente, o menor cívico, o sujeito de vulnerabilidade. Os governos dispõem, hoje, através da Convenção de uma Carta de Princípios que os obriga a privilegiar a Criança no seu existir pleno prevenindo as provações, as negligências, a violência. A garantia de oportunidades de afecto, de vínculos, de harmonia familiar, de concentração de interesses decorre da vivência do que é o interesse superior da criança a mobilizar políticas e regulamentações sociais. O Direito não poderá ser uma regulamentação dos direitos sobre a criança mas outrossim, uma afirmação dos direitos à Criança. Toda a circunstância da criança, designadamente a familiar, tem de ser inspirada por este Direito à criança que pressupõe o primado da sua dignidade e o interesse superior de a respeitar. A projecção deste interesse em todas as expressões das Ciências Humanas está contida num dos componentes do Preâmbulo da Convenção – … «a criança para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão…». Foi em todo este contexto que um conjunto extremamente significativo de universitários e investigadores consagrados elaboraram em Lisboa, 22 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA em 1995, a Declaração de Lisboa de que cito, tão só, a primeira conclusão: «As famílias devem ser ajudadas a reconhecer que constituem a fonte primária de amor e apoio e que são também responsáveis pela criação das forças interiores de que a criança necessita para se tornar resiliente face ao stress». Porém, quando todos os ideólogos falam dos novos direitos da criança, é preciso assimilar que existem equívocos que ficaram por resolver. O direito da criança em ter pai e mãe confronta-se com a frustração deste «interesse superior» por via de uma disfunção familiar cada vez mais prevalente. Mais claramente ainda, a menção interesse superior significará que o interesse da criança deverá prevalecer sobre os interesses dos adultos ou da sociedade e sobre os interesses económicos e culturais. Será, ainda, interesse superior da criança, tal como afirma Almiro Simões Rodrigues, o «direito ao desenvolvimento», isto é, o interesse da criança tem de ser entendido em função da dinâmica do seu desenvolvimento, ao longo do ciclo de vida da sua infância e da sua juventude. As referências da Convenção à «capacidade» e ao «discernimento», terão de ser entendidas na perspectiva que a filosofia dos «Touchpoints» consagra e que julgo ser paradigmática e indispensável para o cumprimento das novas disposições legais. A Nova Lei de Protecção a Menores de 1999, na leitura de Maria Amélia Jardim, integra, inequivocamente, os valores do «interesse superior da criança» no respeito inalienável dos significados e das fases de toda a dinâmica do desenvolvimento infantil e juvenil. Estamos longe, porém, desta Revolução Ética a inspirar todas as intervenções decorrentes desta prioridade do Direito que reconhece, declaradamente, o interesse superior da criança. Reconheço esta distância quase infinita no que respeita às práticas da nossa Saúde e da nossa Educação. Se a Sociedade actual, na nossa cultura, reconhecesse que a prioridade social era a criança tendo em conta os seus interesses superiores e se neste contexto estivesse garantido o pressuposto de que o interesse superior da criança é o de ser respeitada e amada, fundamentalmente dentro da sua família, então todo o pensamento político inspirador da actividade dos governos seria o de via- bilizar uma cultura familiocêntrica com inequívocos investimentos na construção familiar e na relação vinculadora desde os primeiros tempos de vida. Ao nível dos direitos, o advogado mediador quando do divórcio, representará os pais nessa mediação mas o seu exercício terá que estar centrado no superior interesse da criança e é essa advocacia que tem de prevalecer. Não chegam os padrinhos dos ritos de passagem de que é paradigma o baptismo, nem os educadores das creches e dos jardins de infância que cabem por destino a cada criança para fazer vingar um apoio tutorial complementar ou, às vezes, supletivo da intervenção familiar. É preciso criar condições para que haja paixão na espera por cada nascer, na descoberta do “quem é quem” logo que cada bebé nasce, no apoio dinâmico à explosão de cada temperamento projectado no modo de comer, de dormir ou de brincar. Usamos hoje, ainda, a expressão “bem-estar” porventura para designar que nos referimos aos interesses superiores da criança que, de facto, se expressam nesse bem-estar. A linguagem jurídica abstracta que refere o interesse superior da criança não se esclarece, todavia, com a nossa mera menção de bem-estar. O «interesse superior da criança» é, hoje, um conceito que apela à interdisciplinidade e representará este facto a grande esperança de progresso para o que resta deste século. Foi numa dimensão pluridisciplinar que fizemos (Conselho TécnicoCientífico da Casa Pia de Lisboa) «Um Projecto de Esperança» confrontados com a pedofilia – extremo de agressão que pode ser feita à criança, pressuposta a revisitação de toda uma história de desrespeito pela criança. Para que haja coerência do nosso pensar à nossa prática é preciso que a organização social e política centre os seus investimentos na criança, sobretudo quando ela é bebé. A Saúde, a Educação, o Ambiente e a Justiça têm de estar unidos através de uma só estratégia em função da Criança. O interesse superior da criança não se compadece com a imagem de receptor de direito, de cuidados ou de protecção; os interesses da criança exigem que consideremos que ela «contribui para a formação tanto da própria infância como da sociedade» e, por isso, as suas opiniões terão de ser sempre ouvidas e consideradas. CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança Só a título de exemplo e na coerência deste primado, teríamos que ver garantida nos Cuidados Primários a consulta pré-natal de contexto pediátrico, teríamos de ver favorecida, ao nascer, uma intervenção personalizada junto de cada pai e de cada mãe consolidada com a oportunidade de uma descoberta individualizada do bebé no favorecimento dos seus instintos tão ferido de riscos nas nossas Maternidades, teríamos de investir em mais tempo de guarda materna, no favorecimento de melhores horários para os pais nos primeiros dois anos de vida do bebé, teríamos de ter mais e melhores Serviços de Educação para os primeiros tempos de vida da criança, teríamos de garantir mais jardins e parques para as nossas crianças, teríamos de favorecer apoios fiscais, subsídios de habitação, de aleitamento, apoios à aquisição de fraldas e de brinquedos, mas sobretudo, teríamos de investir mais na formação profissional para que cada acto de consulta ou de intervenção educacional seja o fervilhar de uma paixão continuadamente dilatada pela magia de cada bebé em cada novo dia de uma vida preenchida de paz, em cada família. A partir da década de 70, numa era inequivocamente “bebológica”, a contribuição da Pediatria para fazer vingar os interesses superiores do bebé tem sido uma constante. Em 1984, a investigação que corporizou o nosso Doutoramento foi baseada no estudo sobre a influência do contacto precoce mãe-bebé no comportamento da díade. As influências antropológicas marcaram um posicionamento de maior proximidade na relação mãe-filho. A nossa estadia em África (Guiné) representou um tempo ganho marcado pela aquisição de uma nova cultura centrada na dignidade do respeito e da tolerância. Fizémos, nestas últimas três décadas, o «Nascer e Depois», fizémos o «Olá Bebé», fizémos o «Bebé XXI», fizemos o «Stress e Violência» e fizémos o «Mais Criança». Acreditamos hoje, sobretudo, que é preciso coerência para podermos corresponder aos superiores interesses da criança. Vinte anos depois, todavia, a Convenção dos Direitos da Criança ainda não chegou à Cultura do nosso tempo social e moral. No respeito pelo superior interesse da criança (artº. 3º.), o direito à participação (artº. 12º.) tem de fazer garantir que têm sempre de ser devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança. 23 Assim, o interesse superior da criança não pode ser, tão só, uma sentença que a Convenção dos Direitos da Criança proporcionou, como receita, aos tribunais. O interesse superior da criança é uma declaração do Amor pela Criança e é este conceito que deverá inspirar o mundo e os cidadãos deste mundo. Precisamos, mais do que nunca, de uma revolução de praxis para que os interesses superiores da criança não se inquinem com a rotina, com as abstracções e com as sentenças. BIBLIOGRAFIA Badinter E. L’amour en Plus. Histoire de L’amour Maternel. Paris: Flammarion, 1980 Carneiro R, Brito A, Carvalho A, Sampaio D, Rocha D, GomesPedro J et al. Um Projecto de Esperança. Lisboa: Princípia, 2005 Château P DE. The importance of the neonatal period for the development of synchrony in the mother-infant dyad – a review. Birth Family J. 1977; 4: 10-23 Gomes-Pedro JC. Influência no comportamento do recémnascido do contacto precoce com a mãe. Tese de Doutoramento. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1982 Gomes-Pedro J. Stress e Violência na Criança e no Jovem. Lisboa: Clínica Universitária de Pediatria – Departamento de Educação Médica, 1999. 325-334 Gomes-Pedro J. «Touchpoints» – uma nova dimensão educacional. In.: Gomes-Pedro J, (ed). Para um Sentido de Coerência na Criança. Lisboa: Publicações Europa América, 2005 Gomes-Pedro J. Biopsychology of early parent-infant communication. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989 Jardim MA. Contributo para uma política de prevenção da delinquência e vitimização juvenis. Infância e Juventude, 2005; 3: 25-159 Monteiro AR. A revolução dos direitos da Criança. Porto: Campo das Letras, 2002 Rubellin-Devichi J. L’enfant et les conventions internationales. Lyon : Presses Universitaires de Lyon, 1996 Simões Rodrigues A. Interesse do menor (contributo para uma definição) Infância e Juventude. 1985; 85: 7-42.1985; 85: 7-42 Stettler M. Le droit de visite et d’hébergement en tant qu’objet de médiation. In: Vuaillat J, (ed). Autorité, Responsabilité Parentale et Protection de L’enfant. Lyon: Confrontations Européennes Régionales, 1992 Winnicott DW. The Infant and Family Development. London: Tavistock Publications Limited, 1978 24 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 3 ÉTICA, HUMANIZAÇÃO E CUIDADOS PALIATIVOS Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral Conceitos de Moral, Ética e Bioética A Ética é um ramo da Filosofia; a palavra “ética” deriva do grego a partir de dois homónimos: “êthos” que significa disposição moral, e “éthos” que significa costume. Surge, assim, pela primeira vez, a ideia de moral associada a norma e costume. Moral tem origem na palavra latina “mos” que significa costume, princípio. Ou seja Ética e Moral, com diferentes etimologias, têm um significado sobreponível dizendo respeito às regras de conduta do Homem. O termo Bioética foi introduzido pelos americanos significando a ética ligada às ciências da vida. Nesta perspectiva, a ética procura o bem-estar das pessoas através da melhor conduta profissional e da melhor decisão a tomar. A mesma implica, pois, escolhas e, na maior parte dos casos, as decisões (ditas éticas) resultam da necessidade de reequacionar e re-hierarquizar valores morais, religiosos, culturais e sociais. Transpondo o conceito e atitude para a práxis médica, um problema ético surge quando, perante determinados factos, a decisão correcta é difícil implicando escolhas entre valores e verdades universalmente aceites, visando a resposta mais justa ou pelo menos, a menos injusta. Estando a Ética subjacente à Filosofia, a mesma não pode ser ensinada, no sentido da transmissão de saberes que reflectem conhecimentos recebidos e “outorgam” o elo de ligação destes últimos aos valores e opções considerados correctos. Trata-se, pois, de um método, um caminho para o pensamento, uma forma de olhar e argumentar na perspectiva de encontrar respostas e soluções para os dilemas que enfrenta. A Ética Médica é baseada num conjunto de princípios fundamentais os quais derivam não só da tradição hipocrática, como também do reconhecimento dos direitos humanos. Destacam-se os seguintes: respeito pela vida; o respeito pela pessoa e sua autonomia; o princípio da não maleficência e da beneficência; o princípio da justiça. O Respeito pela vida e a autonomia da pessoa O respeito pela vida do doente passa pela definição e compreensão do que se entende pela vida humana, pelos seus limites, isto é, quando começa e quando termina. Para muitos, o início da vida corresponde ao momento da concepção, enquanto para outros ao momento da nidação e, para outros ainda, ao nascimento. Do ponto de vista filosófico um ser humano é ou passa a ser uma pessoa quando, para além da vida biológica, existe uma vida psíquica, emocional, cognitiva e espiritual que lhe permite conduzir a própria vida de forma autónoma e responsável. Análoga indefinição existe quanto ao conceito de morte, o qual não é de consenso universal, sobretudo para as pessoas sem formação ou cultura médica. A este respeito, cabe referir que a decisão médica de desconectar um indivíduo do ventilador, em princípio, não levanta problemas éticos, uma vez que o conceito de morte cerebral é unanimemente reconhecido e está bem estabelecido em normas nacionais e internacionais. O respeito pela pessoa, deve partir da prévia definição de pessoa. Quando nos referimos ao doente como pessoa há que considerar a sua autonomia, isto é, a sua vontade e capacidade de auto – determinação. Assim, o respeito pela pessoa do doente passa pela obtenção do seu consentimento prévio para a realização de diversos procedimentos ou intervenções médico – cirúrgicas. Ou seja, está em causa o chamado princípio da autonomia, ao mesmo subjacente o chamado “consentimento informado ou consentimento esclarecido” (mais que informar, é preciso garantir que tenha havido recepção da mensagem com esclarecimentos). CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos Este tópico será abordado de modo especial adiante. Nesta perspectiva a decisão médica deve ser partilhada com o doente (e seus familiares), sobretudo quando esta decisão pode ter consequências para a vida do próprio. Em Pediatria nem sempre tal é possível; tratando-se de um adolescente existe autonomia, desde que esteja consciente e capaz de se auto – determinar. Cabe referir, contudo, que em determinadas situações a revelação da verdade de um prognóstico reservado pode ser contraproducente e até prejudicial para o tratamento. No caso de adolescente não autónomo (por exemplo, em coma vegetativo, persistente ou temporário), e nos restantes grupos etários pediátricos, a decisão terá de ser tomada em colaboração com os familiares. Poderão mesmo surgir situações delicadas quando, por exemplo familiares de doentes em estado crítico recusam tratamentos considerados vitais pelo médico (caso das Testemunhas de Jeová). Recentemente o princípio da autonomia tem sido considerado um elemento perturbador na relação médico – doente: para o primeiro porque introduz um interlocutor activo ao questionar normas relativas ao diagnóstico e decisão terapêutica tradicionalmente deixados ao critério médico; para o doente, porque a inerente fragilidade e susceptibilidade biopsíquica geram desequilíbrio na referida relação clínica, dificultando o seu protagonismo no processo de tomada de decisão. Os princípios da beneficência e de não maleficência Estes princípios têm a sua origem no código de ética hipocrática e nos princípios da moral cristã. De referir, aliás, que certos autores chamam a atenção para o facto de o princípio da não maleficência ter precedência sobre o da beneficência porque, antes de beneficiar, há que não prejudicar. Para alguns especialistas nesta área, tais princípios constituem a essência da ética profissional médica. A dificuldade da sua aplicação reside em conhecer o que é considerado benéfico para um determinado doente, pois este poderá ter uma concepção não coincidente com a do médico. A administração de uma transfusão de sangue 25 a um doente pode ser considerada pelo médico como um acto bom, mas pelo doente, Testemunha de Jeová, um acto perverso. Nos doentes em fase terminal, em especial do foro oncológico, será melhor optar por tratamento analgésico e paliativo, mesmo que não se prolongue a vida do doente, ou dever-se-á prolongar esta à custa de maiores sofrimentos? Analisemos outro exemplo: se o médico praticar determinado acto com a intenção de beneficiar o doente, a sua atitude é eticamente irrepreensível, mesmo que desse acto resulte um efeito colateral indesejável. O importante é que a intenção do médico seja boa e a natureza intrínseca do acto seja também boa ou, pelo menos, neutra. Assim, se o médico administrar um analgésico narcótico a um doente oncológico em grande sofrimento e em fase terminal da doença, pratica um acto moralmente correcto, mesmo que essa atitude terapêutica possa abreviar a sua vida por algumas horas ou dias, dado que a sua intenção era aliviar o sofrimento. Outra questão diz respeito à distinção entre meios ordinários e extraordinários de tratamento a qual não deve ser assumida em termos absolutos, mas sim equacionada em termos do doente, da doença e dos resultados esperados. Ou seja, não existem meios de tratamento que, à partida, se possam considerar como ordinários e extraordinários. Segundo o princípio da proporcionalidade dos meios, considera-se um tratamento como extraordinário quando ele representa para o doente uma grande desproporção entre os benefícios esperados e os encargos (custos) para o próprio (ou sua família). A hemodiálise, as transplantações, etc. podem constituir meios ordinários para certos doentes ou em certas doenças, e extraordinários, noutros. A metodologia das decisões conhecidas pela sigla DNR (Do Not Resuscitate) tem a ver, precisamente, com a não aplicação de meios de ressuscitação em doentes nos quais os critérios médicos e científicos permitem prever, com razoável segurança, que o benefício decorrente da aplicação desses meios terapêuticos será ínfimo para os doentes em causa. O princípio da justiça Trata-se do princípio que encerra em si mais dilemas para o médico. 26 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Quando os recursos são escassos o princípio de justiça tem, sobretudo, o sentido de justiça distributiva, isto é, de fazer com que o maior número possível de indivíduos necessitados possam beneficiar desses recursos. Desperdiçar os escassos recursos existentes com doentes que deles não necessitam constituirá uma injustiça para os que deles podem beneficiar. Decorre desta lógica que o princípio da justiça tem, na sua aplicação para os médicos, um sentido utilitarista, ou seja, de que deverão beneficiar dos poucos recursos existentes os doentes que maiores benefícios possam colher. Neste campo da decisão existem muitas armadilhas para quem não se encontra previamente alertado. Por exemplo, na ausência de ventilador disponível, qual a decisão perante um jovem que chega à unidade de cuidados intensivos, com um traumatismo craniano, boas perspectivas de evoluir favoravelmente, e em que simultaneamente existe outro acometido por acidente vascular cerebral, de prognósico mau ligado ao ventilador? Deverá ser desligado o doente com prognóstico mais reservado quanto à vida e função para ceder o ventilador ao doente com prognóstico mais optimista? Este e outros exemplos podem ser comparados às situações, hoje históricas, chamadas de triagem de guerra, nas quais os cirurgiões preferiam tratar prioritariamente os moderadamente feridos, em relação aos muito graves ou ligeiros. Também durante a II Guerra Mundial, quando a penicilina era ainda muito escassa, dava-se preferência à sua utilização em soldados com doenças transmitidas sexualmente (pois ficando rapidamente curados poderiam voltar ao campo de batalha) em relação a outras situações infecciosas. Assim, os recursos deverão ser atribuídos aos doentes que mais benefícios possam vir a colher, tornando-se claro que a escassez de recursos impõe uma rotatividade no acesso à sua utilização, para que os benefícios dos mesmos possam ser aplicados ao maior número de doentes deles necessitados. Neste contexto e aplicando o princípio da justiça às unidades de cuidados intensivos, deverão ser bem definidos os critérios de admissão e de alta dos doentes assistidos, de modo a ser possível aplicar os respectivos recursos ao maior número possível de doentes. Os princípios e a prática clínica O consentimento informado, alicerçado no princípio da autonomia, define-se como a livre aceitação e autorização pelo doente de intervenção médica ou participação em programa de investigação, após adequada explicação pelo médico da natureza daquelas, relação custos/benefícios e alternativas. Apresenta duas vertentes fundamentais: a legal e a relacional. A vertente legal é a regra social de consentimento em instituições que devem obter legalmente consentimento válido para doentes e pessoas, previamente à realização de procedimentos terapêuticos ou de programas de investigação. No entanto, isoladamente, não legitima a decisão ou actuação terapêutica e só corporiza integralmente a decisão do doente quando devidamente associada à vertente relacional que a fundamenta e complementa. A vertente relacional diz respeito à expressão das preferências e opções do doente. Tal expressão viabiliza escolhas racionais e partilha da decisão, bem como contínua permuta interactiva e negocial reforçando, modificando ou anulando o consentimento inicial. Esta interacção sedimentadora da aliança terapêutica médico/doente rendibiliza, por sua vez, o trabalho do médico porque o doente estará mais apto a colaborar, terá expectativas mais realistas e estará mais preparado para eventuais complicações. O consentimento informado tem sido geralmente considerado um dever parental, apesar de questionável e moralmente desajustado relativamente ao doente pediátrico competente. Dado que a autonomia é baseada na capacidade de o doente compreender as consequências e alternativas possíveis à sua escolha e que muitas crianças em idade escolar e adolescentes já possuem essa capacidade, esse facto pode gerar conflitos, atendendo ao direito legal de supervisão parental em matéria de saúde. O número de adolescentes que necessitam de cuidados hospitalares tem progressivamente aumentado, tendo sido publicados poucos estudos que foquem problemas éticos durante a hospitalização neste grupo etário, sendo que alguns dos dilemas éticos surgidos na população adolescente não se enquadram adequadamente nas orien- CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos tações existentes referentes a crianças e adultos. Exemplificando, com um caso clínico: uma adolescente de 16 anos portadora de fibrose quística, com história anterior de 2 transplantes cardiopulmonares, entra pela terceira vez consecutiva em fase de rejeição aguda e é internada numa unidade de cuidados intensivos pediátricos. Apesar da terapêutica adequada, a situação clínica deteriora-se e é necessário decidir ou não pela ventilação mecânica. Ouvindo a família, o pediatra está de acordo em não ventilar, atendendo ao mau prognóstico, mas adia a decisão final até à realização de conferência entre a doente e o médico assistente. Lúcida, ciente da irreversibilidade da sua situação clínica, convicta da ineficácia de medidas terapêuticas invasivas adicionais, recusa a ventilação, sendo a decisão integralmente respeitada. Este caso clínico é um exemplo do exercício de autonomia, aparentemente isento de paternalismo. A visão global do diagnóstico, situação clínica e evolução da criança, aliada ao sentido ético do exercício da medicina, permitiu à equipa clínica autonomizar a doente e simultaneamente ter a atitude responsável e profissional de a poupar a um prolongamento inútil de vida. Assim, o exercício da autonomia não implica crueldade no confronto com a realidade de vida e de morte ao permitir que o doente se pronuncie e eventualmente decida, quando tem condições para tal, sobre questões que influenciam de forma decisiva a vivência do seu corpo na doença. O pediatra ou outro médico ao dialogar em paridade com uma adolescente que, por doença grave e prolongada, admite as hipóteses de vida ou de morte que se lhe deparam, deve demonstrar capacidade de diálogo e humildade. Deve também revelar respeito pelo princípio da beneficência ao reconhecer o sofrimento físico, psicológico e espiritual de crianças e adolescentes os quais têm direito a protecção e alívio da dor. É este o fundamento dos cuidados paliativos. Importa, no entanto, sublinhar que a autonomia não é um princípio que retira à criança ou adolescente resiliência, fragilizando-a e tornandoa indefesa face à doença e à morte. Muito pelo contrário, pode constituir um factor de crescimento de interioridade e intimidade daqueles, reconhecendo-lhes direitos e capacidade de pro- 27 tecção contra a imensidão de normas, regras, teorias e tecnologias de que a medicina dispõe actualmente. Ou seja, o exercício da autonomia contém de uma maneira ou de outra, quiçá de forma complementar, os princípios da beneficência e da não maleficência. De referir que a informação dada ao doente pelo médico deve pautar-se pela preocupação de comunicação através de linguagem simples, fluida, isenta de termos técnicos, adequada e acessível, que consiga transmitir a verdade àquele, devidamente enquadrada por empatia e solicitude que o médico deve disponibilizar de modo personalizado. Contudo, a preocupação do total esclarecimento relativamente à doença não deve sobreporse à compaixão face ao doente doseando-a (ou até, por vezes, omitindo-a e adaptando-a à idade, perfil e momento psicológico). Isto é, cada doente tem direito à verdade que pode suportar. A legislação em Portugal Em Portugal a legislação portuguesa confere o direito à autodeterminação em saúde aos adolescentes menores de 18 anos, mediante a portaria nº 52/85 que permite o acesso às consultas de planeamento familiar a todos os jovens em idade fértil, bem como o artigo 141º da lei nº 6/84 DR-Iª série nº 109- 11/5/1988 que reconhece o direito ao consentimento de interrupção voluntária de gravidez em jovens dos 16 aos 18 anos, desde que nas situações contempladas na lei. Por sua vez a autonomia da criança é reconhecida no Código Penal – decreto-lei nº 48/95 de 15/3/1995 ao " Reconhecer no domínio dos bens jurídicos livremente disponíveis, como causa de exclusão de ilicitude, o consentimento prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta". Também o Código Deontológico da Ordem dos Médicos refere que "No caso de crianças ou incapazes, o médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo com as capacidades de discernimento que lhes reconhece, actuando sempre em consciência na defesa dos interesses do doente”. 28 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Consentimento informado e esclarecido Sublinhando a importância do triângulo relacional “criança, pais e médico” é reconhecido o direito ao consentimento informado e confidencialidade em adolescentes maiores de 14 anos relativamente à contracepção oral, ao tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e ainda nos casos de comportamento aditivo (alcoolismo, ou toxicodependência), sem necessidade de consentimento parental. Em caso de terapêutica com baixo risco de mortalidade e morbilidade (tratamento da acne, por exemplo) poderá também ser dispensado o consentimento parental. Pelo contrário, nos casos em que a terapêutica envolva considerável risco (intervenções cirúrgicas ou terapêutica do foro oncológico com citostáticos) é exigido o consentimento informado e esclarecido do doente, caso este se situe no grupo etário superior aos 18 anos, ou o consentimento parental no caso do adolescente menor de 18 anos, não legalmente emancipado. Exemplificando, é também necessário permissão informada em caso de: • Imunizações. • Exames diagnósticos invasivos (cateterismo cardíaco, broncoscopia). • Terapêutica prolongada com anticonvulsantes para controlo da epilepsia. • Correcção cirúrgica de anomalias esqueléticas. • Remoção cirúrgica de massa tumoral suspeita. • Punção lombar (mesmo em situações de emergência). O assentimento da criança e permissão informada e esclarecida dos pais será aconselhável em situações como: • Punção venosa numa criança depois dos 10 anos. • Exames complementares diagnósticos nos casos de dor abdominal recorrente numa criança depois dos 10 anos. • Medicação psicotrópica para controlar a perturbação da atenção grave. Ou seja, em medicina da criança e do adolescente o assentimento reconhece e assume o doente como pessoa com capacidade de ser integrada num processo decisional e pressupõe: • Ajudar o doente a compreender a sua doença. • Transmitir-lhe a normal expectativa dos exames e tratamentos a realizar. • Atender à compreensão do doente face à sua doença. A dissensão ou persistente recusa ao assentimento deve ser respeitada sempre que a intervenção proposta não seja essencial ao bem-estar da pessoa ou possa ser adiada sem risco. Em investigação é vinculativa, mesmo que os pais tenham autorizado. Recentemente o grupo de trabalho em ética da Confederation of European Specialists in Paediatrics (CESP) publicou as linhas de actuação e recomendações do Consentimento Informado/Assentimento em Pediatria e em investigação biomédica envolvendo populações pediátricas. O documento é norteado por uma preocupação de preservar a dignidade da criança e adolescente nas suas dimensões física, psicológica e intelectual, salvaguardar os seus interesses, protegê-los de riscos, assegurar e respeitar a sua privacidade /confidencialidade e reforçar o seu direito à expressão e cumprimento dos seus desejos e preferências sempre que possível, numa perspectiva realista. Humanização dos cuidados Em 1945, pela primeira vez Spitz descreveu a “síndroma do hospitalismo”. As manifestações clínicas de tal situação, relacionadas com o ambiente hospitalar de separação da mãe e família da criança, o próprio trauma e agressão emocional da doença implicando muitas vezes intervenções diagnósticas e terapêuticas, traduzem-se por carência afectiva, regressão do desenvolvimento psicomotor e afectivo, e estados depressivos. Foi precisamente na transição da década de 7080 que passou a desenvolver- se em Portugal uma “cultura” – originária dos Estados Unidos da América do Norte - de encarar a criança, mais ligada à família e ao seu meio, mesmo quando no hospital, tornando este meio mais acolhedor, compreensivo, humano. Em Portugal cabe destacar o pioneirismo na aplicação sistemática de certas práticas do Instituto Português de Oncologia e do Hospital Pediátrico de Coimbra. Assim, contribui para a “humanização” todo o CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos profissional de saúde que recusa a rotina reduzida ao tecnicismo, que vê no doente uma pessoa inteira com emoções, angústias ou desesperos que se estendem às famílias. A partir de então em quase todas as maternidades passou a vigorar, de modo progressivo, a prática de contacto precoce mãe-filho, já na sala de partos, onde o recém-nascido deveria ser colocado ao peito para estimular a secreção láctea e o vínculo. Ao sistema de alojamento conjunto mãe-filho recém-nascido nas enfermarias de puérperas foi dada cada vez dada maior importância, o que tem conduzido à tendência para considerar obsoleto e anti-natural o conceito de berçário nas maternidades (recém-nascidos saudáveis em enfermaria separada da mãe). Apar doutras medidas relacionadas com a qualidade do atendimento nas diversas instituições, passou igualmente a ser cada vez mais habitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hospitalização em qualquer grupo etário “abrindo-se as portas das unidades de internamento ou de ambulatório às famílias segundo certas regras que passaram a estar incluídas nos manuais de qualidade e consagradas por legislação, de que se destaca a Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas descrita adiante. Quer a Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), criada em 1979, quer o Instituto de Apoio à Criança (IAC), fundado em 1983, têm tido ao longo dos anos um papel pedagógico altamente relevante, veiculando, designadamente, os conceitos da humanização e de assistência centrada na família, constituindo-se como grupos de pressão junto das autoridades governamentais no sentido de as práticas de humanização passarem a ter suporte legal, o que tem vindo a acontecer ao longo dos anos. Cuidados paliativos A partir de 1960, sob os auspícios da OMS, passou a ser comum o termo de cuidados paliativos como um novo paradigma de assistência total e activa ao doente e família por equipa multidisciplinar quando se verifica uma de três situações: – doença incurável (não previsível resposta a qualquer terapêutica); – doença avançada (prognóstico muito reser- 29 vado e sobrevivência previsível inferior a 6 meses); – doença progressiva (sintomatologia rapidamente evolutiva com consequente sofrimento do doente e família). Tal tipo de cuidados permite suprimir ou atenuar sintomas sem actuar directamente na doença que os provoca, dando também apoio à família para lidar com a doença, na tentativa de melhorar a qualidade de vida do doente na sua relação com a mesma sem que tal signifique abandono. Constitui dever ético da equipa assistencial junto da família chamar a atenção de modo humanizado para certos princípios e realidades que poderão contribuir para a compreensão de atitudes (diversas da distanásia ou encarniçamento terapêutico, e da eutanásia ou morte provocada sem sofrimento): – evolução vida – morte como processo natural e inevitável; – não adiamento nem aceleração da morte – alívio da dor e doutros sintomas numa relação fraterna; – valorização da dignidade e da qualidade de vida da pessoa; – informação de modo individualizado, gradual e adaptado à cultura, religião e circunstâncias psico-afectivas da “unidade” doente -família, a cargo da equipa que presta cuidados. Embora em instituições de saúde prestando assistência a adultos existam unidades de cuidados paliativos com equipa própria, separadas doutras enfermarias e unidades, na idade pediátrica tal assistência é propiciada em geral em enfermarias convencionais, embora em área reservada e com o recato e isolamento que a situação impõe. Tais situações surgem com maior frequência em unidades de cuidados intensivos neonatais e pediátricas e em serviços de oncologia pediátrica. Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas (Aprovada pela Confederação Europeia dos Sindicatos Nacionais e Associações de Profissionais de Pediatria, 1996) 1. As crianças somente serão admitidas no hospital se os cuidados de que necessitam não pu- 30 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA derem ser igualmente administrados no domicílio ou em regime ambulatório. 2. As crianças hospitalizadas têm o direito de ter os seus pais permanentemente com elas, desde que isso seja para maior benefício da criança. Assim, devem ser oferecidos alojamento a todos os pais e estes devem ser auxiliados e encorajados a permanecer junto delas. De modo a comparticipar na assistência dos seus filhos, os pais devem ser informados acerca da rotina da enfermaria e encorajada a sua participação activa. 3. As crianças ou os seus pais têm o direito a uma informação apropriada à sua idade e compreensão. 4. As crianças e os pais têm o direito a uma informada participação em todas as decisões que envolvem a sua assistência. Todas as crianças devem ser protegidas de tratamentos médicos desnecessários, devendo tomar-se medidas no sentido de minorar o seu sofrimento físico e emocional. 5. As crianças devem ser tratadas com tacto e compreensão, e a sua privacidade sempre respeitada. 6. As crianças devem ser assistidas por uma equipa adequadamente treinada e plenamente consciente das necessidades físicas e emocionais de cada grupo etário. 7. As crianças têm o direito de usar as suas próprias roupas e ter os seus pertences pessoais. 8. As crianças devem ser assistidas conjuntamente com outras crianças do mesmo grupo etário. 9. As crianças devem ter um ambiente guarnecido e apetrechado de modo a satisfazer as suas necessidades e que esteja de acordo com as normas conhecidas de vigilância e segurança. 10. As crianças devem ter total oportunidade para brincar, para diversão e educação adequadas à sua idade e condição. BIBLIOGRAFIA American Academy of Pediatrics. Palliative care for children. Pediatrics 2000; 106: 351-357 American Academy of Pediatrics. Informed consent, parental permission and assent in pediatric practice. Pediatrics 1995; 95: 314-317 Archer L, Biscaia J, Osswald W. Bioética. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1999 Beuchamp TL, Childress JF. Principles of Biomedical Ethics: Respect for Autonomy. New York: Oxford University Press,1994 Bergsma J, Thomasma DC. Autonomy and Clinical Medicine: a History of the Autonomy Principle. Dordrecht:Kluwer Academic Publishers, 2000 Gonçalves MM. Código Penal Português. Coimbra:Editora Almedina, 1995 Instituto de Apoio à Criança (IAC). A Criança e os Serviços de Saúde. Humanizar o Atendimento. Lisboa: IAC, 1997 Jonsen AR, Siegler M, Winslade WJ. Ética Clínica. Lisboa: McGraw-Hill, 1999 Lo B, Rubenfeld G. Palliative sedation in dying patients. JAMA 2005; 294: 1810-1816 Moleiro A, Martins AG, Carvalho MCA, Fernandes MJL, Levy ML. Humanizar o Atendimento à Criança. Lisboa: Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 1991 Provost V, Mortier F, Bilsen J et al. Medical end-of-life decisions in neonates and infants in Flandres. Lancet 2005; 365: 13151320 Reys LL. A alocação de recursos médicos nas unidades de cuidados intensivos. Acta Med Port 1991; 4: 23-26 Tan GH, Totaplly BR, Torbati D, Wolfsddorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children’s hospital. J Palliat Med 2006; 9: 332-342 Videira-Amaral JM. Neonatologia no Mundo e em Portugal. Factos Históricos. Lisboa: Angelini, 2004 CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação 4 FORMAÇÃO EM PEDIATRIA NA PÓS-GRADUAÇÃO João M. Videira Amaral Os primórdios do ensino pós-graduado da Pediatria Após a reforma de 1911, a par do ensino pré-graduado da Pediatria, passou a processar- se o treino clínico de médicos já formados, interessados na medicina da criança. Desde então, em Lisboa, o Hospital Dona Estefânia, ao tempo devotado também à assistência de adultos, passou a constituir em Portugal a escola pioneira de pós-graduação com Jaime Salazar de Sousa (Avô) e Leite Lage, inicialmente e, após a década de 40, com Manuel Cordeiro Ferreira e Silva Nunes. No velho Hospital de Santa Marta, sucedendo a Jaime Salazar de Sousa, Castro Freire criou até à transferência do serviço para Santa Maria em 1954, outro centro de pós- graduação em Pediatria. Em 1936, em Coimbra, cabe destacar Lúcio de Almeida que criou nos velhos Hospitais da Universidade um Centro de preparação de médicos pediatras; ao primeiro sucedeu Santos Bessa. No Porto, na década de 30, Almeida Garrett no Hospital de Santo António iniciou um ciclo de pósgraduação, mais tarde transferido para o Hospital de S. João; nesta cidade, no Hospital de Maria Pia também passou a a realizar-se o treino clínico de médicos interessados em medicina da criança. Programa de formação do Internato Complementar de Pediatria Até 1996 a formação básica propiciada aos internos de Pediatria, futuros pediatras, não estava estruturada nem regulamentada, condicionando oportunidades heterogéneas de treino clínico para aquisição de competências básicas em função do grau 31 de investimento de cada instituição nesta área do ensino; de referir que o candidato a pediatra praticava sempre numa única instituição hospitalar. O actual “Programa de Formação do Internato Complementar de Pediatria”, que constitui um marco importante da história da educação médica em Portugal, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997. Com o mesmo passaram a ser definidos especificamente, quer objectivos pedagógicos em termos de conhecimentos e competências, quer critérios de avaliação e períodos de formação em diversas valências. Neste modelo a maior inovação consistiu na descentralização do estágio, passando o médico em formação(interno do internato complementar) a rodar por diversas instituições, para além de hospitais centrais, hospitais distritais e centros de saúde. Ciclos de estudos especiais Os chamados ciclos de estudos especiais definidos por legislação em 1982 constituem uma modalidade de treino pós-graduado, após exame final do internato complementar de pediatria, para obtenção de competências em determinadas áreas específicas, mediante estágios práticos e um programa de formação específica em hospitais centrais. Existe um processo de candidatura. Estágios do internato geral e do internato complementar de medicina familiar/clínica geral em pediatria De acordo com a actual legislação (em fase de remodelação) os médicos englobados nos referidos internatos realizam estágios em serviços de pediatria. A Pediatria Geral e as Especialidades Pediátricas Como resultado da expansão progressiva dos conhecimentos no campo da Pediatria (cujo âmbito foi abordado anteriormente) têm desta emergido as chamadas especialidades pediátricas que correspondem a modos diferenciados de assistência médica no referido período evolutivo aplicados a aparelhos e sistemas (critério anátomo- fisiológico) ou a certas fases do desenvolvimento: perinatal/neonatal, escolar, adolescência (critério cronológico). Tais especialidades pediátricas que envolvem, designadamente, a aquisição de competências para 32 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA a realização de técnicas e procedimentos, começaram a surgir na década de 50 nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) com programas de formação elaborados pela Academia Americana de Pediatria (AAP). Esta tendência teve mais tarde o seu seguimento na Europa com diversos modelos funcionais e de oficialização obedecendo a critérios definidos pelas Comissões Europeias, os designados European Boards, ligados à Union Européenne des Médecins Spécialistes – UEMS. Em obediência à nomenclatura habitualmente adoptada pela Ordem dos Médicos e pelos organismos da União Europeia (Confédération Européenne des Spécialistes de Pédiatrie – CESP) e UEMS que consideram a Pediatria uma especialidade, as respectivas modalidades diferenciadas, contribuindo para uma melhor qualidade no serviço à prestar à comunidade, são, de facto, consideradas subespecialidades pediátricas. O desenvolvimento das subespecialidades pediátricas Quer na América, quer na Europa, e designadamente em Portugal, têm sido gerados consensos (não em todas as áreas especializadas) segundo os quais as subespecialidades pediátricas deverão constituir um ramo derivado da Pediatria e não das subespecialidades afins da Medicina Interna ou da Cirurgia Geral. Reconhecendo que tal imperativo não assume a mesma relevância em todas as especialidades, a lógica conceptual seria que as subespecialidades pediátricas fossem desempenhadas, de raiz, por pediatras que adquiririam competência em determinada área específica. É evidente que numa fase de arranque, tal nem sempre aconteceu- era imperioso começar! – sendo bastantes os exemplos de contributos importantes de subespecialistas anteriormente ligados a áreas da medicina e cirurgia de adultos que transitaram para a área correspondente das subespecialidades pediátricas. No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) foram criadas, até 2008 Secções especializadas, referentes a diversas valências pediátricas (Pneumologia, Neonatologia, Cardiologia, Gastrenterologia, Pediatria Social, Educação Pediátrica, Hematologia / Oncologia, Cuidados Intensivos, Infecciologia, Endocrinologia, Nefrologia, Desenvolvimento, Alergologia, Reumatologia) com estatutos próprios, congregando os sócios com especial interesse na respectiva área. Tais secções ou mini-sociedades têm contribuído para fomentar a investigação e melhorar o intercâmbio entre instituições nacionais e estrangeiras. Em Portugal, até ao final da década de 80, estavam reconhecidas pela Ordem dos Médicos as subespecialidades de Pediatria Cirúrgica, de Pedopsiquiatria e de Cardiologia Pediátrica. As mesmas passaram a ter internato próprio, o que traduz reconhecimento pelo Ministério da Saúde. No início de 2003 foram reconhecidas pela Ordem dos Médicos 5 novas subespecialidades pediátricas: Neonatologia, Nefrologia, Gastrenterologia, Oncologia e Cuidados Intensivos, estando em estudo, em 2008, os respectivos programas de formação e a criação de outras. Necessidade de equilíbrio entre a pediatria geral e as subespecialidades A formação de novos subespecialistas deverá processar- se em função das necessidades do país acautelando a subalternização dos pediatras generalistas. Haverá, pois, que evitar o “esvaziamento” da pediatria geral evitando erros cometidos no âmbito da medicina geral de adultos relacionados com a formação de subespecialistas sem uma formação básica indispensável ou tronco comum de medicina interna. Quer nos hospitais centrais, quer nos hospitais distritais, haverá que preparar solidamente pediatras gerais competentes, que possam assumir com toda a legitimidade as tarefas de médico global ou médicoassistente da criança, e aptos para uma triagem correcta para o pediatra subespecialista. Tal conceito deverá ser transmitido aos estudantes universitários. Efectivamente, embora os hospitais centrais englobando áreas diferenciadas, sejam considerados por definição especializados, para a garantia duma pediatria de prestígio – e, por consequência, para a garantia dum melhor serviço à comunidade- entendemos que os mesmos deverão incorporar, igualmente, a valência de pediatria geral, integrando pediatras internistas com competências para a abordagem dos casos mais complicados. A relação entre a Pediatria Geral e a Medicina Familiar Há cerca de 15 anos, sob os auspícios da Sociedade CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação Portuguesa de Pediatria, foi elaborado um documento de análise e de recomendações, elaborado por um grupo de trabalho coordenado por Fernanda Sampayo intitulado “ O problema da assistência à criança pelos clínicos gerais”. Tendo sido considerado nesse documento, pela maioria dos seus membros, que em condições ideais, a meta desejável seria a “generalização da assistência médica ao grupo etário pediátrico por pediatras” , a realidade actual, no entanto, não permite atingir tal desiderato, quer pela escassez de pediatras, quer pela própria legislação portuguesa que considera ser o médico de família/clínico geral o responsável pela saúde infantil no âmbito dos cuidados primários /centros de saúde. Cabe referir, no entanto, que em tempos surgiu (apenas na legislação) a figura do chamado “pediatra comunitário” para o exercício de funções no âmbito dos cuidados primários de saúde, mas em estreita ligação com as estruturas hospitalares em cujas equipas estava previsto poder integrar-se. Esta questão do desempenho profissional de pediatras nos cuidados de saúde primários foi em 2005- 2006 foi revisitada, quer pela Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente, quer pela Sociedade Portuguesa de Pediatria, defendendo o papel do pediatra (hospitalar) como consultor nos centros de saúde na área de influência respectiva, e não como substituto do médico de família, pressupondo uma correcta articulação entre as respectivas instituições. Como é fácil depreender, a relação profissional entre pediatras gerais e médicos de família, e entre pediatras gerais e pediatras subespecialistas, tem implicações na formação que é propiciada a “cada grupo profissional”, na medida em que se torna desejável um articulação funcional harmoniosa de programas formativos; efectivamente, uma melhor formação conduzirá seguramente a um melhor serviço aos cidadãos. Competências clínicas do foro da Pediatria Geral Não se podendo nem se devendo estabelecer barreiras muito estanques, e abstraindo os grandes tópicos considerados nucleares e específicos da medicina da criança e do adolescente, será pertinente discriminar as situações que deverão ser 33 consideradas no âmbito da pediatria geral e não no das subespecialidades pediátricas. Este critério, por sua vez, poderá servir de base ao planeamento formativo das competências dos internos do internato complementar (da especialidade) de medicina familiar / clínica geral, tendo sempre em perspectiva a correcta e harmoniosa articulação assistencial. Como se deve depreender, haverá que ter em conta, sempre, o bom senso na aplicação de tal estratégia, necessariamente versátil. Problemas das vias respiratórias: Otite média aguda, otite média com efusão crónica, défice auditivo de condução relacionado com efusão, hipertrofia amigdalina, hipertrofia das adenódes, apneia obstrutiva em períodos breves, rinite vasomotora, rinite alérgica sazonal, rinofaringites frequentes, pneumonia, bronquiolite. Problemas do foro cardiovascular: Sopros inocentes, situações de hipertensão moderada em adolescentes obesos, obesidade na adolescência. Problemas do foro gastrintestinal: Regurgitação e vómitos do lactente, refluxo gastro- esofágico, obstipação, encoprese, diarreia, dor abdominal, infestações intestinais. Problemas do foro genito-urinário: Enurese diurna e nocturna, infecções recorrentes do tracto urinário no sexo feminino, refluxo vesico-ureteral(graus 1,2,3), micro-hematúria, proteinúria postural, testículos retrácteis. Problemas do foro hematológico: Anemia ferropénica, trombocitopénia transitória idiopática. Problemas do foro endocrinológico: Obesidade e baixa estatura constitucional. Problemas músculo-esqueléticos: Torcicolo, entorse, escoliose ligeira, pés planos, joelhos varo e valgo. Problemas do foro dermatológico: Dermatite atópica, dermatite das fraldas, dermatite seborreica, acne, urticária, tinha, escabiose, 34 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA verrugas, queimaduras ligeiras, picadas e mordeduras, impetigo, hemangioma, púrpura de Henoch-Schonlein. Documento de análise da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Rev Port Pediatr 1990; 21: 496-497 Sampayo F, Coelho-Rosa FC, Cordeiro-Ferreira G, AzevedoCoutinho JA, Fontoura M, Lobo-Antunes N. O problema Problemas do foro neurológico: Cefaleia, enxaqueca, convulsões febris simples, convulsões típicas do tipo grande mal, convulsões do tipo pequeno mal, atraso mental, défice de atenção acompanhado de hiperactividade, dislexia, tiques menores. das especialidades pediátricas. Documento de análise da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Rev Port Pediatr 1990; 21: 498-499 Videira-Amaral JM. A pediatria geral e as sub-especialidades pediátricas – análise de algumas questões Iª parte – Acta Pediatr Port 2003; 34: 309-313 IIª parte – Acta Pediatr Port 2003 ; 34; 377-379 Problemas do foro comportamental: As chamadas “cólicas” do lactente, os chamados “espasmos do soluço”, perturbações do sono, fobia escolar, depressão ligeira. Problemas do foro alérgico: Reacções alimentares adversas e a maioria das situações de asma não complicada. Problemas do foro neonatológico Recém- nascido saudável estacionado com a mãe na maternidade, recém-nascido saudável após a alta da maternidade, rastreio de sinais de risco. Na verdade, os subespecialistas deverão reservar a sua disponibilidade para os problemas cada vez mais complexos relacionados, por exemplo, com uma cada vez maior sobrevivência de recém-nascidos de muito baixo peso, com as situações de doença crónica de maior gravidade que obrigam a estadias médias cada vez de maior duração e com a necessidade de realização de técnicas e procedimentos envolvendo apoio multidisciplinar. BIBLIOGRAFIA Cordeiro-Ferreira G. Recuperar o pediatra comunitário. (entrevista). Tempo Medicina 2005; 17 Outubro: 4 Machado MC/Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente. O pediatra consultor no centro de saúde. Acta Pediatr Port 2005; 36: 3-4 Sampayo F, Carmona- Mota H, Palminha JM, Espinosa L, Rendeiro MC, Fonseca N. Pediatria em portugal – anos 80; documento de análise sobre os problemas da pediatria em Portugal. Lisboa: Edição da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 1981 Sampayo F, Flora C, Neves I, Lemos L, Nascimento MC. O problema da assistência á criança pelos clínicos gerais. Visser HKA. Paediatrics in the Netherlands: challenges for today and tomorrow. Arch Dis Child 1993: 69: 251-255 Williams C. Teaching Paediatrics for the developing World. Arch Dis Child 1998: 78: 484-487 CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica 5 INVESTIGAÇÃO E CLÍNICA PEDIÁTRICA João M. Videira Amaral O conceito de investigação em Saúde Investigação científica no sentido lato pode definir-se como o processo racional que procura comprender e desvendar o mundo, contribuindo para ampliar os nossos conhecimentos. Valerá a pena, para a compreensão do âmbito de tal conceito, citar Magendie e um dos seus discípulos, Claude Bernard, enquadrando as respectivas citações no tempo em que viveram, o séc XIX. O primeiro afirmou: “Quando investigo, só tenho olhos e ouvidos:não tenho cérebro”… e o segundo: “O importante é mudar as ideias à medida que a ciência progride”. Das atribuições gerais das instituições de saúde e, designadamente dos hospitais ligados ou não às universidades, em função do grau de diferenciação fazem parte, para além da valência prioritária do serviço assistencial à comunidade, as do ensino e da investigação . Como corolário, caberá dizer que o desenvolvimento devidamente estruturado da vertente de investigação numa instituição de saúde, traz seus dividendos a curto, médio e longo prazo pelo impacte muito positivo daquela na assistência e na qualidade de serviços a prestar à comunidade. De facto, na sua essência, investigar, consiste em verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver problemas“ procurando soluções face a questões que são previamente formuladas, na previsão de mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pessoas sãs ou doentes. Neste contexto, será de admitir o interesse em as referidas instituições de saúde criarem, manterem e desenvolverem elos fortes de ligação com 35 outras instituições de saúde e com centros ou institutos de investigação de créditos formados. Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se condições de parceria e sinergias tendo em conta, por um lado, o potencial da “ base de dados clínicos ou de material humano de doentes ” das instituições de saúde e, por outro, as potencialidades dos institutos universitários ou laboratórios de investigação experimental relacionados com as ciências básicas (biostatística, epidemiologia, etc.). O impacte da investigação na clínica Analisado o âmbito da investigação clínica, pode deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal vertente, como resultado de parcerias, facilita o intercâmbio científico com instituições congéneres nacionais e internacionais aplicando diversas estratégias; estas passam necessariamente pela criação de “redes de investigação” viabilizando, nomeadamente a concretização de estudos cooperativos e prospectivos, divulgação e partilha de resultados em eventos científicos, e em publicações nacionais e internacionais. Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo duma nova geração de médicos e de investigadores com interesse pela saúde infantil, e a descoberta de vocações para as diversas vertentes da investigação, no pressuposto de as medidas a levar a cabo serem acompanhadas de incentivos e de estratégias de acompanhamento dos mesmos pela instituição de que dependem. Diversos argumentos justificam o interesse da investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis alguns: a) a investigação clínica é um processo de resolução de problemas com uma aplicação em vista (por exemplo estudo da melhor relação custo-efectividade de determinada terapêutica ou de determinado exame complementar de diagnóstico); b) a investigação clínica contribui para a formação do espírito crítico com implicações na prática clínica; c) a investigação clínica promove o treino na recolha e valorização das informações conducentes à decisão clínica; d) a investigação clínica promove o desenvolvimento do espírito de sistematização do conhecimento. Torna-se evidente que as questões cruciais que decorrem destas noções são justamente a definição dos problemas a investigar (a resolver) implican- 36 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do cooperação entre clínicos e gestores institucionais, motivando estes últimos para tal questão. O panorama actual da investigação no país Dados do Observatoire des Sciences et des Technologies em Paris, comparando as contribuições científicas relativas a diferentes países europeus concluem que a União Europeia contribui com cerca de 30% da produção científica no mundo. Para esta parcela, Portugal contribuia até 1990 com 0,1% em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Espanha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%). Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas a um terço da produção científica irlandesa e 1/10 da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-se para 1/5, mas deve-se ter em conta que a população é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia, Engenharias, entre outras) produziram 55 573 publicações. De acordo com dados do INE (2008) registaram-se progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e 2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às ciência básicas biomédicas versus medicina clínica em geral, e pediatria em especial, no referido período (8 anos) a produção científica cresceu 91,5%. Os artigos e outros escritos dos portugueses, referidos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram, pela primeira vez, o país à frente da Irlanda. Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega alguns centros de investigação de excelência reconhecidos internacionalmente, embora com nítido predomínio na área das ciências básicas. Alguns atribuem este panorama à ausência de uma cultura para investigar, quer nas universidades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, seguramente, a falta de incentivos em termos de progressão de carreira hospitalar – profissional, quer para os médicos diferenciados que ascendem na carreira, quer para os jovens médicos na pós-graduação para obtenção do título de pediatra. Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a desvalorização das actividades de investigação nos concursos da carreira hospitalar (para consultor ou para chefe de serviço) em que a publicação de estudos é muito fracamente cotada. E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de extinção? Outros factores têm sido apontados: falta de tempo devido à pressão das funções assistenciais,falta de meios logísticos de apoio, falta de plano cooperativo para a resolução dos problemas assistenciais, indefinição de objectivos das Administrações hospitalares na vertente de investigação, havendo apenas preocupação com os objectivos quanto à prestação de cuidados mensuráveis, défice de formação desde o curso universitário, etc.. Surge, assim, certa desmotivação por se admitir –de acordo com o espírito da legislação – que “investigar não é importante para o esempenho profissional”. O contexto actual é, pois, o de perda de oportunidades por quem é subalterno, tem interesse, mas não tem incentivos nem condições para ser estimulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a importância do fomento de tal “cultura para a investigação” por parte de quem é orientador de formação de médicos em fase de pós-graduação. Goldstein e Brown(investigadores galardoados com prémio Nobel em 1997) traduziram este panorama de dificuldade ou de desmotivação para a investigação apelidando-o de “síndroma”PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease Syndrome”. Embora o programa de formação do internato complementar de pediatria contemple (modestamente) uma valência de formação em investigação, o resultado final será muito precário, na medida em que a valência não é obrigatória. Para reverter a situação, torna- se fundamental estimular os jovens internos, – eles são o nosso futuro – criando uma valência obrigatória (de três meses no mínimo) durante o internato, e fomentando a participação daqueles em actividades concretas em centros idóneos de investigação. Infelizmente, no quadro das administrações de instituições específicas, hospitalares ou não, não está previsto que os responsáveis pelos serviços integrem nos respectivos planos de actividades um programa anual de investigação, nem está previsto, pela legislação actual, qualquer financiamento para esta valência. Cabe salientar, no entanto, os sinais positivos de mudança dos últimos anos quanto a incentivos CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica para a investigação clínica, quer por iniciativa da Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções, quer por iniciativa das Universidades e do Ministério da Saúde (bolsas de estudo para centros internacionais, prémios, etc.). No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da medicina familiar, aos orientadores de formação e directores cabe grande responsabilidade na génese da mudança e no estímulo dos internos no sentido de aproveitamento de oportunidades para candidaturas a bolsas para projectos de investigação, designadamente sob os auspícios de fundações com esta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.). Modelos estratégicos para incentivar a investigação Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para incentivar a investigação no âmbito das instituições de saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filosofia assente em determinadas linhas estruturais: 1) a investigação aplicada é cada vez mais biomédica envolvendo, para além dos médicos, outros profissionais/investigadores como biólogos, farmacêuticos,bioquímicos, biofísicos, geneticistas, especialistas em epidemiologia e biostatística, matemáticos, etc.; 2) a investigação biomédica deve ser centrada na interdisciplinaridade entre as chamadas disciplinas básicas e disciplinas clínicas, designações que hoje se podem considerar ultrapassadas pois a” interpenetração mútua” é cada vez maior; 3) a investigação clínica somente se torna rendível em termos de aquisição de “dimensão ou massa crítica” se forem criados grupos inter-instituições e um sistema funcional de “rede” interligada; 4) para além do aspecto quantitativo que decorre da associação de pequenos grupos interinstitucionais, é necessário que entre os mesmos existam afinidades,lealdade, capacidade de integração e projectos bem delineados; 5) necessidade de apoio oficial e de mobilização de fundos monetários nacionais e no estrangeiro para garantir o funcionamento do “sistema”; 6) ao nível de cada instituição ou grupo de instituições haverá que criar “centros” funcionais a regulamentar (com médicos/investigadores), 37 com um coordenador responsável, que garantam a logística de promoção,dinamização e coordenação das actividades de investigação e o compromisso de “ligação à rede” de outros centros nacionais e internacionais. Para a concretização dos princípios atrás referidos, ao nível das instituições de saúde é necessário o compromisso da tutela e de determinados organismos para a adopção de determinadas medidas: 1) informatização dos serviços clínicos com criação de “base de dados”; 2) possibilidade de consultadoria estatística e de “software”; 3) criação de prémios e de bolsas para jovens investigadores; 4) maior valorização das actividades de investigação na avaliação curricular dos concursos ou contratações; 5) maior envolvimento das sociedades científicas, nomeadamente na organização de redes, na mobilização de fundos e na definição de prioridades; 6) maior envolvimento das universidades, das administrações hospitalares, e das direcções dos serviços hospitalares na formação em investigação e no apoio à investigação clínica estabelecendo parcerias com as empresas da indústria farmacêutica segundo princípios éticos. 7) necessidade de maior parcela do Produto Interno Bruto (PIB) devotado à investigação; 8) necessidade de sistema de avaliação externa das actividades por peritos de idoneidade comprovada, nacionais e internacionais. Seria injusto não reconhecer o papel que a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Ordem dos Médicos têm tido na formação em investigação e na criação de bolsas e prémios para os médicos e médicos pediatras interessados em progredir na investigação. A maior vulnerabilidade recai, de facto nas próprias instituições de saúde, verificando-se défice de sensibilização para tal problemática: são definidos, em geral, objectivos em termos de resultados assistencias sem estabelecer objectivos no âmbito da investigação. A mudança é, pois, necessária. BIBLIOGRAFIA Abzug MJ, Esterl EA. Establishment of a clinical trials office at a children’s hospital. Pediatrics 2001; 108; 1129- 1134 38 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Barros-Veloso AJ. A investigação como dimensão constitutiva da medicina contemporânea (Palestra). Tempo Medicina 2006; XXIII (1154/13 Fevereiro): 18-19 Coutinho A. O interesse da investigação clínica na actividade dos hospitais. In Forum de Lisboa de Administração de Saúde. Lisboa, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 Gil AC. Como elaborar projectos de pesquisa. São Paulo, Editora Atlas AS, 2002 Goldstein JL, Brown MS. The clinical investigator: bewitched, bothered and bewildered-but still beloved. J Clin Invest 1997;99:2803-2812 INE – Produção Científica em Portugal. www.ine.pt. (acesso em Janeiro de 2008) Mariano-Gago J. Ciência em Portugal. In Sínteses da Cultura Portuguesa/Europália 91. Lisboa: Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991 Martins-Correia JF. Prioridades na investigação clínica. In Metodologia e Gestão da Investigação Biomédica – Redes de investigadores e avaliação da investigção.Lisboa: edição da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; 2003: 23-30 Martins-Correia JF. Cultura hospitalar descura investigação clínica. Tempo Medicina 2003/29 Dez: 10 Nathan DG. Clinical research: perceptions,reality and proposed solutions. JAMA 1998; 280: 1427-1431 Procianoy RS. O factor de impacto no contexto actual. J Pediatr (Rio J) 2007; 83: 487 Rosenberg LE. The physician scientist: an essential and fragile link in the medical research chain. J Clin Invest 1999; 103: 1621-1626 Spencer AS. Practical implications of research governance in paediatric research. Current Paediatrics 2002;12:232-237 Videira-Amaral JM. Incentivar a investigação – um modelo estratégico. Acta Pediatr Port 2004; 35: 533-538 PARTE II Clínica Pediátrica Hospitalar e Extra-Hospitalar 40 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA INTRODUÇÃO À PARTE II Nesta parte são focados aspectos relacionados com a clínica pediátrica hospitalar tendo como base a experiência e certas valências dum hospital pediátrico central especializado com ensino universitário englobando serviço de perinatologia/maternidade: o Hospital de Dona Estefânia em Lisboa. De facto, este modelo de prestação de cuidados à comunidade tipifica o âmbito da Pediatria já referido em capítulo anterior, permitindo, por outro lado, compreender o enquadramento dos tópicos a abordar neste livro. Chama-se, entretanto, a atenção para as três missões primordiais de um hospital central: assistência, ensino e investigação. Uma vez que a filosofia actual de prestação de cuidados hospitalares prevê tempo de estadia reduzido ao mínimo indispensável, tal implica uma cooperação multiprofissional estreita com os hospitais de nível menos diferenciado de cuidados, com os centros de saúde (cuidados primários) e com uma rede de cuidados continuados. João M Videira Amaral 6 CLÍNICA PEDIÁTRICA HOSPITALAR Mário Coelho As particularidades da idade pediátrica As crianças não são adultos pequenos a quem se administram pequenas doses de medicamentos; são, pelo contrário, seres em constante evolução, com características peculiares. Com efeito: a) a sua fisiologia difere da dos adultos e altera-se à medida que crescem e se desenvolvem, o que implica maior vulnerabilidade na doença e face ao estresse; b) as mesmas podem ser afectadas por um espectro de doenças diferente do dos adultos, com especial realce para as doenças congénitas e hereditárias; c) a sua capacidade de compreensão relativamente ao corpo, à doença e à morte é diversa da dos adultos, evoluindo ao longo do tempo; d) utilizam os serviços de saúde geralmente acompanhados pela mãe ou outro adulto responsável que tem as suas próprias necessidades e direitos, como o de ser informado e tomar parte em decisões; destas circunstâncias decorre um estatuto legal diverso do do adulto; e) são fortemente influenciadas pelo ambiente ou sistema envolvente em que crescem e se desenvolvem (família, escola, grupos de amigos e a comunidade em geral); f) sendo afectadas pelas doenças que também surgem na idade adulta(por exemplo mucoviscidose, drepanocitose), adultos e crianças não constituem populações comparáveis, pois em idade pediátrica existe risco mais elevado de mortalidade. Em sintonia com o conceito global de Pediatria, CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por todos os órgãos de soberania portugueses (1990), considera “Criança” “todo o ser humano até aos 18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste conceito sendo reconhecida como uma fase da vida com necessidades e características específicas. Considerou-se arbitrariamente o fim da adolescência aquele limite de idade por razões de ordem organizativa assistencial. Dado que cada vez mais adolescentes atingem a idade adulta com patologias até há pouco quase desconhecidas da prática da medicina do adulto, nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos é usada como limite para o atendimento nas instituições pediátricas. Com efeito, o processo de transição de um adolescente com doença crónica grave para os hospitais ou serviços de adultos é difícil, por vezes dramático, pela perda de acesso aos cuidados tradicionalmente mais personalizados nos serviços ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes estão muitas vezes ainda dependentes da família e do perfil assistencial anterior. O ambiente pediátrico necessário Dois modelos de prestação de cuidados pediátricos hospitalares do nível mais diferenciado se confrontam: 1) o modelo de hospital geral (prestando cuidados a todos os grupos etários) integrando serviço de pediatria; 2) o modelo de hospital pediátrico autónomo embora integrado numa área com outras instituições ligadas à prestação de cuidados ou campus sanitário. As experiências vividas na infância e juventude têm um impacte crucial na vida de cada indivíduo; por isso, os contactos com os serviços de saúde em tal período da vida influenciam significativamente as atitudes futuras do mesmo em relação a esses serviços. Não dependendo a saúde apenas da prestação de cuidados, mas também do ambiente social, biofísico e ecológico, e estando estabelecido que os estímulos lúdicos, afectivos e emocionais são factores determinantes no processo terapêutico, assume a maior importância a criação do chamado ambiente pediátrico. Aliás, a criação de tal ambiente está implícita na Declaração dos Direitos da Criança Hospitalizada. 41 Assim, ao tipo convencional de cuidados humanizados de qualidade a cargo de profissionais especialmente preparados, o ambiente pediátrico associa: equipamentos e metodologias adaptados à condição e estádios de desenvolvimento da criança e maturidade do adolescente (por exemplo, móveis, equipamento lúdico, música, participação de artistas/palhaços, espaços apropriados com envolvência segura e integralmente reservados aos jovens utilizadores, como ludotecas, etc.). Estas especificidades são cruciais para a garantia da excelência da prática pediátrica hospitalar centrada na criança e na família. Estando mais intrinsecamente ligadas à própria natureza dos hospitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos serviços de pediatria de hospitais gerais (idealmente separados dos serviços de adultos). O ambiente pediátrico pressupõe garantia prévia de qualidade assistencial; tratando-se de instituições com cuidados de alta diferenciação, quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço de pediatria integrado em hospital geral, torna-se fundamental que sejam propiciadas todas as valências compatíveis com tal nível de cuidados. O Hospital de Dona Estefânia – Aspectos históricos, organizativos e demográficos O Hospital de Dona Estefânia (HDE) foi sede da primeira escola pediátrica no nosso país e o primeiro hospital construído de raiz em Portugal pela mão do arquitecto britânico Humbert (como foi referido, inaugurado em 1877 com a placa identificativa da Pedra de Armas Reais de Dom Pedro e Dona Estefânia – HRE). Em 1969, com a integração da Maternidade Magalhães Coutinho, concretizou-se a sua transformação em hospital materno-infantil médico-cirúrgico, vocação que tem assumido na sua plenitude. Na década de 80 nele teve início o intensivismo neonatal e pediátrico, e em 1992 recebeu o antigo Serviço de Saúde Mental Infantil de Lisboa, integrando hoje o novo Departamento de Pedopsiquiatria. Na sequência do forte impulso reformista iniciado nos anos 60 acompanhado de obras de remodelação arquitectónica e de ampliação, surgiu um primeiro ciclo de diferenciação com a criação 42 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA das unidades de hematologia, de endrocrinologia, de gastrenterologia, de pneumologia, e de nefrologia. No âmbito da cirurgia pediátrica outras áreas subespecializadas também foram surgindo, tais como a cirurgia neonatal, nefro-urologia, ortopedia, patologia clínica, fisiatria, imagiologia, etc.. É já no contexto de um segundo ciclo de inovação ao longo da última década que se inscreve a criação e consolidação de outras áreas devotadas à criança e adolescente, salientando-se as seguintes: otorinolaringologia, oftalmologia; estomatologia; neurocirurgia; cirurgia oncológica; cirurgia endoscópica; cirurgia em ambulatório; implantes cocleares; reumatologia, ortotraumatologia; o isolamento de alta infecciosidade (unidade de referência pediátrica no sul do país); imunoalergologia; função respiratória desde o período de recémnascido; ventilação crónica domiciliária; rastreio auditivo universal ao RN; doenças metabólicas; medicina do viajante, etc.. Tem um corpo de cerca de 1500 funcionários dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros, 250 são médicos distribuídos por 20 especialidades médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferenciam em subespecialidades e competências. A pediatria médica constitui o maior contingente com cerca de 75 especialistas dos quais 25% estão dedicados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com equipas independentes. Trata-se de um hospital de média dimensão com uma lotação de 235 camas das quais 200 são exclusivamente pediátricas, e as restantes para a área da mulher (medicina materno-fetal e ginecológica). Os recursos assistenciais do hospital estão afectos a departamentos, serviços, unidades funcionais e núcleos técnicos dirigidos respectivamente por directores, coordenadores responsáveis (corpo médico). Prestando o HDE o nível mais elevado de cuidados à comunidade, a vertente de assistência está implicitamente ligada às vertentes de ensino pré e pós-graduado, e de investigação. Trata-se dum modelo transversal de cuidados em obediência a uma filosofia de abordagem multidisciplinar e multiprofissional coordenada, centrada nas necessidades e expectativas do doente/família e na garantia de continuidade dos cuidados prestados a cada criança e adolescente. No âmbito da humanização cabe salientar um conjunto de actividades específicas muitas delas desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais como: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário, humanização dos espaços através de pinturas de parede em todo o hospital (programa internacional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a famílias de crianças deslocadas com doença crónica e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac Donald – a primeira em Portugal), a integração e socialização de crianças doentes particularmente carenciadas (Parceria com a Fundação Gil), a valorização dos tempos lúdicos na vida da criança internada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no Hospital”, Programas “Música no Hospital”, Programa lúdico mensal “A hora do conto” do Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância, Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comunidade (sítio na Internet), o apoio humano e espiritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso), a atenção às expectativas e necessidades especiais das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e à suas necessidades de comunicação (Gabinete de Comunicação), campos de férias para crianças diabéticas e asmáticas, etc.. Quanto à valência da formação salienta-se: o Ensino Universitário da Pediatria (5.° e 6.° anos) em ligação à Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em parceria com o Hospital São Francisco Xavier englobando o Centro Universitário com biblioteca própria e o Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria-CSTP; o Centro de Formação pós-graduada multiprofissional (designadamente cursos anuais para internos sob a égide da Direcção do Internato Médico); a Biblioteca do HDE englobando Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico (acervo de milhares imagens fotográficas de patologia assistida no HDE as quais são classificadas e organizadas permitindo a sua utilização no ensino pré e pós-graduado); o Gabinete de Telemedicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endoscópica; Programa de intercâmbio de estudantes de medicina estrangeiros, etc.. No que se refere à investigação salienta-se o Núcleo de Investigação ligado à FCM/UNL; a publicação (acompanhada de evento científico anual) do chamado Anuário do HDE contemplando todos os estudos realizados no HDE com atribuição de prémios segundo regulamento; área de investi- CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar 43 QUADRO 1 – Aspectos demográficos HDE 2004/2006 N.° de hospitalizações ~11.500 N.° de episódios (serviços de urgência médico-cirúrgica) ~95.000 N.° de sessões de hospital de dia ~4.000/10.000 actos N.° de consultas externas (c/ 50 áreas diferenciadas) ~12.500 N.° de intervenções de grande cirurgia ~4.750 (25% de ambulatório) FIG. 1 Hospital com Acreditação Internacional / HQS. gação opcional aberta a estudantes de medicina da FCM/UNL e outras universidades, etc.. A área de governação clínica (clinical governance) segue uma orientação baseada em determinados vectores tais como: a melhor evidência científica disponível para o desenvolvimento de políticas de intervenção e recomendações de boas práticas sob forma de Normas de Orientação Clínica; a realização de auditorias clínicas sistemáticas por pares; e a avaliação e redução do risco profissional e dos doentes. O Arquivo Clínico é centralizado, dispondo de uma zona específica de alta segurança para processos que a requeiram; com a informatização de todos os serviços do HDE está em desenvolvimento o Processo Clínico Informatizado. O HDE desenvolve um Programa de Melhoria Contínua de Qualidade organizacional cuja avaliação externa lhe conferiu a acreditação internacional (Fig. 1) de qualidade global (Health Quality Service/Instituto da Qualidade em Saúde). A instituição privilegia formas actuantes de convivência com a comunidade, designadamente a unidade coordenadora funcional, os centros de saúde, serviços de segurança social, autarquias locais, instituições académicas, escolas de formação profissional, instituições particulares de solidariedade social, associações de doentes, entidades nacionais e internacionais de interesse público, mecenas e instituições beneméritas privadas. A qualidade das parcerias estabelecidas com este último sector conferiu ao Hospital o prémio “Hospital do Futuro – 2005”. N.° de partos N.° de visitas domiciliárias (englobando terapêutica) Demora média Taxa de ocupação média Postos de internamento pediátrico 2.200(3) 500 5, 6 dias 71,6%(2) 200(1) Notas: (1) Dentro dos limites do nível óptimo de economia no funcionamento de um hospital segundo o Observatório de Sistemas de Saúde da Europa; (2) semelhança à taxa de ocupação média dos hospitais de agudos da OCDE – 74%; (3) limites ideais de partos para uma instituição = 1.500 a 3.500/ano. O Quadro 1 resume alguns aspectos demográficos (valores médios referentes a 3 anos: 2004 – 2006) A clínica pediátrica hospitalar no futuro Se, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os sistemas de saúde e as instituições que prestam cuidados à criança e adolescente forem centrados no “melhor interesse” destes cidadãos, os países e os profissionais devem preparar-se para os desafios que se esperam no futuro em diversas vertentes: Demográfica Haverá que encarar as consequências das alterações demográficas tendo em conta a redução continuada da natalidade e fecundidade,a idade mais tardia da mulher no primeiro parto e as novas formas de organização familiar; aumentarão as tensões para a adopção de políticas migratórias mais liberais com risco de alargamento de bolsas de exclusão e de degradação das respectivas condições de saúde. Técnico-profissional A prática clínica respeitará cada vez mais as recomendações emanadas de comissões de peritos e de sociedades científicas; crescerá a exigência social e institucional sobre a qualidade e diferenciação dos 44 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA profissionais. A certificação regular das competências profissionais e a presença assídua de advogados na relação médico-doente e instituição-doente serão provavelmente realidades muito próximas. Formativa Será em breve realidade o ensino com recurso aos simuladores médico-cirúrgicos e à endonavegação virtual; a especialização será apenas uma parte do processo de formação e a educação médica contínua ganhará decisiva importância nos processos de manutenção e actualização das competências; os especialistas generalistas, como por exemplo os pediatras, incluirão cada vez mais competências tecnológicas na sua formação e desempenho. sidade e diferenciação dos profissionais que participam nos cuidados à criança; o financiamento hospitalar estará em progressiva correspondência com a produção de actos facturáveis; e aumentará a pressão de aliciamento das entidades privadas sobre os técnicos formados nos serviços públicos. Inovação tecnológica Num contexto de contínua explosão tecnológica será dada especial atenção às áreas de grande potencial e rápido desenvolvimento como a investigação genómica, a neuropsicobiologia e a biologia molecular; transplantações e terapêutica com linhas celulares estaminais; surgirão novos veículos terapêuticos a nível celular; crescerão exponencialmente os meios de diagnóstico e intervenção pela imagem; estarão disponíveis novas técnicas anestésicas e equipamentos de ventilação inteligentes; continuarão os problemas de resistência aos antimicrobianos e de infecção nosocomial; a prevenção das doenças pediátricas com repercussão no adulto e a pediatria preditiva constituirão áreas de forte investigação e desenvolvimento; a robótica tenderá a revolucionar as metodologias de treino técnico e autoformação; a globalização da informação científica, a comunicação em telemedicina e teleconsulta irão trazer novos desafios ao nível da segurança de dados informáticos dos doentes e da deontologia médica; e o nível de aceitação dos riscos iatrogénicos e o avanço nos suportes de vida levarão a novos dilemas éticos e de responsabilidade médica e institucional. Filosofia e estrutura dos hospitais O hospital irá integrar-se em redes e ele próprio funcionará com redes baseadas nas suas especialidades; a maior proporção de doentes crónicos levará à necessidade de substituir encontros técnicos com especialistas durante episódios de doença por programas de relacionamento consistentes e duradouros; ampliação das áreas de hospital de dia, ambulatório e cirurgia do ambulatório; a par da redução das áreas de internamento os novos hospitais não serão como os grandes edifícios dos anos 60-70 e irão adoptar dimensões geríveis e rendíveis com arquitecturas seguras, em especial para doentes com limitações de mobilidade; as áreas de medicina materno-fetal e obstétricas serão programadas para uma carga anual ideal entre 1500 e 3000 partos; cada vez mais os equilíbrios entre volume do edifíco, a facilidade de acesso, a relação com a cidade em que se implanta o hospital e o conhecimento das necessidades das crianças condicionarão a concepção arquitectónica; a importância de um ambiente adequado à criança; sendo a habitual atmosfera familiar (“homelike”) e a privacidade factores terapêuticos importantes, os arquitectos e engenheiros hospitalares tomá-los-ão em conta nos novos projectos de construção e reabilitação dos hospitais pediátricos; crescerá o conceito de “hospital verde” tirando o máximo partido das fontes energéticas naturais; será concretizada uma significativa redução do uso de papel e uma menor produção de resíduos com importantes repercussões sobre as formas de registo clínico, o acesso a dados do doente e a informação médica em geral. Sistema de saúde Haverá maior desenvolvimento das redes nacionais e internacionais de referenciação de doentes; desenvolver-se-á o transporte pediátrico e a rede de trauma; generalizar-se-á o uso de sistemas e índices de monitorização clínica para comparação de centros diferenciados; crescerá a diver- Prestação de cuidados e governação clínica O internamento será quase residual e apenas para os casos muito complexos; será impulsionada a figura do médico ou enfermeiro gestor do doente crónico; a informatização dos dados clínicos e a prescrição por computador serão regra; a efectivação de programas específicos de transição dos CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar adolescentes para unidades de adultos será inevitável; o controlo da qualidade passará da apreciação entre pares para a análise de resultados. 45 Report of the FOPE II Pediatric Generalists of the Future Workgroup. (Suppl). Pediatrics 2000;106: 1199-1223 Mateus-Marques J. Médicos e Hospitais. Tempos e Andamentos. Pensar e repensar a pediatria. Lisboa: Gradiva. Exigência institucional e expectativas da comunidade O padrão de qualidade a adoptar será fortemente influenciado pela interpretação da utilidade dos cuidados prestados às famílias que acedem ao hospital; com o desenvolvimento dos sistemas de qualidade organizativa e de prevenção de riscos, a meta de excelência clínica será a prioridade entre os objectivos da prestação de cuidados numa perspectiva de forte regulação económica e financeira, e de influência crescente dos operadores privados. 2001; 206-222 Ministério da Saúde. Saúde em Portugal. Uma estratégia para o virar do século 1998-2002. Lisboa: Ministério da Saúde ed, 2003 OMS. Convenção dos Direitos da Criança. Organização das Nações Unidas. Genève : Ed OMS, 1989 Pavão J M. O Cidadão de fraldas. Associação do Hospital de Crianças Maria Pia. Porto, 2002 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics New York: Mc Graw-Hill, 2002 Coelho M e Colaboradores. Urgências Pediátricas e Casuística Nota final: Na fase de conclusão desta obra (2008) está em curso um projecto de reestruturação da rede hospitalar de grande Lisboa que inclui a “transferência do Hospital Dona Estefânia” (no que se refere essencialmente a recursos humanos e funcionalidade) para um novo grande hospital a construir até 2012 – O Hospital de Todos os Santos. Espera-se, pois, que a individualidade da Pediatria e o espírito e ambiente pediátricos criados no HDE, salientados neste capítulo, se mantenham. do Hospital de Dona Estefânia Lisboa: Edição BIAL. Prémio João M Videira Amaral (Editor) BIBLIOGRAFIA Amaral JMV. Pediatria Geral e as Sub-especialidades Pediátricas. Análise de algumas questões. 2ª Parte – Implicações na Assistência e Ensino Clínico. Acta Pediatr Port 2003; 34: 377-379 Caetano E. O Internamento em Hospitais – Elementos, Tecnológicos. Lisboa: Edição de Educação Calouste Gulbenkian, 2002 BIAL de Medicina Clínica 1996 Direcção Geral da Saúde. O Hospital Português. Lisboa: Direcção Geral da Saúde. 1998 Direcção Geral da Saúde. Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes. Lisboa: Direcção Geral da Saúde. 1999 Direcção Geral da Saúde. Rede de Referenciação MaternoInfantil. Direcção Geral da Saúde–Divisão de Saúde Materna, Infantil e dos Adolescentes. Lisboa: Direcção Geral da Saúde, 2001 Grupo Museológico do HDE. Dados sobre a História do Hospital de Dona Estefânia.Comemoração dos 125 Anos do HDE. Lisboa: Grupo Museológico do Hospital Dona Estefânia, 2002 Gruskin A, Williams R, McCabe E, Stein F, Strickler J. Final Report of the FOPE II Pediatric Subspecialists of the Future Workgroup (Suppl). Pediatrics 2000; 106: 1224-1244. Instituto de Apoio à Criança. Carta da Criança Hospitalizada. Lisboa: Instituto de Apoio à Criança/European Association for Children in Hospital, 2005 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Leslie L, Rappo P, Abelson H, Jenkins RR, Sewall SR. Final 46 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 7 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA ABORDAGEM DE CASOS CLÍNICOS João M. Videira Amaral «The proper exercise of the five senses is often far more valuable in diagnosis than a handful of laboratory reports and radiographs» L Norrlin,1960 Importância do problema Numa perspectiva prática, como introdução à abordagem dos casos clínicos, será pertinente veicular algumas ideias-chave relacionadas com a Semiologia, classicamente definida como o estudo dos métodos de colheita dos sintomas e sinais de doença, de lesão de órgão ou de perturbação de função. Aquela integra duas partes: 1) a Semiotécnica ou técnica da pesquisa dos sintomas e sinais (considerada a «arte» de abordar o doente ou pessoa); e 2) a Clínica Propedêutica, (a ciência da introdução à observação clínica, ao raciocínio crítico e à síntese) através da qual se integram os elementos obtidos pela Semiotécnica para se chegar ao diagnóstico e deduzir o prognóstico. O processo de integração dos dados colhidos deve fazer-se numa sequência lógica, por fases, em crescendo; 1) anamnese; 2) exame objectivo; 3) síntese dos dados colhidos pela anamnese e pelo exame objectivo, com formulação justificada de hipóteses de diagnóstico, ponderando sempre devidamente os dados que as favorecem, assim como os dados que as contrariam; 4) solicitação de exames complementares indispensáveis segundo uma escala de prioridades e sempre em concordância com as hipóteses formuladas, para as con- firmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) actuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais a prestar; 7) prognóstico. Embora, segundo o conceito expresso, todas as fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que, dado o peso da anamnese e do exame objectivo é dispensada a realização de exames complementares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e outras, pelo contrário, em que o diagnóstico definitivo somente poderá ser estabelecido post-mortem ou com exames inacessíveis ao clínico em determinado contexto. O objectivo deste capítulo é analisar e discutir sucintamente algumas tendências manifestadas pelos estudantes de medicina e médicos em formação pós-graduada (internos) durante os estágios de prática clínica, as quais, contrariando os princípios atrás expostos, poderão ser consideradas erros metodológicos na abordagem dos casos clínicos com eventuais repercussões negativas na qualidade assistencial Exemplos I) Em relação à metodologia da abordagem dos casos clínicos na área de internamento (ou ambulatório) tem-se comprovado que nem sempre é aplicado o esquema sequencial «em crescendo» atrás referido. Com efeito, no âmbito da apresentação dos casos, verifica-se muitas vezes a tendência para não explicitar, de modo fundamentado, as hipóteses de diagnóstico e ou lista de problemas nos registos clínicos, sendo frequente, ao ser descrito o caso (oralmente ou por escrito) a “passagem” da anamnese e do exame objectivo para a solicitação dum conjunto de exames complementares, por vezes com uma lista excessiva, sem prioridades, e desajustada ao caso real. Quantas vezes, somente após a verificação de dados muito notórios colhidos pelo exame objectivo (por exemplo, icterícia, dispneia ou palidez acentuadas) se vai aprofundar a anamnese? Quantas vezes se solicita uma ecografia abdominal ou outro exame complementar sem prévia e minuciosa palpação do abdómen e sem justificar o pedido? Quantas vezes se procede a pedidos de exames sem definir uma estratégia de prioridades, envolvendo riscos vários e “agressividade” (por CAPÍTULO 7 Aspectos metodológicos da abordagem de casos clínicos exemplo exames radiológicos excessivos, ou ausência de programação visando reduzir ao mínimo o número de colheitas de sangue e outros produtos biológicos) com possíveis repercussões no tempo médio de internamento e no número de consultas? lI) Outro exemplo diz respeito à criança em estado crítico internada em unidade de cuidados intensivos, submetida a terapia complexa e assistida por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância, como se depreende, a criança terá que ser manuseada com extrema cautela, pois a mesma está «submersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados fornecidos pelos diversos tipos de monitorização biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes casos, é minimizar certos passos fundamentais do exame objectivo, sem tirar partido de certas regras da semiologia clássica aplicável aos casos especiais dos doentes em cuidados intensivos. III) É também frequente assistir-se ao início do relato formal do caso começando pelo fim (por exemplo, descrição dos resultados analíticos, imagiológicos, ou dos dados fornecidos pelos monitores), antes de se dar a conhecer os eventos clínicos das últimas horas assim como os dados fornecidos pela observação convencional exequível com instrumentos clássicos que, mesmo neste contexto, continuam a ter o seu papel. A este propósito valerá a pena citar uma autoridade em intensivismo, Swyer, afirmando que a monitorização humana em unidades de cuidados especiais e intensivos é tão importante como as monitorizações biofísica e bioquímica. Análise crítica Tendo como base o conceito actual da Pediatria, não como especialidade, mas como Medicina integral de uma época da vida que se inicia com a fecundação e se conclui com o fim da adolescência, Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda da unidade da pediatria com a multiplicação das especialidades pediátricas (áreas específicas cujo desempenho implica a aplicação de determinadas técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, segundo o autor, a chamada síndroma do super especialista, traduzida pela tendência de transferir a prática de tecnicismo exagerado para o período de formação básica do clínico geral ou pediatra geral, 47 o que constitui uma perversão do respectivo processo educativo. A este propósito, Charney afirmou que, se não proporcionarmos aos internos em formação as oportunidades para a concretização de determinados objectivos (os quais podem ser sintetizados no saber, no saber estar, no saber fazer com justificação, no saber comunicar e no saber investigar), e não promovermos o desenvolvimento de qualidades essenciais de perspicácia, de rigor e de sentido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, podendo os respectivos formadores ser culpados de negligência educativa. A elaboração da história clínica em moldes clássicos, quer na versão de relatório escrito, quer na de exposição oral, constitui uma modalidade ímpar de treino clínico, sendo fundamental para o desempenho profissional futuro, pois permite a abordagem global de cada caso – problema; por outro lado, dá resposta a grande número de objectivos educativos no âmbito da formação do interno. As tendências manifestadas por vezes pelos internos através dos exemplos relatados, correspondendo a aparentes desvios da metodologia clássica de abordagem de casos clínicos são decorrentes duma experiência pessoal e institucional, não devendo ser consideradas, por isso, representativas, do panorama nacional. Poderão ser apontadas várias explicações para as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de informação proporcionada em tempo real, leva à tentação de o clínico subvalorizar a semiologia clássica, condicionando menor investimento na metodologia do «crescendo» atrás referida. Falase hoje, inclusivamente, numa cultura da tecnologia pela tecnologia, para utilizar a terminologia de KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta da cultura. Mesmo que se invoque o enorme potencial dos exames complementares como meio de prevenir a chamada má-prática clínica por omissão de determinadas atitudes no acto médico, neste campo os formadores têm uma grande responsabilidade no sentido de educarem os seus estagiários a raciocinar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prioridades quanto aos exames complementares a solicitar, sempre em obediência à anamnese, ao exame objectivo e às hipóteses de diagnóstico formu- 48 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Competência clínica e pressupostos Competência clínica Colheita da história clínica Exame físico/observação Diagnóstico Actuação/tratamento Prognóstico Pressupostos/Condições indispensáveis Formação básica/ Aquisição de conhecimentos Treino/ Aquisição de aptidões Lógica indutiva / Raciocínio hipotético-dedutivo Aquisição de atitudes Experiência ladas, numa atitude permanente de humanização. Aliás, esta noção de necessidade de procedimento metódico e correcto, com uma boa relação custoeficácia, está implícita numa frase de Oski, traduzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o espírito crítico que caracterizavam este mestre: «Refore ordering a test, decide what you will do if it is positive or negative. If both answers are the same, don't do the test». Outras explicações estarão relacionadas com a deficiente preparação durante o período de ensino pré-graduado e com a abolição da clássica prova clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na versão de desempenho «ao vivo» com exposição oral perante o júri) da maioria dos concursos da carreira hospitalar. Tais provas constituiam, de facto, um forte estímulo, quer para os formadores, quer para os estagiários, e permitiam, por outro lado, uma selecção mais rigorosa de competências e de vocações. Estratégia Entre várias estratégias de abordagem e registo de dados de casos clínicos, cabe salientar uma modalidade baseada na orientação por problemas, conhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado. S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocorrências, eventos); O = objectivo (registo de dados objectivos comprovados através do exame físico ou de exames complementares realizados com justificação); A = avaliação (registo dos dados disponíveis com interpretação – por ex. esplenomegália porquê?; anemia porquê?, sopro cardíaco porquê? diarreia porquê? rectorragias porquê?) P = plano (registo do plano de actuação incluindo neste conceito não só a terapêutica e esquema nutricional, como os cuidados a prestar em geral, e eventuais novos exames complementares), sempre em função dos dados disponíveis, da lista de problemas e da actualização do diagnóstico. Esta estratégia, de acordo com a nossa experiência, tem diversas vantagens: obedece ao princípio do “crescendo” atrás referido, contribui para a prática do raciocínio clínico, cria hábitos de registo mais rigorosos facilitando o processo de comunicação e as tarefas do interno, quer nas apresentações em reuniões de discussão de casos, quer na visita clínica. A prática destes gestos no dia-a-dia sob a orientação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de competência clínica, em obediência aos princípios fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrática, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1. Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembrome; faço e compreendo». Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou ambulatório, junto dos internos, se investir na abordagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a contribuir para a formação de médicos competentes, o que se traduzirá num serviço a prestar à comunidade de melhor qualidade e mais humanizado. BIBLIOGRAFIA Amiel-Tison C. Clinical Neurology in neonatal units. Croatian Med J 1998; 39: 136-146 Ballabriga A. Pediatric education for specialists. In Canosa CA, Vaughan VC , Lue HC, (eds). Changing Needs in Pediatric Education. New York: Raven Press, 1990; 20: 81-95 Charney E. La formación de los pediatras para la asistencia primaria. Pediatrics (ed esp.) 1995; 39: 75-7 Chou P, Miller L, Corro C. Writting high-quality progress notes. ln: Pomerance JJ, Richardson CJ, (eds). Neonatology for the Clinician. Norwalk, Connecticut: Appleton & Lange, 1993: 31-36 Galdó A, Cruz M. Exploración Clinica en Pediatria. Barcelona: Editorial JIMS, 1999: 1-20 CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica Gill D, O'Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 1998: 1-25 Goldbloom RB. Pediatric Clinical Skills. New York: ChurchilI Livingstone, 1999: 38-42 Gomes-Pedro J. Educação Médica Pediátrica. Acta Pediatr Port 1995; 26: 333-338 Gordon IB. Office Medical Records. Pediatr Clin North Am 1981; 28: 565-583 Hartline JV. Consultation, the art of conveying science and opinion. In: Pomerance JJ, Richardson CJ, 49 8 A IMAGIOLOGIA EM CLÍNICA PEDIÁTRICA (eds). Neonatology for the Clinician. Norwalk, Connecticut: Appleton & Lange, 1993: 37-46 Francisco Abecasis, Eugénia Soares e Leonor Bastos Gomes Kelly K. The third cuIture. Science 1998; 279: 992-993 Oski FA. Commentary. The Year Book of Pediatrics – 1985. Chicago: Year Book Medical Publishers lnc, 1985: 29 Petrie JC, McIntyre N. The Problem Oriented Medical Record. Importância do problema Edinburgh: Churchill Livingstone, 1979: 35-71 Swyer PR. The Intensive Care of the Newly Bom – Physiological PrincipIes and Practice. Basel: S Karger, 1999: 51-4 UEMS. Training for specialists in Pediatrics. Basis for discussion by the European Pediatric Board. Brussels, 1996 Crespo M. La formación de especialistas en Pediatria. An Esp Pediatr 1997; 47: 13-37 A Imagiologia constitui hoje uma matéria vastíssima assumindo um papel progressivamente crescente na avaliação diagnóstica, compreensão, tratamento e seguimento das doenças da idade pediátrica. O explosivo desenvolvimento tecnológico dos últimos 30 anos, com reflexo na variedade das técnicas de imagem hoje postas à disposição do imagiologista, tem determinado que este especialista esteja cada vez mais envolvido na selecção e adequada sequência dos exames a realizar. As vantagens e limites desses estudos, e também o seu custo, devem ser criteriosamente ponderados face às situações em avaliação, tendo sempre como pano de fundo o grupo etário em apreço que impõe redobrada atenção no reconhecido efeito nocivo da radiação X, no eventual risco da sedação e da anestesia, na possível alergia aos produtos de contraste iodados, sem esquecer a possibilidade de trauma físico e psicológico. Para rendibilizar vantagens e diminuir riscos, o exame imagiológico deverá estar orientado para o problema clínico específico da criança em estudo; e, para essa selecção, a anamenese, o exame físico, os dados laboratoriais e as considerações diagnósticas assumem um interesse frequentemente decisivo, pelo que a discussão partilhada entre o clínico e o imagiologista constitui factor indispensável para assegurar melhor qualidade nos cuidados de saúde em Clínica Pediátrica. De referir que a utilização de equipamentos topo de gama é também determinante para o rigor do citado exame. 50 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Embora os estudos radiológicos clássicos ainda hoje sejam os de maior utilização em Pediatria (mais de 70% dos exames), decidiu-se neste capítulo abordar aspectos essenciais das técnicas de imagem mais modernas em utilização corrente na investigação imagiológica: (a ecografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética) relacionados com as suas aplicações preferenciais em diferentes órgãos e sistemas e com as respectivas virtualidades e limitações. Ecografia A ecografia merece um lugar de destaque num serviço de imagiologia pediátrica. Constitui técnica de primeira linha em muitas situações e frequentemente a única a empregar face ao seu valor informativo. Tornou-se um método de diagnóstico por imagem particularmente atractivo por não utilizar radiação ionizante, não ter efeitos biológicos comprovados, ter um preço acessível, captar imagens em tempo real, multiplanares, não necessitar de grande colaboração por parte do examinado e proporcionar uma excelente resolução de imagem na criança, devido à pequena quantidade de gordura corporal e à sua parede de espessura reduzida. O exame deve ser rápido, em ambiente calmo e agradável, proporcionando a melhor colaboração. Os avanços tecnológicos dos novos equipamentos de ecografia permitem, cada vez mais, maior número de aplicações incluindo apoio imagiológico em tempo real para a realização de biópsias, aspiração e drenagem de colecções. No entanto, estruturas como o ar, o osso, o metal, perturbam a propagação da onda acústica e impossibilitam a avaliação de órgãos subjacentes limitando a avaliação ecográfica em determinadas áreas como no crânio, em certos territórios do pescoço e no tórax. Indicam-se as principais patologias para cujo diagnóstico a ecografia contribui: • Na cabeça, o exame transfontanelar no recém-nascido (RN) pré-termo tem como principais indicações a detecção de hemorragia intracerebral e seu estudo evolutivo; a ecografia transfontanelar permite também o estudo inicial de anomalias congénitas e hidrocefalia. • A ecografia permite uma avaliação anatómica da medula no lactente até aos três meses de idade, antes de os arcos vertebrais completarem a ossificação. A principal indicação para a realização deste exame é a suspeita de disrafismo oculto. • No pescoço, a ecografia é utilizada para estudo morfológico da tiroideia, das glândulas salivares, timo, para diagnóstico de certas massas cervicais, tais como quisto do canal do tiroglosso, anomalias dos arcos branquiais, torcicolo congénito, adenopatias e linfangioma quístico. • No tórax, o estudo cardíaco constitui a principal indicação ecográfica, sendo, neste domínio, da competência da cardiologia. A ecografia constitui também um importante método imagiológico coadjuvante da radiografia do tórax na avaliação de lesões do parênquima pulmonar (consolidações, atelectasias, abcessos, áreas de necrose e liquefacção), da pleura (derrames, tumores), do mediastino (massas, posicionamento de cateteres), parede torácica e diafragma (hérnias, eventração, parésia). • No abdómen a ecografia é primeiro exame imagiológico a realizar no estudo morfológico do fígado, sistema hepatobiliar, pâncreas e baço. Detecta anomalias congénitas e FIG. 1 Estenose hipertrófica do piloro. Ecografia evidenciando canal pilórico alongado e aumento de espessura da parede CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 51 FIG. 2 Invaginação intestinal ileo-cólica. Corte transversal ecográfico. adquiridas como sejam as inflamátorias/infecciosas, infiltrativas e tumorais. • No estudo do aparelho digestivo tem particular interesse no diagnóstico de estenose hipertrófica do piloro (Fig. 1), (dispensando outros métodos de diagnóstico), na invaginação intestinal (Fig. 2) permitindo seguir a desinvaginação, quer por clister hidrostático, quer por método pneumático; esta particularidade poupa a criança a radiação desnecessária induzida pelos métodos convencionais. Actualmente é um exame de referência na suspeita de apendicite, na má rotação intestinal, na enterocolite necrosante, na duplicação entérica, espessamentos e infiltrações da parede intestinal, anomalias anorectais, quistos abdominais, tumores abdominais incluindo adenomegálias, e nos traumatismos abdominais. • No aparelho urinário: demonstração de anomalias do tracto superior (agenesia renal, anomalias de posição, bifidez, duplicidade), nas anomalias do tracto inferior, do uréter distal (megauréter primário, uréter ectópico, ureterocele), da bexiga (anomalias do úraco, duplicação da bexiga, divertículos), da cloaca, da uretra (válvulas da uretra posterior). Em estudos pré-natais tem indicação para avaliar anomalias detectadas (dilatação piélica, hidronefrose (Fig. 3), megauréter, rim multiquístico). Na infecção urinária comprovada: para detecção de anomalias morfológicas do aparelho urinário, litíase, lesões directas do parênquima renal, nefronia lobar, abcessos. A ecografia renal é ainda informativa nas seguintes situações: doenças quís- FIG. 3 Hidronefrose. Corte sagital ecográfico pré-natal. ticas dos rins, nos tumores renais, com especial destaque se existir suspeita do tumor de Wilms, traumatismos, e hipertensão arterial. • As glândulas supra-renais são bem visíveis no RN, tornando-se de difícil caracterização por ecografia a partir de um mês de idade. A ecografia pode demonstrar sinais de hemorragia, abcessos, quistos e tumores sólidos como o neuroblastoma. • No aparelho genital feminino, a ecografia permite caracterizar a morfologia do útero e dos ovários, detectar anomalias congénitas, alterações do desenvolvimento (em particular relacionadas com a puberdade), patologia tumoral, infecciosa, isquémica (torção do ovário). • Nos orgãos genitais masculinos, a ecografia é o método de escolha para examinar o escroto e os testículos, alterações congénitas, escroto agudo, tumores testiculares e extra testiculares. • No sistema músculo-esquelético a ecografia é indicada para detectar displasia da anca, sendo considerada o exame de primeira linha antes da ossificação dos núcleos epifisários femorais. No serviço de urgência é frequentemente requerida para o diagnóstico de sinovite transitória da anca e lesões traumáticas dos tecidos moles. A ecografia também contribui para o diagnóstico de patologia inflamatória/infecciosa e tumoral dos tecidos moles. 52 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Ecografia Doppler A ecografia Doppler (eco-doppler) actualmente não deve ser dissociada da ecografia, pois o estudo doppler pode acrescentar em todas as áreas estudadas e apontadas anteriormente mais dados semiológicos, designadamente possibilitando de forma rápida informar se existe vascularização e caracterizá-la. Sendo a patologia vascular periférica menos frequente que no adulto, o eco-doppler é mais requisitado na suspeita de complicações de cateterismos. No RN o eco-doppler é solicitado no estudo transfontanelar para avaliar a vascularização cerebral arterial e venosa, verificar se determinada estrutura corresponde a vaso, e para apreciar o efeito da hidrocefalia na circulação cerebral. É requerido principalmente: na pesquisa de trombo após cateterismo dos vasos umbilicais, devido à elevada incidência de trombo aórtico nestes doentes; e na suspeita de trombose da veia renal em crianças com problemas perinatais graves apresentando massa abdominal, hematúria e hipertensão arterial transitória. Nos exames programados, tem um papel indiscutível na avaliação dos transplantes renal e hepático. Nas crianças com hepatopatia crónica possibilita a detecção de hipertensão portal, demonstra alterações do calibre e do fluxo de veias esplâncnicas, a presença de circulação venosa colateral (shunts espontâneos porta-sistémicos, salientando-se as varizes esofágicas). Este exame constitui ainda um bom indicador da permeabilidade dos vasos renais arteriais e venosos e da vascularização do parênquima renal. Entre outras situações, permite identificar sinais de necrose tubular aguda, pielonefrite aguda e obstrução aguda do uréter. Na patologia tumoral, o exame por ecodoppler pode realçar a hipervascularização de determinados tumores como o hemangioendotelioma hepático. De referir, no entanto, que não permite o diagnóstico diferencial entre tumor benigno ou maligno. Por outro lado, permite avaliar o estádio evolutivo de alguns tumores ao demonstrar a invasão vascular; é o caso do tumor de Wilms que pode originar trombose da veia renal e da veia cava inferior. No serviço de urgência o eco-doppler tem apli- cações importantes na avaliação do traumatismo abdominal fechado, no abdómen agudo, na pielonefrite aguda e no escroto agudo (diagnóstico diferencial entre torção testicular e orquiepididimite). Tomografia computadorizada A tomografia computadorizada (TC) utiliza radiação X; a mesma veio modificar a investigação imagiológica em múltiplas situações patológicas em Pediatria, independentemente da menor aplicação e desenvolvimento em relação ao verificado no estudo do adulto, tendo em conta aspectos específicos do grupo etário em estudo: menor quantidade de gordura, estruturas anatómicas mais finas e dificuldades de mobilização, necessidade frequente de administração endovenosa de contraste e de sedação/anestesia. Contudo, a reconhecida resolução espacial, o pormenor anatómico e capacidade de avaliação tecidual proporcionadas pelos cortes seccionais da TC, a utilização de cortes de espessuras de 1-2 mm (alta resolução), a possibilidade de se proceder a reconstruções bi e tridimensionais, tornaram-na uma técnica de imagem muito importante e, por vezes, indispensável para aplicação em patologia neurológica, na doença neoplásica, na criança politraumatizada, e para visualização de estruturas aéreas, ósseas e vasculares, apenas para citar alguns exemplos. Em casos seleccionados a TC pode também orientar a realização de biópsias ou drenagens. Os últimos avanços em TC, nomeadamente no final da década de 90 com aquisição volumétrica na utilização helicoidal (espiral) e, nos anos mais recentes, através do emprego da tecnologia de multidetectores, embora à custa de maior dose de radiação, vieram encurtar de forma significativa o tempo de aquisição das imagens, diminuindo o número de sedações/anestesias. Por outro lado, aumentaram a capacidade de detecção de pequenas lesões, melhoraram a apreciação nos estudos após administração de contraste endovenoso e permitiram reconstruções bi e tridimensionais de grande qualidade, aspectos com particular interesse em patologia das vias aéreas, óssea, vascular, e em endoscopia virtual. • No estudo do pescoço tem sobretudo inter- CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica A 53 B FIG. 4 Teratoma quístico maduro do mediastino. Radiografia do Tórax (A) e TC após contraste (B). esse na distinção de lesão supurada ou não supurada, na avaliação morfológica de massas, quer para definir ponto de partida, quer para avaliar a extensão e repercussão das mesmas sobre estruturas adjacentes. • No tórax a TC é o método de imagem preferencial para lesões ocupantes do espaço no mediastino, ou de anomalias ou alargamentos mediastínicos suspeitos na radiografia do tórax (Fig. 4). Em relação ao parênquima pulmonar tem particular indicação na doença metastática, na definição anatómica de lesões complexas, eventualmente congénitas com ou sem vascularização normal, na caracterização da doença pulmonar difusa e das vias aéreas centrais e periféricas, assim como na investigação de lesões focais, em particular para esclarecer a relação de um nódulo ou massa com a pleura e diafragma. Quer em relação ao mediastino, quer ao parênquima, a TC está indicada na avaliação do doente politraumatizado estável com lesão torácica. Cabe referir ainda que se trata dum método auxiliar importante na distinção entre processo pleural e parenquimatoso em localização periférica, e para investigar lesões da parede torácica. • Na patologia do fígado e vias biliares são particularmente úteis os estudos com adminis- tração endovenosa de contraste e com aquisição rápida dos cortes, na distinção entre parênquima hepático normal e anormal; assim, permite detectar e caracterizar tumores primitivos, metástases e abcessos. Tem indicação na doença vascular e em patologia traumática. Revela-se ainda auxiliar importante na avaliação pré e pós-transplante hepático e na investigação de dilatações das vias biliares. • No estudo do baço e do pâncreas, as lesões de etiologia infecciosa, tumoral e traumática constituem as principais indicações para o emprego da TC, permitindo detectar pequenos nódulos e anomalias vasculares nos estudos contrastados com aquisição rápida dos cortes. • No tubo digestivo a TC está reservada, sobretudo, para apreciação de processos com envolvimento extraluminal da parede, no compromisso traumático, esclarecimento de alterações suspeitas com outras técnicas de imagem, no seguimento de lesões tumorais e na avaliação de extensão e complicações da doença inflamatória intestinal. • A TC contribui para a caracterização do envolvimento peritoneal na ascite, nos abcessos ou na doença neoplásica predominantemente secundária. 54 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 6 Deformação de Sprengel à direita. Reconstrução tridimensional. Vista posterior. FIG. 5 Tumor de Wilms do rim direito. TC após contraste endovenoso. • No rim as principais indicações para a realização de estudos por TC são a determinação com maior rigor do ponto de partida e caracterização morfológica das massas detectadas em estudo ecográfico prévio e, também, a avaliação de extensão do traumatismo renal. Assume particular relevo para determinar os estádios evolutivos do tumor de Wilms (Fig. 5) e, designadamente os limites da lesão, com ou sem invasão capsular, a relação da massa com órgãos adjacentes e estruturas vasculares, a apreciação do rim contralateral e eventual envolvimento ganglionar. Tem ainda indicação na doença do parênquima renal de natureza inflamatória/infecciosa, na uropatia obstrutiva e em anomalias congénitas e vasculares. • Na investigação imagiológica retroperitoneal tem papel importante na avaliação evolutiva do neuroblastoma, com implicações importantes no planeamento terapêutico. A TC tem igualmente indicação para avaliar o compromisso adenopático retroperitoneal, quer em relação a patologia tumoral loco-regional, linfoma ou neoplasias com outra localização primária, quer em relação a anomalias vasculares ou alteração dos tecidos moles retroperitoneais. • Na cavidade pélvica a TC tem particular interesse na avaliação dos estádios evolutivos de doença maligna com ponto de partida ginecológico e na caracterização de massas complexas. • No sistema músculo-esquelético saliente-se a aplicação da TC em problemas ortopédicos seleccionados, nas anomalias congénitas ou de desenvolvimento ósseo (Fig. 6) de que são exemplo a displasia das ancas sobretudo aquelas com reduções instáveis, na ante e retroversão do colo do fémur e nas sinostoses társicas. É igualmente importante em patologia traumática, no estudo de fracturas em áreas anatómicas complexas e na avaliação de complicações pós-traumáticas, nomeadamente de natureza infecciosa. Desempenha finalmente papel de relevo na apreciação da doença neoplásica óssea e das partes moles. • No diagnóstico neurorradiológico com o advento da ressonância magnética tem-se vindo a verificar um crescente declínio do papel da tomografia computadorizada, fundamentalmente na avaliação do sistema nervoso central. No entanto, a TAC continua a ser a técnica de eleição de abordagem neurorradiológica em situações de urgência/emergência. Sem se pretender ser exaustivo ou estabelecer algoritmos de decisão clínico-imagiológica, é relativamente consensual que a TC continua a ser o exame de primeira intenção na investigação imagiológica nas seguintes circunstâncias: • Traumatismo crânio-encefálico acidental • Traumatismo crânio-encefálico no contexto de criança sujeita a maus tratos para detecção, para além de lesões intracranianas, de fracturas múltiplas da calote e/ou base do crânio. • Traumatismo vértebro-medular determinando o segmento do ráquis a ser estudado. De salientar a enorme limitação da TC no diagnóstico e avaliação da extensão da contusão medular ainda que com componente hemor- CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica rágico, bem como dos hematomas extra-axiais (epidural e subdural). • Traumatismo facial e/ou da órbita bem como do osso temporal. • Na suspeita de corpo estranho intra-orbitário. • Na criança com sinais e sintomas de disfunção aguda encefálica, em particular se coexistir alteração do estado de consciência. • Na suspeita clínica de hemorragia subaracnoideia ou de hematoma cerebral. • Na avaliação de hidrocefalia com antecedentes de derivação. • Na avaliação das cavidades naso-sinusais, nomeadamente na sinusopatia inflamatória aguda recorrente ou crónica persistente, para detecção de alterações estruturais esqueléticas ou outras que expliquem o quadro patológico, assim como para detecção de consequentes lesões secundárias. Igualmente, nas complicações da sinusite aguda e na avaliação das consequências da extensão do processo infeccioso à face, à órbita e ao endocrânio. • Na suspeita clínica de atrésia uni ou bilateral dos coanos. • No estudo do osso temporal na suspeita clínica de anomalia de desenvolvimento, de colesteatoma congénito ou adquirido, ou de lesão tumoral (com excepção da lesão retrococlear), nos processos inflamatórios re c o r rentes e avaliação pós-cirurgia, e ainda nas complicações por extensão endocraniana ou loco-regional incluindo região cervical em casos de otite média / otomastoidite aguda. • Na suspeita clínica de retinoblastoma em que a presença de calcificação em lesão intra-ocular numa criança com menos de 3 anos de idade confirma o diagnóstico. • Na avaliação crânio-facial, fundamentalmente órbita e base do crânio, na displasia óssea, e na osteopetrose. • Nas anomalias congénitas crânio-faciais, da charneira crânio-vertebral e do ráquis. Em clínica pediátrica e perante um quadro fortemente sugestivo de lesão encefálica vascular, tumoral ou infecciosa há quem defenda, como exame prioritário a efectuar, a ressonância magnética pelo seu maior rigor diagnóstico e topográfico. 55 Num contexto clínico pouco consistente de organicidade, aceita-se que a TC seja o primeiro estudo neurorradiológico a realizar. Actualmente a TC é, cada vez mais, encarada como exame complementar da ressonância magnética no estudo da lesão tumoral ou infecciosa do crânio e coluna vertebral indiciada por outras técnicas diagnósticas, tais como a radiologia convencional ou a cintigrafia. A excepção é o osteoma osteóide. A TC não é, seguramente, o exame a efectuar na suspeita de lesão medular ou de anomalia malformativa da medula e/ou da cauda, não sendo também o estudo elegível do eixo hipotálamohipofisário, da doença neurodegenerativa ou metabólica, nem da suspeita de trombose venosa a não ser que se realize angio-TC. Ainda a salientar a supremacia da TC em relação à RM no diagnóstico da calcificação encefálica. Em clínica pediátrica haverá que relembrar a pertinência da dose cumulativa de radiação ionizante decorrente de estudos comparativos e/ou evolutivos, e a importância de se estabelecerem protocolos utilizando-se alternativamente as técnicas imagiológicas disponíveis. No recém-nascido a TC é um exame que, se possível, se deve evitar. Ressonância magnética A introdução clínica das técnicas de ressonância magnética (RM) representou novo e importante avanço qualitativo no diagnóstico pela imagem, obtida cada vez com maior acuidade. Hoje em dia, na clínica pediátrica a RM é indiscutivelmente a técnica imagiológica de excelência com maior potencialidade diagnóstica na avaliação crânio-encefálica e vértebro-medular em particular. Nos outros compartimentos anatómicos a sua aplicabilidade não está tão difundida. O funcionamento de um equipamento de RM e a formação da imagem são processos altamente complexos. Pode explicar se sumariamente que a informação (sinal) necessária para a construção da imagem se obtém pela interacção de campos magnéticos com o campo magnético intrínseco dos átomos de hidrogénio que se encontram largamente distribuídos no corpo humano. 56 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Não cabendo nos objectivos deste livro uma descrição dos fundamentos tecnológicos da RM, os quais estão acessíveis na bibliografia inclusa, para compreensão do leitor descreve-se o significado dalguns termos: T1 – Tempo de relaxação longitudinal T2 – Tempo de relaxação transversal DP – Nº de protões de hidrogénio num tecido ADC – Apparent Diffusion Coeficient ou Coeficiente de difusão aparente. As imagens podem ser ponderadas em T1, densidade protónica (DP) e T2. As ponderações DP e T2 têm maior acuidade na detecção da alteração tecidual, e o T1 maior rigor anátomo-morfológico. A RM tem como principal vantagem neste grupo etário a não utilização de radiação ionizante, embora sejam conhecidos efeitos biológicos condicionados pelo potente campo magnético estático e pela radiofrequência; até à data não se demonstrou que tivessem significativa relevância clínica. A referida técnica apresenta, como atributos de supremacia em relação às outras tecnologias: a sua óptima resolução de contraste e resolução espacial que possibilita uma excelente diferenciação dos tecidos, nomeadamente na identificação da anormalidade tecidual; o seu rigor na localização anatómica e na relação topográfica lesional, consequência da aquisição de imagens em diferentes planos ortogonais; e a ausência de regiões anatómicas “cegas”. De destacar as suas enormes potencialidades traduzidas, nomeadamente, pela possibilidade de estudos dinâmicos, de aquisição volumétrica com reconstrução tridimensional, de angio-RM arterial e venosa, de avaliação quantitativa do fluxo do líquor, de espectroscopia, de estudos de perfusão e de urografia. A sua informação diagnóstica é somente inferior à TC na avaliação das seguintes situações: anomalias do crânio, da face incluindo órbita, e do ráquis; na lesão predominatemente osteocondensante do osso ou respeitante essencialmente à cortical óssea; na lesão esquelética com fractura; na avaliação do canal auditivo externo e ouvido médio; na avaliação pré-cirúrgica para cirurgia endoscópica naso-sinusal; no diagnóstico diferencial entre calcificação tecidual e depósitos de outras substâncias paramagnéticas tais como hemossiderina ou ferritina; e no diagnóstico, no período agudo, da hemorragia subaracnoideia. Como desvantagens há a salientar, entre outras: o estudo é prolongado, o que obriga a sedação profunda ou anestesia na criança não colaborante, ou com claustrofobia (explicável pelo tipo de aparelhagem); não poder ser realizada em doentes portadores de estimuladores eléctricos ou de bombas infusoras, com próteses ou implantes metálicos, com “clips” vasculares ou outro material com conteúdo ferromagnético; ou ainda em doentes com certos tipos de adesivos para administração cutânea de terapêutica, podendo induzir queimaduras. Uma vez que as consequências de não se respeitarem as regras de segurança são sempre graves, podendo inclusivamente conduzir à morte, deve ter-se sempre presente a noção de possíveis contra-indicações optando, em caso de dúvida, por outra técnica de imagem. A difusão associada ao mapa de ADC permite diagnosticar as situações em que ocorre restrição da mobilidade da molécula de água como seja no edema citotóxico da lesão vascular isquémica aguda, no abcesso cerebral, e nalgumas doenças metabólicas que cursam com edema da mielina. Há indicação para administração endovenosa de produto de contraste paramagnético na lesão tumoral, infecciosa e para-infecciosa, nalgumas doenças neurodegenerativas como na doença de Alexander, na adrenoleucodistrofia e na esclerose múltipla; e igualmente sempre que se coloquem dúvidas de diagnóstico diferencial. No recém-nascido com quadro de encefalopatia aguda é um exame de segunda intenção, geralmente quando os achados ecográficos são discrepantes com a clínica ou suscitam dúvidas diagnósticas. Ainda neste grupo etário discute-se actualmente a aplicabilidade da RM (utilizando as técnicas de difusão incluindo o mapa de ADC e a sua quantificação, a espectroscopia e as habituais ponderações T1 eT2) no diagnóstico na fase hiperaguda da encefalopatia hipóxico-isquémica, da lesão vascular isquémica e da leucomalácia periventricular, em particular na ausência da lesão cavitada. De salientar que na suspeita de lesão intraraquidiana a RM é o único exame não invasivo com maior sensibilidade diagnóstica; de destacar ainda a elevada especificidade da RM no diagnóstico do hematoma subagudo e na trombose venosa aguda e subaguda. CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica A 57 B FIG. 7 Anomalia congénita da veia de Galeno. (A)Angio-RM, axial. “Fístulas” artério-venosas na parede anterior da veia prosencefálica marcadamente dilatada, tendo como principais pedículos arteriais nutritivos as artérias pericalosas e corodeias. (B)Angio-RM venosa, para-sagital. Proeminente dilatação da tórcula, dos seios laterais e da veia prosencefálica (veia embrionária). Marcada hipoplasia do seio longitudinal superior. A RM está indicada como estudo complementar da TC, ou como primeira abordagem imagiológica, na criança com manifestações clínicas sugestivas de: • Doença vascular isquémica ou hemorrágica de etiologia arterial ou venosa, chamando-se a atenção para a importância da angio-RM (Fig. 7) como primeira abordagem não invasiva dos vasos cervicais e endocranianos. • Tumor intracraniano. • Encefalite. • Infecção bacteriana ou fúngica (granuloma; cerebrite ou abcesso; ventriculite; empiema sub ou epidural). • Encefalomielite aguda disseminada. • Anomalia malformativa encefálica. • Facomatoses. • Hipomielinização, atraso de mielinização. • Esclerose múltipla (Fig. 8). • Doença metabólica ou neurodegenerativa. • Disfunção do eixo hipótalamo-hipofisário. • Complicação de meningite. • Hidrocefalia. • Lesão expansiva intra-orbitária e estudo das vias ópticas. • Complicação endocraniana da otite média / otomastoidite e da sinusite. • Lesão medular traumática, infecciosa ou tumoral. • Disrafismo incluindo estudo da medula, cauda equina e charneira crânio-vertebral. • Tumor vertebral ou paravertebral. • Espondilodiscite (Fig. 9). De destacar ainda a importância da RM nas seguintes situações: • Estudo evolutivo da lesão tumoral para avaliação de eficácia terapêutica, na detecção precoce de recidiva e na deteção de metástases ao longo do neuro-eixo, como por exemplo no meduloblastoma. • Avaliação pós-cirúrgica da anomalia malformativa. • Avaliação das lesões sequelares de traumatismo crânio-encefálico ou vértebro-medular, de hipóxia-isquémia neonatal, de prematuridade, de lesão vascular ou infecciosa. • Criança com infecção por VIH (vírus da imunodeficiência humana) com sinais focais ou deterioração cognitiva. • Diagnóstico etiológico da epilepsia. 58 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A B FIG. 8 Imagens de RM na Esclerose Múltipla. A) DP axial. Múltiplas lesões redondas e ovóides com hipersinal localizadas na substância branca profunda e subcortical. B) T2 para-sagital. Múltiplas lesões redondas ou ovóides localizadas na substância branca profunda e subcortical com expressão infra e supratentorial. FIG. 9 Imagem de RM na Espondilodiscite . FSE T2 sagital. Marcada redução da altura do espaço inter- somático D12/L1 traduzindo destruição discal associada a erosão dos planaltos vertebrais. Lesão hiper-intensa envolvendo focalmente ambos os corpos vertebrais e o disco intervertebral em relação com colecção abcedada. Pequeno abcesso pré-vertebral. Por fim, refere-se particular interesse da RM nas seguintes situações: • Investigação de massas cervicais com suspeita de extensão intra-raquidiana. • Patologia cardíaca congénita e vascular torácica. • Massas mediastínicas. • Sequestro pulmonar. • Patologia infecciosa e tumoral da parede torácica. • Algumas anomalias de desenvolvimento do tubo digestivo (atrésia ano-rectal). • Neoplasias abdominais e retroperitoneais. • Avaliação hepática prévia ao transplante ou a shunts vasculares. • Anomalias vasculares abdominais. • Anomalias congénitas pélvicas, nomeadamente em alterações ginecológicas suspeitas através de avaliação ecográfica. • Tumores pélvicos com a finalidade de detectar invasão dos tecidos moles, alterações medulares e extensão de massas pré-sagradas. • Lesão infecciosa e tumoral, sobretudo óssea e das partes moles. • Lesões isquémicas do osso. • Traumatismo articular (com lesão ligamen- CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico tar, capsular e da fise). • Patologia músculo-esquelética. Sublinha-se a supremacia do método na avaliação comparada com a TC em processos patológicos nomeadamente tumorais, quando a administração de contraste iodado está contra-indicada. BIBLIOGRAFIA Barkovich, AJ. Pediatric Neuroimaging. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005 Bluth EI, Arger PH, Benson CB, Ralls PN, Siegel MJ. 59 9 ASPECTOS DO SERVIÇO DE PATOLOGIA CLÍNICA NUM HOSPITAL PEDIÁTRICO Ultrasound: a practical approach to clinical problems. New York: Thieme, 2000 Bruyn R. Pediatric ultrasound. How, why and when. London: Elsevier Churchill Livingstone, 2005 Rosa Maria Barros, Antonieta Viveiros, Antonieta Bento, Isabel Daniel, Isabel Peres, Isabel Griff, Margarida Guimarães, Virgínia Loureiro e Vitória Matos Ketonen, LM, Hiwatashi. A, Sidhu R, Westenon PL. Pediatric Brain and Spine. Atlas of MRI and Spectroscopy. Berlin/Heidelberg: Springer 2005 Kirks DR. Practical Pediatric Imaging. New York: Lippincott – Raven, 1998 Objectivo do Serviço de Patologia Clínica Melki Ph, Helenon O, Cornud F, Attlan E, Boyer JC, Moreau JF. Echo-doppler vasculaire et viscerale. Paris: Masson, 2001 Pfluger T, Czekalla R, Hundt C, Schubert M, Craulmer U, Leinsinger G, Scheck R, Haln K. MR Angiography versus Color Doppler Sonography in the evaluation of renal vessels and the inferior vena cava in abdominal masses of pediatric patients. AJR 1999;173: 103-108 Siegel M, Uker GD. Pediatric Applications of Helical (Spiral) CT. Radiol Clin North Am 1995; 33 Siegel M. Pediatric Body CT. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 1999 Tanenbaum, LN. CT in neuroimaging revisited. Neuroimaging Clin North Am, 1998 Taylor KJW, Burns PN, Wells PNT. Clinical applications of Doppler ultrasound. New York: Raven Press, 1995 Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital Pediatrics. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 Um Serviço de Patologia Clínica (SPC) tem por objectivo principal apoiar os serviços clínicos de modo a possibilitar, mediante exames complementares laboratoriais, o diagnóstico e o tratamento dos doentes assistidos. Idealmente deve estar disponível 24 horas por dia, proporcionando informação correcta e em tempo real. Nesta perspectiva, o SPC do HDE engloba essencialmente as seguintes actividades: a) Colheita de produtos biológicos; b) Execução dos exames analíticos diversos incluindo farmacocinética e farmacodinâmica das drogas terapêuticas, técnicas de biologia molecular para o diagnóstico de doenças infecciosas, etc.; c) Relatório e validação dos resultados obtidos; d) Diálogo com os clínicos na selecção do tipo de exames analíticos mais indicados de acordo com as hipóteses de diagnóstico do doente, proporcionando apoio na interpretação dos resultados; e) Apoio às comissões técnicas, designadamente comissão de controlo de infecção hospitalar através de estudos epidemiológicos; g) Ensino pré e pós – graduado, e investigação. O SPC constitui uma área de fronteira interpretativa com a actividade assistencial prestada ao nível dos serviços de urgência, de ambulatório e de 60 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA internamento. O mesmo tem, pois, uma missão particular pelo facto de o seu modo de funcionamento poder influenciar a evolução de inúmeras situações clínicas em função da rapidez e qualidade dos resultados; tal influência, para além doutros factores, poderá traduzir-se, por exemplo, na estadia média e tempo de permanência dos doentes nas diversas áreas assistenciais, proporcionando melhor desempenho dos restantes serviços, com consequências médicas, económicas, individuais e sociais. Para o obtenção de bons resultados torna-se, pois, fundamental que exista uma capacidade de actuação de elevado nível técnico, de actualização de equipamentos e de métodos, assim como pessoal diferenciado. Organograma Para a prossecução dos objectivos, o SPC, com uma direcção clínica integrando médicos patologistas clínicos e diversos técnicos diferenciados , auxiliares e pessoal auxiliar, compreende as seguintes Secções subdivididas em Áreas de Diferenciação: 1) Secção de Hematologia (Imunofenotipagem, Hemostase,Biologia Molecular); 2) Secção de Química Clínica (Endocrinologia, Oncologia,Marcadores Ósseos, Diagnóstico prénatal,Infertilidade, Biologia Molecular); 3) Secção de Microbiologia (Parasitologia, Micologia, Virologia,Biologia Molecular); 4) Secção de Imunologia (Imunoalergologia, Imunoquímica, Doenças Autoimunes, Serologia de Infecções Víricas e Bacterianas, Biologia Molecular. Colheita de produtos biológicos Num hospital pediátrico/HAPD são prestados cuidados a uma população de doentes, desde recém-nascidos de muito baixo peso (inferior a 1500 gramas), a crianças em todos os estádios de desenvolvimento incluindo adolescentes, a adultos jovens (na área de obstetrícia e ginecologia). Num laboratório que dá apoio a esta população, é da maior importância a colheita correcta das amostras, a selecção de equipamentos e de métodos que requerem pequenos volumes de amostra (micrométodos). Torna-se ainda fundamental que o clínico tenha conhecimento dos valores de referência adoptados por grupo etário e sexo, os quais são fornecidos pelo mesmo SPC e constam de anexo ao último volume do livro. Os equipamentos modernos permitem utilizar pequenos volumes de amostra, aspecto de grande importância num laboratório pediátrico. Por exemplo, no recém-nascido (RN) o hematócrito pode ter o valor de 60% ou superior, o que condiciona volume de soro ou plasma obtido por vezes ínfino em relação ao volume de sangue colhido. Nesta perspectiva, no RN de muito baixo peso deve ser feito um plano de análises requeridas para evitar colheita excessiva de sangue. Transporte das amostras Como regra geral há que ter em conta que todas as amostras devem ser transportadas ao laboratório imediatamente após a colheita. É de grande importância para alguns parâmetros (como o pH e os gases no sangue e amónia) que os respectivos tubos com sangue sejam transportados em recipiente com gelo. A existência de normas de actuação no SPC, incluindo o desenho de fluxos de trabalho em colaboração com os clínicos, possibilita a melhoria da qualidade com menos custos. Normas de higiene e protecção Sendo este livro devotado à clínica pediátrica e uma vez que está previsto o estágio de estudantes e de clínicos no laboratório, optou-se por seleccionar algumas normas de higiene e protecção adoptadas no SPC do HDE, as quais têm a ver com o “saber estar” no ambiente de laboratório. Higiene pessoal Em todas as zonas de trabalho onde se verifique risco de contaminação por agentes biológicos: • Deve praticar-se a mais rigorosa higiene no trabalho (prioridade para a lavagem das mãos). • Não deve ser permitido comer, beber ou fumar. • Devem estar devidamente cobertas e protegidas as feridas ou outras lesões cutâneas. • Deve evitar-se tocar com as mãos nos olhos, nariz ou boca, enquanto se trabalha. CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico Cuidados na recolha, manipulação e tratamento de produtos biológicos • Devem estar definidos os processos para a recolha, manipulação e tratamento de amostras de origem humana e animal. • Não deve ser permitida a pipetagem à boca, substituindo-a por processos automáticos ou manuais. • Os procedimentos técnicos devem ser executados de modo a evitar a formação de aerossóis ou gotículas. Sempre que seja possível a formação de aerossóis, devem ser usados meios de protecção ocular e respiratória, ou trabalhar as amostras em câmara de segurança. • Deve evitar-se flamejar as ansas. Utilizar, de preferência, ansas de uso único ou micro-incineradores. • O material lascado ou partido deve ser eliminado com segurança. • Os frascos e ampolas de vidro devem ser manipulados com cuidado para não derramar o seu conteúdo e/ou não provocar aerossóis. Utilizar, de preferência, tubos e frascos com tampa roscada. • O uso de agulhas deve ser evitado, quando possível. • As agulhas não devem ser recapsuladas. • As agulhas devem ser colocadas em contentores para corto-perfurantes, sem ultrapassar 3/4 da capacidade dos mesmos. Atitudes em caso de acidente • As picadas ou cortes ocorridos durante o trabalho devem ser imediatamente tratados. Devem ser deixados sangrar (mas não chupar!) e lavados com água corrente, sem serem esfregados. • Se as mucosas dos olhos, nariz ou boca forem atingidas por salpicos, devem ser muito bem lavadas com água corrente. Deve existir um espelho por cima do lavatório para facilitar o “auto-tratamento” dos salpicos. • Em caso de perfuração ou ruptura das luvas, estas devem ser removidas; em seguida deve lavar-se as mãos antes de calçar nova luvas. • Qualquer acidente ou incidente que possa ter provocado a disseminação de um agente biológico susceptível de causar uma infecção e/ou doença no homem, deve ser imediatamente comunicado ao responsável pela segurança. Deve ser dado conhecimento do facto a todos os tra- 61 balhadores, assim como das medidas tomadas ou a tomar a fim de solucionar a situação. Equipamento protector Estão incluídos nesta categoria as batas, os aventais impermeáveis, as luvas, os óculos e as máscaras. • É obrigatório o uso de bata para uso exclusivo nas áreas de trabalho; por isso, a mesma não deve ser usada em locais fora do laboratório (secretárias, biblioteca, cantinas, salas de convívio, etc.). • A bata deve fechar atrás, e deve ter mangas compridas e punhos apertados. • O vestuário de protecção não deve ser arrumado no mesmo cacifo que o vestuário pessoal. • Deve haver cabides para pendurar as batas “em uso”, situados perto da saída da sala de trabalho. • Todo o vestuário utilizado no laboratório deve ser enviado para a lavandaria como roupa contaminada. • O vestuário protector existente deve ser suficiente para assegurar a mudança regular (pelo menos duas vezes por semana ou diariamente e, ainda, para uso de visitantes ocasionais). • Deve haver número suficiente de protectores para os olhos (preferencialmente na forma de visor). • Todo o vestuário contaminado por agentes biológicos no decurso do trabalho deve ser mudado imediatamente e descontaminado por métodos apropriados antes de ser enviado para a lavandaria. Descontaminação e limpeza • O plano geral de limpeza para todo o laboratório deve ser compatível com o horário de laboração do mesmo, e feito de acordo com a coordenadora do serviço. • Os pavimentos, as bancadas e outras superfícies de trabalho devem ser limpos no fim do dia. • Devem ser limpos periodicamente os tectos e as paredes, assim como as janelas e fontes de luz artificial, de acordo com o programa anual de limpeza. • Qualquer área de contaminação acidental com sangue ou líquidos orgânicos, culturas bacteriológicas, etc., deve ser coberta com toalhetes de papel ou tecido, e sobre eles verter hipoclorito de 62 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA sódio a 1%, deixando actuar durante 30 minutos. Após este tempo, limpar as superfícies sujas. • O material de uso único deve ser colocado em contentores apropriados, hermeticamente fechados, para ser eliminado; ou, se tal não for possível, deve ser descontaminado previamente. • O material para reutilização deve ser descontaminado por autoclavagem. BIBLIOGRAFIA Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson 10 CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM NECESSIDADES ESPECIAIS – ASPECTOS GERAIS DA HABILITAÇÃO E REABILITAÇÃO Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: Maria Helena Portela McGraw-Hill, 2002 Sonnenwirth AC, Jarrett L. Gradwohl´s Clinical Laboratory Methods and Diagnosis. St. Louis: Mosby, 2005 Wallach J. Interpretation of Pediatric Tests- A Handbook Importância do problema Synopsis of Pediatric, Fetal, and Obstetric Laboratory Medicine. Boston/Toronto: Little, Brown and Company, 2003 Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital Medicine, Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 A reabilitação pediátrica é uma valência da especialidade de medicina física e de reabilitação (MFR) ou fisiatria, sendo delimitada no seu universo pelo grupo etário do doente compreendido entre o nascimento até ao final da adolescência. Preocupase igualmente com a saúde da grávida designadamente no que respeita à preparação para o parto, o que está de acordo, numa perspectiva transdisciplinar, com a definição de pediatria, atrás explanada: medicina integral dum grupo atário compreendido entre a concepção e o fim da adolescência. A reabilitação da criança com deficiência e incapacidade, tarefa complexa congregando uma série de conhecimentos e de meios, desafia a capacidade duma equipa em intervir num ser em processo de desenvolvimento e maturação. Assenta, por um lado, na definição dos conceitos básicos de deficiência, incapacidade e invalidez que englobamos no campo das menos valias e das necessidades especiais, e nos conhecimentos actuais do que se entende por desenvolvimento, desenvolvimento psicomotor, sequência da maturação cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar adiante. A organização interna dum serviço de reabilitação varia de acordo com os objectivos propostos e os métodos utilizados para os alcançar. No Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais funcionalmente em três áreas de atendimento de encontro à prevalência das patologias das crianças que a ele recorrem, áreas não estanques antes complementares: de reabilitação neurológica, ortotraumatológica e respiratória. Como serviço integrado e concorrendo para a dinâmica hospitalar, está presente em todos os seus núcleos e consultas multidisciplinares, como são exemplo os de spina bífida e de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente todos os doentes assistidos nos respectivos serviços de pediatria médica e de cirurgia pediátrica, nas unidades de queimados, de cuidados intensivos pediátricos e neonatais (UCIP e UCIN) e no serviço de ginecologia e obstetrícia. Conceitos de deficiência, incapacidade e invalidez O modelo médico clássico baseia a sua concepção no fluxograma delineado da seguinte forma: etiologia – patologia – sintomatologia. Procura racionalmente intervir na primeira fase e, quando não o consegue, nas fases seguintes. A este modelo a acrescenta, de forma complementar, o conceito de menos valias integrando, tal como se referiu, as noções de deficiência, incapacidade e invalidez definidos pela Organização Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua intervenção como especialidade. Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de provocar diminuição de capacidade, pode estar em condições de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais tendo em conta a idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes. Incapacidade, consequência de deficiência, é a diminuição ou ausência de expressão de qualquer actividade nos limites considerados normais para o ser humano. Invalidez, consequência das anteriores, traduz a impossibilidade de realização duma tarefa normal, com prejuízo laboral ou social e limitando a integração plena da pessoa doente. Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda funcional (deficiência) traduzida na diminuição de força muscular, nas alterações sensitivas dos mem- 63 bros inferiores e nas alterações esfincterianas. Existe incapacidade de marcha autónoma, necessitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária necessitando de algaliação intermitente e dispositivos colectores de urina. Manifesta a invalidez (desvantagem) por não poder participar em todas as actividades próprias para o seu grupo etário (poderá participar em algumas delas com algum tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de apoios educativos especiais e a longo prazo, na previsível relativa invalidez profissional; e poderá vir a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou do local de trabalho para o desempenho de actividades laborais tendo em vista a auto-suficiência. Desenvolvimento, desenvolvimento psicomotor, habilitação e reabilitação O desenvolvimento pode ser definido como o processo maturativo das estruturas e das funções da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento das suas capacidades. Obedece a uma determinada sequência, com padrões de evolução variáveis e individuais. É, portanto, o resultado duma interacção adaptativa em relação ao meio ambiente e influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e extrínsecos (ambienciais). (consultar Parte V). Considera-se haver um atraso de desenvolvimento quando a criança não realiza as tarefas que lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas escalas de neurodesenvolvimento. Quando o atraso de desenvolvimento é primário, isto é, a criança não atingiu os padrões do desenvolvimento normais para a idade, a intervenção, mais do que uma reabilitação, traduz-se numa habilitação fornecendo à criança os meios e as ajudas técnicas necessárias à aquisição da função, isto é mediante a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o atraso de desenvolvimento é secundário, provocado por doença ou noxa de que resultou paragem ou regressão dos padrões de desenvolvimento da criança, a intervenção terapêutica corresponderá, então, a reabilitação. Abordagem da criança com deficiência e incapacidade A abordagem da reabilitação da criança com defi- 64 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ciência e incapacidade é feita duma forma estruturada com o objectivo de obter o diagnóstico etiológico (doença), diagnóstico funcional (deficiência, incapacidade e invalidez) e caracterização da matriz relacional (afectividade, socialização e escolarização). No âmbito da história clínica a anamnese será colhida à criança ou seus acompanhantes. É fundamental uma minúcia relativamente a antecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história sócio-familiar . Nos AP ressaltam a história pregressa da gravidez, do parto, do período neonatal, do desenvolvimento psicomotor e de doenças anteriores. Nos AF salientam-se a existência de consanguinidade, de doenças com carácter heredofamiliar e de situações de deficiência e/ou incapacidade. Na colheita da anamnese sócio-familiar dimensiona-se toda a envolvência da criança permitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar, como funciona, como nele se reflecte a deficiência da criança e a capacidade em prestar a assistência, e o apoio de que esta vai necessitar. Na perspectiva do diagnóstico funcional deve inquirir-se sobre: independência e dependência da criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira pessoa necessita para realização das actividades de relação ou de vida diária como: comunicação, alimentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir, descanso nocturno, transferências e mobilidade. É importante saber quem habitualmente presta essa ajuda e disponibilidade (elemento chave). Na realização do exame objectivo a reabilitação partilha com as demais áreas médicas os princípios do exame físico geral com o registo sistemático e comparado dos índices antropométricos: peso, comprimento e perímetro cefálico para além da observação somática. O exame neurológico avalia de forma sistematizada os padrões de vigília, lucidez, comunicação, colaboração, traduzidas pelo interesse e interacção da criança com o meio, as motilidades global e fina, a força muscular (exame muscular duma forma analítica ou global), a coordenação, o tono muscular, os reflexos osteotendinosos e outros, pesquisa das sensibilidades, pares cranianos e presença de movimentos anormais. Especial importância deve ser prestada à avaliação sensorial. Devem ser pesquisadas anomalias da visão, audição e função de integração das sensibilidades (agnosias). No caso de dúvida será pedida a colaboração das respectivas especialidades para caracterização qualitativa e quantitativa das anomalias. Quando presentes, as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias, a deficiência, e necessitar de correcção adequada. Quando associadas a outras deficiências (sindromáticas), a sua não correcção pode prejudicar o sucesso do tratamento. Especial atenção deve ser prestada à avaliação do desenvolvimento psicomotor e do nível cognitivo relacionado com a idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de Ruth Griffiths e outras). No exame ósteo – músculo – articular são registadas as malformações e deformações ósseas e articulares e procede-se ao registo quantificado das limitações articulares (exame articular). Na avaliação do movimento, motricidade fina e grosseira, há que registar sincinésias, compensações, movimentos involuntários, com o registo das alterações do tono muscular. O exame funcional avalia as consequências da deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, actividades de vida diária e na vida relacional da criança. A criança é observada a executar as diversas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao efectuar o gesto avalia-se a lateralidade, a sua definição, a coordenação óculo-motora, o tempo de atenção útil e outros parâmetros. A criança finge beber um copo de água, lavar os dentes, pentear, vestir, pontapear, etc.. As capacidades de transferência, marcha ou locomoção deverão ser avaliadas na sua eficiência, procurando caracterizar o gasto energético que lhes está associado. Há uma série de escalas que tentam “quantificar” o estado funcional do paciente, mais fáceis de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São úteis na monitorização dos progressos da reabilitação do doente, podendo servir como meio de troca de informações e experiências entre centros e escolas de reabilitação. Após a anamnese e o exame objectivo é formulado o diagnóstico etiológico provisório, (podendo exigir-se a realização de exames complementares para a sua validação), o diagnóstico funcional e o prognóstico. Os diagnósticos etiológico e, sobretudo, o fun- CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais cional, sustentarão o estabelecimento do plano de reabilitação e as respectivas orientações terapêuticas nas áreas funcionais de fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. Este plano terapêutico deverá ser ajustado à criança, às suas múltiplas condicionantes e orientado para a resolução dos seus problemas. Estes serão hierarquizados e reavaliados ao longo do tempo, abrangendo as vertentes pessoal, familiar e escolar. Tal programa pode passar pela aplicação de agentes físicos (situação menos frequente na criança que no adolescente e no adulto), pela aplicação de técnicas de propriocepção (usando o frio e massagem), por técnicas normalizadoras do tono muscular e estimulação do desenvolvimento, de que são exemplo os métodos de Bobath e de Votja. Podem usarse métodos de fortalecimento muscular e diferentes técnicas de cinesiterapia e posicionamento. O plano terapêutico pode passar, igualmente, pela prescrição de próteses, ortóteses e ajudas técnicas, incluindo as decorrentes das novas tecnologias destinadas a compensar a deficiência da criança ou atenuar-lhe as consequências, e permitindolhe o exercício das actividades de vida diária e a integração na vida escolar, social e profissional. É o caso das crianças com deficiência motora determinada por amputação, sequela de poliomielite, traumatismo vértebro-medular ou paralisia cerebral necessitando de ajudas na função de locomoção. Expressa-se a ajuda na prótese, no aparelho curto ou longo para o membro inferior, em auxiliares de marcha, ou na cadeira de rodas com adaptação individual. É o caso ainda das crianças com disfunção auditiva e da linguagem, com atraso escolar e lentidão na aquisição da leitura ou escrita e a quem os meios aumentativos ou alternativos de comunicação serão indispensáveis. Na criança com desvantagem associada a deficiência visual, a ajuda técnica pode passar pelo computador com visor adaptado à ambliopia e com reforço simbólico de linguagem Braille. O estudo da necessidade e adequação das diversas ajudas técnicas às deficiências da criança pode ser efectuado num serviço de reabilitação que tenha desenvolvido experiência neste campo. Porém, há situações específicas e complexas que exigem a aplicação de ajudas técnicas inovadoras ou decorrentes das novas tecnologias. Em tais situações justifica-se o recurso a instituições externas como o Centro de 65 Análise e Processamento de Sinais do Instituto Superior Técnico, a Unidade de Missão e Inovação de Conhecimento, e a Unidade de Técnicas Alternativas e Aumentativas de Comunicação. Os resultados da intervenção terapêutica deverão ser reavaliados periodicamente, podendo aproveitar-se para tal as idades-chave do desenvolvimento da criança. Poderá haver necessidade de reformulação do plano terapêutico e dos objectivos inicialmente propostos de acordo com a evolução da situação clínica. Toda a intervenção será prioritariamente, orientada para a resolução dos problemas da criança e da família. Com base na experiência do Serviço de Medecina Física e Reabilitação do Hospital Dona Estefânia – Lisboa são abordados aspectos específicos da reabilitação e habilitação, de modo integrado noutros capítulos, a saber: • Reabilitação respiratória • Reabilitação na linguagem ou “habilitação na criança com dificuldades na comunicação” • Reabilitação neurológica – Sequelas de prematuridade – Habilitação para a marcha e ajudas técnicas na criança com spina bifida • Reabilitação ortopédica • Reabilitação do doente com sequelas de queimaduras BIBLIOGRAFIA Forsyth R, Newton R, Paediatric Neurology. Oxford: Oxford University Press, 2007 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 66 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 11 CONTINUIDADE DE CUIDADOS À CRIANÇA E ADOLESCENTE Maria do Céu Soares Machado Importância do problema A continuidade de cuidados à criança e adolescente pode ser definida de forma longitudinal – todos os cuidados primários devem ser prestados pelo mesmo profissional; ou transversal – quando são necessários cuidados hospitalares ou especiais, deve haver articulação e comunicação entre os profissionais envolvidos. Os cuidados à criança e adolescente devem também ser centrados na família, o que pressupõe parceria com os pais nos cuidados e nas decisões, em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma organizada. Os cuidados continuados e centrados na família permitem cuidados antecipados de promoção da saúde e prevenção da doença mais efectivos e coordenados, permitindo estilos de vida mais adequados, menos comportamentos de risco, melhor cumprimento do plano de vacinação, menor procura de apoio de urgência e maior satisfação da família e dos profissionais. Em Portugal, os cuidados de saúde primários são prestados no centro de saúde (CS) pelo especialista de medicina geral e familiar e pela enfermeira coordenadora de saúde infantil. Contudo, verifica-se uma percentagem significativa de crianças e adolescentes com vigilância de saúde em regime de pediatra privado. Os cuidados hospitalares são prestados quase exclusivamente em hospitais públicos. Qualquer que seja o sistema, o Boletim de Saúde Infantil (BSI) é o instrumento previligiado de comunicação devendo ser preenchido integralmente na saúde e na doença. Nele devem constar registos do peso, comprimento, perímetro cefálico, respectivos percentis e do desenvolvimento psicomotor. Devem ainda estar referidas as doenças agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em consulta ou episódio de urgência, seja no centro de saúde, seja no hospital. Seguimento regular de uma criança saudável Todas as crianças devem ter um Médico que é o seu médico e que a criança identifica e conhece pelo nome. No centro de saúde, o Médico de Família e a Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis pelo seguimento normal, segundo os parâmetros definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil - Programa Tipo de Actuação, 2002 (www.dgsaude.pt) O Programa Nacional de Vacinação, o ensino da alimentação e de uma vida saudável são da responsabilidade do médico e da enfermeira do CS, assim como os episódios de doença aguda; por consequência, as consultas devem ser programadas em horários de acordo com as necessidades da população local ou seja, na maioria dos casos, pós-laboral. Actualmente, menos de 20% dos CS portugueses têm pediatra atribuído que faz a consulta de seguimento nos primeiros meses de vida e uma consulta de referência para crianças com problemas. Para os CS sem pediatra, a Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente propõe um pediatra consultor, nomeado pelo director do serviço de pediatria da unidade de saúde, através das unidades coordenadoras funcionais (UCFs). As suas funções são basicamente a discussão de casos–problema, a referenciação directa e a organização da formação contínua, com periocidade variável, de uma vez por semana a uma vez por mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e a necessidade do CS. As UCFs têm ainda um papel preponderante na divulgação de protocolos de referenciação discutidos e aprovados de forma abrangente. O pediatra em regime privado é responsável pelo seguimento, pelo ensino, pelos episódios de doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas, CAPÍTULO 11 Continuidade de cuidados à criança e adolescente sendo a administração destas da competência do CS. Idealmente, o mesmo deve estar organizado de modo que, em caso de indisponibilidade numa situação de doença aguda, a família possa recorrer ao substituto por ele indicado. Os cuidados continuados e centrados na família têm uma dimensão especialmente importante nas crianças de famílias com pobreza e exclusão social ou em situação ilegal (filhos de imigrantes). A integração e a acessibilidade são as características fundamentais dos cuidados básicos de saúde, praticadas no contexto da família e da comunidade. A lei portuguesa garante o direito aos cuidados de saúde e à educação facilitando a atribuição de um médico de família. Se apenas forem propiciados cuidados de urgência com diferentes médicos, o diagnóstico e intervenção, por exemplo nos casos de atrasos do desenvolvimento estaturoponderal, psicomotor e nas doenças crónicas, podem ficar comprometidos. Continuidade de cuidados no internamento hospitalar A continuidade de cuidados implica manter contacto com o médico que presta os cuidados fora do hospital. Se a criança for internada com doença aguda, durante o internamento deve haver contacto com o médico assistente, que conhece a família e em quem os pais confiam. Na alta deve ser discutida a nota de alta com os pais e enviada cópia directamente ao médico assistente, seja do CS, seja privado. Sempre que possível, deve ainda haver articulação entre a enfermeira do hospital e a coordenadora de saúde infantil do CS. Criança com doença crónica e/ou necessidades especiais O seguimento de uma criança/adolescente com doença crónica e/ou necessidades especiais é muito mais do que cumprir prescrições. Envolve uma equipa multidisciplinar: criança-pais- médico do hospital/cuidados primários/ especialistaenfermeiro-psicólogo-fisioterapeuta-professor. Os cuidados devem ser partilhados com uma responsabilidade bem definida de cada elemento da equipa. 67 O especialista de medicina geral e familiar ou o pediatra assistente devem ser responsáveis pelas vacinas, alimentação, desenvolvimento e doença aguda. O seguimento por outra especialidade ou área pediátrica deve ser da responsabilidade do médico do hospital ou da institução. A equipa hospitalar deve fazer um plano preciso da terapêutica e seguimento, sendo discutido com a família e com o médico assistente. Não menos importante é o cuidado na centralização da informação e da orientação. O doente crónico ou com necessidades especiais precisa de um profissional que centralize o processo de modo a não haver duplicações e perdas para a família, a qual necessita de perceber a quem se dirigir e quais as prioridades para o seu filho. Cada um do profissionais de saúde deve constituir-se advogado ou provedor da criança; mas, nos casos de doença crónica deve existir o “gestor” do doente, a sugerir pela equipa, o que facilita a comunicação com os pais. A comunicação pode ser facilitada por contacto telefónico ou através do BSI de modo que o médico assistente esteja suficientemente informado e possa esclarecer dúvidas dos pais. Transição do jovem com deficiência, doença crónica ou necessidades especiais para o médico de adultos O início da idade adulta determina novas necessidades médicas e pessoais, com cuidados médicos apropriados à idade, mantendo-se os princípios de continuidade e transdisciplinaridade. A transição efectiva de cuidados é cada vez mais importante, pois cada vez é maior o número de crianças com doença crónica (~15-20%) que chega à idade adulta e que, por terem limitações funcionais com consequências sociais, emocionais e de comportamento, experimentam dificuldades na passagem dos cuidados pediátricos para os de adultos. Tal transição depende da maturidade, independência, capacidade funcional dos cuidados médicos de adultos e das diferenças entre a medicina pediátrica e a medicina orientada para o adulto as quais constituem duas culturas distintas. Deve acontecer no final da idade pediátrica ou seja aos 18 anos mas, em casos especiais, pode ser prolongada até aos 21. Poderá haver resistência 68 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA por parte do adolescente a qual é devida à percepção de que os cuidados na medicina de adultos são deficitários quanto à preocupação de continuidade e envolvimento da família. O processo deve ser iniciado ainda antes da adolescência, encorajando as famílias a projectar o futuro do filho. A passagem de testemunho, a combinação e concertação quanto a estratégias e terapêuticas deve ser real, discutida com o adolescente e a família. Os pontos fundamentais são: 1. Identificação da instituição de saúde mais apropriada à situação. 2. Identificação do médico que passa a assumir a responsabilidade, a coordenação e o planeamento. 3. Elaboração de nota de alta ou nota de transição escrita, concisa, contendo informação médica sumária e estratégias combinadas com o jovem e a família. Em resumo, os cuidados de saúde à criança e ao jovem devem ser especializados, centrados na família, em parceria, com continuidade, e partilhados, qualquer que seja o nível quanto a prestação (primária ou hospitalar), e através de um esforço interdisciplinar coordenado. A continuidade de cuidados é, pois, um fenómeno multifactorial que resulta da combinação de acesso fácil aos profissionais, desempenho adequado, boa capacidade de comunicação entre a família, os profissionais e as instituições que prestam cuidados, e excelente coordenação entre todos. BIBLIOGRAFIA Alpert JJ, Zuckerman PM, Zuckerman B. Mummy, who is my doctor? Pediatrics 2004; 113: 195-97 Blum RW. Improving transition for adolescents with special health care needs from pediatric to adult-centered health care. Pediatrics 2002; 110(6) Suppl: 1330-5 Committee on Hospital Care. Family-centered care and the pediatrician’s role. Pediatrics 2003;112:691-96 Franck LS, Callery P. Re-thinking family-centered care across the continuum of children’s healthcare. Child Care Health Dev 2004; 30: 265-277 Hjern A, Bouvier P. Migrant children – a challenge for European Pediatricians. Acta Paediatr 2004;93:1535-1539 Heller KS, Solomon MZ. Continuity of care and caring: what matters to parents of children with life-threatening conditions. J Pediatr Nurs 2005; 20:335-346 Inkelas M, Schuster MA, Olson LM, Park CH, Halfon N. Continuity of primary care clinician in early childhood. Pediatrics 2004; 113: 1917-1725 Irigoyen M, Findley SE, Chen S, Vaughan R, Sternfels P, Caesar A, Metroka A. Early continuity of care and immunization coverage. Child Care Health Dev 2004; 30: 265-277 O’Malley AS. Current evidence on the impact of continuity of care. Curr Opin Pediatr 2004; 16: 693-639 Rauch DA, Percelay JM, Zipes D. Introduction to pediatric hospital medicine. Pediatr Clin N Am 2005; 52: 963-977 Reiss JG, Gibson RW, Walker LR. Health care transition: youth, family and provider perspectives. Pediatrics 2005; 115: 1449-1450 While A, Forbes A, Ullman R, Lewis S, Mathes L, Griffiths P. Good practices that address continuity during transition from child to adult care: synthesis of the evidence. Child Care Health Dev 2004; 30: 439-452 www.dgs.pt. Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil - Programa Tipo de Actuação, 2002 (acesso Maio 2008) www.iqs.pt/cnsca. Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente. Pediatra Consultor, 2004 (acesso Maio 2008) PARTE III Genética e Dismorfologia 70 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 12 A IMPORTÂNCIA DA GENÉTICA NA CLÍNICA PEDIÁTRICA Luís Nunes A Genética Médica representa na Medicina moderna uma das estratégias essenciais para melhorar a saúde das pessoas e das comunidades. Para esta conclusão contribuiram os enormes conhecimentos obtidos nos últimos anos, nomeadamente com a sequenciação do genoma humano e a compreensão de mecanismos pelos quais os produtos dos genes actuam e podem provocar doença nos seres humanos. O interesse da Genética para os profissionais de saúde abrange áreas como o diagnóstico, a prevenção e o tratamento de síndromas e doenças genéticas. A Biologia Molecular permitiu identificar alterações do genoma humano que viabilizaram o estabelecimento de critérios mais rigorosos de diagnóstico de algumas doenças e explicaram a variabilidade de expressão de outras pelo tipo de mutações encontradas no gene, entre outros aspectos. Com a excepção das doenças genéticas que resultam de uma alteração num cromossoma ou da mutação de um gene específico, a maior parte das doenças genéticas resulta da interacção entre a susceptibilidade genética da pessoa e factores ambientais, na generalidade dos casos pouco conhecidos. Muitas destas doenças, como algumas formas de cancro, de doenças cardiovasculares e da diabetes, são verdadeiros problemas de Saúde Pública. O conhecimento actual é ainda muito limitado quanto à compreensão dos mecanismos da interacção entre os factores genéticos e ambientais que contribuem para a patogenia das doenças genéticas. A contínua divulgação de novos conhecimentos na literatura científica e na comunicação social, a necessidade de se prestarem os cuidados de saúde na área da genética, de que os indivíduos e famílias carecem, as questões de ética que são colocadas à sociedade com as novas descobertas e inovações, alertam para a necessidade de os médicos e muito em especial os pediatras, adquirirem novas qualificações nestes temas e procurarem actualizar os seus conhecimentos. As próprias associações científicas estão conscientes desta realidade e têm proposto iniciativas científicas de formação dirigidas aos profissionais. A Genética Médica tem uma considerável importância em Clínica Pediátrica. Os pediatras para além de cuidarem de crianças e adolescentes que têm doenças genéticas ou um risco elevado de, mais tarde, virem a expressá-las, estão em estreita ligação com as famílias, já constituídas ou em período de constituição, o que os torna uma fonte de grande credibilidade para informação e aconselhamento genético. O pediatra e o clínico que presta assistência a criança e adolescentes não devem, pois, perder esta oportunidade de comunicação; por outro lado, devem ter uma atitude próactiva na sua intervenção. Para serem mais eficazes na assistência a crianças e adolescentes, os referidos clínicos devem estar familiarizados com o diagnóstico das doenças genéticas mais frequentes, o aconselhamento genético, e saber orientar os casos mais complexos para serviços especializados. São estes os aspectos a desenvolver nesta parte do livro. CAPÍTULO 13 Doenças multifactoriais 13 DOENÇAS MULTIFACTORIAIS Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Conceitos básicos Na maioria dos casos as doenças genéticas e as anomalias congénitas resultam da interacção entre factores genéticos, comportamentos e estilos de vida das pessoas, e factores ambientais. As doenças genéticas com estas características são denominadas multifactoriais ou poligénicas. São exemplos, algumas doenças cardiovasculares frequentes, formas de cancro e de doenças mentais, diabetes e anomalias congénitas, tais como o pé boto, as anomalias do tubo neural e as fendas lábio-palatinas. A contribuição dos factores genéticos para as doenças multifactoriais resulta do efeito combinado de genes múltiplos, embora em número não ilimitado, localizados em locus diferentes. Nestas doenças, a componente genética não se manifesta através de transmissão mendeliana, não sendo identificadas anomalias cromossómicas. No conceito de oligogenia estão abrangidas as situações em que um locus tem um efeito predominante no fenótipo, ainda que necessite da colaboração de outros genes para expressar a doença. As principais características do modelo multifactorial são: • Todos os genes têm um efeito no fenotipo, que pode ser major ou minor; • O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico; • Os genes individualmente não exprimem dominância ou recessividade; • O fenotipo é um contínuo na expressividade; • A maior parte das características quantitativas tem uma distribuição normal. Os factores genéticos nestas doenças não causam doença por si, mas influenciam a susceptibilidade individual a factores ambientais. A contribuição dos factores genéticos constitui a “carga 71 genética” liability que será maior se estiverem implicados mais genes na etiologia da doença. Estima-se que esta “carga genética” tenha uma distribuição normal na população. Outro conceito importante nestas doenças é o de “limiar”, ou seja, a doença manifesta-se quando os factores genéticos ultrapassam um determinado gradiente. O sexo do indivíduo e o grau de parentesco com o caso índex têm influência no limiar. Os factores ambientais implicados na origem destas doenças são variados. Nas doenças frequentes do adulto vários factores têm um efeito aditivo relacionado com o comportamento alimentar. Epidemiologia Estima-se que ao nascer, em cada mil crianças, 50 apresentam uma anomalia de causa multifactorial, (versus 10 com uma doença provocada por um gene mendeliano, e 6 com uma anomalia cromossómica). Considerando toda a população, estima-se que em cada mil indivíduos 600 tenham doença multifactorial, (20 com uma doença monogénica e 3,8 com uma doença cromossómica). Para muitas das doenças do adulto, há alguns anos não havia provas científicas da contribuição de factores genéticos para a sua etiologia. Estão descritas mais de 6 mil doenças génicas. Nalgumas doenças multifactoriais a incidência varia com o sexo, como a estenose do piloro, que é 5 vezes mais frequente no sexo masculino do que no feminino. As anomalias do tubo neural, pelo contrário, são mais frequentes no sexo feminino. Predisposição Nos últimos anos, apesar dos inúmeros progressos da genética molecular, foi identificado número escasso de genes com uma contribuição importante na susceptibilidade às doenças multifactoriais. Uma das primeiras descobertas foi a identificação do gene NOD2-CAD15, que foi implicado na susceptibilidade ao desenvolvimento da doença de Crohn. Assim, não é ainda possível realizar rastreios de genes de susceptibilidade genética. Esta é uma área cada vez mais atractiva que interessa a investigadores e a outros sectores da sociedade. Actualmente a identificação individual de um risco elevado para uma doença multifactorial ne- 72 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cessita da identificação de uma doença num familiar e do estudo da árvore genealógica. A identificação de um risco genético elevado pode levar à prescrição de acompanhamento médico personalizado e adaptado aos riscos, à realização de exames complementares de diagnóstico precoce, e de intervenções de carácter preventivo se forem conhecidos os factores ambientais relacionados com a etiologia. Risco Nas doenças multifactoriais o risco empírico representa a probabilidade esperada de ocorrer uma doença genética particular na população. Tal risco obtém-se, em grande parte, a partir dos resultados encontrados em estudos epidemiológicos. O risco empírico tem grande importância para o aconselhamento genético, por exemplo, quando um casal já tem um filho afectado ou um dos progenitores é portador de uma doença genética. O risco empírico da ocorrência de uma doença multifactorial depende de vários factores, nomeadamente: • Frequência da doença na população • Grau de parentesco com a pessoa afectada (maior risco nos parentes em primeiro grau) • Número de familiares afectados • Gravidade clínica do caso índex • Sexo da pessoa afectada Os resultados dos estudos efectuados em populações diferentes mostraram diferenças na frequência, o que deve ser tomado em consideração pelo médico. Para além das diferenças genéticas eventualmente existentes entre populações, aspectos como a “definição de caso” e a modificação na classificação das doenças ao longo do tempo devem ser ponderadas. Alguns exemplos práticos da utilização do risco empírico no aconselhamento genético em situações comuns, são: • Lábio leporino e fenda palatina: 4% se o casal tem um filho afectado mas nenhum dos progenitores tem a doença; 3,2% se um dos progenitores tem a doença; • Comunicação interventricular: 3,5% se o casal tem um filho afectado e os pais são saudáveis; 3% a 5% se um dos progenitores tem a cardiopatia; • Outras situações: aterosclerose, diabetes mellitus, displasia congénita da anca, hipospádia, asma, epilepsia, etc.. Outro conceito que é necessário precisar é o de “hereditabilidade”, que mede a componente genética de uma doença multifactorial, separando-a da contribuição dos factores ambientais. A hereditabilidade varia entre 1, quando a variação depende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se depende apenas de factores ambientais. No pé boto estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteligência entre 0,5 a 0,8. Prevenção Quando são conhecidos os factores ambientais implicados na etiologia de uma doença genética, a estratégia de prevenção passa pelo afastamento de factores nefastos, pela suplementação, ou pela modificação dos comportamentos e estilos de vida. Um exemplo que demonstra a possibilidade de se intervir na prevenção das doenças multifactoriais foi a descoberta da relação entre o ácido fólico e a ocorrência de anomalias do tubo neural. Nas famílias de risco a suplementação com ácido fólico no período pré-concepcional e pré-natal reduziu a incidência destas anomalias de forma significativa. Actualmente a suplementação em ácido fólico no período pré-concepcional e pré-natal faz parte das recomendações de vigilância de saúde durante a gravidez na maior parte dos países, e das orientações para a vigilância da saúde grávida em Portugal. CAPÍTULO 14 Hereditariedade mendeliana 14 HEREDITARIEDADE MENDELIANA Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Definição Por transmissão mendeliana entende-se a transmissão hereditária controlada pelos genes de um único locus. Os genes dispõem da informação essencial, necessária para a actividade funcional do organismo dos seres vivos. As mutações que ocorrem nos genes são responsáveis por uma informação que chega às células diferente da que se verifica em situações de não mutação, ou seja, diferente do que é esperado, o que nalguns casos pode acarretar uma situação de doença. Todos os genes de que um indivíduo dispõe são herdados dos seus pais que, por sua vez, também foram herdados anteriormente. A maioria está localizada nos cromossomas/autossomas e os restantes nos cromossomas sexuais, especialmente no cromossoma X. Tipos de hereditariedade mendeliana As doenças mendelianas são classificadas conforme o gene está localizado nos cromossomas autossomas ou nos gonossomas, e/ou ainda tem carácter dominante ou recessivo. As formas de transmissão das doenças mendelianas mais frequentes são a hereditariedade autossómica recessiva e autossómica dominante, e recessiva ou dominante ligada ao cromossoma X. Hereditariedade autossómica recessiva A mutação recessiva num alelo não se traduz em doença, pois o produto do outro alelo é suficiente para as necessidades funcionais do indivíduo. 73 Tanto quanto se sabe, todos os indivíduos são portadores de genes recessivos de várias doenças genéticas, que apenas se podem manifestar no processo de reprodução. As principais características da transmissão autossómica recessiva são: • Ocorrem geralmente como casos isolados sem menção a outras situações em gerações anteriores; • Ambos os sexos são atingidos; • Os pais dos indivíduos afectados não têm doença clínica; • Quanto mais rara for a doença, maior é a probabilidade de existir consanguinidade entre os progenitores; • A descendência de dois heterozigotos em cada gestação origina a seguinte probabilidade: 50% são heterozigotos, 25% são homozigotos, (portanto afectados) e 25% normais; • Se apenas um progenitor é heterozigoto para o gene com mutação, a probabilidade de transmitir esse gene a cada descendente é 50%. Alguns genes recessivos são mais frequentes nalgumas populações com maior consanguinidade. É o caso da talassémia nalgumas populações mediterrâneas e da doença de Tay Sachs nos judeus Ashkenasi. Alguns genes apresentam polimorfismo, pelo que o indivíduo homozigoto nem sempre tem a mesma mutação nos dois alelos. Estes casos correspondem a heterozigotos compósitos. Esta situação é responsável pela expressividade variável de algumas doenças. São exemplos de doenças autossómicas recessivas a fibrose quística, a talassémia, a drepanocitose, a doença de Tay Sachs, a hemocromatose, a hiperplasia congénita da suprarrenal, a ataxia de Friedreich, a homocistinúria. Para muitas doenças já é possível realizar estudos laboratoriais para identificar os portadores de doenças recessivas (estudo do produto dos genes, ou do próprio gene por biologia molecular). A realização destes exames está limitada aos indivíduos de risco tendo em conta a proximidade com o caso índex. (Quadro 1) Hereditariedade autossómica dominante A transmissão autossómica dominante refere-se às situações em que a mutação num gene de um au- 74 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Doenças autossómicas recessivas Doença Doença de células falciformes Talassémias Fibrose quística Doença de Tay – Sachs Grupo étnico África/Caraíbas Ásia/Mediterrâneo Europa do Norte Judeus Ashkenazi tossoma se manifesta por doença clínica no estado de heterozigoto. A dominância, em si, não se refere a uma característica do gene, mas à sua relação com o alelo homólogo, que se traduz na manifestação da doença. Têm sido propostos vários mecanismos para explicar a dominância. Vários autores explicam-na pelo facto de o alelo com mutação produzir um produto que interfere com o mecanismo normal de expressão do alelo homólogo. Outros autores explicam a doença clínica pela haploinsuficiência que resulta de facto de o alelo normal não produzir o produto biológico necessário. As principais características das doenças com transmissão autossómica dominante são: • Transmissão vertical, identificando-se casos em várias gerações; • Os homens e as mulheres são igualmente afectados; • Há transmissão de pai para filho; • A descendência de um indivíduo afectado tem 50% de probabilidade de herdar o gene com a mutação e os restantes descendentes são normais; • Se os dois progenitores são afectados, a descendência esperada é 25 % serem saudáveis, 50% heterozigotos doentes e 25% homozigotos; • A penetrância incompleta e a expressividade variável são comuns; • Ocorrem casos espontâneos, de novo, por vezes em relação com o aumento da idade paterna. As situações de homozigotia podem apresentar uma expressão clínica equivalente aos casos de heterozigotia, o que se verifica na coreia de Huntington. Noutras doenças podem manifestarse por uma forma clínica mais grave, letal no caso da acondroplasia. Frequência de portadores % 20% 10% 4% 4% Nas doenças autossómicas dominantes é necessário ter em conta alguns fenómenos: a) Penetrância incompleta: refere-se à proporção dos indivíduos que, sendo portadoras de uma mutação, não a expressam clinicamente. Por exemplo, a coreia de Huntington tem uma penetrância de quase 100% aos 70 anos, mas estima-se ser de 50% aos 40 anos. A polidactilia, por outro lado, tem uma penetrância baixa, o que tem importância para o aconselhamento genético. b) Expressividade variável: significa que o fenotipo varia entre os indivíduos portadores de uma mutação dominante desde uma apresentação clínica ligeira a grave, inclusivamente na mesma família. A esclerose tuberosa é um exemplo de uma doença autossómica dominante com grande variabilidade clínica; na acondroplasia a variação é muito menor. Têm sido propostas várias explicações para a expressividade variável, de que se destaca, a influência de alguns factores ambientais, o efeito de outros genes, e efeitos de “imprinting”. c) Mutação de novo: significa que ocorreu uma mutação no genoma do indivíduo, não existindo história familiar dessa doença. Na acondroplasia, 85% dos doentes correspondem a mutações de novo. Para algumas doenças com transmissão dominante, demonstrou-se um efeito paterno, com um aumento das novas mutações com o aumento da idade, como é o caso da síndroma de Apert. d) Antecipação: quando as manifestações de uma mutação aumentam de importância clínica de geração para geração, como é observado, por exemplo, na distrofia miotónica. A instabilidade do ADN traduzida pelo aumento da expansão de tripletos de trinucleótidos do ADN, permitiu explicar este fenómeno. São exemplos de doenças autossómicas dominantes a coreia de Huntington, a neurofibromatose tipo 1, a hipercolesterolémia familiar, a distrofia miotónica, a síndroma de Marfan, a acondroplasia, CAPÍTULO 14 Hereditariedade mendeliana a esclerose tuberosa, a osteogénese imperfeita, etc.. Nalgumas doenças é possível fazer o diagnóstico do estado de portador através de estudos de biologia molecular. Nas doenças que se manifestam vários anos após o nascimento, é possível realizar o diagnóstico preditivo, pré-sintomático, antes de surgirem as manifestações clínicas. São exemplo a doença de Machado-Joseph e a coreia de Huntington. Hereditariedade ligada ao cromossoma X Na mulher, um dos cromossomas X está inactivado na maior parte do ciclo celular, assegurando o outro alelo, a globalidade das funções necessárias ao indivíduo. Este fenómeno de inactivação, a “lionização”, é aleatório explicando que alguma mulheres condutoras manifestem sinais clínicos da doença (hipótese de Lyon). As mutações no cromossoma X podem actuar como recessivas ou dominantes a que corresponde, deste modo, a transmissão recessiva ligada ao X e a transmissão dominante ligada ao X. a) Hereditariedade recessiva ligada ao cromossoma X Quando as mutações nos genes do cromossoma X se comportam como recessivas, a expressão da doença depende do sexo do descendente. As principais características são: • As mulheres condutoras não expressam a doença nas situações comuns; • A descendência de uma mulher condutora varia de acordo com o sexo do filho: se masculino, 50% são doentes e 50% saudáveis; se feminino, 50% são condutoras e 50% não condutoras; • A descendência de um homem afectado é a seguinte: se for do sexo masculino, são todos saudáveis; se forem do sexo feminino, são todas condutoras; • Não há transmissão de pai para filho; • Uma elevada percentagem de casos isolados numa família corresponde a mutações “de novo”; são exemplos doenças recessivas ligadas ao cromossoma X, a síndroma do Xfrágil, a hemofilia A e B, e as distrofias musculares de Duchenne e de Becker. Para algumas doenças recessivas ligadas ao X é possível realizar o diagnóstico de estado de heterozigotia pelo estudo do produto do gene 75 ou do próprio gene através de exames de biologia molecular. b) Hereditariedade dominante ligada ao cromossoma X São raras as mutações do cromossoma X que se transmitem como dominantes. As principais características desta transmissão são: • A descendência de uma mulher heterozigoto e que exprime a doença, tem uma probabilidade de 50% de ser afectada, independentemente do sexo; • Se for o pai afectado, 100% das filhas são doentes, mas nenhum dos filhos. São poucas as doenças que apresentam estas características. Um dos exemplos é a síndroma de Rett. 76 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 15 ANOMALIAS CROMOSSÓMICAS Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Importância do problema Em 1959 foi demonstrado pela primeira vez uma aplicação médica do estudo dos cromossomas: Jérome Lejeune e colaboradores descobriram a presença de um cromossoma extra nas crianças com síndroma de Down. A partir de então, foram reconhecidas muitas das principais síndromas causadas por anomalias cromossómicas. Actualmente estima-se que as anomalias cromossómicas são responsáveis por 80% dos abortos espontâneos do primeiro trimestre da gestação, diagnosticando-se em 0,7% dos recém-nascidos. Os indivíduos com anomalias cromossómicas têm, em geral, fenotipos característicos e frequentemente apresentam mais semelhanças com os indivíduos com a mesma anomalia, do que com os seus irmãos e progenitores. As anomalias fenotípicas resultam do desequilíbrio genético que perturba o curso natural do desenvolvimento do embrião. Dismorfias, anomalias congénitas e perturbações do desenvolvimento psicomotor encontram-se em todas as cromossomopatias em que existe material genético em excesso ou perdido. Os rearranjos estruturais equilibrados, (todo o material genético está presente mas distribuído de forma anormal) associam-se, em geral, a fenotipos normais. No entanto, e por razões não completamente esclarecidas, verificou-se que em indivíduos com deficiência mental há um excesso de rearranjos equilibrados de novo. Com as técnicas laboratoriais actuais, é possível corar os cromossomas através de diversos métodos que evidenciam um conjunto de bandas, permitindo identificar as várias regiões cromossómicas. Morfologia do cromossoma Os cromossomas, após a preparação laboratorial, possuem um aspecto linear e são constituídos por dois braços unidos por uma zona de constrição: o centrómero. O braço curto é designado por p (petit) e o braço longo designado por q (letra que se segue no alfabeto). Cada espécie tem um número de cromossomas característico. A espécie humana é constituída por 46 cromossomas, que se organizam em 23 pares, dos quais 22 autossomas (homólogos e com a mesma morfologia) e um par, o 23°, constituído pelos cromossomas sexuais. Os cromossomas distinguem-se tendo em conta o seu tamanho, posição do centrómero e padrão de bandas. O centómero pode estar posicionado no centro e o cromossoma designa-se metacêntrico; afastado do centro - submetacêntrico; ou próximo de uma das extremidades – acrocêntrico. Anteriormente os cromossomas foram organizados em grupos de A a G de acordo com o seu tamanho e a posição do centrómero. Actualmente, com as técnicas de coloração existentes, foi possível obter um padrão de bandas específico para cada cromossoma. Os autossomas foram numerados do maior para o menor, de 1 a 22. O estudo e a organização dos cromossomas em pares e tamanho decrescente, incluindo os gonossomas, designa-se por cariótipo. Classificação das anomalias cromossómicas As anomalias cromossómicas podem ser numéricas ou estruturais e afectar um ou mais cromossomas, autossomas ou sexuais, ou ambos. Uma determinada anomalia pode estar presente em todas as células do indivíduo, ou existir em duas ou mais linhas celulares, das quais, pelo menos uma, é anormal, constituindo um mosaico. Estes originam-se por não disjunção numa fase precoce da divisão do zigoto, e a proporção de células normais e anormais pode variar de tecido para tecido. Anomalias numéricas As anomalias numéricas surgem principalmente por não disjunção, na primeira ou na segunda divisão meiótica, fenómeno que é ainda mal conhecido e susceptível de controvérsia. CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas O total de cromossomas de um gâmeta (n=23) designa-se por haplóide, o dobro do número haplóide por euplóide, ou seja com 46 cromossomas. Os múltiplos de n superiores a 2n, designam-se poliplóides: um cariotipo com 3n designa-se triplóide e, com 4n, tetraplóide. As triploidias são conhecidas no homem embora poucos indivíduos com esta anomalia tenham nascido vivos. As tetraploidias foram encontradas apenas em abortos precoces. A poliploidia pode surgir devido a vários mecanismos ainda mal esclarecidos. Qualquer número de cromossomas num cariótipo que não seja múltiplo exacto do número haplóide designa-se por aneuplóide. As aneuploidias podem ocorrer nos autossomas e nos gonossomas. Anomalias estruturais A deleção consiste na perda de uma parte do cromossoma, que pode ser terminal, se tiver ocorrido apenas um ponto de quebra; ou intersticial, se tiverem existido dois pontos de quebra. A parte delecionada, se não contiver centrómero (fragmento acêntrico), em geral perde-se numa divisão celular posterior. Um exemplo comum de deleção terminal é o da síndroma do Cri-du-Chat, descrito por Lejeune e colaboradores, bem conhecido dos pediatras. As crianças afectadas nos primeiros meses de vida têm o choro semelhante ao “miar de gato”. Esta síndroma é caracterizada por uma deleção do braço curto do cromossoma 5: del (5) (p15.3). O cromossoma em anel resulta de uma deleção de ambas as extremidades do cromossoma e união das extremidades, dando ao cromossoma a forma citogenética característica. A duplicação consiste na presença de um segmento duplicado do próprio cromossoma. São comuns e geralmente provocam menos alterações fenotípicas que as deleções. Podem ser directas ou invertidas; os mecanismos que as originam são complexos. A inversão corresponde a uma ruptura dum cromossoma em dois pontos de quebra e sua reconstituição com inversão de 180º do segmento. Se a inversão envolver apenas um dos braços do cromossoma designa-se por paracêntrica; se incluir a região centromérica, é pericêntrica. A inversão isolada habitualmente não origina alterações no fenotipo, apesar de poder ocorrer se os pontos de 77 quebra se situarem dentro de genes ou sequências reguladoras. As inversões podem ter consequências no processo de reprodução, pois algumas crianças das quais um dos progenitores é portador de uma inversão, apresentam cromossomas recombinantes com duplicações ou deleções. A translocação ou deslocamento de um ou mais segmentos de cromossoma é de dois tipos: recíprocas e robertsonianas. A translocação recíproca consiste na troca de fragmentos de cromatina entre cromossomas não homólogos, o que normalmente dá origem a fenotipos normais. O cromossoma formado chama-se derivado (der). Os descendentes de um indivíduo com translocação equilibrada podem ter cariótipo normal, herdar a translocação com um fenotipo normal, ou originar gâmetas desequilibrados cuja manifestação será um aborto espontâneo ou um recém-nascido com cromossomopatia complexa. A translocação robertsoniana ocorre entre dois cromossomas acrocêntricos (13, 14, 15, 21, 22,) que se fundem na região do centrómero e perdem os seus braços curtos heterocromáticos, mostrando o cariotipo 45 cromossomas. Este tipo de translocação, descrito por Robertson em 1916, é o rearranjo equilibrado mais comum na população, com uma frequência de 1 em cada 1000 indivíduos. Uma das translocações mais comuns ocorre entre o cromossoma 13 e o 14: der (13;14) (q10;q10). Na descendência de um portador pode ocorrer a formação de gâmetas desequilibrados. A inserção é um tipo raro de translocação não recíproca, em que um segmento de um cromossoma é inserido noutro. O isocromossoma forma-se devido à divisão errada do centrómero que separa os dois braços em vez dos dois cromatídeos, com duplicação de um dos braços do cromossoma. O tipo mais comum de isocromossoma é do braço longo do cromossoma X. Dos casos de síndroma de Turner, 15% a 20%, correspondem a esta anomalia cromossómica. Síndromas de causa cromossómica São descritas a seguir as características de algumas síndromas de causa cromossómica: Trissomia 21 (Síndroma de Down) A trissomia 21 foi descrita pela primeira vez por 78 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Langdon Down em 1866, mas a sua causa foi desconhecida durante quase um século. Desde as descrições iniciais ressaltou que a idade materna destes indivíduos era avançada. Só em 1959 foi verificado que as crianças com trissomia 21 tinham 47 cromossomas, sendo o cromossoma extra um acrocêntrico, o 21. A designação de mongolismo caiu em desuso: referia-se ao facto de o fenotipo sugerir uma origem oriental pela obliquidade em V das fendas palpebrais. A trissomia 21 é geralmente diagnosticada ao nascer ou pouco depois, pela dismorfia facial característica e outras alterações fenotípicas. As crianças são geralmente hipotónicas o que tem relevância nos primeiros meses de vida. Em cerca de 40% a 60% dos casos existe cardiopatia congénita, (frequentemente defeitos completos do septo aurículo-ventricular). Existem também associadas outras anomalias do tubo digestivo e da área neuro-sensorial. Todas as crianças têm deficiência mental, habitualmente de grau moderado. Os indivíduos afectados têm uma sobrevivência cada vez mais longa. A trissomia 21 ocorre na forma livre, por translocação ou em mosaico. A forma mais frequente é a forma livre (95% dos casos) em que todas as células apresentam 47 cromossomas. A causa principal é a não disjunção, relacionada com o aumento da idade materna. Em 4% dos casos, a trissomia 21 resulta de uma translocação que pode ocorrer de novo ou relacionar-se com uma translocação num dos progenitores, mais frequentemente dos cromossomas 14 e 21. O risco de recorrência depende dos cromossomas envolvidos e do progenitor com translocação. Cerca de 1% dos casos são mosaicos que, na maioria dos casos, correspondem a fenótipos menos marcados. A associação e a prevalência das características variam (Figura 1 e Quadro 1). Trissomia 18 (Síndroma de Edwards) A trissomia 18, descrita pela primeira vez por Edwards em 1960, tem uma frequência de 1 em cada 8.000 recém nascidos. A esperança de vida destas crianças é em média de 2 meses, apesar de alguns casos sobreviverem vários anos. Cerca de 80% dos indivíduos são do sexo feminino. A etiologia da trissomia 18 mais frequente é a não disjunção, correspondendo cerca de 10% a mosaicos. FIG. 1 Síndroma de Down. Aspecto da fácies: inclinação mongolóide das fendas palpebrais. QUADRO 1 – Síndroma de Down. Algumas características Características faciais • Face redonda • Pregas do epicanto • Manchas na íris • Protusão da língua • Orelhas pequenas Outras anomalias • Occiput achatado • Sulcos anormais na palma das mãos e planta dos pés (dermatoglifos) • Hipotonia • Cardiopatia congénita (40% dos casos) • Atrésia duodenal Problemas de manifestação tardia • Dificuldades de aprendizagem • Baixa estatura • Infecções respiratórias correntes • Défice auditivo relacionável com otite serosa • Risco elevado de leucemia • Risco de instabilidade atlanto – axial (rara) • Hipotiroidismo • Doença de Alzheimer CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas As crianças com trissomia 18 têm atraso de desenvolvimento grave, dismorfia facial característica (nomeadamente fronte proeminente, hipoplasia da mandíbula e pavilhões auriculares de baixa implantação e malformados). O esterno é curto. As mãos fecham-se de um modo característico, com o segundo e o quinto dedo sobrepondo-se ao primeiro e ao quarto. Os pés são arqueados com calcanhares proeminentes. São frequentes defeitos cardíacos (Quadro 2 e Figuras 2 e 3). Outras anomalias do cromossoma 18 Foram identificadas outras anomalias, como deleções parciais do braço curto e longo, trissomia do braço longo, e cromossoma 18 em anel. Os fenótipos são característicos de cada anomalia. FIG. 2 QUADRO 2 – Síndroma de Edwards • Maxilar inferior hipoplásico • Orelhas de implantação baixa • Sobreposição dos dedos das mãos (polegar sobre a palma, sobreposição do médico com o anelar) • Calcanhar saliente (em forma de “martelo”) • Defeitos congénitos cardíacos e renais Trissomia 13 (Síndroma de Patau) A trissomia 13 foi pela primeira vez descrita por Patau em 1960; os indivíduos afectados apresentam um conjunto de características fenotípicas e cerca de metade dos recém-nascidos morrem no período neonatal. As anomalias amis frequentes são: holoprosencefalia, fenda palatina e lábio leporino (60-80% dos casos), microftalmia, polidactilia, defeitos cardíacos e renais. Cerca de 20% dos casos ocorrem por translocação (Figura 4). Síndroma de Klinefelter (47,XXY) Esta síndroma foi descrita em 1942 por Klinefelter e caracteriza-se por atraso no desenvolvimento sexual, testículos pequenos, alterações ou ausência de espermatogénese e ginecomastia; alguns indivíduos são altos e de tipo eunuco. Cerca de 15% dos casos correspondem a mosaicos, com duas ou mais linhas celulares, nomeadamente mos 46,XY/47,XXY. Existem outras variantes de aneu- Síndroma de Edwards. Inclinação antimongolóide das fendas palpebrais. FIG. 3 Síndroma de Edwards. Aspecto de calcanhar saliente, “em martelo”. 79 FIG. 4 Síndroma de Patau em RN com holoprosencefalia. 80 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Síndroma de Turner • Linfedema das mãos e pés no recém – nascido • Baixa estatura • Prega do pescoço (pterigium colli) • Cúbito valgo • Mamilos muito afastados da linha média • Defeitos cardíacos congénitos (particularmente coarctação da aorta) • Disgenésia ovárica com consequente infertilidade • Desenvolvimento cognitivo normal 16 DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Definição e importância de problema QUADRO 4 – Síndroma do X frágil • Dificuldades de aprendizagem (QI: 20-80, média 50) • Aspecto da fácies característica (face longa, orelhas salientes – por vezes a única característica chamativa – maxilar inferior proeminente e fronte grande NB – Nas crianças pequenas os sinais dismórficos faciais poderão não ser evidentes; as orelhas salientes poderão ser a única característica mais exuberante. ploidias dos cromossomas sexuais como 48,XXYY, 48,XXXY, e 49,XXXXY. Geralmente estes indivíduos têm maior perturbação do desenvolvimento psicomotor e alterações fenotípicas com o aumento do número total de cromossomas X no cariótipo. Síndroma de Turner (45,X) A síndroma de Turner foi descrita em 1938 por Turner. Caracteriza-se por baixa estatura, pescoço largo, baixa implantação dos cabelos, dismorfia facial característica e infantilismo sexual. Na maioria dos casos há infertilidade e amenorreia. Cerca de 40% correspondem a mosaicos. Esta anomalia está encontrada frequentemente associada a hydrops fetalis e abortos espontâneos (Quadro 3). Síndroma do X frágil As principais carcaterísticas desta síndroma (que explica cerca de 3% dos casos de deficiência mental no sexo masculino e surge entre 1/1000 a 1/2000 RN do sexo masculino) constam do Quadro 4. O conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) abrange um conjunto de técnicas de diagnóstico clínico para determinar a integridade genética de um embrião ou feto em desenvolvimento. Recorre a meios complementares de diagnóstico não invasivos como a ecografia, ou invasivos como amniocentese, colheita de vilosidades coriónicas, cordocentese e fetoscopia. A actividade de DPN necessita do funcionamento harmonioso de uma equipa multidisciplinar que inclui: • Obstetras com conhecimento de medicina fetal, das técnicas de DPN e dos procedimentos para a realização de interrupção de gravidez; • Pediatras, preferencialmente neonatologistas com experiência em dismorfologia e anomalias congénitas; • Geneticistas com experiência de aconselhamento genético e patologia do desenvolvimento fetal; • Cirurgiões, cardiologistas pediátricos e especialistas de outras áreas, com experiência no diagnóstico e tratamento de anomalias congénitas; • Enfermeiros, técnicos do serviço social, psicólogos e outros profissionais. Esta equipa agrega áreas muito diversificadas quanto a conceitos e competências as quais permitem prestar cuidados especializados ao feto, desde a realização de técnicas de diagnóstico até a intervenções complexas de medicina fetal em que o feto é cuidado na sua globalidade como doente, ainda que in utero. De realçar as implicações éticas de uma grande diversidade de intervenção. De acordo com a legislação portuguesa, os hos- CAPÍTULO 16 Diagnóstico pré-natal pitais integrando Centros de Diagnóstico PréNatal (CDPN) têm uma Comissão Técnica de Certificação de Interrupção de Gravidez (CTCIG) que, de acordo com a Lei, delibera sobre os pedidos da interrupção de gravidez no seguimento da realização de exames de DPN. Indicações 81 3 – Filho anterior com aneuploidia Se o cariótipo revelar uma aneuploidia na forma livre, o risco empírico de recorrência é cerca de 1% a 2 % o que justifica a realização de cariótipo fetal. 4 – Progenitor com translocação equilibrada Neste contexto está justificado realizar o cariótipo fetal para excluir a ocorrência de translocação desequilibrada no feto. As principais indicações para realizar o DPN, são: 1 – Idade materna ≥35 anos A idade materna igual ou superior a 35 anos é a indicação mais frequente para a realização de DPN, pois associa-se ao risco acrescido de não disjunção dos cromossomas. As anomalias cromossómicas mais frequentes ao nascer que se associam à idade materna são as trissomias 21, 18 e 13. Estas trissomias podem ser suspeitadas por ecografia pelo padrão de anomalias habitualmente presentes nas síndromas. Porém, torna-se sempre necessário confirmar o diagnóstico pela realização do cariótipo fetal. No Quadro 1 apresenta-se a incidência de trissomia 21 em função da idade materna. 2 – Idade paterna Até ao momento não foi demonstrado de forma consistente que mais anos de idade paterna aumentem o risco de aneuploidias por não disjunção. Porém, o risco parece bem documentado em relação a mutações dominantes, de que é exemplo a síndroma de Apert. QUADRO 1 – Incidência de trissomia 21 Idade materna Risco de trissomia 21 no parto ao nascer 35 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/384 36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/307 37 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/242 38 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/189 39 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/146 40 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/112 41 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/85 42 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/65 43 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/49 Adaptado de Burton PR, 2006 5 – Feto com diagnóstico de anomalia fetal Os fetos com diagnóstico de anomalia congénita major têm em 4% dos casos outras anomalias. Deste modo, é necessário realizar sempre um estudo ecográfico em pormenor e amniocentese para determinação do cariótipo fetal, pois muitos destes fetos são portadores de anomalia cromossómica. Significado diferente tem a presença de marcadores ecográficos, como o aumento da translucência da nuca, que não corresponde a uma anomalia; apenas é um sinal de risco acrescido de trissomia no feto. 6 – Doença recessiva autossómica ou ligada ao X Se o caso índex estiver devidamente caracterizado, é possível realizar um DPN específico para essa doença. 7 – Doença autossómica dominante O DPN é dirigido para a patologia específica após o estudo aprofundado do caso índex e da história familiar. Pode realizar-se a partir de células do líquido amniótico ou de outros tecidos e, em geral, através de técnicas de biologia molecular. É exemplo a distrofia miotónica. Tem frequência de 1/8000 em recém-nascidos e resulta da expansão do tripleto (CTG)n num gene localizado no cromossoma 19 (19q13.2-q13.3). Na população normal existem entre 5 a 27 exemplares do tripleto, nos doentes cerca de 50 exemplares nas formas ligeiras, e mais de 1000 nas formas graves. 8 – Doença genética sem DPN específico Corresponde às doenças em que, não tendo sido possível localizar o gene e proceder a diagnóstico laboratorial, se associam alterações ecográficas no feto. De salientar, a propósito, as anomalias cardíacas podem ser diagnosticadas por ecografia no período pré-natal sendo o risco de recorrência mé- 82 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dio para um casal com um filho afectado de 3% a 5%. Técnicas invasivas de DPN As principais técnicas invasivas utilizadas no DPN são: 1 – Amniocentese A amniocentese é a técnica invasiva mais frequentemente utilizada; realiza-se sob controlo ecográfico entre as 15 e as 16 semanas de gestação. Deve ser precedida por um exame ecográfico para confirmar o número e a viabilidade dos fetos, a localização da placenta e cordão umbilical, e a quantidade de líquido amniótico. Em termos técnicos, insere-se uma agulha de punção lombar (calibre: 22 G) através da parede abdominal, directamente no saco amniótico, e aspira-se entre 20 ml e 30 ml de líquido amniótico. Após a amniocentese, verifica-se a actividade cardíaca fetal e a existência de sangramento da placenta, do feto ou do cordão umbilical. Caso não ocorra qualquer intercorrência, apenas se aconselha à grávida que limite a realização de grandes esforços, natação ou banho de imersão nas 24 a 48 horas seguintes. Nas gestações gemelares dizigóticas é igualmente possível a realização de amniocentese, embora seja necessário proceder à injecção de um produto de contraste que permite ao obstetra identificar o saco amniótico que vai puncionar. São exemplos de DPN realizados a partir do líquido amniótico: • Estudo da biologia molecular Fibrose Quística Frequência ao nascer de fetos homozigóticos: cerca de 1/4000 em Portugal. O gene CFTR está localizado em 7q31.2 e a mutação mais frequente é a DF508, que corresponde a 70-75% dos casos. Estão descritas mais de 1000 mutações. X- Frágil Estima-se a frequência de 1/1000 a 1/2000 em recém-nascidos do sexo masculino. A anomalia genética é a expansão de um tripleto (CCG)n no gene FMR 1 localizado em Xq27.3, embora possa ser causada por alteração de outros genes do cromossoma X. Na população normal existem de 6 a 50 tripletos CGG, nos indivíduos com pré-mutação entre 41 e 200 tripletos e, nos indivíduos afectados, mais de 200. Distrofia Muscular de Duchenne É uma doença genética com transmissão recessiva ligada ao X com a frequência esperada de 1/3500 a 1/5000 recém-nascidos do sexo masculino. O gene (DMD, BMD Dystrophin) está localizado no braço curto do cromossoma X (Xp21.2), tem uma grande dimensão, e estão descritos vários tipos de mutação (cerca de 2/3 são deleções de um ou mais exões) que provocam a não produção de distrofina ou a produção de uma proteína anómala. • Estudo enzimático Através deste estudo procura-se um défice ou excesso de determinado produto metabólico como consequência da inexistência ou alteração de funcionamento de determinada enzima. 2 – Colheita de vilosidades coriónicas A colheita de vilosidades coriónicas é realizada por via transcervical ou transabdominal entre as 10 e as 12 semanas de gestação. A colheita por via vaginal implica a colocação de um cateter estéril em contacto com a placenta, sob controlo ecográfico, e a aspiração de 10 a 25 mg de vilosidades coriónicas. Trata-se duma técnica de DPN do primeiro trimestre de gestação, sendo as indicações para a sua realização semelhantes às da amniocentese. Apesar de estudos realizados em vários países terem mostrado que o risco de perda fetal é semelhante ao da amniocentese, actualmente é pouco aplicada na maioria dos países europeus. 3 – Cordocentese A cordocentese ou técnica de colheita de sangue dos vasos do cordão umbilical fetal, que se realiza a partir das 18 semanas de gestação, tem indicações muito precisas e exige que o especialista em medicina fetal tenha grande experiência. As principais indicações para diagnóstico são a realização do cariótipo fetal, a avaliação de infecção fetal nomeadamente por citomegalovírus, parvovírus B19 e toxoplasmose, assim como o estudo genético de doenças da coagulação, de hemoglobinopatias e de imunodeficiências. Esta técnica é cada vez mais utilizada para terapêutica fetal, nomeadamente, para transfusão intravascular de produtos CAPÍTULO 16 Diagnóstico pré-natal sanguíneos e administração de medicamentos para tratar o feto. A cordocentese tem complicações maternas e fetais, embora raras; são exemplos a amnionite e a hemorragia transplancentar. A perda fetal nas grandes séries é cerca de 1%, mas este valor aumenta 4 a 5 vezes quando se utiliza para a realização de transfusão intravascular. 4 – Fetoscopia, biópsia de pele, músculo e fígado fetais A fetoscopia é uma técnica invasiva que permite a visualização do feto com recurso a equipamento de endoscopia com uma lente de focagem associada a bandas de fibras ópticas que transmitem luz para a cavidade amniótica. Para a colheita de tecidos fetais associa-se ao fetoscópio uma pinça de biópsia específica. As indicações para utilização desta técnica são actualmente excepcionais pelo desenvolvimento da biologia molecular que permite realizar o DPN a partir de células do líquido amniótico, sem necessidade de visualização directa do feto. Estudo do feto Os fetos e recém-nascidos com anomalias congénitas e os fetos de interrupção médica de gravidez devem ter uma avaliação prévia pelo especialista de medicina fetal, obstetra, neonatologista ou geneticista, com registo dos dados essenciais observados no hábito externo. A fetopatologia complementa os dados obtidos anteriormente e procede ao estudo do hábito interno com o objectivo de se realizar o diagnóstico genético correcto. Nos casos anteriormente mencionados, devem realizar-se os seguintes procedimentos: • Descrição do hábito externo e das anomalias encontradas; • Registo de imagens fotográficas em vários planos desde a perspectiva global ao registo dos aspectos de pormenor; • Realização de radiogramas em dois planos; • Colheita de sangue do cordão ou biópsia da pele para cariótipo. Terapêutica fetal O progresso científico e tecnológico permite já ho- 83 je a realização de intervenções sobre o feto durante a gestação, de carácter médico ou cirúrgico, com impacte na sobrevivência e qualidade de vida do recém-nascido. Esta área corresponde, na verdade, à Medicina do Feto, valência devotada aos cuidados de saúde do feto enquanto “pessoa doente”, ainda que fisicamente se encontre no útero da sua mãe. Eis algumas das áreas em que se prevê um maior desenvolvimento nos próximos anos: 1 – Anomalias neurológicas Hidrocefalia O procedimento de registo intencional designado por "Fetal Surgery Registry" encontrou uma sobrevivência de 83% após cirurgia de drenagem em hidrocefalia fetal. Porém, em 18 dos 34 sobreviventes foram detectadas posteriormente alterações importantes no desenvolvimento psicomotor. Anomalias do tubo neural Estudos aleatórios, duplamente cegos, com administração de ácido fólico no período pré-concepcional e no primeiro trimestre de gestação, em casais com um feto anterior portador de anomalia do tubo neural, mostraram uma redução na recorrência destas anomalias superior a 70%. 2 – Doenças endócrinas e metabólicas Hipotiroidismo fetal O hipotiroidismo fetal pode ser secundário à terapêutica materna com medicamentos antitiroideus ou corresponder a hipotiroidismo congénito. Pode manifestar-se por bócio que, se for de grandes dimensões, poderá ter consequências no desenvolvimento fetal, nomeadamente pela hiperextensão da cabeça. A confirmação da carência hormonal no feto realiza-se no sangue fetal colhido por cordocentese, o que possibilita a administração de tiroxina ao feto com resultados clínicos encorajadores. Hiperplasia congénita da supra-renal A administração de betametasona à grávida, o mais precocemente possível até se determinar o sexo fetal, pode impedir a virilização no sexo feminino. 3 – Doenças cardiovasculares Taquicardia supraventricular Estima-se que a incidência seja entre 1/10000 e 84 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 1/25000 fetos. Quando diagnosticada deverá ser abordada como uma emergência e tratada com digoxina, o que permite obter resultados geralmente favoráveis. Bloqueio aurículo-ventricular completo A frequência do bloqueio aurículo-ventricular completo é cerca de 1/20000 recém-nascidos. Cerca de metade destes fetos tem alterações cardíacas estruturais. A terapêutica medicamentosa com terbutalina, ou isoproterenol permite um sucesso relativo e está indicada, apenas, quando não existem anomalias cardíacas estruturais associadas, ou hidropisia fetal. 4 – Doenças nefro-urológicas Os fetos com síndroma das válvulas da uretra posterior apresentam-se em dois grupos distintos: – Fetos com obstrução unilateral ou com ligeira obstrução bilateral e líquido amniótico normal; – Fetos com oligoâmnio grave e rins displásicos. Os fetos evidenciando função renal não afectada são candidatos à realização de cirurgia in utero, com boas expectativas de sucesso terapêutico. Os fetos com sinais de displasia renal significativa não beneficiam da cirurgia fetal. 5 – Doenças hematológicas Trombocitopénia aloimune Resulta da passagem transplacentar de anticorpos maternos contra um antigénio presente nas plaquetas fetais. Nalguns casos poderá ser realizada uma transfusão plaquetar que diminui o risco de hemorragia intracraniana durante o parto. 6 – Doenças pulmonares Anomalia adenomatosa quística congénita A correcção intra-uterina desta patologia poderá realizar-se através de toracocentese com colocação de derivação para o líquido amniótico ou, por cirurgia fetal, com histerotomia e remoção da massa pulmonar torácica. Até ao momento o número de intervenções cirúrgicas realizadas é escasso, pelo que se torna necessário avaliar com ponderação os resultados favoráveis que foram publicados. Hérnia diafragmática congénita A hérnia diafragmática congénita é a principal causa de morte por falência respiratória, com hi- pertensão pulmonar devida a hipoplasia pulmonar em recém-nascidos. Nalgumas séries, a cirurgia in utero permitiu a sobrevivência de 70% a 80% dos fetos. Diagnóstico pré-implantatório Determinada tecnologia permite efectuar o diagnóstico genético a partir de uma única célula embrionária, com recurso a técnicas de reprodução medicamente assistida e transferência ou congelação dos embriões seleccionados. Os seus objectivos principais, são: • O nascimento de um ser humano sem a alteração genética identificada anteriormente no caso índex; • O nascimento de um ser humano histocompatível para doação de material biológico necessário a vida de um outro ser humano. Esta tecnologia constitui um avanço importante da ciência. Porém, as questões éticas que levanta são motivo de debate na sociedade portuguesa e na comunidade científica, não existindo consensos sobre as suas vantagens e circunstâncias em que poderá ser aplicada. Legislação portuguesa A legislação portuguesa mais relevante nesta área é a seguinte: Despacho 5411/97, de 8 de Setembro Define o âmbito e os princípios, a população em risco e os modelos de organização dos Centros de Diagnóstico Pré-Natal, e estabelece o modo de participação da Genética nesses Centros Despacho 10325/99, de 5 de Maio Complementa o Despacho anterior e define o modelo de constituição dos Centros e os recursos de que deverá dispor. Portaria 189/98, de 26 de Fevereiro Estabelece a constituição das Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção de Gravidez e as respectivas competências. CAPÍTULO 17 A consulta de Genética 17 A CONSULTA DE GENÉTICA Luís Nunes, Teresa Kay e Raquel Carvalhas Importância do problema A consulta de Genética é uma consulta médica, pelo que inclui elementos comuns a toda a prática médica de que a história clínica é o elemento essencial. A história pessoal inclui uma revisão pormenorizada da gravidez, da infância, do crescimento e desenvolvimento, precisando o início das manifestações da doença, os exames complementares e as intervenções clínicas já realizadas. A história familiar deve ser pormenorizada e colhida ao consultante, embora nalgumas circunstâncias se torne necessário inquirir outros familiares. É necessário inventariar outros casos semelhantes na família, anomalias congénitas, doenças genéticas, atraso mental ou perturbação neurosensorial, que aparentemente não estão relacionadas com o caso índex. Com base nestas informações é construída a árvore genealógica. O exame clínico permite recolher muitos elementos que contribuem para o diagnóstico e, assim, deve ser sistematizado, valorizando uma percepção global do indivíduo (o apelo à memória de casos semelhantes) e a descrição e registo de sinais clínicos e medições antropométricas, que serão comparados posteriormente com bases de dados de imagens, nomeadamente, em suporte informático e tabelas apropriadas. A orientação e sequência do exame clínico depende da existência prévia de um diagnóstico colocado por outro médico ou da ausência de diagnóstico. Os elementos mais significativos do exame devem ser sempre registados em imagem. Os exames complementares a realizar decorrem das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua realização deve ser criteriosa e económica, tendo 85 em conta os critérios que permitem o diagnóstico da doença (os elementos necessários para a “definição de caso”). Poderão realizar-se estudos cromossómicos, de biologia molecular, imagiologia ou outros. Anteriormente já foram indicados os elementos essenciais ao estudo dos embriões e fetos-mortos com anomalias congénitas ou que resultaram de interrupção de gravidez. A principal responsabilidade do médico geneticista é prestar a uma pessoa ou família, informação de natureza genética relacionada com o diagnóstico de uma doença e o risco de recorrência na sua descendência. Nesta perspectiva, o risco genético corresponde à probabilidade de um membro da família nascer com uma doença genética particular. O aconselhamento genético é um processo de comunicação em que são discutidos riscos genéticos, opções reprodutivas, e também formas de suporte comunitário e apoio clínico à família. Tem três dimensões principais: realizar ou confirmar o diagnóstico de uma doença genética, avaliar o risco genético de recorrência e apoiar o casal nas suas opções reprodutivas. É, por definição, não directivo e processa-se em termos de respeito pela autonomia e dignidade da pessoa. Porém, o papel do médico geneticista não pode ser passivo, nem neutro, quando formula o aconselhamento genético e apoia o processo de tomada de decisão pelo casal. Indicação para consulta de Genética Poderá admitir-se que podem ter acesso às consultas de Genética todas as pessoas e casais em que foi identificado um risco genético elevado. Porém, como os recursos actualmente existentes são escassos, considera-se que as principais indicações para a consulta de Genética são: • Indivíduo com doença genética ou anomalia congénita major; • Pais de criança com doença genética, anomalia congénita importante ou deficiência mental; • Indivíduo com risco genético elevado pela história familiar; • Casal consanguíneo; • Grávida de risco genético ou com diagnóstico de anomalia fetal; TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA • Abortos recorrentes ou patologia da reprodução; • Casal com feto-morto portador de anomalia. Árvore genealógica Com o uso, foram-se uniformizando os símbolos utilizados para construir uma árvore genealógica, seja no âmbito da consulta de genética, seja da comunicação científica. Os símbolos que são usados com maior frequência, encontram-se descritos no Quadro 1. A árvore genealógica é geralmente representada em três gerações, embora nalgumas famílias seja conveniente alargá-la a gerações anteriores. Deve ser construída de maneira simples e revelar o máximo de informação possível, tendo em conta a doença particular em estudo. É necessário incluir os dois lados da família e indicar na árvore o caso índex. Na árvore genealógica as gerações são representadas em números romanos e da vertical para a horizontal (I, II, III, etc.). Os indivíduos da mesma geração são representados por numeração árabe, da esquerda para a direita, geralmente no lado direito do símbolo a que se refere. Aárvore genealógica pode ser elaborada imediatamente a partir da informação clínica que o doente faculta, o que permite desde logo ter uma compreensão global dos dados relevantes da família. Em situações mais complexas, quando existe consanguinidade, por exemplo, poderão ser registados os dados essenciais de cada membro da família e, posteriormente, construir a árvore genealógica. Testes genéticos Os testes de Genética têm por objectivo realizar o diagnóstico de doenças genéticas ou identificar pessoas em risco elevado para determinada doença genética. A realização dos testes de genética processa-se de acordo com várias tecnologias e deve obedecer a procedimentos técnicos rigorosos e contextos, de acordo com regras que garantam os direitos e a dignidade das pessoas. Indicações As principais indicações para realizar testes de Genética são: QUADRO 1 – Árvore genealógica: simbologia utilizada Simbologia Significado Homem Mulher Casamento Pais e Filhos Gémeos dizigóticos Gémeos monozigóticos Sexo indeterminado Indíviduos afectados 2 ? • Número de crianças de sexo determinado e indeterminado Condutora (doenças recessivas ligadas ao X) Morto → 86 Caso index Aborto ou feto-morto de sexo indeterminado Casamento consanguíneo • Confirmar o diagnóstico de uma doença genética; • Identificar o estado de portador de uma doença genética numa pessoa saudável, mas em risco pela história familiar; • Predizer a probabilidade futura de ocorrer o aparecimento de uma doença genética de CAPÍTULO 17 A consulta de Genética manifestação tardia (teste pré-sintomático); • Diagnosticar em recém-nascidos a presença de doenças genéticas que necessitam de terapêutica precoce (por exemplo a fenilcetonúria); • Realizar o diagnóstico pré-natal e pré-implantatório; • Prever a resposta do doente a uma terapêutica; • Testar populações para obter dados sobre a epidemiologia das doenças genéticas. Para confirmar o diagnóstico de uma doença genética é, por vezes, necessário recorrer à realização de diferentes testes, de acordo com o critério clínico. A certeza do diagnóstico é essencial em Genética, pois o médico quando afirma um diagnóstico, assume as consequências de realizar o aconselhamento genético e orientar as opções reprodutivas do casal. Diagnosticar implica, deste modo, que o doente preencha os critérios obrigatórios da “definição de caso”, o que nem sempre é possível pela realização de um teste de Genética específico, como nos casos da trissomia 21 ou da coreia de Huntington. Na neurofibromatose do tipo 1 e na síndroma de Marfan, o diagnóstico é clínico-laboratorial, de acordo com critérios de consenso definidos por peritos internacionais. Nestas situações, a realização de testes de Genética específicos, nomeadamente de biologia molecular, nem sempre é obrigatória e poucas vezes é necessária para o diagnóstico. Tipos de testes de Genética Os principais exemplos de exames utilizados no diagnóstico das doenças genéticas são os seguintes: a. Biologia molecular É o método de estudo indicado nas doenças em que o gene já foi identificado; são exemplos a fibrose quística e a distrofia muscular de Duchenne. No gene podem ser detectadas várias alterações como deleções ou mutações pontuais, que poderão vir a ser responsáveis pela produção de uma proteína anómala. Nalgumas doenças genéticas, uma única mutação é responsável pela ocorrência da doença genética; são exemplo a drepanocitose (localização genética em 11p15.5) e a acondroplasia (mutação 1138G-A no gene FGFR localizado em 4p16.3). 87 Noutras, de que é exemplo a fibrose quística, foram descritas no gene inúmeras mutações a que correspondem manifestações fenotípicas diferentes ou mesmo a ausência de alterações. Nas doenças com estas características são importantes os estudos de correlação entre o fenótipo e o genótipo. A ocorrência de sequências repetidas de trinucleótidos, intragénicas ou nas extremidades do gene, são a causa de algumas doenças genéticas como a síndroma do X-Frágil, a coreia de Huntington e a distrofia miotónica; tais sequências explicam fenómenos como a antecipação e a pré-mutação (consultar glossário). Actualmente já é possível estudar por biologia molecular centenas de genes e este número irá aumentar nos próximos anos. Em muitos casos tratase de genes de susceptibilidade implicados na patogénese de doenças multifactoriais como cancro e doenças degenerativas do adulto. b. Citogenética As principais indicações para a realização de testes de citogenética são a suspeita clínica de uma anomalia cromossómica, o diagnóstico pré-natal quando existe um risco aumentado de aneuploidia (idade materna ≥ 35 anos ou a presença de anomalia por ecografia) e nas famílias com anomalia cromossómica equilibrada. Nos últimos anos comprovou-se que algumas doenças genéticas são provocadas por microdeleções cromossómicas que podem ser exploradas através de sondas específicas (FISH), quando o quadro clínico é sugestivo. São exemplos deste tipo de doenças a síndroma de Prader-Willi (15q12; 15q11.q13; 15q11) e a síndroma de Williams (7q11.2). c. Bioquímica genética O doseamento enzimático tem indicação no diagnóstico dos erros inatos do metabolismo que, na generalidade dos casos, têm transmissão autossómica recessiva. A utilização destas técnicas para o diagnóstico de portadores coloca, por vezes, algumas dificuldades, pois poderá haver sobreposição dos valores encontrados com os de indivíduos normais. Nestes casos, terá que se recorrer a outras técnicas laboratoriais complementares. Outros testes de bioquímica têm importância no diagnóstico de doenças genéticas, como o doseamento do factor VIII na hemofilia A e a elec- 88 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA troforese das hemoglobinas e quantificação da A2 e F nas talassémias. Estes testes são utilizados nas etapas iniciais do diagnóstico, a que se segue a realização de exames de biologia molecular. Os tecidos biológicos em que se realizam os exames de bioquímica variam de teste para teste. Para cada caso é sempre desejável que o médico tenha um contacto prévio com o laboratório que irá realizar o exame para precisar aspectos como as condições da colheita, o acondicionamento e as características do transporte até ao laboratório. d. Outras técnicas Algumas doenças genéticas são diagnosticadas essencialmente pela imagiologia como é o caso da osteogénese imperfeita. O estudo histopatológico tem importância na caracterização das distrofias musculares; por outro lado, o exame oftalmológico contribui para efectuar o diagnóstico na neurofibromatose tipo 1 (pesquisa de nódulos de Lisch). Vantagem dos testes de Genética Os testes laboratoriais de Genética constituem o único método que permite o diagnóstico correcto de algumas doenças complexas. O diagnóstico correcto tem importância para o aconselhamento genético e para a orientação das opções reprodutivas, como já foi referido anteriormente. Para o pediatra e clínico geral, o diagnóstico correcto tem a vantagem de permitir estabelecer um programa de cuidados de vigilância de saúde que tenha em conta a história natural da doença, avaliar o recurso a outras abordagens terapêuticas e promover a mudança de comportamentos e estilos de vida quando existir um risco genético elevado de doença multifactorial de acordo com história familiar. Nas doenças de manifestação tardia, como a doença de Machado-Joseph e a paramiloidose familiar, em que o teste pré-sintomático conduziu a resultado negativo, o indivíduo pode perspectivar a sua vida profissional e reprodutiva sem a ansiedade de poder vir a manifestar essa doença genética. Limitações dos testes de Genética Algumas das limitações dos testes são: • Não são infalíveis e nem sempre permitem confirmar um diagnóstico de certeza; • Não é possível identificar todas as mutações existentes num gene, nem relacionar as identificadas com alterações específicas do fenotipo; • Nem sempre a presença de uma mutação pressupõe que a doença se venha a manifestar (penetrância incompleta); • Para a maior parte das doenças identificadas por testes de Genética, não existe terapêutica nem prevenção; • Nem sempre uma pessoa a quem foi identificado um risco genético elevado altera o seu comportamento ou estilo de vida para prevenir o aparecimento da doença. Contexto da realização dos testes Deve ser assegurado um conjunto de critérios para a correcta realização dos testes de genética, nomeadamente, avaliação clínica e justificação clara. O aconselhamento genético prévio é essencial e o médico deve explicar ao doente o tipo de exame que irá realizar, as limitações dos resultados e os benefícios esperados. Esta intervenção, a base do consentimento livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a assegurar o respeito pela personalidade, dignidade e direitos da pessoa. No período em que decorre a realização dos procedimentos laboratoriais, o doente deverá ter apoio psicológico se tal se revelar necessário. No caso da realização de testes pré-sintomáticos ou preditivos de doenças genéticas de manifestação tardia, os procedimentos deverão realizar-se de acordo com os protocolos nacionais, quando existentes. Privacidade e confidencialidade A possibilidade de se realizar o estudo directo do material hereditário constitui um avanço científico relevante, mas coloca igualmente novos desafios à sociedade e aos profissionais de saúde. Caso a informação que resulta da realização dos testes se torne acessível a empresas ou instituições de direito privado ou público, poderão ocorrer situações de discriminação na vida privada, no emprego e no acesso a serviços como seguros de vida ou crédito bancário. Este risco de violação da privacidade e discriminação pode reportar-se à CAPÍTULO 17 A consulta de Genética própria pessoa, aos familiares e mesmo aos seus descendentes. Existe, assim, o imperactivo ético de o Estado e os Serviços de Saúde salvaguardarem a informação genética relevante dos doentes, nomeadamente em termos de acessibilidade, da circulação nas instituições e do seu arquivamento. Os procedimentos deverão ser rigorosos de acordo com a legislação em vigor e auditados regularmente. Realização de testes a crianças e adolescentes 89 ADN > ácido desoxirribonucleico que suporta a informação genéticado indivíduo. Este material consiste numa dupla hélice, como uma escada em espiral, na qual: o corrimão é feito de moléculas alternadas de desoxirribose (um açúcar) e fosfato; e os degraus feitos de bases purínicas e pirimidínicas, mantidas juntas por pontes de hidrogénio. A “escada” é torcida em dupla hélice. As bases purínicas são a adenina (A) e a guanina (G); e as pirimídicas: a citosina (C) e a timina (T). As referidas pontes de hidrogénio”garantem” o emparelhamento de A com T e de G com C. Quando o ADN se replica, os 2 filamentos separam-se e cada um, com a ajuda da enzima ADN polimerase, forma um novo filamento, dando origem a 2 novas hélices, idênticas na se- A realização de testes de biologia molecular para fins clínicos deve obedecer a um conjunto de regras que tenham em conta o interesse e as vantagens para a criança e adolescente da realização do exame salvaguardando a sua autonomia e o direito de, na maioridade, tomarem uma decisão informada. Estas balizas foram tidas em conta na elaboração da legislação portuguesa, nomeadamente a obrigatoriedade de os pais autorizarem expressamente a realização dos exames, após serem devidamente informados e esclarecidos pelo médico assistente. Legislação portuguesa quência de bases:G – C/A – T. Alelo > um dos dois genes diferentes que ocupam posições correspondentes ou idênticas (locus) em cromossomas homólogos, que exercem a mesma função mas determinam características diferentes. ARNm (mensageiro) > o ácido nucleico que transporta do núcleo para o citoplasma a informação genética do ADNpara ser traduzida (ver adiante o termo tradução) em proteína (cadeia polipeptídica). Autossoma > qualquer cromossoma que não seja sexual. Carga genética (liability) > efeito cumulativo dos factores genéticos na ocorrência de uma doença. Codão > sinónimo de Tripleto (ver adiante). Congénito > qualquer característica ou doença que esteja presente, visível ou não, no nascimento. Despacho 9108/97, de 18 de Setembro Define o contexto e os procedimentos para a realização dos testes de biologia molecular no âmbito da prestação de cuidados de saúde, nas situações de diagnóstico clínico, diagnóstico do estado de heterozigotia, diagnóstico pré-sintomático e diagnóstico pré-natal. As orientações deste diploma são claras e estabelecem os contextos e as preocupações que os médicos devem ter quando prescrevem a realização de exames de biologia molecular a crianças e adolescentes; em particular, para estudos do estado de heterozigotia, ou testes pré-sintomáticos, quando não existe uma vantagem clínica imediata que justifique a realização dos testes. Consanginidade > quando um casal partilha ascendentes comuns. Cromossoma > estrutura intracelular que contém o material hereditário do indivíduo. A capacidadede coloração deve-se à cromatina. Diplóide > diz-se de uma célula que possui uma série dupla de cromossomas homólogos. Enzima de restrição > grupo de enzimas de origem bacteriana que corta o ADN em sequências específicas. Exão > segmento do gene que regula a sequência de aminoácidos duma proteína. Expressividade > a intensidade com que se exprime um determinado fenótipo. Fenótipo > características físicas de um indivíduo; representa a interacção entre o património genético do indivíduo e os factores ambientais. FISH > “Fluorescente in situ hybridization”; é um método da GLOSSÁRIO Ácidos nucleicos > constituintes da célula viva (essencialmente genética laboratorial. Genómica > estudo do genoma e da sua acção. do núcleo), que contêm uma base púrica, um açúcar e áci- Genótipo > toda a informação genética contida no ADN do in- do fosfórico (sob a forma de éter). Existem 2 tipos: o ácido divíduo, que inclui o ADN existente nos cromossomas, nas desoxirribonucleico (ADN) e o ácido ribonucleico (ARN). mitocôndrias e noutros organelos intracelulares. 90 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Gene > unidade essencial do material hereditário (segmento de ADN) que codifica um produto que vai desempenhar uma função. Gonossoma > cromossoma sexual, o X ou o Y. Transcrição > processo pelo qual um gene se expressa num ARN mensageiro. Transgene > gene que foi incorporado no genoma de outro organismo. Haplóide > diz-se de células que possuem apenas um exem- Triploidia > situação de um núcleo, de uma célula, ou de um plar de cada um dos cromossomas próprios da espécie (23 organismo cujo complemento cromossónico inclui três na espécie humana). Os gâmetas são haplóides. genomas haplóides. A triploidia é uma das formas fre- Haplotipo > sequência de locus com proximidade num cromossoma que tendem a ser herdados em conjunto. Hereditabilidade > proporção da variância total de uma característica que é causada pelos genes. Heterozigoto > ter uma forma alélica deferente de um gene, quentes de poliploidia. Tripleto > grupo de três bases púricas (ou purínicas) ou pirimídicas na molécula de ADN ou ARN, que condiciona a incorporação de (codifica para) um aminoácido específico na molécula de uma proteína. Sinónimo de codão. em locus homólogos; isto é, 2 genes diferentes, com a mesma localização em cromossomas homólogos. Homozigoto > ter a mesma forma alélica nos dois locus homólogos; isto é, 2 genes idênticos com a mesma localização em cromossoma homólogos. Intrão > segmento do gene que intervém na (ou concretiza) sequência de aminoácidos duma proteína. Limiar > valor do efeito cumulativo dos factores genéticos, que permite a ocorrência de uma característica multifactorial. Linkage > situação em que genes, localizados com grande proximidade, tendem a ser co-herdados. Locus > a localização específica de um gene específico num cromossoma. Mutação > alteração espontânea que ocorre no material hereditário. Parentesco em 1.° grau > indivíduos que partilham 50% do património genético: pais, irmãos, filhos. BIBLIOGRAFIA (capítulos 12 a 17) Braude P. Preimplantation diagnosis for genetic susceptibility N. Engl J Med 2006; 355: 541-543 Burton PR, Tobin MD, Hopper JL. Key concepts in Genetic Epidemiology. Lancet 2005; 366: 941-950 Christensen K, Murray JC. What genome – wide association studies can do for Medicine. N Engl J Med 2007; 356: 10941097 Day INM, Wilson DI. Genetics and cardiovascular risk. BMJ 2001; 323: 1409-1412 Ensenamer E, Reinke SS, Ackerman MJ, Tester DJ, Whiteman DAH, Tefferi A. Primer on medical genomics. Part VIII: Essentials of Medical Genetics for the Practicing Physician. Mayo Clin Proc 2003; 78:846-857 Gosden RG, Feinberg AP. Genetics and Epigenetics – Nature´s Pen-and-pencil set. N Engl J Med 2007; 356: 731-736 Parentesco em 2.° grau > indivíduos que partilham 25% do Harper S, Hauser MA, DelloRusso C, Duan D et al. Molecular património genético: meios-irmãos, avós, tios, sobrinhos, netos. flexibility of dystrophin: implications for gene therapy of PCR > técnica de biologia molecular que permite amplificar se- Duchenne muscular dystrophy. Nature Med 2002; 8: 253- lectivamente sequências de ADN (Reacção da polimerase em cadeia ou Polymerase Chain Reaction). Penetrância > expressão da frequência com que ocorre determinado fenótipo, quando um dos alelos tem uma mutação. Polimorfismo > característica genética em que existe mais de uma forma comum na população. Portador > indivíduo heterozigo em que um dos alelos tem uma mutação de uma doença autossómica recessiva. 261 Shachan, T Read AP. Human Molecular Genetics. New York: John Wiley & Sons. 1999 Shastry BS. Schizophrenia: a genetic perspective (review). Int J Mol Med 2002; 9: 207-212. World Health Organization. Genomics and world health- the advisory committee on health research. Geneve: The World Health Organization, 2002. Proteonómica > técnicas que estudam as proteínas produzi- Zletogora J. Parents of children with autosomal recessive dis- das pelo genoma e como interagem para determinar as orders are not always carriers of the respective mutant funções biológicas. allels. Hum Genet 2004; 114: 521-526 Susceptibilidade genética > representa a predisposição para a ocorrência de determinada doença pela presença de um alelo particular ou combinação de alelos. Telómero > a extremidade natural de um cromossoma. Tradução > processo pelo qual uma cadeia polipeptidica se origina a partir de um ARN. CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 91 18 ANOMALIAS CONGÉNITAS Maria de Jesus Feijoó Definição Num sentido lato, anomalias congénitas (AC) são erros de desenvolvimento, presentes desde o período embriofetal e manifestando-se por alterações estruturais, funcionais ou bioquímicas, que podem ser detectadas ao nascer ou mais tardiamente. A sua etiologia é heterogénea, inerente ao feto como no caso das anomalias cromossómicas ou génicas, ou exterior a ele como no caso de factores físicos, infecciosos, bioquímicos ou outros. Muitas vezes pode haver acumulação de factores como no caso da chamada etiologia multifactorial. Num conceito mais restrito, o termo refere-se a um defeito estrutural de instalação embriofetal, reconhecido ou não ao nascer, e de etiologia variável. Importância do problema A ocorrência de AC está documentada desde os tempos mais remotos da Humanidade, em muitos textos da Antiguidade, sendo inúmeras as suas representações na Arte em todas as civilizações. A explicação das suas causas bem como o comportamento da sociedade variaram naturalmente de acordo com as várias culturas e o momento da História. Mas foram os enormes avanços da Genética Médica alcançados nas últimas décadas, e o reconhecimento de factores nocivos do ambiente como causa de anomalias congénitas, que tornaram possível não só os conhecimentos que hoje temos da sua etiologia e epidemiologia, bem como a utilização de métodos de prevenção cada vez mais eficazes. Hoje as AC são um problema de Saúde Pública e a sua incidência é tanto mais elevada quanto menor for a idade gestacional considerada. Se no período pré-natal é difícil quantificar a sua im- FIG. 1 Anomalias congénitas comparadas a um iceberg: evidentes e não evidentes. portância devido ao elevado número de perdas embrionárias e fetais por AC, elas são relativamente frequentes e preocupantes no período pós--natal, uma vez que 2 a 3 por cento dos recém-nascidos vivos têm uma ou várias AC de gravidade muito variável, o que justifica frequentemente o recurso a internamentos hospitalares prolongados; constituem, efectivamente a segunda causa de mortalidade perinatal. Numa avaliação da mortalidade infantil em Portugal nos anos de 1991 a 1993, L Nunes e MCA Carvalho encontraram uma percentagem de 27,3% de óbitos no primeiro ano de vida e de 15% entre 1 e 4 anos, devidos a AC. É, no entanto, de prever que a criação e desenvolvimento de Centros de Diagnóstico Pré-natal bem organizados e equipados venham a ter, cada vez mais, um impacte considerável sobre a prevenção de anomalias graves e não tratáveis no recém-nascido. Na Figura 1 está representada a clássica comparação das AC com um iceberg. As que se eviden- 92 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ciam após o nascimento, representadas pela parte visível da massa gelada, são apenas uma pequena parcela da realidade. Na verdade, a maioria das AC, particularmente as mais devastadoras, são letais no período pré-natal: – cerca de 40% dos zigotos não sobrevivem devido a erros de desenvolvimento, particularmente durante as primeiras oito semanas; – 2 a 3% dos recém-nascidos (RN) têm anomalias congénitas, a maioria das quais de natureza genética; – das mais de 4000 doenças mendelianas indexadas no catálogo de doenças hereditárias de McKusick, cerca de 1900 têm alterações da morfogénese, sendo para cima de 1000 as descritas com conjuntos malformativos complexos. Factores etiológicos O Quadro 1 resume os factores etiológicos mais frequentemente implicados: genéticos e ambientais (teratogénicos), por vezes associados; pode concluir-se que, na maioria dos casos não é possível identificar o factor causal. No Quadro 2 são referidos alguns exemplos de factores teratogénicos. 1 – Desenvolvimento embriofetal normal e patológico – Breves conceitos O genoma que o zigoto recebe dos seus progenitores constitui um conjunto de regras que permite construir um embrião. Essas regras, que constituem o mecanismo regulador do desenvolvimento embrionário, estão na base de uma sucessão muito complexa de acontecimentos minuciosamente programados no tempo e no espaço. Desses acontecimentos fazem parte processos tão importantes como a divisão celular, a adesão celular, a indução, a migração das células, a apoptose, o crescimento e a diferenciação. Os genes são as “ferramentas” moleculares responsáveis pela organização de toda a morfogénese e estrutura cromossómica. Convém, no entanto, ter sempre presente que num cariótipo se vêem os cromossomas mas não se visualizam os genes . Cabe à biologia molecular explicar como a informação unidimensional contida na cadeia de ácido desoxirribonucleico (ADN) origina uma informação tridimensional (proteína) responsável pelas QUADRO 1 – Anomalias congénitas – Etiologia Etiologia • Factores de Ambiente (Teratogénicos) (~10%) • Factores Genéticos (~10-25%) – Determinação poligénica – Genes mutantes – Desequilíbrio genético (anomalia cromossómica) • Factores Ambientais e Genéticos • Factores Desconhecidos (~65-75%) Jones Kl, 1997 QUADRO 2 – Anomalias congénitas – Factores ambientais Factores Ambientais (Teratogénicos) • Germes Microbianos – Agentes TORCH – Vírus da varicela • Doenças Maternas – Diabetes mellitus – Fenilcetonúria materna – Hipertemia • Agentes Químicos, Físicos, Drogas – Álcool – Aminopterina e metotrexato – Anticonvulsantes – Dietilestilestrol – Lítio – Metil-mercúrio – Radiações – Tetraciclina – Talidomida – Análogos da Vitamina A (ácido retinóico) – Varfarina – Cocaína Jones Kl, 1997 transformações têmporo-espaciais que caracterizam o normal desenvolvimento do embrião. A partir do ovo, o embrião tem, pois, teoricamente todas as potencialidades para se desenvolver e crescer de uma forma harmoniosa e previsível. Esta evolução está dependente da interacção de factores genéticos específicos de cada indivíduo e de factores ambientais muito diversos com particular relevância para os factores nutricionais, endócrinos e metabólicos. CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 93 O programa de crescimento e desenvolvimento do embrião é muito preciso no que respeita ao tempo e ao espaço em que ocorrem os acontecimentos que irão transformar o ovo num recémnascido. Com uma frequência muito maior do que seria de esperar e do que seria desejável, existem falhas de natureza genética ou epigenética que conduzem a uma disrupção do programa estabelecido com consequências mais ou menos graves na estrutura e funcionamento do embrião. É muito útil para compreender a génese das anomalias congénitas, relembrar os fenómenos da fertilização e as fases do desenvolvimento embriofetal , caracterizadas por uma sucessão de estádios ininterruptos mas morfologicamente bem definidos. A fertilização é um fenómeno complexo de interacção entre um óvulo e um espermatozóide, veículos da informação genética materna e paterna, indispensável ao normal desenvolvimento do embrião e do feto. A fertilização tem como consequência a formação do zigoto, considerado como o ponto zero do desenvolvimento embrionário. Por vezes, a informação que chega ao zigoto, quer por via materna, quer por via paterna, contém erros de natureza génica ou cromossómica, responsáveis pela génese de anomalias congénitas de natureza e gravidade muito variáveis. Assim, as anomalias cromossómicas de número (devidas a não-disjunção meiótica), as anomalias cromossómicas de estrutura e as mu- tações génicas, podem chegar ao zigoto por via materna, paterna, ou ambas simultaneamente. A anomalia cromossómica mais frequente no RN vivo é a trissomia 21, (Figura 2) que pode revestir a forma de trissomia livre (Figura 2 A) ou de trissomia por translocação (translocação 21/14 na Figura 2B). Neste último caso é necessário provar se a anomalia é herdada de um dos progenitores ou se é uma situação de novo a fim de poder calcular riscos de repetição. FIG. 2A FIG. 2B Trissomia 21 – Cariótipo (forma livre). Trissomia 21 – Cariótipo (translocação: 21/14). FIG. 2 Caso de trissomia 21 (fácies). 94 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Mas a não-disjunção pode também ser mitótica (pós-zigótica) conduzindo à formação de mosaicos. De igual modo, as mutações génicas podem aparecer só nas primeiras fases do desenvolvimento, com consequências variáveis em termos de expressão fenotípica. Nas primeiras 24 horas que se seguem à fusão dos pronúcleos feminino e masculino, inicia-se uma série de divisões mitóticas de forma que no 4ºdia existe um conjunto de 32 células constituindo a mórula. Na fase de mórula, cada uma das células que a compõem pode exprimir todo o potencial genético do novo indivíduo e uma só célula pode dar origem a um indivíduo. Estas células pluripotenciais totipotentes, quando confrontadas com erros genéticos ou agressões ambientais, têm uma grande capacidade de se intersubstituir podendo, assim, compensar esses erros. Se não forem capazes de o fazer, o destino do embrião será a morte. Este fenómeno que é conhecido como “a lei do tudo ou nada”, tem muita importância quando é necessário avaliar o risco de aparecimento de anomalias congénitas em caso de agressão teratogénica nesta fase do desenvolvimento. A partir do 4º dia de vida a mórula começa a absorver líquido dando lugar à formação de uma cavidade interna; toma então o nome de blastocisto que se vai implantar na parede uterina por volta do 6º dia. No fim da primeira semana o embrião é unilaminar. Entretanto a capacidade totipotente das células perde-se e, com o blastocisto, começa uma fase de especialização celular. As células tornam-se pluripotentes, isto é, são capazes de se diferenciar em quase todos os tecidos embrionários excluindo a placenta e anexos. A partir da segunda semana dá-se a formação do embrioblasto, cujo destino é o desenvolvimento do embrião e do trofoblasto originando o desenvolvimento da placenta. No fim da segunda semana o embrião é bilaminar. Durante a terceira semana forma-se o embrião trilaminar com o disco embrionário tridérmico que dará origem à ectoderme, mesoderme e endoderme e, posteriormente, a todos os tecidos e órgãos definitivos. Durante a quarta semana do desenvolvimento têm lugar transformacões muito complexas e rápi- das que marcam a passagem para a organogénese. A estas quatro primeiras semanas, em que se dão os acontecimentos mais importantes em termos de desenvolvimento embrionário, dá-se o nome genérico de blastogénese. Embora muitos embriologistas não atribuam muita importância à individualização destas primeiras quatro semanas no contexto da embriogénese, o facto é que o seu conhecimento é indispensável para compreender a génese das anomalias congénitas. Assim, é nesta fase que se estabelecem os campos de desenvolvimento, os eixos do embrião, a linha média, a lateralidade e a segmentação, que ocorre a neurulação, a cardioangiogénese, a mesonefrogénese e aparecem os esboços dos membros. A placenta, que também inicia a sua formação durante a blastogénese é naturalmente determinante para a sobrevivência do feto (ver adiante). Os campos de desenvolvimento têm um enorme interesse na compreensão da génese das anomalias congénitas. Os defeitos mais graves do desenvolvimento estabelecem-se na blastogénese. Os erros ocorridos nesta fase podem naturalmente dar origem à morte do embrião, ou mais tardiamente do feto, mas podem também conduzir ao nascimento de crianças com anomalias congénitas gravíssimas interessando um ou mais campos de desenvolvimento. A partir da quinta semana começa a organogénese que decorre entre o 28º e o 56º dias. São outras quatro semanas, durante as quais se vão formar todos os órgãos, organizando-se em aparelhos ou sistemas. Nesta fase cada órgão e cada sistema tem um momento ou período crítico de formação cujo conhecimento volta a ter muita importância na avaliação do risco teratogénico. Na organogénese distinguem-se dois processos fundamentais: a morfogénese – formação dos órgãos – e a histogénese – diferenciação das células e organização dos tecidos. No fim da oitava semana termina organogénese, última fase embriogénese. O período entre as nove semanas e o nascimento, (período fetal) é dominado pelo crescimento e maturação do feto. A fenogénese, terceira e última parte do desenvolvimento, prolonga-se para além da vida fetal terminando quando se atinge a maturidade sexual. CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 95 FIG. 3 FIG. 4 Sirenomelia / Embriopatia diabética. Embriofetopatia alcoólica. Nas Figuras 3 e 4 são apresentados alguns exemplos de anomalias congénitas. hipótese de embriofetopatia alcoólica. A história revelou gravidez não vigiada e mãe com hábitos alcoólicos muito acentuados. Neste caso a valorização de uma anomalia minor foi o fio condutor para o diagnóstico. O efeito do álcool teve o seu início na embriogénese (cardiopatia) e prolongou-se pela fenogénese com evidência de uma anomalia minor (lábios finos). Diagnóstico – Embriofetopatia alcoólica Figura 3 Feto com 20 semanas de idade gestacional, em que se verifica um único membro inferior constituído por 3 segmentos. O exame radiológico identificou um único fémur alargado e achatado com 2 côndilos, 2 rótulas, 2 tíbias e ossos de pé rudimentares. Havia também imperfuração anal, agenésia renal bilateral e agenésia do útero e restantes estruturas do aparelho genital. A história revelou diabetes insulinodependente e gravidez seguida de forma irregular. Trata-se de um defeito da blastogénese. Diagnóstico – Embriopatia diabética e regressão caudal com sirenomelia. Figura 4 Feto com 20 semanas de idade gestacional, com cardiopatia congénita. A existência de lábios muito finos num feto de raça negra levou-nos a pôr a 2 – Campos de desenvolvimento e sua relação com a génese das anomalias congénitas Na primeira metade do século XX os trabalhos de embriologia experimental de H Spemann e JS Huxley introduziram a noção de campo de desenvolvimento. Em 1982 JM Opitz propunha a sua aplicação em genética clínica e, a partir desse ano, um grupo de trabalho internacional propunha uma nova terminologia para os erros da morfogénese adoptando o conceito de campo de desenvolvimento para explicar a génese da maioria das anomalias congénitas. 96 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Assim, um campo morfogenético ou de desenvolvimento é constituído por uma parte do embrião representando uma unidade coordenada de indução embrionária da qual resulta um conjunto de estruturas anatómicas. Daí decorre que o campo de desenvolvimento é a unidade fundamental do desenvolvimento, também definida como uma unidade reactiva que responde de forma idêntica a agressões diferentes, como anomalias cromossómicas, mutações génicas ou teratogénios. Na fase inicial da blastogénese a totalidade do embrião constitui um campo de desenvolvimento primário que contém em si próprio o modelo geral do desenvolvimento. Gradualmente, o campo primário divide-se em vários campos progenitores, que são os primórdios das estruturas definitivas. Os campos progenitores, por sua vez, dão origem aos campos secundários que, já durante a organogénese, serão os responsáveis pelas estruturas finais e irreversíveis do embrião. Todo este processo aparece, pois, como um conjunto de acontecimentos em cascata e as anomalias serão tanto mais graves e diversificadas quanto mais precoce for o momento em que o erro acontece. Nesta perspectiva, os erros ocorridos na blastogénese durante o estabelecimento dos campos progenitores, devido à sua proximidade e à partilha de mecanismos moleculares, originam anomalias que afectam estruturas diferentes em várias regiões do corpo; são referidas como defeitos politópicos de campo, isto é, envolvem dois ou mais campos progenitores. As anomalias da blastogénese são heterogéneas do ponto de vista etiológico, graves e altamente letais, com baixo risco de recorrência e afectando predominantemente as estruturas da linha média. Um mesmo conjunto malformativo pode ter etiologias diversas uma vez que o campo de desenvolvimento reage da mesma maneira a agressões diferentes. Uma excelente revisão de J. Opitz refere uma extensa lista de anomalias a incluir como defeitos da blastogénese, em que sobressaem a gemelaridade monozigótica, os defeitos politópicos de campo, as associações, as anomalias aparentemente monotópicas mas com provável origem na blastogénese e as anomalias da formação do cordão umbilical e da placenta. Por outro lado, os erros ocorridos durante a organogénese nos campos secundários originam anomalias limitadas a uma só estrutura ou região do corpo, sendo referidos como defeitos monotópicos de campo. São exemplos as anomalias localizadas tais como fenda palatina, hipospádia ou polidactilia. Mesmo assim, embora se venham a manifestar durante o período da organogénese, a sua origem real pode ter sido durante a blastogénese. Findo o período da embriogénese, correspondente às oito primeiras semanas de vida do embrião, as estruturas embrionárias estão formadas de uma forma irreversível e assume-se que já não será possível o desenvolvimento de anomalias estruturais graves (ou major). Durante a fenogénese é possível o aparecimento de anomalias ligeiras (minor); refere-se que pequenas dismorfias faciais podem tornar-se aparentes apenas em fases mais tardias do desenvolvimento embrionário. As anomalias cromossómicas, que produzem os seus efeitos desde a blastogénese, reunem frequentemente anomalias major e minor, o que significa que a sua acção se prolonga durante a fenogénese (ver adiante). 3 – O mapa génico das anomalias congénitas A enorme impacte que as técnicas de biologia molecular tiveram no estudo do genoma humano permitiram a construção de um mapa que identifica e localiza os genes em segmentos cromossómicos específicos. Dado que se trata de uma ciência sempre em expansão, qualquer livro estará sempre parcialmente desactualizado nesta matéria e a consulta de artigos “on-line” é indispensável para uma actualização permanente. Não cabe no âmbito deste trabalho uma referência extensa aos genes já identificados, mas pode-se dizer que mais de 50% das doenças que constam da última edição do indispensável livro “Smith’s Recognizable Patterns of Human Malformation” já têm genes identificados. Do conhecimento cada vez mais completo do funcionamento da embriologia molecular decorrem duas observações importantes que são a heterogeneidade alélica e a heterogeneidade génica de certas anomalias isoladas ou múltiplas. No primeiro caso, mutações diferentes no mesmo gene são responsáveis por fenótipos diferentes. São exemplos as mutações no gene GLI3 localizado no cromossoma 7, que são responsáveis CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 97 por doenças tão diferentes como a síndroma de Pallister-Hall, a síndroma de Greig ou certas formas de polidactilia isolada. Também a acondroplasia e o nanismo tanatóforo, situações até há pouco tempo consideradas independentes, dependem de mutações diferentes do mesmo gene localizado no cromossoma 4. No segundo caso, uma mesma síndroma com quadro clínico em tudo semelhante, pode ser devida a mutações em genes diferentes. Temos como exemplo a síndroma de Bardet –Biedl na qual já se demonstrou até Maio de 2005, a relação causal com vários genes diferentes localizados nos cromossomas 3, 4, 11, 14, 15, 16 e 20. Ao contrário do que alguns investigadores supunham, o conhecimento dos genes responsáveis pelas AC não diminuiu, mas aumentou a importância da observação clínica cuidadosa, assim como a responsabilidade do sindromalogista, que deve interpretar e construir um padrão de anomalias que possa conduzir a um diagnóstico. Só através deste será possível determinar qual o gene alvo que queremos encontrar. Disrupção – depende de um acidente grave (destruição) numa dada fase do desenvolvimento de uma estrutura do embrião até aí normal, de que resulta um defeito morfológico de um ou mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como consequência da existência de bandas amnióticas. Deformação – resulta da acção de forças mecânicas extrínsecas ao feto, que alteram o seu desenvolvimento normal, modificando a forma, o tamanho ou a posição da totalidade do corpo ou de parte dele. É o que acontece, por exemplo, como consequência do oligoâmnio. Displasia – quando há morfogénese anómala com alteração mais ou menos grave da organização celular de um ou vários tecidos. É o que acontece, por exemplo, nas displasias renais ou nas displasias ósseas. Classificação As AC podem ser únicas ou múltiplas. É neste último grupo que existe actualmente alguma confusão no que respeita à definição, nomenclatura e limites da variabilidade fenotípica. Para efeitos práticos as AC são divididas em major e minor. As anomalias ditas major são causa de perturbações funcionais ou estéticas de gravidade variável pelo que requerem cuidados médicos ou cirúrgicos como terapia curativa ou paliativa. As anomalias ditas minor são mais frequentes do que as major mas a sua presença não levanta problemas de natureza funcional ou estética, pelo que não requerem, em geral, qualquer intervenção terapêutica. No entanto, a sua valorização é importante, pois podem constituir um fio condutor para a procura de outras anomalias mais graves que podem ocorrer em conjunto, como é o caso das anomalias renais detectadas através da existência de anomalias minor dos pavilhões auriculares. Do ponto de vista qualitativo, é útil dividir as anomalias congénitas em quatro subgrupos: Malformação – consiste num processo anormal de desenvolvimento de natureza intrínseca responsável por um defeito morfológico de um ou mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como consequência de uma anomalia cromossómica. Por vezes é difícil distinguir estes grupos entre si. Mas essa distinção é indispensável em termos de aconselhamento genético uma vez que as formas de transmissão são diferentes, e diferente o risco de repetição. Em 1982 formou-se um Grupo de Trabalho Internacional (IWG) liderado por J Spranger que se debruçou sobre os erros da morfogénese, a sua definição e terminologia. Posteriormente, no Congresso Internacional de Genética reunido em Berlim, em 1986, o mesmo grupo clarificou e redefiniu esses conceitos, de acordo com o conhecimento da etiologia e patogenia dos conjuntos malformativos. Do ponto de vista quantitativo são consideradas as anomalias que contam do Quadro 3: hipo e hiperplasia, hipo e hipertrofia, atrofia, agenésia e aplasia. Estes conceitos têm-se revelado de grande utilidade quando se trata de compreender melhor as AC, calcular riscos de repetição e planear diagnóstico pré-natal em futuras gravidezes. São descritas quatro formas de conjuntos de anomalias (múltiplas): 98 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Alterações quantitativas da morfogénese Hipoplasia/Hiperplasia • Hipo ou hiperdesenvolvimento de um tecido, órgão ou organismo em função, respectivamente, do n.° diminuído ou aumentado de células. Hipotrofia/Hipertrofia • Hipo ou hiperdesenvolvimento em função das dimensões diminuídas ou aumentadas das células. Agenésia • Ausência de uma parte do corpo devido a ausência do “primordium” Aplasia • Ausência de uma parte do corpo por não desenvolvimento do “primordium” Atrofia • Diminuição das dimensões e/ou n.° das células de órgão(s) ou tecido(s) normalmete desenvolvido(s). Síndroma – define-se como um conjunto de anomalias relacionadas entre si, constituindo um entidade etiologicamente bem definida (génica, cromossómica, teratogénica), embora a patogenia nem sempre possa ser esclarecida. Daqui decorre que a trissomia 21 e a embriofetopatia alcoólica são exemplos de síndromas, e também que “síndroma de etiologia desconhecida”, frase tantas vezes utilizada, não tem sentido. Associação – define-se como a ocorrência de um conjunto de anomalias de uma forma mais frequente do que o acaso faria supor, e cuja etiologia e patogenia são desconhecidas. Este grupo poderia também ser designado como defeitos da blastogénese de natureza idiopática. Uma associação é habitualmente designada por acrónimos, como por exemplo a associação VACTERL (Vertebral, Anal, Cardiac, fístula Tráqueo-Esofágicas, Renal, Limbs) e a associação CHARGE (Coloboma, Heart, Choanal Atresia, Retardation, Genital, Ears). Mas a etiologia das associações tende naturalmente a ser esclarecida e quando isso acontece, a associação dá lugar a síndroma. Exemplo disso é o que aconteceu com a já mencionada associação CHARGE depois de recentes investigações demonstrando várias mutações no gene CHDZ localizado em 8q12, responsáveis por grande número de casos da associação CHARGE. Sequência – define-se como um conjunto de anomalias que tem a sua origem numa única anomalia que constitui o acidente primário e que é responsável por um conjunto de acontecimentos em cascata. A etiologia, conhecida ou não, é heterogénea e os mecanismos patogénicos são, evidentemente, conhecidos. Temos como exemplo o mielomeningocelo cuja sequência será: defeito de encerramento do tubo neural – desenvolvimento incompleto dos ossos da coluna vertebral com exteriorização da medula (anomalia de ArnoldChiari) – hidrocefalia e pés botos. Defeito Politópico de campo – este tipo de defeito já foi referido atrás; as anomalias relacionam-se com alterações de dois ou mais campos progenitores. As anomalias múltiplas, no seu conjunto, estão intimamente relacionadas com os campos de desenvolvimento e os seus erros. Avaliação clínica A avaliação clínica das anomalias únicas ou múltiplas, além do seu interesse académico, tem como objectivo último um diagnóstico que permita esclarecer os pais quanto às causas do seu aparecimento, à história natural da doença, à eficácia de eventuais terapêuticas médicas ou cirúrgicas, às formas de transmissão e riscos de recorrência e à possibilidade de eventual diagnóstico pré-natal numa futura gravidez. Este conjunto de actividades define o chamado aconselhamento genético; e para que ele seja possível, torna-se indispensável uma avaliação clínica pormenorizada e a utilização de meios complementares de diagnóstico adequados. O protocolo habitualmente utilizado no estudo e diagnóstico das anomalias congénitas não é diferente do habitualmente usado em Pediatria, mas envolve algumas particularidades relacionadas com a necessidade de construir um padrão dismorfológico que seja um fio condutor para o diagnóstico de uma entidade conhecida. Assim, o protocolo deverá incluir: 1 – história pessoal e familiar com representação gráfica da árvore genealógica. 2 – observação dos parâmetros de desenvolvimento físico, psicomotor e sensorial. CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 3 – observação e descrição da dismorfologia facial. 4 – observação e descrição pormenorizada das anomalias presentes. 5 – registo fotográfico da face e das anomalias relevantes. O estudo clínico orientará para os exames complementares necessários a cada caso, salientando-se: 6 – exame citogenético com eventual recurso a citogenética molecular. 7 – exame radiológico e outros registos imagiológicos. 8 – exames de natureza hematológica, bioquímica, enzimática ou outra. 9 – estudo génico orientado pela hipótese diagnóstica proposta para cada caso. Na observação de uma criança com AC reveste-se de particular importância a apreciação do seu aspecto geral (características faciais, forma do corpo, postura, movimento, linguagem e comportamento ), de forma a identificá-la por meio de uma comparação subjectiva com outras cujo diagnóstico é conhecido. Esta impressão global ou gestalt que se apoia no facto de as várias impressões isoladas (visuais, auditivas e outras) estarem de tal forma organizadas que são percebidas como um todo e não como fenómenos dissociados, leva-nos a identificar uma pessoa conhecida quando a vemos sem necessidade de analisar as suas várias componentes. A primeira tarefa do “especialista em anomalias da forma do organismo” ou dismorfologista é, pois, interpretar uma dada constelação de sinais observados no seu doente de forma a identificar uma síndroma, uma associação ou uma sequência. A parte mais difícil desta tarefa reside no facto de não haver, em geral, sinais patognomónicos, o espectro de anomalias poder ser restrito ou vasto dentro de uma mesma entidade, e várias doenças etiologicamente bem definidas partilharem anomalias comuns. A dismorfologia é uma ciência em evolução permanente. A indispensável definição de critérios mínimos e de limites para a expressão fenotípica de uma determinada entidade nem sempre tem reunido o consenso dos dismorfologistas. A tudo isto acresce a contínua publicação de casos clínicos cuja interpretação também nem sempre é coin- 99 cidente. Com algum sentido de humor, A Verloes apontava recentemente que os sindromalogistas se podem dividir: nos que separam entidades até aí bem definidas em vários subgrupos a que dão novos nomes (“splitters”); nos que reunem numa entidade única várias outras doenças até aí consideradas como independentes (“lumpers”); e nos que mudam certos conjuntos de anomalias de uma síndroma para outra (“cutters and pasters”). Num futuro próximo e à medida que se forem identificando os genes responsáveis pela génese das AC estes problemas vão perder a sua importância. Convém, contudo, não esquecer que, em termos de aconselhamento genético e de diagnóstico pré-natal, o reconhecimento clínico de uma entidade e o conhecimento da sua história natural terá sempre importância. Mutações diferentes no mesmo gene podem corresponder a situações clínicas de gravidade muito variável; e, se a variação intrafamiliar não é significativa, não é a presença de uma determinada mutação génica, mas sim o quadro clínico esperado, que poderá influenciar a decisão dos pais de optar por uma interrupção de gravidez. No contexto da observação clínica a apreciação das anomalias morfológicas faciais assume uma importância muito particular. Assim, em presença de uma criança dismórfica, o aspecto facial pode identificar uma determinada doença, reconhecer outra já vista anteriormente, mas não imediatamente identificável, ou simplesmente revelar uma situação completamente nova para nós. Nas situações difíceis, a comparação com outros casos publicados, o recurso a programas informatizados de diagnóstico diferencial com imagem, e a discussão clínica com outros colegas com experiência em dismorfologia, poderão ser de grande utilidade. Como noutras áreas da Medicina é preciso conhecer para diagnosticar. Convém ter sempre presente que, se por um lado, um diagnóstico correcto tem todas as vantagens não só em termos de uma adequada intervenção terapêutica como na dispensa de exames desnecessários, por outro lado um diagnóstico errado, por falta de experiência ou precipitação, pode ter consequências muito graves. Rotular uma criança com um diagnóstico que não corresponde à sua situação invalida uma eventual intervenção 100 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA terapêutica, multiplica múltiplas consultas e exames desnecessários e pode influenciar erradamente um casal quanto à sua vida reprodutiva. As consequências podem ser, pois, muito negativas. Nunca é demais salientar um aspecto que nos parece muito importante e tem certamente forte repercussão no aconselhamento genético aos pais e na decisão quanto a futuras gravidezes. Trata-se do empenho que deve ser posto no esclarecimento etiológico de um feto ou de um recém-nascido com uma situação malformativa muito grave mesmo quando a morte pareça ser inevitável. O que parece ser inútil revela-se extremamente útil para o futuro. O diagnóstico pré-natal, já abordado no capítulo sobre Genética, tem tido nos últimos anos um grande desenvolvimento como método de prevenção secundária de anomalias congénitas. Mas, se por um lado as anomalias que estiveram na origem da interrupção médica de gravidez necessitam de ser comprovadas, por outro tem-se verificado um enorme interesse dos pais em saber as causas da morte fetal e o grau de risco para futuras gravidezes. Isto levou ao desenvolvimento de uma actividade multidisciplinar que é a embriofetopatologia clínica. Esta actividade, ponto de encontro de patologistas, dismorfologistas, geneticistas, perinatologistas e obstetras, no contexto dos Centros de Diagnóstico Pré-natal, tem protocolos próprios. Se em linhas gerais são semelhantes aos descritos no protocolo anterior, para a avaliação clínica dos nado vivos, revestem-se, como é óbvio, de alguns aspectos particulares. Assim, mantêm-se os 5 primeiros pontos, com excepção naturalmente do desenvolvimento psicomotor, bem como do ponto 7. No que respeita ao ponto 6, está provado que a tentativa de efectuar estudo citogenético após a morte tem taxas de sucesso baixas e muito dependentes das condições em que as colheitas são realizadas. Daí que é da maior importância enquanto o feto está vivo, colher e armazenar produtos biológicos para estudos de biologia molecular, bioquímicos ou outros, que estão naturalmente comprometidos quando existe morte fetal, embora no caso da biologia molecular seja possível utilizar material fetal obtido em certas condições para armazenamento de ADN. Torna-se necessário, portanto, desenvolver protocolos de participação entre os especialistas acima referidos, de forma a tornar possível o diagnóstico da causa de morte fetal e o aconselhamento genético aos pais. (ver capítulo 17). Registos Nacionais e Internacionais Existem actualmente em muitos países registos da ocorrência e natureza das AC bem como das circunstâncias pessoais, familiares e ambientais do seu aparecimento. Estes registos têm como objectivo a determinação da prevalência nacional e regional das AC e a determinação das suas causas. Em Portugal, além de alguns Registos regionais ou de Registos nacionais por patologias, habitualmente sediados em Serviços Hospitalares, existe um Registo Nacional de AC da responsabilidade do Instituto Nacional de Saúde (Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas – CERAC), que teve o seu início em 1996. O CERAC é um registo de base populacional que recebe notificações de várias origens, principalmente dos Serviços Hospitalares de Obstetrícia, Pediatria e especialidades pediátricas, mas também de outros Serviços como Anatomia Patológica e Genética Médica. Os seus objectivos consistem em determinar a prevalência das AC e a sua distribuição geográfica por residência das mães, observar as suas variações e tendências espaciais e temporais e estabelecer um sistema de vigilância epidemiológica. São notificados todos os recém-nascidos vivos cujas anomalias sejam detectadas até ao final do período neonatal, as mortes fetais com anomalias e as interrupções de gravidez por patologia malformativa. São registadas as anomalias estruturais major mas não as minor quando isoladas (ver adiante). Até ao ano de 1999 a codificação das anomalias foi feita segundo a 9ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID 9), e a partir do ano 2000 segundo a 10ª revisão (CID 10). Durante o triénio 1997-1999 a cobertura populacional correspondeu a 75% do total de partos e a prevalência observada foi de 200 por 10000 nascimentos. A Figura 5 mostra a distribuição percentual de anomalias pelos grandes grupos da Classificação Internacional de Doenças (CID 9), bem como a respectiva média durante o triénio 1997-1999. CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 1 – Sistema nervoso central 2 – Aparelho ocular 3 – Aparelho auditivo 4 – Aparelho cardiovascular 5 – Lábio leporino/Fenda palatina 6 – Aparelho digestivo 7 – Genitais externos 101 8 – Aparelho urogenital 9 – Membros 10 – Aparelho músculo – esquelético 11 – Anomalias cromossómicas 12 – Aparelho respiratório 13 – Pele 14 – Outros Dados do CERAC: MJ Feijoó, 2000 FIG. 5 Distribuição percentual do número total de anomalias congénitas pelos grandes grupos da CID 9. Na Europa existem outros Registos de AC, nacionais ou regionais. O EUROCAT (European Registry of Congenital Anomalies and Twins) é um Projecto financiado pela Comissão Europeia, constituído por uma rede de vários Registos regionais europeus que trabalham com a mesma metodologia e publicam os seus dados em conjunto. Portugal colabora no Eurocat desde 1990 com a Região a sul do Tejo. É ainda de assinalar a existência de um importante Registo com uma participação populacional muito mais alargada, a International Clearinghouse for Birth Defects Monitoring Systems, que reúne vários países da Europa, Ásia e Américas do Norte, Centro e Sul. Prevenção Num contexto global da prevenção cabe aos profissionais de saúde que trabalham na comu- nidade um papel muito importante. O seu conhecimento da patologia familiar, das condições ambientais porventura perigosas em que decorre a vida das famílias e o papel que desempenham nas consultas de planeamento familiar, tornamnos interlocutores privilegiados no contexto das actividades que contribuem para a prevenção das anomalias congénitas. Se, pelo conhecimento do contexto familiar, os mesmos podem identificar anomalias ou síndromas hereditárias e situações de risco durante a gravidez e providenciar o recurso a consultas especializadas, por outro lado podem ter um papel decisivo na prevenção primária de algumas situações frequentes mas evitáveis. Assim, as embriopatias ocasionadas pela diabetes materna e pela rubéola, a embriofetopatia alcoólica e os defeitos do tubo neural, são exemplos destas situações nas quais o controle adequado da diabetes materna, a vacinação anti-rubéola 102 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA em tempo útil, o combate aos hábitos alcoólicos da mulher na idade reprodutiva e a administração de ácido fólico no período pré-concepcional são medidas decisivas para diminuir a morbilidade e a mortalidade de algumas anomalias congénitas. A prevenção de algumas anomalias congénitas é, pois, possível, mas seguramente exige um trabalho colectivo. Opitz JM, Zanni G, Reynolds Jr JF, Gilbert-Barness E. Defects of blastogenesis . Am J Med Genet 2002; 115: 269-286 Park SM, Marthur R, Smith GCS. Congenital Anomalies After Treatment for Infertility. BMJ 2006; 333: 665-666 Spranger J, Bernirschke K, Hall JG, Lenz W, Lowry RB, Opitz JM, Pinsky L, Schwarzacher HG, Smith DW. Errors of morphogenesis: Concepts and terms. J Pediatr 1982; 100: 160-165 AGRADECIMENTOS BIBLIOGRAFIA Agradecemos à Unidade de Fetopatologia do Hospital de Egas Cassidy SB, Allanson JE. Management of Genetic Syndromes. Moniz a cedência das imagens das Figuras 2 a 4, e ao Centro de Hoboken, NJ-USA: Wiley-Liss, 2005 Estudos e Registo de Anomalias Congénitas do Instituto Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas. Relatório de 1997 a 1999. Lisboa: Instituto Nacional de Saúde, 2003 Encha-Razavi, Escudier E. Embryologie humanaine, de la molécule à la clinique. Paris: Masson, 2001 Epstein CJ, Erickson RP, Winshaw-Boris A (eds). Inborn Errors of Development: The Molecular Basis of Morphogenesis. New York: Oxford University Press, 2004 Eurocat. Report 8: Surveillance of Congenital Anomalies in Europe, 1980-1999. University of Ulster, 2002. www.eurocat.ulster.ac.uk(acesso em Março 2008) Feijoó MJ. Dismorfologia Clínica. In Palminha JM e Carrilho EM (eds). Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2002 International Clearinghouse for Birth Defects Monitoring Systems. World Atlas for Birth Defects. Geneva: WHO, 2003 Jones KL. Smith’s Recognizable Patterns of Human Malformation. Philadelphia: Saunders, 1997 Laranjeira A, Clington A, Carvalhosa G, Henriques M, Amaral JMV. Anomalias congénitas em 30625 nascimentos consecutivos.Arq do H D Estefânia 1990; 5:159-164 Martinez-Frias ML, Frias JL, Opitz JM. Errors of morphogenesis and development field theory. Am J Med Genet 1998; 76: 291-296 Nunes L, Carvalho MCA. A contribuição das malformações congénitas para a mortalidade infantil em Portugal 1991-99. Saúde Infantil 1995;17: 47-52 OMIM-Online Mendelian Inheritance in Man. www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez (acesso em Março 2008) Larsen WJ. Essentials of Human Embriology. New York: Churchil Livingstone, 1998 Opitz JM. The development field concept in clinical genetics. J Pediatr 1982; 101:805-809 Opitz JM, Czeizel A, Evans JA, Hall JG, Lubinsky MS, Spranger JW. Nosologic grouping in birth defects. In Vogel F, Sperling K (eds). Human Genetics. Berlin: Springer Verlag, 1987 Nacional de Saúde a cedência da Fig. 1. PARTE IV Crescimento Normal e Patológico 104 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 19 CRESCIMENTO Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina Definição Crescimento significa aumento de volume e tamanho dos tecidos e órgãos como resultado do aumento do número e volume das células. Trata-se, pois, dum processo de modificação física desde a fecundação (ovo) até à idade adulta passando pelas fases de embrião, feto, criança e adolescente. O crescimento é indissociável da noção de desenvolvimento que, no sentido estritamente fisiológico significa modificação funcional das células, tecidos ou órgãos; de facto, as células crescendo diferenciam-se simultaneamente. Por razões didácticas estes dois tópicos são abordados separadamente. Em termos de prática clínica, crescer é, fundamentalmente, aumentar de peso, de estatura/altura (ou comprimento enquanto a criança não assume a posição bípede), e de perímetro cefálico; tais variáveis ou grandezas são mensuráveis. A antropometria ou somatometria surge neste contexto como método que utiliza técnicas com a finalidade de quantificar as dimensões corporais (crescimento) pela medição de parâmetros somáticos; para além dos já referidos, outros serão abordados adiante. A auxologia é a ciência multidisciplinar que estuda o crescimento físico na espécie humana. Aspectos da fisiopatologia do crescimento A regulação do crescimento é muito complexa, estando dependente, não só de factores endócrinos como a hormona de crescimento (growth hormone ou GH), de hormonas tiroideias, hormonas sexuais, neuromediadores, mas também de fac- Hipotálamo Gónadas GH Tiroideia Córtex SR IGF Paratiroideias Gravidez gemelar Pâncreas Nutrição e Má absorção Outras patologias Clima Genética Ambiente sócio-económico Psicoafectivos SNC FIG. 1 Factores que influenciam o crescimento. tores genéticos, metabólicos, psicossociais, etc.. A GH é uma hormona com 191 aminoácidos produzida pela hipófise sob controlo hipotalâmico; é mediada pelo IGF1 (insulin growth factor 1) verificando-se desde o nascimento à puberdade um aumento progressivo da sua produção. O hipotálamo produz não só a somatostatina ou SRIF (“somatotropin release inhibiting factor”) que inibe secreção de GH, como o GHRF ou “growth hormone releasing factor” que a estimula. A secreção de GH faz-se de forma pulsátil e predominantemente nocturna. A GH circula ligada a proteínas de ligação e, a nível periférico, liga-se ao seu receptor, levando à multiplicação dos condrócitos e à produção de IGF-I e da sua principal proteína de ligação (IGFBP 3) (BP ou “binding protein”). O IGF-I produzido, quer no fígado, quer localmente no tecido ósseo, irá induzir o crescimento. O IGF1 é influenciado por vários factores, como sejam o estado nutricional da criança, e circula ligado a proteínas transportadoras, a mais importante das quais é a IGF1-BP3. Como a GH tem uma libertação irregular, o doseamento do CAPÍTULO 19 Crescimento IGF1 e da IGF1-BP3 em conjunto, são indicadores mais fiáveis da produção. As hormonas tiroideias são essenciais para o crescimento pós-natal e também necessárias para a normal secreção. Os esteróides gonadais, sobretudo os estrogénios, pela sua acção sobre as cartilagens de crescimento, são responsáveis por cerca de metade do crescimento atingido durante a puberdade e permitem não só a maturação sexual como a esquelética. Fases do crescimento Tratando-se de um processo dinâmico e contínuo, o crescimento exterior, visível a “olho nu” acompanha-se do crescimento dos diversos órgãos e sistemas, ocorrendo em tempos diferentes. Por exemplo, 50% do crescimento craniano ocorre no 1º ano de vida enquanto o crescimento dos órgãos genitais externos só se verifica no período da puberdade. Descrevem-se quatro fases no crescimento: 1) pré-natal; 2) desde o nascimento até aos 2 anos; 3) dos 2 aos 9 anos; 4) depois dos 9 anos até ao final da puberdade. Estas fases, com velocidades de crescimento diferentes, estão sujeitas a diversas influências e vão condicionar de modo particular a estatura final. O crescimento in utero está dependente de influências, quer maternas, quer fetais. Ao nascer, o feto encontra-se já em fase de desaceleração do referido crescimento. A principal hormona responsável pelo crescimento fetal é a insulina, sendo o feto relativamente resistente à GH. O crescimento intra-uterino está mais dependente dos factores genéticos maternos do que dos paternos, razão pela qual o peso do recém-nascido tem, em mulheres com bom estado de nutrição, uma correlação positiva com a estatura materna. O crescimento do lactente (até 12 meses) é uma continuação do crescimento fetal, caracterizandose por uma velocidade de crescimento rápida (até 25 cm/ano), que diminui ao longo do tempo. O crescimento neste período é essencialmente dependente de factores nutricionais. A fase de crescimento infantil, iniciada por volta dos 12 meses de idade, é lenta (VC = 4-8 cm/ano) e torna-se praticamente constante a partir dos dois anos de idade. A sua regulação depende, sobretudo, de factores genéticos e da HC. 105 Na puberdade, última fase do crescimento linear, ocorre nova aceleração da velocidade de crescimento (10-12 cm/ano) predominantemente dependente da acção dos esteróides gonadais, continuando efectiva a acção da GH. Começa aos 1012 anos na rapariga, e aos 12-14 anos rapaz. O crescimento pubertário termina no final da maturação sexual, coincidindo com o encerramento das epífises ósseas. A avaliação do estádio pubertário (abordado noutro capítulo) é, pois, importante para interpretar a evolução do crescimento. A avaliação do crescimento dá uma boa indicação sobre o estado de saúde da criança. De salientar que uma agressão que se repercute sobre o peso e a estatura será necessariamente mais grave e prolongada do que aquela que apenas tem repercussão sobre o peso. Antropometria Para além do peso, comprimento ou estatura/altura e perímetro cefálico, outros parâmetros ou índices (estes últimos significando relação numérica entre duas grandezas ou parâmetros) podem ser utilizados para avaliação do crescimento, tais como: perímetro torácico, perímetro abdominal, relação peso/ altura, segmento superior (SS), segmento inferior (SI), relação SS/SI, envergadura e velocidade de crescimento. O SS é a distância entre o vértex (ou ponto mais elevado da abóbada craniana no plano sagital mediano, com a cabeça direita) e o cóccix, ou seja, a diferença entre o comprimento ou estatura e o SI. O SI mede-se pela distância entre a sínfise pública e o pavimento estando a pessoa com os membros inferiores bem estendidos. A relação SS/SI tem interesse clínico em situações acompanhadas de defeitos esqueléticos. Em condições de normalidade tal relação é tanto maior quanto menor a idade. No adolescente entre 16-18 anos é ~0,92. Envergadura é a distância máxima entre as extremidades dos dedos médios de cada mão (com os membros superiores estendidos na horizontal à altura dos ombros), isto é, paralelamente ao pavimento. Este parâmetro permite avaliar a relação entre o comprimento/altura e o comprimento dos membros superiores. 106 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Velocidade de crescimento corresponde ao incremento em centímetros e milímetros em determinado período (em geral 1 ano). Uma vez que medir é comparar, há que comparar a criança/caso-problema com outras crianças de uma população considerada normal através de curvas de percentis ou de média ± desvio padrão (DP) obtidas por estudos transversais ou longitudinais; e também estabelecer comparação com os achados da própria criança ao longo do tempo através, designadamente, dos registos efectuados no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil. As Figuras 2 a 13 representam curvas de crescimento em percentis em diversas idades relativas aos parâmetros peso, comprimento/altura, perímetro cefálico, relação peso/altura (relação peso em kg/altura ao quadrado em metros ou índice de massa corporal-IMC), utilizadas no referido boletim e divulgadas recentemente com autorização da Direcção Geral da Saúde (DGS), decalcadas do NCHS da OMS, actualizadas em 2002. As Figuras 14, 15 e 16 representam respectivamente as curvas de crescimento do perímetro cefálico e da velocidade de crescimento, reproduzidas de publicações da Sociedade Brasileira de Pediatria com autorização. Torna-se importante estabelecer com aproximação a correspondência entre curvas de crescimento com base em percentis e DP (desviospadrão): • + 1 DP <> percentil 85 • - 1 DP <> percentil 15 FIG. 2 Raparigas – Peso 0-24 meses. • + 1,6 DP <> percentil 95 • - 1,6 DP <> percentil 5 • + 2 DP <> percentil 3 • - 2 DP <> percentil 97 • + 3 DP <> percentil 99,7 • - 3 DP <> percentil 0,3 Como facto histórico refere-se que em 2000, o Center for Disease Control and Prevention (CDC) concluiu a construção de novas curvas de crescimento. Na Europa foram revistas entretanto as curvas de 1977 do NCHS quer para crianças pequenas (0-24-36 meses) quer para crianças mais velhas (2-20 anos) e foram criadas as curvas respeitantes FIG. 3 Raparigas – Comprimento 0-24 meses. CAPÍTULO 19 Crescimento FIG. 4 FIG. 6 Rapazes – Peso 0-24 meses. Raparigas – Perímetro cefálico 0-36 meses. FIG. 5 FIG. 7 Rapazes – Comprimento 0-24 meses. Rapazes – Perímetro cefálico 0-36 meses. 107 108 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 8 FIG. 10 Raparigas – Peso 2-20 anos. Rapazes – Peso 2-20 anos. FIG. 9 FIG. 11 Raparigas – Estatura 2-20 anos. Rapazes – Estatura 2-20 anos. CAPÍTULO 19 Crescimento 109 FIG. 14 Perímetro cefálico: Sexo feminino. FIG. 12 Raparigas – Índice de massa corporal 2-20 anos. FIG. 15 Perímetro cefálico: Sexo masculino. FIG. 13 Rapazes – Índice de massa corporal 2-20 anos. ao índice de massa corporal para a idade. Estas novas curvas, constituindo um instrumento de avaliação do crescimento e do estado de nutrição mais representativo da diversidade rácico-étnica e do perfil de aleitamento registados nos Estados Unidos, vieram substituir as curvas do NCHS de 1977. Foram tais curvas as que recentemente a Direcção Geral da Saúde adoptou para Portugal. As curvas até então em vigor no nosso país podem continuar a ser utilizadas, importando no entanto lembrar que a principal diferença, relativa às 110 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA acromegália e o gigantismo; este último é definido como situação clínica caracterizada por crescimento exagerado do esqueleto, tanto em altura como em largura, em comparação com o crescimento normal de indivíduos da mesma raça e idade. Gigantismo pode estar associado a perturbações endócrinas hipofisárias. A acromegália, em geral associada a adenoma da hipófise, é o aumento anormal das dimensões do nariz, orelhas, maxilar inferior, mãos e pés, relativamente ao resto do corpo. Outros métodos de avaliação do crescimento Para além da antropometria e de métodos bioquímicos, outros métodos poderão ser utilizados para avaliar o crescimento. Os que são mais frequentemente aplicados fundamentam-se na valorização de aspectos da semiologia (clínica e radiológica) do crescimento ósseo a saber: FIG. 16 Curva de velocidade de crescimento para a estatura considerando os diversos segmentos do corpo (SBP). novas curvas, se centra na evolução ponderal nos primeiros meses de vida, com valores superiores nos lactentes exclusivamente alimentados ao peito, seguida de uma ligeira desaceleração relativamente às anteriores curvas. O Quadro 1 concretiza os valores médios de crescimento linear por grupos etários. A velocidade de crescimento inferior a 4 cm/ano é considerada dado anómalo. Como exemplos extremos de anomalias do crescimento citam-se: por défice, a baixa estaturaabordada em ulterior capítulo; e, por excesso, a QUADRO 1 – Velocidade de crescimento linear Idade Velocidade de crescimento em cm/ano 0-12 meses 20-25 13-24 meses 12 25-36 meses 8 37 meses-idade pré-púbere 5-7 Idade púbere 8-10 Exame das fontanelas No lactente as fontanelas constituem um marcador do estado de ossificação do esqueleto. Considerando as seis fontanelas, a que mais interessa no âmbito do tópico em análise é a fontanela anterior ou bregmática. A sua exploração (que deverá ter sempre em consideração, em concomitância, o valor do perímetro cefálico) faz-se por palpação anotando-se em centímetros a medida das diagonais ântero-posterior e transversal. (ver capítulo Discranias). Dentição Este tópico é analisado na parte sobre Estomatologia Pediátrica. Determinação da idade óssea por método radiológico Através deste método procede-se ao estudo dos núcleos de ossificação e do estado de calcificação das áreas de junção diáfise – epífise dos ossos longos; com base na idade cronológica do caso-problema e estabelecendo comparação com tabelas, na prática procede-se à radiografia da mão e do carpo ou membro superior, em geral a partir do 1 ano; e do membro inferior desde o nascimento até àquela idade. Valoriza-se o aparecimento de CAPÍTULO 19 Crescimento QUADRO 2 – Comparação entre idade cronológica e idade óssea 111 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Pereira-da-Silva L, Virella D, Videira-Amaral JM, Guerra A. RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo 1 ano – Carpo: 3 núcleos; Tarso: 2 núcleos 2 anos – Cabeça do úmero; Carpo idem; Tarso: adição da epífise do perónio 3 anos – Carpo: adição do piramidal; Tarso: adição do 1º cuneiforme 4 anos – Carpo: adição de mais 1 núcleo; Tarso: adição de mais 2 núcleos 5 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos 6 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos núcleos de ossificação, assim como o seu tamanho, textura e contorno. Determinadas alterações podem conduzir ao diagnóstico de situações como, por exemplo, disgenésia no hipotiroidismo, em que se verifica atraso de crescimento ósseo. Em geral considera-se dentro da normalidade desvio de ± 20% da relação idade óssea-idade cronológica. (± 2 anos). Na prática clínica são mais frequentes as situações de atraso de ossificação (por exemplo, hipotiroidismo, prematuridade, etc.) relativamente às de avanço (por exemplo puberdade, hipertiroidismo, displasia fibrosa poliostótica de Albright, etc.). O Quadro 2 sintetiza a relação entre idade cronológica e o aparecimento sequencial de núcleos de ossificação (idade óssea desde o nascimento até aos 7 anos) o que implicará, por parte do leitor, a consulta de bibliografia suplementar. BIBLIOGRAFIA Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Guerra A. As novas curvas da OMS para avaliação do crescimento do lactente e da criança. Acta Pediatr Port 2006; 37: 109-112 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Antropometria no Recém-Nascido. Revisão e Perspectiva Actual. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007 Rudolph CD, Rudolph´´s Pediatrics. New York: McGrawHill, 2002 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 20 BAIXA ESTATURA Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina Definição e factores etiológicos A baixa estatura é definida como estatura inferior a 2 DP abaixo da média. As causas são múltiplas (Quadro 1); cerca de 80% dos casos corresponde a variantes da normalidade: baixa estatura familiar e atraso constitucional do crescimento. Assumir que baixa estatura traduz variante da normalidade é por vezes difícil, devendo sempre fazer-se com base na avaliação da integridade de todos os mecanismos de de crescimento. Avaliação No pressuposto de ter sido identificado a priori determinado caso de baixa extatura, com realização prévia da anamnese e exame objectivo, cabe salientar determinados aspectos a relevar neste contexto; é o que consta do Quadro 2. A medição correcta da criança, procedimento especificado nos livros de semiologia, constitui uma manobra fundamental, sendo necessário um observador treinado, um instrumento de medição adequado e a colocação da criança em posição correcta (deitada até aos 3-4 anos). Tal procedimento deverá ser sistematizado e continuado no tempo. Na avaliação de uma criança identificada como de baixa estatura devem considerar-se vários parâmetros, tais como idade estatural (IE), idade óssea (IO), velocidade de crescimento e estaturaalvo familiar. A idade estatural é a idade que, para a estatura da criança, corresponde ao percentil 50. A idade óssea é a idade a que corresponde a maturação óssea observada numa radiografia da mão e punho esquerdo da criança quando comparada com o Atlas de Greulich & Pyle. A velocidade de cresci- mento é o incremento em estatura por unidade de tempo (cm/ano), considerando-se que o intervalo mínimo para a podermos determinar com rigor é 6 meses. A chamada estatura alvo familiar permite corrigir a estatura da criança em função da estatura dos pais. Calcula-se da seguinte forma: Rapaz: (altura da mãe + 13) + altura do pai 2 Rapariga: altura da mãe + (altura do pai-13) 2 Na avaliação inicial de uma criança não se dispõe, muitas vezes, de estaturas anteriores, o que dificulta muito o estudo. É, por isso, muito importante registar sempre no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil todas as avaliações do crescimento realizadas. Com base nestes elementos é possível definir 3 padrões de crescimento diferentes: 1* Baixa estatura intrínseca 2* Crescimento “atrasado” 3* Crescimento “atenuado” Diagnóstico diferencial e exames complementares Os referidos padrões de crescimento permitem dirigir o diagnóstico diferencial e decidir sobre a necessidade da realização de outros exames auxiliares de diagnóstico (Quadro 3). Por outro lado, é também importante considerar se o peso se encontra mais ou menos afectado do que a estatura. Na primeira hipótese trata-se geralmente de doenças crónicas ou de suprimento calórico insuficiente. Na segunda hipótese, poderá tratar-se, com maior probabilidade, de causa endocrinológica. Outro dado importante do exame objectivo é verificar se a normal proporcionalidade entre os vários segmentos se encontra ou não mantida; a existência de desproporção apontará para displasia óssea ou síndroma de raquitismo. A existência de dismorfias levará a admitir uma das várias síndromas acompanhadas de baixa estatura. Em todas as crianças com estatura entre o percentil 3 e o percentil 1 e IO IE < IC, para além da anamnese e exame objectivo exaustivos, haverá que Ⲙ 112 CAPÍTULO 20 Baixa estatura 113 QUADRO 1 – Causas de baixa estatura I. Baixa estatura intrínseca A. Genética a) Familiar b) Anomalias cromossómicas – trissomia 13, 18, 21 – 45 XO e variantes c) Displasias esqueléticas/condrodistrofias – acondroplasia – outras B. Restrição do crescimento intrauterino (RCIU) a) Associado a insuficiência placentar b) Associado a infecções intrauterinas c) Associado a outras anomalias somáticas i. Síndroma de Russell-Silver ii. Síndroma de Prader-Willi iii. Síndroma de Cornelia de Lange iv. Síndroma de Seckel v. Síndroma de Cockayne II. Atraso constitucional do crescimento e de maturação III. Doenças sistémicas A. Atraso de crescimento psicossocial B. Nutricionais 1. Kwashiorkor 2. Marasmo 3. Défice de zinco/ferro C. Gastrintestinais 1. Má-absorção a) Doença celíaca b) Doença inflamatória do intestino (enterite regional, colite ulcerosa) c) Fibrose quística 2. Doença hepática a) Hepatite crónica b) Doenças de armazenamento do glicogénio D. Cardiovasculares a) Cardiopatias congénitas graves cianóticas ou acianóticas b) Cardiopatias adquiridas (febre reumática) proceder a um conjunto de exames auxiliares gerais (a seleccionar em função do contexto clínico) para afirmar ou excluir causas patológicas que tenham como manifestação a baixa estatura (Quadro 4). Se os resultados obtidos forem normais, deverse-á esperar 6 meses para determinar a velocidade de crescimento. E. Respiratórias a) Asma b) Fibrose quística F. Renais a) Acidose tubular renal isolada ou associada a outras alterações da função tubular (Síndroma de Fanconi e variantes) b) Insuficiência renal crónica i. congénita: uropatia obstrutiva ii. adquirida: glomerulonefite crónica; pielonefrite crónica G. Hematológicas a) Anemias crónicas congénitas ou adquiridas H. Sistema reticuloendotelial a) Mucopolissacaridoses b) Gangliosidoses I. Endocrinológicas a) Hipopituitarismo b) Hipotiroidismo a) Raquitismo hipofosfatémico vitamino-resistente b) Diabetes insulinodependente mal controlada c) Pseudo-hipoparatiroidismo d) Hipercortisolémia e) Puberdade precoce f) Défice de hormona de crescimento (GH) i – genético: ausência do gene da GH; associado a défice de IgG; insensibilidade à GH do tipo da Síndroma de Laron; pigmeus africanos ii – adquirido J. Outras doenças crónicas a) Atraso mental L. Drogas (corticóides) IV. Erros inatos do metabolismo a) Aminoacidúrias e aminoacidémias b) Cetoacidúrias c) Outras doenças Em crianças que se apresentem com uma das seguintes condições: estatura inferior a -3 DP, crescimento com velocidade inferior ao percentil 25, IO com atraso superior a 2 anos em relação à IC, haverá que admitir e investigar causas gerais e endocrinológicas de baixa estatura, nomeadamente por défice de GH. 114 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Avaliação de uma criança com baixa estatura Anamnese e exame objectivo • Antecedentes familiares: – Estatura dos pais e irmãos (medir toda a família, se possível) – Puberdade dos pais e irmãos – menarca? início de barba? • Antecedentes pessoais: – Gestação – RCIU, ingestão de drogas, infecções? – Parto – pélvico? forceps? – Peso e comprimento ao nascer, índice de apagar – Problemas/anomalias congénitas detectadas durante o período neonatal? – Doenças anteriores – infecções urinárias de repetição, cardiopatias, infecções respiratórias de repetição, diarreia crónica, asma e seu tratamento (corticóides?) – Desenvolvimento psicomotor • Doença actual: – Construir a curva de crescimento anterior com base nos dados existentes no Boletim de Saúde Infantil – Revisão por sistemas e aparelhos, nomeadamente: sinais e sintomas de alteração da função tiroideia, lesão cerebral, fenótipo de síndroma de Cushing? • Exame objectivo: – Peso, estatura (comprimento/altura), relação peso/estatura – Proporção entre os vários segmentos (tronco, membros superiores e inferiores) – Estádio pubertário – Dismorfias (fenótipo sugestivo de síndroma de Turner na rapariga?) – descrever exaustivamente as alterações encontradas e, se possível, fotografar – Dentes – mudou já os caninos? incisivo central único? – Pressão arterial e frequência cardíaca – Palpação da tiroideia Seguidamente são descritas algumas situações clínicas acompanhadas de baixa estatura. 1. BAIXA ESTATURA FAMILIAR É uma das causas mais frequentes de baixa estatura. O seu diagnóstico é, no entanto, de exclusão e obriga ao seguimento continuado da criança ao longo do tempo, a fim de detectar atempadamente qualquer desvio. A estatura final de um indíduo tem uma forte influência genética. É na fase de crescimento infantil que essa influência é mais importante. Assim, uma criança com baixa estatura familiar nasce habitualmente com um peso e comprimento adequados à sua idade gestacional, sendo durante os dois primeiros anos de vida que cruza os percentis de estatura até estabilizar num percentil igual ou inferior ao 3, mas superior ao percentil 1. A partir de então a criança tem uma velocidade de crescimento normal e apresenta uma maturação óssea adequada à idade cronológica: o pico de crescimento e maturação pubertário ocorrem na idade habitual. Sintetizando, esta situação caracteriza-se por: – Antecedentes familiares de baixa estatura. – Comprimento ao nascer inferior à média, mas adequado no contexto familiar. – Curva de crescimento paralela à curva de percentis, com velocidade de crescimento normal. – Dados da anamnese irrelevantes e exame físico sem alterações fenotípicas (nomeadamente compatíveis com síndroma de Turner na rapariga) e sem sinais de doença sistémica. – Altura prevista de acordo com a estatura alvo familiar. – Idade óssea sem atraso significativo em relação à idade cronológica e atraso da idade estatural. – Estatura final correspondente à estatura alvo familiar. CAPÍTULO 20 Baixa estatura 115 QUADRO 3 – Padrões de crescimento e diagnóstico diferencial de baixa estatura (*) Padrão de crescimento Relação entre IC, IO e IE Velocidade de crescimento Diagnóstico diferencial Baixa estatura intrínseca IE < IO IC Normal • Baixa estatura familiar • Síndromas genéticas: – cromossomopatias – displasias ósseas – síndromas dismórficas • RCIU grave Crescimento “atrasado” IO Ⲙ IE< IC Normal • Atraso constitucional de maturação • Doença crónica ligeira • Má-nutrição ligeira Crescimento “atenuado” IO Ⲙ IE<< IC Abaixo do normal • Doença crónica grave • Má-nutrição grave • Doenças metabólicas e do equilíbrio ácido-base • Doenças endócrinas: – Défice de GH – Hipotiroidismo – Síndroma de Cushing – Hipogonadismo • Privação emocional e abuso Ⲙ (*)Adaptado de Rosenfield RL, 1996 ABREVIATURAS: IC: idade cronológica; IE: idade estatural; IO: idade óssea QUADRO 4 – Baixa estatura e exames complementares Sangue – hemograma completo e velocidade de sedimentação – creatinina, ionograma – pH e gases – cálcio, fósforo e fosfatase alcalina – provas de função hepática – anticorpos antigliadina e antiendomísio, etc. – T3, T4 e TSH – IGF-I e IGFBP3 – cariótipo ( nas raparigas ) Urina – análise sumária e urocultura Fezes – exame parasitológico das fezes com pesquisa de Giardia 2. ATRASO CONSTITUCIONAL DO CRESCIMENTO Trata-se duma situação de incidência familiar cujas causas não estão completamente esclarecidas. É possivelmente a segunda maior causa de baixa estatura. As crianças com esta situação caracterizam-se por terem somatometria ao nascer adequada à idade gestacional, cruzando habitualmente percentis nos anos pré-puberais. Verifica-se nestes casos um atraso da maturação óssea e sexual. O seu diagnóstico é também de exclusão, nomeadamente de formas ligeiras de doença crónica (doença de Crohn, doença celíaca, acidose tubular renal, etc.). Caracteriza-se por: – Antecedentes familiares de crescimento lento ou atraso pubertário, nomeadamente mãe com menarca tardia. – Comprimento ao nascer normal assistindo-se, depois, a uma diminuição lenta do crescimen- 116 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA to linear e ponderal até que, nos anos prépuberais, peso e estatura se encontram ambos abaixo do percentil 5. – Crescimento inferior ao percentil 3 mas superior ao percentil 1 e paralelo à curva de percentis, com velocidade de crescimento normal a partir da primeira infância e até à idade pubertária. – Na idade habitual da puberdade desaceleração da velocidade de crescimento. – O “pico” de crescimento pubertário ocorrendo tardiamente, pelos 14 anos nas raparigas e 16 anos nos rapazes. – Dados da anamnese e exame físico sem alterações. – Idade óssea com atraso significativo em relação à idade cronológica, e de acordo com a idade estatural. – Prognóstico de estatura de acordo com a estatura alvo familiar. – Estatura final normal. 3. DÉFICE DE HORMONA DO CRESCIMENTO (GH) O défice de GH é, na maior parte dos casos, idiopático. Pode associar-se a causas orgânicas tais como tumores cerebrais, em especial craniofaringeoma, intervenção cirúrgica e /ou irradiação do sistema nervoso central, alterações anatómicas, nomeadamente displasia septo-óptica e síndroma da sela turca vazia. Pode ainda resultar de um défice de secreção ou de alteração da acção da GH de causa genética. Manifestações clínicas O quadro clínico do défice de GH é variável consoante a idade da criança. Assim, no período neonatal o défice de GH acompanha-se de outros défices do eixo hipotálamo-hipofisário, traduzindo-se por hipoglicemia neonatal (défice de GH e ACTH / cortisol), micropénis (défice de gonadotrofinas) e icterícia neonatal prolongada. O quadro clínico de hipoglicemia associado a micropénis deve chamar a atenção para o diagnóstico de défice hipotálamohipofisário o qual se acompanha também de défice de TSH (hipotiroidismo de causa central). Esta situação, cujo tratamento urgente é fundamental, não é detectada pelo rastreio neonatal (diagnóstico precoce). Na criança mais velha o défice traduz-se por baixa estatura proporcionada e desaceleração progressiva do crescimento, geralmente sem quaisquer alterações do exame físico. Alguns casos apresentam obesidade troncular moderada (“aspecto de redondinho”), fácies de boneca, voz aguda, pele e cabelos finos, característicos do défice congénito de GH; nos antecedentes pessoais destas crianças encontra-se com maior frequência restrição de crescimento intra-uterino (RCIU), asfixia neonatal com índice de Apgar baixo, apresentação pélvica e parto por cesariana. O défice de GH pode associar-se a defeitos da linha média tais como incisivo central único, fenda palatina, lábio leporino, ou displasia septoóptica com nistagmo. Diagnóstico Face à suspeita clínica de défice de GH, a criança deverá ser dirigida a uma consulta de Endocrinologia Pediátrica, pois o diagnóstico implica, não só a verificação de critérios clínicos e auxológicos, mas também a comprovação dos resultados das provas de estimulação da produção de GH. A realização de RMN crânio-encefálica deve ser realizada em todos os casos de défice confirmado para estudo da região hipotálamo-hipofisária e exclusão de patologia do SNC, nomeadamente tumoral. Tratamento Em Portugal, o tratamento com GH está sujeito a critérios definidos, sendo os casos submetidos a avaliação por uma Comissão Nacional. A hormona de crescimento, biossintética, é administrada diariamente, em injecção subcutânea única, à noite, até ser atingida a idade óssea de 14 anos na rapariga, e 16 anos no rapaz. 4. SÍNDROMA DE TURNER Importância do problema A síndroma de Turner (ST) ocorre em 1/1500 a 117 CAPÍTULO 20 Baixa estatura QUADRO 5 – Manifestações clínicas da Síndroma de Turner FIG. 1 Síndroma de Turner. Pescoço curto alado/pterigium colli. (NIHDE) 1/2500 indivíduos do sexo feminino e deve-se a alteração numérica ou estrutural de um dos cromossomas X. Em 60% dos casos verifica-se a ausência de um dos cromossomas X, e em cerca de 20 % dos casos de ST existem anomalias estruturais de um dos cromossomas X: deleção do braço curto [p-] ou do braço longo (q-), cromossomas em anel, isocromossomas. Em 20 % dos casos também existe um mosaicismo em duas ou mais linhas celulares, podendo mesmo existir linhas com Y, a que se associa um risco acrescido de gonadoblastoma, obrigando a gonadectomia profiláctica. De referir que os mosaicos podem somente ser detectados se forem contadas mitoses suficientes ou se forem utilizadas técnicas avançadas de genética molecular (ver parte sobre Genética). Manifestações clínicas A baixa estatura é um sinal clínico major, encontrando-se em 95 - 100 % dos casos. O comprimento e o peso ao nascer são cerca de 48 cm e 2800 g em média, respectivamente. Ulteriormente, o crescimento processa-se a uma velocidade normal até cerca dos 3 anos, idade a partir da qual se assiste a uma diminuição progressiva daquela entre os 3 - 14 anos, não havendo também “pico” pubertário. Assim, sem tratamento, a estatura final (que só é atingida na terceira década e que depende também da estatura dos progenitores) é, em média, 143 cm, correspondendo o “efeito Turner” a uma perda de 20 cm. • Alterações do crescimento esquelético Baixa estatura 100 % Pescoço curto 40 % Alteração relação segmento superior/inferior 97 % Cubitus valgus 47 % Encurtamento dos metacárpicos 37 % Deformidade de Madelung 8% Escoliose 13 % Genu valgum 35 % Fácies característica: micrognatia 60 % palato em ogiva 38 % • Obstrução linfática Pescoço alado (pterigium colli) Inserção baixa do cabelo e orelhas rodadas Edema das mãos e pés Displasia das unhas Dermatoglifos característicos 42 % 22 % 13 % 35 % • Defeitos das células germinais Falência gonadal Infertilidade 96 % 99 % • Defeitos vários Estrabismo Ptose Nevi pigmentados múltiplos Anomalias cardiovasculares Hipertensão Anomalias renais e renovasculares 18 % 11 % 26 % 55 % 7% 39 % • Doenças associadas Tiroidite de Hashimoto Hipotiroidismo Doenças gastrintestinais Intolerância à glucose 34 % 10 % 3% 40 % 25 % As alterações cardiovasculares traduzem-se por cardiopatia congénita e hipertensão arterial. Os defeitos cardíacos ocorrem em cerca de 1/3 dos casos e atingem mais frequentemente o coração esquerdo: válvula aórtica bicúspide; coarctação da aorta; prolapso da mitral; mesocárdia e aneurisma dissecante da aorta. 118 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA As alterações renais verificam-se em 35 a 70 % dos casos (habitualmente rim em ferradura, rim pélvico unilateral e duplicação pielocalicial). Podem também existir anomalias renovasculares. Existe um grande número de doenças associadas, nomeadamente doenças autoimunes tais como tiroidite de Hashimoto, doença de Graves, vitíligo e também doutras doenças, por exemplo: doença de Crohn, colite ulcerosa, diabetes mellitus tipo 2 / intolerância à glucose. A forma de apresentação clínica é diferente consoante a idade da criança. No recém-nascido do sexo feminino, deve suspeitar-se de ST quando existe edema linfático das mãos e pés e “excesso de pele” na região posterior do pescoço ou pescoço alado (“pterigium colli”) (Figura 1). No lactente é o diagnóstico de coarctação ou estenose aórtica que levantará a suspeita, o que implica a realização de cariótipo. Em todas as crianças do sexo feminino com baixa estatura inexplicada dever-se-á considerar a possibilidade do ST. Numa adolescente com atraso pubertário (inexistência de botão mamário aos 13 anos), com paragem do desenvolvimento pubertário ou com amenorreia primária deverá também investigar-se esta patologia. O Quadro 5 sintetiza a frequência dos achados clínicos associados a Turner. Tratamento O tratamento compreende: • Administração de GH a iniciar a partir dos 2 anos de idade, diária, subcutânea, à noite; • Administração de estrogénios a iniciar em idade pubertária e no contexto do tratamento com GH; dose inicialmente baixa, aumentando progressivamente e associando-se ulteriormente progestagénio. BIBLIOGRAFIA Comissão Nacional de Normalização da Hormona de Crescimento (CNNHC). Avaliação de Crianças e Adolescentes com Baixa Estatura. Lisboa Ministério da Saúde 2004. Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Mahoney CP. Evaluating the child with short stature. Pediatr Clin North Am 1997; 34: 425-849, 1987 Mercedes O, Winhoven TMA, Onyango WA. Worldwide Practices in Child Growth Monitoring. J Pediatr 2004; 1444: 461-465 Mitchell H, Hindmarsh PC. Assessment and management of short stature. Current Pediatrics. 2000: 9: 237-41 Palminha JM, Carrilho E. Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2003 Raine JE, Donaldson MDC, Gregory JW, Savage MO, Hintz RL. Short Stature. Practical Endocrinology and Diabetes in Children. 2006; 3: 42-64 Rosenfield RL. Essentials of growth diagnosis. Endocrinol Metab Clin North Am 1996; 25: 743-758, 1996 Vogiatz MG, Copeland KC. The Short Child. Pediatrics in Review. 1998; 19: 92-99 Wright CM. The use and interpretation of growth charts. Current Pediatrics, 2002; 12: 279-282 PARTE V Desenvolvimento e Comportamento 120 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 21 DESENVOLVIMENTO Maria do Carmo Vale Conceitos fundamentais "Eu sou eu e as minhas circunstâncias..." Ortega e Gasset Em Pediatria, Desenvolvimento é definido geralmente como processo de aquisição de competências, habilidades e comportamentos cada vez mais complexos, o qual resulta da interacção de influências exteriores ao indivíduo com o próprio indivíduo congregando múltiplas potencialidades. Para que a criança e o adolescente rendibilizem plenamente as suas potencialidades, é necessária a existência de condições psicossociais entre as quais se destacam: • amor e afecto • meio familiar consistente e previsível propiciando a exploração e a descoberta. A assimilação de todos estes estímulos psicoafectivos pressupõe capacidade de interacção; e o processo que se designa por desenvolvimento processa-se à medida que a criança reage aos estímulos do ambiente e aprende a fazer exigências ao seu meio. A avaliação do referido processo tem como objectivo, não só a obtenção de um diagnóstico, mas também a avaliação do perfil das chamadas “áreas fortes” e “fracas”, quer da criança, quer da família e respectivos sistemas de suporte cultural, educativo e social, a fim de se efectuar a programação e integração das áreas a privilegiar. Uma das áreas que mais atenção tem suscitado é a perspectiva actual da criança como parceiro e modulador activo do seu meio social e cultural, e não como receptor passivo de socialização. Os diversos modelos biopsicossociais reconhecem actualmente que o Desenvolvimento é o pro- duto de uma herança genética (nature) e do ambiente (nurture). A investigação tem demonstrado o profundo impacte das primeiras experiências no desenvolvimento cerebral. O cérebro compreende, à nascença, 100 biliões de neurónios; cada neurónio desenvolve, em média, 15.000 sinapses até aos 3 anos de vida, que se mantêm estáveis até aos 10 anos, declinando depois o número dos mesmos. À medida que se formam novas sinapses, outras desaparecem, sendo este fenómeno condicionado pela menor utilização. Assim se explica a característica de plasticidade do sistema nervoso central (SNC) em caso de lesão estrutural: a exercitação de vias sinápticas acessórias viabiliza alternativas de crescimento e reforço sináptico e neuronal que poderão condicionar a substituição da função de células lesadas por outras células, vias e áres do sistema nervoso central, reactivando ou regenerando áreas silenciosas geradoras da recuperação total ou parcial. Esta capacidade é máxima durante os primeiros três anos de vida, reduzindo-se progressivamente até aos 10 anos, mantendo-se durante toda a vida, embora com cada vez menor impacte. A permanente experiência e aprendizagem do meio (nurture) influencia a estrutura cerebral gerada (nature). Também assim se compreende que crianças com diferentes talentos e temperamentos (nature) provoquem diferentes estímulos no meio (nurture) e que, face a estímulos ambientais idênticos, possam interpretá-los e a eles reagir de forma diversa. As experiências, quer sejam positivas ou negativas, influenciam a evolução e a capacidade adaptativa da criança aos futuros estímulos, isto é o seu desenvolvimento. São assim determinantes deste, as influências biológicas, ambientais, psicológicas e sociais, estas últimas designadas, mais apropriadamente, como condicionantes sociais. Para avaliar adequadamente progressos, identificar variantes, atrasos ou anomalias, aconselhar devidamente os pais e planear a intervenção, torna-se, pois, necessário que o pediatra, o clínico geral e os profissionais de saúde que prestam cuidados a crianças e adolescentes compreendam o sentido abrangente do termo Desenvolvimento e estejam a par das teorias, perspectivas e estratégias baseadas na evidência. CAPÍTULO 21 Desenvolvimento De salientar, em síntese, que a avaliação do desenvolvimento deve ser individualizada, dinâmica e compartilhada com a criança e sua familia. Influências psicológicas Erik Erikson identificou o primeiro ano de vida como o período de estabelecimento de uma ligação de confiança e afecto mútuo adquiridos através de resposta atempada e adaptada às necessidades e estímulos da criança. A noção de vinculação diz respeito à tendência do lactente em procurar a proximidade dos pais, quando colocado em risco, e à relação que lhe permite utilizar os pais como pessoas com capacidade para restabeler conforto, segurança e bemestar após uma experiência desagradável. Em todos os estádios evolutivos, a criança necessita de um adulto com quem estabeleça uma ligação afectiva electiva e que corresponda adequadamente aos seus reptos verbais e não verbais, mantendo simultaneamente um estado de receptividade e de auto-regulação da sua progressiva autonomia. Influências sociais e família como modelo ecológico O centro deste modelo pressupõe a existência de formas específicas de interacção entre a criança e o ambiente (os chamados processos proximais) que actuam através do tempo e são considerados prioritários para o desenvolvimento humano; naturalmente que estes ocorrem preferencial e electivamente no âmbito da interacção familiar. Exemplos paradigmáticos deste tipo de processos são os cuidados alimentares e de higiene prestados pela mãe ao recém-nascido e o reforço da díade e vinculação que proporcionam no dia a dia. Mais tarde será a actividade lúdica (só ou em grupo), a leitura, a resolução de problemas, a ideação e execução de planos, assim como a aquisição de novos conhecimentos. A família funciona como sistema com ligações internas e externas, subsistemas, papéis e regras de interacção. Em famílias com subsistema parental rígido e autoritário é geralmente negada à criança capacidade de decisão, incitando à rebeldia e desobediência, comparativamente a famílias com espa- 121 ço de comunicação e maior permeabilidade às opiniões e preferências da criança; neste último caso as circunstâncias que estimulam os filhos à criatividade e sentido de responsabilidade. Ou seja, para que uma criança se desenvolva é necessário que esta inicie uma actividade, que esta seja regularmente reactivada por períodos de tempo razoáveis e que haja reciprocidade nas permutas afectivas, lúdicas e sociais. Daí a necessidade de cuidadosa atenção à gama de estímulos presentes no meio ambiente geradoras de experiências e de novas aprendizagens. Os considerandos referidos integram a definição de ecossistema subdividido em micro e macrossistema. No primeiro incluem-se as características dos pais, amigos, professores, etc., que participam activamente na vida da criança, regularmente e por períodos extensos; e, no segundo, o padrão ideológico subjacente à organização política e socio-económica da sociedade em que estão inseridas. Mas, o modelo bioecológico é ainda mais abrangente ao englobar na estrutura do microssistema, não só a interacção com pessoas, mas também com objectos, símbolos, conceitos, critérios, estruturas e instituições que particularizam o ambiente nos denominados processos proximais, ampliando-o; constitui-se, assim, o macrossistema. Entre os dois sistemas, localiza-se mesossistema (ou exossistemas), que integra estruturas: em que a criança participa activamente, como a escola viabilizando e interacção com os pares; e estruturas que, sem intervenção directa, têm repercussão na qualidade de vida da criança – por exemplo a estabilidade laboral e económica dos pais, viabilizando disponibilidade e qualidade de cuidados parentais. Risco, resiliência e modelo transaccional (de transigência) Em Pediatria define-se risco como a presença de factores biopsicossociais adversos, e resiliência como a capacidade de resistir ou ultrapassar factores adversos ao longo do ciclo de vida da criança; por oposição à resiliência define-se vulnerabilidade como particular susceptibilidade aos referidos factores. O modelo proposto por Baltes defende que a criança é função da interacção entre as influências biológicas e sociais, sublinhando o papel de facto- 122 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA res normativos como a idade e época histórica vivenciada, e de factores não normativos relacionados com acontecimentos imponderáveis (doença grave e incapacitante, acidente, morte de progenitor, etc.). Exemplo de factores normativos relacionados com factos históricos e políticos é o das crianças que crescem em zonas de guerra, instabilidade política e económica geradoras de fome, angústia e amputadora de projectos de vida. Determinados factores como o temperamento e o estado de saúde influenciam o ambiente onde a criança cresce e se desenvolve; por sua vez a criança pode ser directamente afectada pelos condicionalismos ambientais daí decorrentes. Um recém-nascido (RN) prematuro evidencia longos períodos de sono e curtos períodos de vigília, hipotonia fisiológica e menor capacidade de fixação do olhar na face materna, choro débil e pouco frequente, comparativamente a um RN de termo (factores normativos). Este comportamento pode gerar curtos períodos de interacção e oportunidades de vinculação, eventualmente agravados e potenciados por depressão materna pós-parto. Pelo contrário, RN e lactentes com períodos de vigília mais longos e choro vigoroso, interpretados apelativamente pela mãe, proporcionam maiores oportunidades de interacção e vinculação da díade que, quando bem funcionantes e integradas, proporcionam elevado grau de satisfação e sensação de competência materna. Um outro aspecto é o da desvantagem social e da pobreza de certas crianças as quais são submetidas, designadamente, a maior exposição a factores de risco, quer biológicos como a desnutrição ou a intoxicação por agentes químicos, quer a dificuldades de acesso a oportunidades e experiências educativas (factores não normativos). Quando submetidas a programas de intervenção em tempo oportuno, intensivos e suficientemente prolongados (a que as famílias social e economicamente auto-suficientes têm acesso facilitado), as crianças de risco mostram uma marcada melhoria na sua trajectória de desenvolvimento, de capacidades. Assim, a privação e a desvantagem decorrem de uma complexa interacção entre factores de risco ecológicos, culturais, históricos, demográficos e psicológicos De referir que tem sido valorizada a importância de determinados factores protectores biológicos, tais como: carácter persistente, apetência por modalidade desportiva, quociente de intelegência elevado, comportamento cooperativo, eficácia, auto-estima, empatia, sentido de humor e capacidade de liderança, importantes . Alguns estudos sublinham ainda a importância de determinismos sociais como a existência de um adulto de referência – pais, avós ou professor – com quem a criança manteve ou mantém relacionamento electivo ou preferencial, bem como crença religiosa, contribuindo significativamente para o incremento da resiliência. BIBLIOGRAFIA Bronfenbrenner U, Morris P. The ecology of developmental processes in Gomes Pedro J. Stress e Violência na Criança e no Jovem. Departamento de Educação Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 1999 Gomes Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança e a familia no século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005 Kessen W. The Development of Behaviour in Levin MD, Carey WB, Crocker AC. Developmental - Behavioural Pediatrics Philadelphia: Saunders, 1999 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Texbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Magnussen D. Individual Development: A Holistic, Integrated Model Mohen P, Elder GH, Lusher K, Examinig Lives in Context: Perspectives on the Ecology of Human Development. Washington DC: American Psychological Association, 2003 Ministérios da Educação, da Saúde e do Trabalho e da Solidariedade. Despacho conjunto nº 891/99. Lisboa: INCM, 1999 Smith PK, Cowie H, Blades M. Learning in a Social Context. Oxford: Blackwell Publishers, 2001 Smith PK, Cowie H, Blades M. Understandig Children’s Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001 Smith PK, Cowie H, Blades M. Cognition Piaget’s Theory. Oxford: Blackwell Publishers, 2001 Vale MC. Autonomia em Pediatria. Tese de Mestrado. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2001 CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 22 DESENVOLVIMENTO E INTERVENÇÃO Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale Períodos, etapas e áreas de desenvolvimento É universalmente aceite que o desenvolvimento da criança se faz por etapas e que existem desempenhos característicos de cada idade. De acordo com certos autores (Piaget, Gesell, Freud, Winnicott) essas etapas têm fundamentos filosóficos diferentes e traduzem-se por aquisições em áreas ou domínio de funções diferentes do mesmo. A teoria desenvolvimentalista de Piaget, muito utilizada, baseia-se na interacção contínua do indivíduo com o meio, num processo de adaptação (acomodação-assimilação) e traduz-se por vários estádios que fornecem informação acerca de capacidades e limitações da criança numa dada idade. De uma forma geral, os períodos de desenvolvimento tendem a ser organizados em dois grandes grupos, do zero aos seis anos e dos seis aos 12 anos. Tal deve-se ao facto de, após os seis anos de idade, se considerar a escolaridade como indicativa do desenvolvimento em várias áreas, sendo o aproveitamento escolar demonstrativo de algumas aquisições, permitindo dar muita informação sobre a criança. No entanto, estas noções devem sempre ser encaradas de uma forma dinâmica e contextualizada, com o intuito de promover o acompanhamento da criança, e nunca de forma a estigmatizar as falhas e a impor um “rótulo”. É, por isso, fundamental ter a noção de que é essencial um suporte orgânico ou alicerce para o desenvolvimento, mas também que é a estimulação providenciada pelo meio que permite o desenvolvimento de potencialidades. As várias 123 aquisições fazem-se de acordo com a maturação orgânica e exigências exteriores, em sinergia e continuidade. Cada aquisição é fundamental para o desenvolvimento da seguinte, não só porque constitui o seu substrato, mas também porque funciona como fonte de estímulo para novas aprendizagens. Exemplo disto é a sequência sentar-se → elevação para posição bípede; o aumento do tono da coluna vai permitir uma elevação do campo da visão e necessariamente uma maior curiosidade pelo meio. Embora as habilidades e aquisições da criança devam ser entendidas num todo porque são interdependentes, a avaliação da criança deve ser realizada por áreas dado que este modelo permite uma maior pormenorização de tarefas e melhor sistematização das alterações quando estas existem. Deste modo e, independentemente da escala de desenvolvimento utilizada, são contemplados globalmente os seguintes parâmetros: • Autonomia pessoal e social – O desenvolvimento pessoal envolve uma grande variedade de habilidades que podem ser agrupadas em hábitos – alimentação, controlo de esfíncteres, e emoções – sorrir, noção de identidade. • Comunicação – A comunicação envolve mais competências não verbais, como as expressões faciais, gestos e movimentos posturais, bem como competências verbais. A comunicação está obviamente ligada à audição e à cognição na medida em que é a função intelectual que analisa, quer a linguagem compreendida, quer a linguagem expressiva. • Cognição – Esta área de desenvolvimento inclui o leque de atenção, a noção de permanência do objecto, a noção de causalidade, a imitação, a estruturação espacial-temporal e o jogo, sendo através deste que a criança recria o mundo que a rodeia, aprendendo a brincar e a jogar de formas cada vez mais complexas. A cognição relaciona-se com o desenvolvimento social e emocional, e os processos mentais superiores com o pensamento, memória e aprendizagem. • Motricidade grosseira – As habilidades motoras globais envolvem o movimento de grandes massas musculares e incluem o controlo postural e os padrões locomotores rudimentares – sentar-se, gatinhar, andar, 124 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA correr. Numerosos autores, especialmente Wallon, deram grande importância ao tono no desenvolvimento motor e psicológico. O desenvolvimento é acompanhado de um aumento do tono axial e processa-se a par da diminuição progressiva da hipertonicidade dos membros; é uma certa extensibilidade que permite o jogo harmonioso dos músculos para a realização das sinergias motoras. • Motricidade fina e visão – A motricidade, é o meio através do qual a consciência se edifica e se manifesta. Nesta perspectiva, a motricidade passa a ser compreendida nas estruturas associativas que a planificam, elaboram, regulam, executam e integram. O desenvolvimento das habilidades motoras finas (preensão, manipulação) é uma aquisição que distingue o ser humano das outras espécies animais. A visão está intimamente associada à motricidade fina, permitindo avaliar, entre outros, designadamente a capacidade visual, a persistência e a dominância (Quadro 1). QUADRO 1 – Etapas do desenvolvimento psicomotor (dos 3 aos 60 meses) Áreas/ Locomoção Pessoal e Social Audição e Linguagem Visão – manipulação Proezas e raciocínio Parâmetros Motricidade Autonomia pessoal Comunicação Motricidade fina Cognição Idades 3 meses global e social Eleva a cabeça Segue pessoa com o olhar Emite dois ou três sons e visão Move o olhar entre na posição dorsal Sorri em resposta Ouve música 2 objectos; Segue Resiste a que objecto lentamente tirem objectos Tira objecto da mesa a uma atitude 6 meses Brinca com os dedos Senta-se com suporte Manipula colher (a brincar) Emite mais de que Brinca com objecto Rola Bebe por caneca quatro sons Segue objecto a cair Tenta gatinhar Tira um chapéu Galreia Faz preensão fina Brinca com pedaço Fica sentado no chão Ajuda a segurar um copo Diz uma palavra nítida (“pinça” com o de papel polegar e indicador) Fica com objecto Responde quando chamado 9 meses Atira para fora objectos 12 meses 15 meses 18 meses 24 meses Gatinha Brinca com a colher Reage vocalmente Aponta um dedo (sabe função) à música Pega num lápis Anda com auxílio Bate palminhas Balbucia quando sozinho Anda sozinho Usa a colher sozinho Usa cinco palavras Coloca objecto Sobe escadas Abraça os pais Identifica objectos sobre o outro Põe e tira objectos Rabisca livremente de uma caixa Atira uma bola Tapa uma caixa Anda “marcha-atrás” Utiliza copo meio cheio Diz nove palavras Trepa cadeira Tira sapatos e meias Gosta de livros ilustrados Faz uma torre Chuta uma bola Ajuda a vestir-se/despir-se Sobe e desce escadas Consegue abrir a porta 48 meses 60 meses Salta com pés juntos Indica desejos Aponta uma parte com três cubos do corpo Nomeia quatro Atira uma bola ao cesto Desenrosca um frasco brinquedos Faz um traço horizontal Aponta quatro partes Usa frases 36 meses Cumpre ordem simples Diz o 1º nome quando pedido Nomeia doze objectos do corpo Faz uma torre com Sabe o que é dinheiro Equilibra-se com um pé Guarda os brinquedos Usa dois ou mais adjectivos oito cubos Distingue grande/ Copia um círculo pequeno Marcha com música Calça meias e sapatos Usa pronomes pessoais Corta um quadrado Conta para além de quatro Salta dois degraus Sabe a idade Conhece seis cores em dois Compara dois tamanhos Desenha um homem e dois pesos Corre para chutar Lava sozinho mãos e cara Define pelo uso Copia uma cruz Conhece duas moedas uma bola Sabe morada (rua e número) seis palavras Desenha uma casa Conhece três moedas Desce escadas Usa bem o garfo e a faca Descreve um desenho Corta papel com tesoura Conta dez cubos como adulto grande CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 125 QUADRO 2 – Desenvolvimento psicomotor e sinais de alarme 1 - 2 meses – Em posição sentada: instabilidade cefálica; – Em posição vertical ou quando suportado pelo examinador em decúbito ventral, evidencia hiper ou hipotonicidade; – Não segue a face do observador; – Não sorri; – Não estabelece qualquer tipo de contacto social. 9 meses – Desequilíbrio em posição de sentado; – Imobilidade na posição de sentado, permanece imóvel; – Ausência notória de preensão palmar, não levando os objectos à boca; – Ausência de vocalização; – Ausência de constacto social; – Engasgamento fácil. 3 - 4 meses – Não fixa, nem segue objectos; – Não dirige os olhos ou a cabeça para o som (principalmente) quando ouve a voz humana); – Deixa cair a cabeça para trás, quando seguro pelas mãos e antebraços; – Mantém as mãos sempre fechadas; – Membros rígidos em repouso; – Postura assimétrica; – Reage com choro ao tacto; – Actividade motora monótona. 12 - 18 meses – Imobilidade permanente, não procura mudar de posição; – Postura assimétrica; – Não agarra os objectos ou agarra-os só com uma mão; – Ausência de resposta à voz; – Não mastiga; – Não brinca mantendo apatia; – Não “obedece” às ordens simples; – Não diz palavras que se percebam. 6 meses – Não “segura” a cabeça (instabilidade) – Membros inferiores com rigidez; – Segue objectos; – Assimetria na postura – Não reage aos sons, evidenciando “apatia”; – Ausência de vocalização; – Ausência de preensão palmar (não agarra os objectos); – Estrabismo constante De reiterar que todos estes domínios são interdependentes, cada um deles influenciando e sendo influenciado pelos outros. Após a avaliação de cada um destes domínios por tarefas, (sendo de referir que cada uma permite perceber mais do que uma capacidade), é importante analisar o desempenho e verificar se as falhas são pontuais ou globais e se eventualmente são alarmantes e carecem de encaminhamento para centro especializado na perspectiva de possível intervenção. No caso de crianças prematuras deve ter-se em conta a idade corrigida até aos dois anos de idade. Chamando-se a atenção para variações indivi- 2 anos – Ausência de marcha; – Manipulação dos objectos sem finalidade aparente; – Parece não compreender o que se lhe diz; – Não diz palavras perceptíveis. Mais de 3 anos – Hiperactividade e dificuldade de concentração; – Linguagem incompreensível; – Aparenta “não ver”; – Alterações do comportamento (agressividade na escola ou no meio familiar, dificuldade no convívio com outras crianças, birras excessivas, reacção excessiva se separado da mãe. duais de semanas ou meses no respeitante, designadamente ao desenvolvimento cognitivo e motor tendo como referência o padrão médio da idade-chave em questão, o Quadro 2 de interesse prático para o clínico, elucida sobre determinadas falhas consideradas alarmantes. Pontos de viragem “Touch points” e intervenção preventiva Está demonstrado que a auto-estima da criança poderá ser melhorada se a família adquirir conhecimentos e competências sobre o desenvolvimento 126 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA motor, cognitivo e emocional em idade pediátrica. Nesta perspectiva, em colaboração com o médico e profissional de saúde seguindo, “ em conjunto a criança e discutindo assuntos relacionados, haverá excelentes oportunidades para prevenir certas falências do desenvolvimento. Por outro lado reforça-se a confiança e aliança entre profissional e família, o que contribui para o progresso do desenvolvimento. É esta a filosofia do modelo dos touchpoints, (pontos de viragem), que teve a sua criação em Terry Brazelton, seguido e desenvolvido em Portugal por Gomes Pedro. Baseia-se na teoria de sistemas. Cada componente deve reagir a todo e qualquer motivo de estresse que possa incorrer no sistema, e dado que cada membro partilha as suas reacções, a presença do técnico de saúde poderá reduzir o estresse tanto nos pais, como na criança. Cada momento de estresse é visto como uma oportunidade de aprendizagem, seja para o sucesso, seja para o insucesso. O modelo dos “pontos de viragem” corresponde a um tipo de intervenção preventiva que dá relevo principal aos potenciais e forças da família e que combina a compreensão do desenvolvimento da criança com a criação de relações entre os intervenientes (técnico, clínico, pais e criança). O desenvolvimento da criança é descrito como nãolinear; é dinâmico, em surtos, com regressões, saltos e pausas, sendo que uma área de desenvolvimento influencia as outras. Os pontos de viragem são momentos em que uma mudança do sistema é provocada por uma alteração no desenvolvimento da criança, correspondendo a períodos previsíveis de regressão que ocorrem antes de um “salto” no desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento é multidimensional e interdependente; um salto numa área causa uma regressão temporária noutra área. Estes períodos de regressão causam desorganização no sistema no qual a criança está inserida, mas correspondem também a um período de reorganização. É possível que os pais se sintam desorientados e tenham medo de que a regressão conduza a uma alteração do comportamento. Uma vez que estes períodos são previsíveis - um na gravidez, sete no primeiro ano, três no segundo ano e dois em cada ano subsequente, é função do médico e do técnico de saúde explicar antecipadamente o seu sentido aos pais, tendo em vista reduzir a ansiedade e aumentar a confiança naqueles. (Quadro 3) Resumem-se a seguir, com exemplos concretos, alguns aspectos relacionados os oito pontos de viragem considerados por Brazelton e Gomes Pedro (desde a gravidez até aos 12 meses): • 1º Ponto de Viragem – O 1º ponto é importante para formar uma relação com os futuros pais; no 7º mês de gravidez o profissional tem a oportunidade de conhecer e partilhar preocupações com os pais establecendo-se uma relação de confiança antes da chegada do bebé. • 2º Ponto de Viragem – O 2º ponto dá-se no hospital ou em casa, pouco depois de o bebé nascer; pai e mãe, participando na consulta de avaliação, poderão ser sensibilizados para o comportamento do bebé designadamente no que respeita à sua notável capacidade para reagir ao ambiente que o rodeia. • 3º Ponto de Viragem – O 3º ponto deverá ocorrer entre as 2 – 3 semanas de vida; ou seja, antes da idade de 4 – 12 semanas, período este caracterizado por choro irritante ao fim do dia relacionado com a reacção do sistema nervoso imaturo aos estímulos ambientais. Com a intervenção antecipada (2–3 semanas), explicando aos pais que não deverão pegar no bebé (o que constitui estímulo adicional para choro irritante), o período de choro pode ser reduzido e o bebé fica mais calmo. É também a oportunidade para criar um ambiente calmo e caloroso, esclarecendo regras sobre a prática do aleitamento materno. Consequentemente os pais sentirão que foram bem sucedidos. • 4º Ponto de Viragem – O quarto ponto corresponde aos 2 meses, data de vacinas e em que se reavalia a alimentação, o sono e os ciclos de agitação. Se o profissional comentar com os pais certos padrões de comportamento do bebé (contacto social frente a frente, actividade motora, etc.), os mesmos poderão avaliar a aprendizagem já ocorrida no bebé, aumentando-lhes o auto-estima e o sentido de responsabilidade. • 5º Ponto de Viragem – O 5º ponto (consulta dos 4 meses) antecede um período de sobressalto na consciência cognitiva do ambiente: interrompe a refeição, olha em volta atento CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 127 QUADRO 3 – Aspectos principais de cada ponto de viragem (touchpoints) Idades 1) Pré-natal Preparação para a paternidade 2) Recém-nascido Saúde 3) 2-3 semanas Exaustão parental 4) 2 meses Sociabilidade 5) 4 meses Afeição 6) 6 meses Capacidades motoras 7) 10 meses Mobilidade 8) 12 meses Independência 9) 15 meses Autonomia 10) 18 meses Conhecimento 11) 24 meses Brincadeiras de “faz-de-conta” 12) 36 meses Imaginação Bebé imaginado (idealizado/real) Bebé real Alimentação Autoconfiança parental Interesse pelo mundo Alimentação Referência social Capacidades motoras Brincadeira (exploração) Noção do “eu” Linguagem Relações familiares Pai imaginado Emoções parentais Relações entre os pais Relações com o mundo exterior Padrões de cuidados Sono Controlo (mover/pensar) Aprendizagem (descoberta) Dependência Exercício do controlo Autonomia Afeição Individualidade Medos e fobias Linguagem Relações com outras crianças aos estímulos do ambiente e começa a acordar de noite após período de sono seguido, com mudança dos padrões alimentares. Esta fase do desenvolvimento corresponde a “rápido” sobresalto do mesmo, ou de “desorganização”. É então altura de os pais serem esclarecidos que tal período é precursor de rápido desenvolvimento e não constitui qualquer fracasso no que respeita aos cuidados prestados. É sinal de que o bebé precisará de refeições mais curtas sendo importante que os pais compreendam esta evolução. No que respeita ao sono, se o bebé tiver aprendido a encontrar conforto através duma forma independente de adormecer (por exemplo, chuchando no dedo ou agarrando-se ao cobertor), e não habituado a adormecer ao colo dos pais, haverá maior probalidade de adormecer depois de acordar de noite. • 6, 7º e 8º Pontos de Viragem – Aos 6, 10 e 12 meses ocorrem mais três pontos de viragem, cada um dos quais constitui uma oportunidade para discutir questões que vão surgindo, com os pais. Cada ponto de viragem antecede um sobressalto numa ou mais áreas. O Quadro 3 resume os aspectos principais de cada ponto de viragem até aos 36 meses. Salienta-se que a data em que os pontos de viragem acontecem pode ser alterada nos casos de prematuridade. Exigências do bebé Permanência do objecto Permanência de pessoas Irritabilidade Linguagem Linguagem Capacidades motoras Em suma, os pais da criança sentirão que o médico e o profissional de saúde se preocupam não só com o progresso fisico, mas também estão atentos ao seu desenvolvimento psicológico. Por outro lado, os referidos pontos de viragem podem ser encarados como oportunidades para dar apoio aos pais preocupados. BIBLIOGRAFIA Brazelton T, Greenspan S. A criança e o seu mundo. Requisitos essenciais para o crescimento e aprendizagem, Lisboa: Editorial Presença, 2002 Brazelton T. Touchpoints: opportunities for preventing problems in the parent-child relation chip, Acta Paediatr (Suppl), 1994; 394: 35-39 Brazelton T. Working with families, opportunities for early intervation. Pediatr Clin North Am 1995; 42: 1-9 Fonseca V. Manual de Observação Psicomotora, Lisboa: Editorial Noticias, 1992 Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança e a família do século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005 Percy M at al. Touchpoints. American Journal of MaternalChild Nursery, 2002; 27, 222-228 Staddler A et al. Using the language of the child’s behavior in your work with families. J Pediatric Helth Care 1999; 13: S13-S16 Wadsworth W. Piaget’s theory of cognitive and affective development. London: Longman, 1984 128 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 23 COMPORTAMENTO E TEMPERAMENTO Maria do Carmo Vale Definições e importância do problema Define-se comportamento como o conjunto de acções, reacções ou actividades motoras observáveis como resposta aos estímulos internos e externos. Desde o nascimento as crianças apresentam diferentes comportamentos: algumas choram muito, outras são mais calmas, umas mais sisudas, outras mais sorridentes e activas. Define-se temperamento como o conjunto de características biológicas que influenciam o humor, comportamento e emoções, correspondendo ao substrato biológico sob o qual se estrutura a personalidade. São exemplos o nível de actividade motora, capacidade de adaptação à mudança, qualidade e intensidade das respostas a novas situações, limiar sensorial, humor positivo ou negativo, capacidade de atenção, concentração e persistência. Temperamento é, afinal, um estilo comportamental de etiologia biológica com componente fortemente genética. O perfil de temperamento na primeira infância é traduzido pelos ritmos de sono e alimentação, reacção ao banho, adaptação a novos alimentos e pessoas, frequência e intensidade do choro e riso, etc.. Na segunda infância é traduzido pelo relacionamento com os pares, padrões de jogo, capacidade de atenção e persistência nas tarefas. Na criança em idade escolar relaciona-se com a adaptação à escola, à família, aos pares, às actividades lúdicas e de grupo, orientadas por educadores, ou seja, pelo reportório de interacção. O temperamento é, assim, intrínseco à criança, por oposição ao comportamento que é influenciado pelo meio e pelo relacionamento e perfil da mãe ou substituto materno (vinculação). De referir que a vinculação é fundamental para o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, sendo a sua avaliação primordial para a apreciação dos problemas do comportamento, sobretudo durante o primeiro ano de vida. A partir do segundo e terceiro anos de vida, a criança torna-se menos dependente das figuras de vinculação. Em 1988, Belsky e, posteriormente, Bydar e Brooks-Gunn, concluiram que periodo superior a 20 horas semanais em creche, durante o primeiro ano de vida, pode pôr em risco a relação mãe-filho, bem como o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental da criança o que não acontece quando a actividade laboral materna é adiada para o segundo ou terceiro ano de vida. A problemática da separação mãe-filho noutras situações como a hospitalização, institucionalização, adopção, etc., condicionou uma maior ênfase no encurtamento das mesmas; sublinhou-se, por exemplo, as vantagens do hospital de dia, dos internamentos de curta duração e da aceleração dos processos de adopção. Define-se perturbação do comportamento como a modificação do padrão de acções, reacções ou respostas aos estímulos do meio, de carácter persistente ou repetitivo, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes regras ou normas sociais próprias da idade. Tal situação gera um défice clinicamente significativo na actividade social escolar ou laboral. A prevalência da perturbação do comportamento parece ter aumentado nas últimas décadas; é usualmente mais elevada nos meios urbanos comparativamente aos rurais e varia entre menos de 1% e 10%. Manifestações clínicas e diagnóstico Foram estabelecidos dois tipos de perturbação do comportamento com base na idade de início (início na infância ou início na adolescência), podendo apresentar-se de forma ligeira, moderada ou grave. O tipo início na infância é definido pelo menos CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento 129 QUADRO 1 – Perturbação do Comportamento: Critérios de Diagnóstico Padrão de comportamento repetitivo e persistente, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes regras ou normas sociais próprias da idade, manifestando-se pela presença de três ou mais dos seguintes critérios, durante os últimos 12 meses e, pelo menos, de um critério durante os últimos 6 meses. Agressão a pessoas ou animais 1. com frequência insulta, ameaça ou intimida as outras pessoas. 2. com frequência inicia lutas físicas. 3. utilizou uma arma que pode causar graves prejuízos aos outros. 4. manifestou crueldade física para com as pessoas. 5. manifestou crueldade física para com os animais. 6. roubou confrontando-se com a vítima. 7. forçou alguém a uma actividade sexual. Destruição de propriedade 8. lançou deliberadamente fogo com intenção de causar prejuízos graves. 9. destruiu deliberadamente a propriedade alheia. Falsificação ou roubo 10. arrombou a casa, propriedade ou automóvel de outra pessoa. 11. mente com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações. 12. rouba objectos de certo valor sem confrontação com a vítima Violação grave das regras 13. com frequência permanece fora de casa de noite apesar da proibição dos pais, iniciando este comportamento antes dos treze anos de idade. 14. fuga de casa durante a noite, pelo menos duas vezes, enquanto vive em casa dos pais ou em lugar substitutivo da casa paterna. 15. faltas frequentes à escola com início antes dos treze anos. Tipos Tipo início na segunda infância: antes dos 10 anos, início de pelo menos uma característica do critério de Perturbação do Comportamento. Tipo início na adolescência: antes dos 10 anos ausência de qualquer critério característico do critério de Perturbação do Comportamento. Perturbação do comportamento, início não especificado: a idade de início é desconhecida. Gravidade Ligeira: poucos ou nenhum dos problemas de comportamento para além dos requeridos para fazer o diagnóstico sendo de referir que os problemas de comportamento causaram apenas pequenos prejuízos aos outros. Moderada: o número de problemas de comportamento e os efeitos sobre os outros situam-se entre”ligeiros” e “graves”. Acentuada: muitos problemas de comportamento que excedem os requeridos para fazer o diagnóstico ou os problemas de comportamento causam consideráveis prejuízos aos outros. por um dos critérios característicos da perturbação do comportamento antes dos 10 anos (Quadro 1). Trata-se habitualmente de crianças do sexo masculino, evidenciando frequentemente agressi- vidade física com os outros, relações perturbadas com os companheiros, perturbação da oposição no início da infância e sintomas que preenchem os critérios de perturbação do comportamento antes 130 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA da fase pubertária. Muitas crianças com este tipo têm também perturbação de hiperactividade com défice de atenção. O tipo início na adolescência é definido pela ausência de características de perturbação do comportamento antes dos 10 anos de idade. Comparativamente ao tipo anterior manifestam-se menos comportamentos agressivos com tendência para relações mais aproximadas do normal com os companheiros. Evolução A evolução da perturbação do comportamento é variável; verifica-se remissão até à idade adulta na maior parte das crianças. Contudo existe uma proporção que continua a revelar na idade adulta comportamentos anti-sociais. O início precoce prenuncia um mau prognóstico e risco mais elevado de evoluir para uma perturbação anti-social da personalidade ou para perturbações associadas ao abuso de drogas na idade adulta. Tipos especiais de comportamento social Comportamentos considerados apropriados ou aceitáveis em determinadas idades passam a patológicos quando surgem mais tardiamente. Os espasmos do soluço, mentira, impulsividade e birras são considerados normais entre os 24 anos e devidos a uma necessidade de afirmação e autonomia face à real dependência motora e social, traduzindo frustração e zanga por tal facto. São analisados alguns exemplos: O espasmo do soluço (pausa respiratória e cianose com choro) é observado nos dois primeiros anos de vida e tem por objectivo o controle do meio, nomeadamente dos pais e cuidadores, nas situações de desprazer da criança. Este comportamento deve ser ignorado e acaba por extinguir-se, se a criança não atinge os seus objectivos. A mentira é utilizada entre os 2 e os 4 anos como meio de treino da linguagem e imaginação (fabulação), expressando a criança a fantasia dos seus desejos. Na criança em idade escolar por vezes a men- tira é utilizada para encobrir algo que ela não aceita no seu comportamento, conseguindo desta forma um bem estar temporário e preservação da auto-estima. A pré-delinquência é uma entidade clínica manifestada através de vários comportamentos anti-sociais como o roubo, mentira, destruição de propriedade, crueldade para com os animais, violação, crueldade física para com os outros e repetidas tentativas de fuga. O comportamento de oposição é manifestado através de comportamentos menos graves como a birra, o desrespeito de regras, atitude de desafio permanente, culpabilização sistemática dos outros, comportamento vingativo e frequente utilização de linguagem obscena. Os comportamentos de oposição e as birras (teimosia e zanga), frequentes entre os 18 meses e os 3 anos, são de alguma forma apelativos, na medida em que procuram centralizar a atenção dos pais. A resposta desajustada, nomeadamente através de punição, reforça e perpetua este tipo de comportamento, pelo que os pais devem dar espaço e tempo à manifestação da criança que, depois de acalmada, deve ser chamada à razão através de um diálogo profícuo, explicando o motivo pelo qual o seu comportamento é inaceitável, moldando e controlando progressivamente a referida conduta. Define-se agressão como qualquer forma de hostilização; é frequentemente considerada como um traço negativo, apesar de desempenhar papel relevante na evolução da espécie animal. A agressividade, tipo de comportamento social, pode ser expressa de diferentes maneiras: não verbal, sob a forma de pontapés e empurrões; verbal, traduzida por apreciações mais ou menos depreciativas que podem ir atá ao insulto, instrumental e hostil (intencionalidade); e a individiual ou de grupo. Tal como já foi referido, a agressividade da criança pode ser condicionada pela dificuldade de relacionamento com os pares ou pais, sendo, importante investigar as causas e motivos. As crianças sem comportamento empático ou pró-social são frequentemente agressivas e podem necessitar de intervenção de equipa de saúde mental. Nas crianças expostas a modelos de agressividade nos meios audiovisuais como a televisão CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento desenvolve-se mais frequentemente comportamento de agressividade, comparativamente a crianças não expostas. Intervenção Na maior parte dos casos as perturbações de comportamento são transitórias e regridem, ou espontaneamente, ou através de atitudes educativas como o reforço positivo de comportamentos prósociais e adequados. Contudo, tais perturbações exigem maior atenção para prevenir situações graves (delinquência), ou do foro psicopatológico. Existem diferentes modos de lidar com a conflitualidade, comportamento anti-social ou pré-delinquência; por exemplo ignorar o comportamento em causa, separação das outras crianças para evitar reforçar o referido comportamento, recompensar a atitude não agressiva, reforçar regras, efectuar manobras de diversão, explicar a igualdade de direitos, incentivar a autodefesa, sugerir soluções, encorajar a amizade, ensinar boas maneiras, desaprovar, etc.. A intervenção só se justifica se a agressividade for mantida, condicionando ruptura com o meio familiar, escolar ou social. Dois tipos de intervenção podem ser utilizados com sucesso nas perturbações de comportamento: treino da criança na capacidade de solucionar problemas e treino dos pais. O primeiro utiliza a modelo comportamental, “role-playing”, análise das boas razões e correcção de conduta, reforço social de comportamentos adequados (imaginação de soluções, perspectiva do outro, etc.) em sessões suficientes para obter resultados (nunca menos de 20-30 sessões). O treino parental envolve o ensino de princípios e técnicas educativas que promovam comportamentos ajustados, de que são exemplo o reforço positivo ou condicionado (premiar ou louvar o comportamento adequado), cobrar ou “multar” a resposta inadequada (por exemplo com a perda de pontuação) e plano de contingência adaptado. Existem diferentes tipos de intervenção centrada no apoio e ensino dos pais englobando os seguintes aspectos: • Observar, identificar e monitorizar o comportamento do filho. 131 • Reforçar o comportamento adequado e prósocial. • Lutar contra comportamentos agressivos ou de ruptura, ignorando-os. • Dar directivas claras e concisas. • Avisar uma única vez as consequências do não cumprimento de uma ordem ou directiva. • Utilizar tempo limitado para o cumprimento de uma ordem (3-5 minutos). BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Perturbações Dissruptivas do Comportamento e de Défice de Atenção in DSM-IV-TR. Lisboa: Climepsi, 2002: 94-103 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lewis M. Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore: Lipincott, Williams & Wilkins, 2002 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 Vitulano LA, Tebes JK. Child and Adolescent Behavior Therapy in Lewis M (ed). Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore: Lipincott Williams & Wilkins, 2002: 998-1112 Yancy WS. Aggressive Behaviour and Delinquency in Levine MD, Carey WB, Crocker AC (eds). DevelopmentalBehavioral Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 471-476 132 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 24 DEFICIÊNCIA MENTAL Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto Definições e importância do problema Deficiência mental (DM) é definida como o conjunto de perturbações caracterizadas por um funcionamento intelectual global (habitualmente definido por um quociente de inteligência – QI – obtido através de testes de inteligência) inferior à média (défice cognitivo) acompanhado de limitações do funcionamento adaptativo em, pelo menos, duas das seguintes áreas: comunicação, cuidados próprios, vida doméstica, competências sociais/interpessoais, utilização de recursos comunitários, autocontrolo, competências académicas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança. O início da DM deve ocorrer antes dos 18 anos; com múltiplas etiologias, corresponde à via final comum de vários processos patológicos que afectam o funcionamento do sistema nervoso central (SNC). Segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV, a deficiência mental pode ser classificada em: • Deficiência Mental Ligeira: QI> 50-55 <70 • Deficiência Mental Moderada: QI>35-40 <5055 • Deficiência Mental Grave: QI >20-25 <35-40 • Deficiência Mental Profunda: QI < 20-25 • Deficiência Mental, Gravidade Não Especificada Cerca de 1-3% da população apresenta DM. É importante reconhecer que a grande maioria das crianças (85%) se situa no grupo de DM Ligeira, crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A DM Moderada representa cerca de 10% das crian- ças as quais são consideradas “treináveis” e com capacidade de integração comunitária. Apenas 34% das formas DM se classificam como Graves, com aproveitamento mais limitado a nível préescolar; e apenas 1-2% das situações correspondem à forma DM Profunda. A melhoria dos cuidados de saúde (e do respectivo acesso) diminuiu a prevalência de DM. Mas se, por um lado, o diagnóstico pré-natal e a intervenção precoce permitiram reduzir as consequências da síndroma de Down, da fenilcetonúria e do hipotiroidismo congénito, assistiuse a um aumento de casos de DM devido ao aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso e a um aumento da sobrevivência de crianças de alto risco perinatal (relacionado designadamente com prematuridade extrema e muito baixo peso). O défice cognitivo é a patologia grave do neurodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no sexo masculino, comparativamente ao sexo feminino numa relação de 2/1 no défice cognitivo ligeiro e 1.5/1 no défice cognitivo grave. Factores etiológicos Como já referimos existem muitas causas de DM, frequentemente em concomitância. A identificação da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não é recomendada por rotina uma investigação exaustiva de todas as causas possíveis, mas sim uma investigação orientada pela clínica. Os factores a ter em consideração para investigar um défice cognitivo são: • Gravidade do défice cognitivo (quanto mais grave for, maior a possibilidade de um diagnóstico etiológico). • História familiar ou semiologia sugestiva de perturbação específica. • O desejo dos pais de uma nova gravidez o que, por si só, justifica esforços acrescidos no esclarecimento etiológico. • Opinião dos pais: alguns estão mais interessados no tratamento e outros estão focados na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a intervenção antes de conhecer o diagnóstico. Na população com DM Ligeira há frequentemente um envolvimento de componentes genéticas e ambientais (sócio-económicos, culturais, etc.) e as causas específicas de DM ligeira/mode- CAPÍTULO 24 Deficiência mental rada são diagnosticáveis em menos de 30% dos casos. Na população com DM grave e profunda é mais provável a possibilidade de identificação de causas orgânicas e, uma vez que o impacte na família pode ser determinante, devem ser desenvolvidos mais esforços no sentido de identificar uma possível etiologia; neste grupo as etiologias pré-natais são predominantes. As causas perinatais e pós-natais comparticipam apenas 10-25% dos casos nas formas mais graves de défice cognitivo. Exemplos de factores causais referentes ao período pré-natal incluem as anomalias cromossómicas e doenças genéticas com múltiplas anomalias congénitas major/minor, e causas não genéticas como a exposição a tóxicos (álcool ou drogas de abuso), infecções maternas (rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus), alterações estruturais do SNC (perturbações da migração neuronal, agenésia do corpo caloso, hidrocefalia). Exemplos de etiologia perinatal incluem o sofrimento fetal, hipóxia ou complicações da prematuridade. As causas de DM pós-natal incluem as infecções do SNC, hipotiroidismo, má nutrição, trauma e exposição a toxinas (chumbo), etc.. Em geral, quanto mais precocemente ocorrer a noxa, mais graves as consequências como é o caso das perturbações que afectam a embriogénese precoce: anomalias cromossómicas (trissomia 21, X frágil), erros congénitos do metabolismo/ perturbações neurodegenerativas (mucopolissacaridose) e anomalias do desenvolvimento do SNC (défice de migração neuronal, lisencefalia). Manifestações clínicas e diagnóstico Excluindo as situações de dismorfia (síndroma genética, como por exemplo a trissomia 21 ou microcefalia isolada), patologia já identificada ou situações de risco (como os prematuros), a maior parte das crianças com DM recorre ao pediatra ou médico de família por não cumprir as metas de desenvolvimento nas idades esperadas. Nalguns casos em que não há estigma físico que permita uma orientação etiológica, os pais podem sentir que algo está errado com a sua criança, cabendo ao pediatra e médico de família na sua vigilância regular de 133 saúde infantil perceber se os desempenhos da criança são próprios da idade cronológica. As perturbações do comportamento adaptativo são também frequentemente o sintoma revelador da DM. O comportamento adaptativo refere-se à maneira como as crianças lidam com as necessidades da vida diária e ao grau de independência pessoal em relação ao esperado para um indivíduo do seu grupo etário. O médico deve inquirir e observar a criança em relação ao seu comportamento e desenvolvimento de forma a fazer uma detecção precoce e orientação adequada. Pode usar testes simples de rastreio (como o Denver II) ou questionários dirigidos aos pais. Entre os 6 e os 18 meses são mais frequentemente detectados problemas nas áreas motoras, hipotonia ou hipertonia, com atraso nas aquisição de competências como o sentar-se, gatinhar ou andar. Os problemas de linguagem e comportamentais, são queixas referidas, sobretudo, após os 18 meses. Algumas situações mais ligeiras, podem só ser detectadas com o início do infantário ou mesmo da escolaridade. Por outro lado, quanto mais grave for o défice cognitivo, mais precoce será o diagnóstico e maior a necessidade imediata de intervenção. Assim, numa criança em que se verifique a suspeita de DM (com ou sem orientação etiológica definida), deve ser programada uma avaliação completa do desenvolvimento por profissionais especializados, idealmente numa equipa multidisciplinar. Esta avaliação não se limita apenas à realização de testes psicológicos individuais, que permitem a definição do QI e consequentemente a classificação nosológica, mas deve resultar na defição de um perfil funcional individual. Assim, é possível diagnosticar DM em crianças com QI≥70 e ≤75 se existirem concomitantemente défices significativos no comportamento adaptativo. Inversamente, não será diagnosticada DM em criança com QI≤70 se não coexistirem défices ou perturbações significativas do comportamento adaptativo. Naturalmente, os instrumentos de avaliação deverão ter em conta factores limitantes como por exemplo o nível sócio-cultural, língua materna e a associação de limitações nas áreas da comunicação, motora e sensorial. 134 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Na maioria dos testes são avaliadas diferentes sub-áreas: motricidade grosseira, motricidade fina, socialização, autonomia pessoal e comunitária, a linguagem e a comunicação verbal e nãoverbal, a cognição verbal e não verbal, o comportamento e a atenção, etc.. É de uma caracterização extensa e pormenorizada destes múltiplos desempenhos que é possível construir um perfil quanto ao desenvolvimento. Este perfil permite, não apenas confirmar o diagnóstico e avaliar a presença de co-morbilidades (de notar que pode haver DM concomitantemente com défices específicos em determinadas áreas), mas conhecer as áreas “fortes e fracas” da criança, o que é imprescindível para a elaboração de um programa de intervenção adequado e eficaz. A investigação etiológica inclui, geralmente estudos neuroimagiológicos (anomalias do SNC, doenças neurodegenerativas, anomalias de desenvolvimento do SNC), estudos cromossómicos (cromossomopatias), moleculares (X frágil) e metabólicos (mucopolissacaridoses, doenças do ciclo da ureia, outras doenças metabólicas). As crianças com défice cognitivo apresentam frequentemente problemas de visão, audição, emocionais e comportamentais associados. Se não forem atempada e adequadamente diagnosticados e tratados tais problemas associados potenciam adversamente a evolução destes casos. Por outro lado, conhecer a etiologia do défice cognitivo pode ajudar a diagnosticar problemas associados na medida em são habituais em determinados casos: por exemplo na trissomia 21 é frequente a coexistência de hipotiroidismo, subluxação atlantoaxial e défices sensoriais; e na síndroma de X frágil e síndroma fetal-alcoólica são frequentes os problemas comportamentais. O Quadro 1 refere-se a anomalias cromossómicas frequentemente associadas a défice cognitivo (quatro exemplos). (ver Parte III) Intervenção Independentemente do maior ou menor sucesso na identificação da etiologia, a intervenção na DM deve ser iniciada imediatamente uma vez feito o diagnóstico de DM e definido o perfil de desenvolvimento da criança. Quando o diagnóstico é precoce, deve ser de QUADRO 1 – Anomalias cromossómicas associadas a défice cognitivo SÍNDROMA DE DOWN OU TRISSOMIA 21 (1/700) Quadro clínico • Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica. • Malformações congénitas: cardíacas, gastrintestinais, • Baixa estatura, obesidade, hipotonia • Hiperlaxidão articular (subluxação atlanto-axial ou atlanto-occipital) • Anomalias da visão: cataratas, estrabismo, nistagmo, erros de refracção • Anomalias da audição: hipoacúsia; otite serosa • Perturbações da dentinogénese. • Leucemia; imunodeficiência • Demência precoce; doença de Alzheimer futura SÍNDROMA DE X FRÁGIL (1/1000) Quadro clínico • Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica. • Macrocrânia, pavilhões auriculares proeminentes. • Hiperextensibilidade articular/hipotonia. • Macrorquidismo • Prolapso da válvula mitral. • Perturbação da comunicação • Hiperactividade SÍNDROMA DE TURNER (XO) SÍNDROMA DE KLINEFELTER (XXY) imediato sinalizada para uma equipa em centro especializado e iniciar-se um programa de intervenção definido de acordo com as dificuldades e potencialidades da criança. A intervenção deve ser feita no domicílio ou na instituição que a criança frequenta e ser sobretudo centrada no apoio indirecto aos pais, que deverão sempre ser considerados parceiros fundamentais na estimulação da criança. De acordo com o modelo inclusivo que é actualmente defendido a nível mundial, as crianças devem ser integradas em estabelecimentos de ensino regular, com apoio de educação especial. Só este modelo de integração permite que elas desenvolvam um comportamento convencional e adaptativo, que é a chave para a sua aceitação na comunidade. CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação O programa de intervenção deve ser reavaliado e reajustado periodicamente; por isso o pediatra do desenvolvimento deve elaborar um plano de vigilância e seguimento, em colaboração com o pediatra geral ou médico de família, a equipa de técnicos, e os pais. Um diagnóstico em tempo oportuno e uma intervenção, o mais precoce possível, poderão permitir minorar as dificuldades da criança ajudando-a a rendibilizar as suas potencialidades e a encontrar o seu lugar na comunidade. 135 25 PERTURBAÇÕES DA LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Deficiência Mental in DMSIV-TR. Lisboa: Climepsi, 2000:41-49 Crocker AC, Nelson RP. Mental Retardation in Levine MD, Definições e importância do problema Carey WB, Crocker AC (eds). Developmental-Behavioral Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 551-559 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Russell AT, Tanguay PE. Mental Retardation in Lewis M (ed). Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore: Williams & Wilkins, 1996:502-510 Shapiro BK. Mental Retardation in Batshaw ML, Perret YM (ed). Children with Disabilities. Baltimore: Paul H Brookes, 1992: 259-289 A fala tem várias componentes e qualidades: a articulação que está relacionada com o som produzido pelos movimentos das estruturas orais; a voz, ou fonação, que resulta da produção de som pela vibração das cordas vocais; a ressonância que resulta da amplificação ou filtração do som emitido pela vibração das cordas vocais (cavidade oral e nasal); a fluência que se refere ao ritmo e fluxo apropriados da fala (um exemplo de disfluência é a gaguez); e a prosódia que se refere à entoação, inflexão e cadência da fala. A elevada prevalência de perturbações da linguagem e problemas de aprendizagem nas famílias de crianças com perturbações da linguagem condicionou a hipótese de etiopatogénese genética para os problemas evolutivos da linguagem. Mais de metade das crianças com perturbações da comunicação apresentam problemas emocionais ou comportamentais. Alguns autores reportaram que cerca de dois terços de crianças recorrendo à consulta de pedopsiquiatria apresentavam problemas relacionados com linguagem. Para compreender melhor a complexidade desta patologia é importante abordar a terminologia: Linguagem é um sistema de representação simbólica usado para comunicar sentimentos, ideias e intenções; a fala é a expressão da linguagem na forma verbal pela emissão de sinais acústicos; os fonemas são as unidades de som na fala; a fonologia refere-se à forma como os sons se 136 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA organizam para formar palavras; a semântica refere-se ao significado das palavras; a sintaxe refere-se à ordem por que as palavras são agrupadas para formar frases, segundo as regras gramaticais das diferentes línguas; a pragmática referese ao uso social e aplicação dos significados nos diferentes contextos, exigindo capacidade de antecipação e sensibilidade ao outro. A linguagem é o veículo do pensamento. Sem linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos e emoções; e sem um pensamento estruturado é impossível transmitir verbalmente uma ideia ou pensamento de forma perceptível. A comunicação e interacção estão presentes desde o início da vida extra-uterina, manifestandose, sobretudo, a partir do final do primeiro mês, através da troca de sons, contacto físico e visual. A comunicação engloba linguagem nas suas componentes verbal, gestual e de código social, ultapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos e emoções. Os animais interagem e comunicam entre si; no entanto, a linguagem é uma competência única e característica da mente humana e uma das mais vulneráveis. As perturbações da comunicação constituem os problemas de desenvolvimento mais frequentes na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças funcionando abaixo da média. Três a 6% das crianças têm uma perturbação específica da linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco de desenvolvimento posterior de dificuldades na leitura e escrita. Diagnóstico Há diversas abordagens e sistemas de classificação diferentes para as perturbações da linguagem e fala, variando de acordo com a formação profissional dos autores. As classificações ditas médicas tendem a centrar-se mais nas causas e as ditas linguísticas nos padrões de alteração observados. O diagnóstico diferencial destas perturbações é igualmente complexo uma vez que um amplo espectro de patologias pode resultar em disfunção do sistema neural e de estruturas periféricas, responsáveis pela percepção, processamento e produção da linguagem. Assim, por exemplo, há que considerar os pro- blemas relacionados com défice auditivo ou dificuldades de percepção/discriminação auditiva. Torna-se, pois, fundamental que estas crianças tenham uma avaliação completa da audição,sendo este tópico abordado noutro capítulo. É importante perceber se a perturbação corresponde apenas à área da linguagem e fala, se faz parte de uma perturbação mais generalizada, ou se está associada a perturbações neurológicas ou comportamentais. Com efeito, é frequente tratarse duma primeira manifestação de uma deficiência mental, inserir-se num contexto de patologia do espectro do autismo, ou associar-se a patologias como a síndroma do X Frágil, a síndroma de Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cerebral (afasia adquirida). Excluídas estas situações o clínico fica confrotado com perturbações específicas do desenvolvimento da linguagem que, segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por Perturbações da Comunicação e se dividem em grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez. É tradicional a distinção entre a disfunção da linguagem expressiva (que compromete a verbalização) e a perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva. Reportando-nos às definições caberá referir que a linguagem expressiva engloba a capacidade de formar palavras com os sons (fonologia), de combinar palavras com um significado adequado (semântica), em frases gramaticalmente correctas (sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social (pragmática). Seguidamente são sintetizados aspectos relativos às principais perturbações da comunicação. 1. Perturbação da linguagem expressiva As crianças com disfunção da linguagem expressiva podem evidenciar capacidade para um número limitado de palavras, vocabulário reduzido, dificuldades na aprendizagem de novas palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com estrutura gramatical simplificada, por vezes com perturbação da sintaxe. As crianças com perturbação do tipo evolutivo geralmente começam a CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação falar tarde e progridem mais lentamente, embora seguindo as sequências normais de desenvolvimento. Nos casos menos frequentes de lesão adquirida (por patologia neurológica) a perturbação surge após um período de desenvolvimento normal. Problemas como a memorização e recrutamento de palavras podem prejudicar a fluência da linguagem; apesar de as crianças apresentarem um vocabulário adequado, têm dificuldade em encontrar as palavras exactas quando delas necessitam, utilizando definições substitutivas (circunlocução). Esta perturbação está frequentemente associada a perturbação fonológica. 2. Perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva As crianças com perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva podem ter, para além das dificuldades já referidas de expressão verbal, dificuldade em seguir instruções, compreender explicações verbalizadas e interpretar o que leram. No entanto, habitualmente a expressão está mais afectada do que a compreensão, não alteração significativa da comunicação não verbal ou empatia, o que permite o diagnóstico diferencial com as perturbações do espectro do autismo. A perturbação mista também se associa frequentemente a perturbação fonológica ou a perturbações da aprendizagem. Pode também estar associada a perturbação de hiperactividade e défice de atenção, a perturbação da coordenação ou a enurese. 3. Perturbação fonológica A perturbação fonológica, anteriormente designada por perturbação da articulação verbal, engloba, não apenas os problemas de coordenação das estruturas que produzem e modulam os sons, mas também os problemas de défice da consciência fonológica (noção dos fonemas e sua correspondente representação gráfica), que resultam mais tarde em problemas de leitura e escrita (dislexia). Inclui alterações da fonação, articulação, ressonância e prosódia. Este tipo de perturbação pode estar presente em crianças com perturbação da coordenação motora, as quais apresentam também défices na motricidade fina e grosseira. 137 A gaguez inclui os problemas de disfluências, conforme é indicado nos critérios apresentados a seguir e surge, como a maioria das perturbações da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá o franco crescimento da linguagem. Nestas situações é fundamental um diagnóstico precoce e uma intervenção em tempo oportuno para que o problema não se torne persistente. 4. Gaguez Trata-se de uma perturbação da fluência normal e da organização temporal normal da fala (inadequadas para a idade do sujeito), caracterizada por ocorrências frequentes de um ou mais dos seguintes fenómenos: repetições de sons e sílabas; prolongamentos de sons; interjeições; palavras fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos; circunlocuções; palavras produzidas com um excesso de tensão física; repetições de palavras monossilábicas. A alteração na fluência interfere significativamente com o rendimento escolar ou laboral ou com a comunicação social. Se coexistirem défice motor da fala ou défice sensorial, o problema tem maior relevância. Diagnóstico diferencial No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a importância, não só dos estádios da linguagem, mas também das competências sociais da criança no desenvolvimento da linguagem. A ausência, atraso ou desadequação destas competências pré-verbais ou pré-linguísticas (mostrar e imitar), apontam para a possibilidade de autismo. Apesar de nem todas as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentarem perturbações da linguagem, uma elevada proporção de crianças com perturbações específicas de linguagem apresentam dificuldades de aprendizagem, particularmente na leitura e escrita. As perturbações adquiridas da comunicação podem ser secundárias a lesões focais, lesões associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões associadas a tumores, infecção ou radiação, e traumatismo crânio-encefálico. Por sua vez, as crianças expostas no período prénatal a cocaína ou outras drogas de abuso podem 138 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA apresentar perturbações da linguagem. Tal se verifica também em crianças com baixo peso de nascimento, prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, ou reduzido perímetro cefálico. Intervenção e prognóstico Como foi referido, o diagnóstico das perturbações da comunicação não é fácil e exige um grande conhecimento sobre a patologia do desenvolvimento, para permitir a exclusão de outros diagnósticos e a avaliação das perturbações associadas. Cabe ao pediatra e aos clínicos gerais, médicos – assistentes de crianças e adolescentes, fazerem a detecção o mais precoce possível destas situações. Testes de rastreio como o Denver II ou o ELM (Early Language Milestones) são simples e podem ser usados pelos clínicos na consulta de saúde infantil. É importante estar atento ao cumprimento dos marcos de desenvolvimento e aos sinais de alarme não adiando uma avaliação mais premonorizada ou o envio à consulta de desenvolvimento quando estes surgem. A ausência do palrar aos 10 meses, do uso de palavras isoladas aos 18 meses ou de frases aos 24 meses, ou a presença de padrões atípicos de linguagem com ecolália e discurso ininteligível aos 4 anos, obrigam a uma pronto de encaminhamento para centro especializado. A noção que durante muito tempo perdurou, de que a criança “iria libertar-se quando entrasse para o infantário” temse mostrado muito prejudicial e deverá abandonada. A criança deve ser avaliada por uma equipa multidisciplinar que inclua terapeuta da fala para uma avaliação completa da linguagem. Esta avaliação pretende esclarecer o diagnóstico diferencial, avaliar comorbilidade, e competências cognitivas, e excluir problemas médicos associados. Quando for justificado pode ser necessário proceder a avaliação por neurologista ou otorrinolaringologista, sendo em todos os casos recomendada uma avaliação formal da audição. Deve ser, em suma, planeada uma intervenção adequada às dificuldades de cada criança, que abranja as perturbações associadas, um plano de seguimento e reavaliações periódicas. O prognóstico será dependente das dificuldades encontradas, da patologia associada e da resposta à intervenção. No entanto, não se deve esquecer que a chave para um sucesso nas crianças com perturbações da linguagem reside na detecção precoce dos problemas, no diagnóstico preciso e na aplicação de intervenções apropriadas. BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Perturbações da Comunicação In DMS-IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores, 2000: 58-66 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Levine MD, Carey WB, Crocker AC. Developmental-Behavioral Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999 Lewis M (ed).Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore: Williams & Wilkins, 1996: 510-519 Smith PK, Cowie H, Blades M (ed). Language in Understanding Children’s Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001: 299-331. CAPÍTULO 26 Habilitação da criança com dificuldades na comunicação 26 HABILITAÇÃO DA CRIANÇA COM DIFICULDADES NA COMUNICAÇÃO Isabel Portugal O papel do Serviço de Medicina Física e Reabilitação (MFR) Todo o serviço de MFR pediátrica tem, naturalmente, um sector de terapia da fala ao qual recorrem crianças com perturbações da linguagem, da fala, da voz e da motricidade oral.A intervenção da terapia da fala é na maior parte dos casos demorada, prolongando-se, muitas vezes, em longos períodos do crescimento da criança e será tanto mais benéfica quanto mais precoce; torna-se fundamental o seu início antes da idade escolar. Segundo a experiência do Serviço de MFR, as alterações da linguagem mais frequentemente encontradas na criança são o atraso da aquisição da linguagem, as dificuldades da aprendizagem da leitura e da escrita, as perturbações específicas da linguagem e as afasias adquiridas. Na sua avaliação a criança é submetida a um teste de linguagem, habitualmente o “Reynell Developmental Language Scales” de Joan K Reynell, que caracteriza a linguagem expressiva e a compreensão verbal. As crianças com dislexia e disortografia, perturbações de abordagem complexa na sua caracterização e tratamento, necessitando de um tempo de intervenção muito prolongado, são habitualmente enviadas a centros especializados no seu âmbito do seguimento. Nas perturbações da fala as alterações articulatórias, fonológicas e a gaguez são as mais frequentes. Nas primeiras incluem-se a dislália (troca ou omissão de certas consoantes) e o sigmatismo 139 (vulgo “sopinha de massa”). As mais frequentes perturbações fonológicas são a disfonia (rouquidão), a afonia, a hipernasalidade (rinolália) e a hiponasalidade. A rinolália (voz nasalada devido ao escape nasal) observa-se frequentemente nas crianças que nasceram com fenda palatina; mesmo após o encerramento cirúrgico desta anomalia, muitas destas crianças mantêm rinolália devida à insuficiência velofaríngea, necessitando de terapia e vigilância continuadas. A gaguez pode ser funcional até aos 3 anos. Apesar da ansiedade que gera nos pais, requer vigilância e aconselhamento, não necessitando de outra intervenção até essa idade. A motricidade oral pode estar perturbada, surgindo dificuldades, quer alimentares, quer no controlo da baba, situações que são frequentes em crianças com paralisia cerebral. Quando o ensino do treino alimentar em tempo adequado se mostra ineficaz, opta-se pela gastrostomia. Pelas exigências da integração social e se a criança não conseguir o controlo da baba até à idade escolar, recorre-se à terapêutica com toxina botulínica e, no caso do seu insucesso, à cirurgia. BIBLIOGRAFIA Feldman HM. Evolution and mangement of language and speech disorders in preschool children. Pediatr Rev 2005; 26: 131-141 Grizzle KL, Simms MD. Early language development and language learning disabilities. Pediatr Rev 2005; 26: 274-283 Plexico L, Manning WH, Pilollo A. A phenomenological understanding successful stuttering management. J Fluency Disord 2005; 30: 1-22 Rapin I, Dunn M. Update on the language disorders of individuals on the autistic spectrum. Brain Dev 2003; 25: 166-172 140 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 27 APRENDIZAGEM E INSUCESSO ESCOLAR Maria do Carmo Vale. Importância do problema A aprendizagem, uma das características fundamentais da especie humana, processa-se ao longo de toda a vida, inclusivé pré-natal. Difinida sucintamente como aquisição de conhecimentos, o seu âmbito é muito mais lato pois o respectivo processo implica a recepção de estímulos endógenos e exógenos que são integrados, armazenados, adaptados e aplicados ulteriormente.Toda esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer das competências da pessoa, as quais variam com a maturação/evolução ou involução. Diversos factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínsecos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço físico da escola com características diversas de funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2) intrísecos; citam-se como exemplos as competências em relação ao neurodesenvolvimento (essencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas como ansiedade, auto-estima, irritação, etc.. Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma criança em idade escolar importa considerar as seguintes áreas: atenção, memória, linguagem, organização temporal-sequencial, organização espacial, capacidade neuromotora, cognição social e funções superiores da cognição. De referir que não existem duas crianças com modos iguais de funcionamento (Ver adiante Avalição). O baixo desempenho numa ou mais destas áreas pode estar associado a problemas de aprendizagem culminando no insucesso escolar, em dificuldades comportamentais, de adaptação e de integração social. A prevalência dos problemas de aprendizagem varia de país para país o que se pode explicar pela inexistência de critérios consensuais quanto a difinição e classificação. Estima-se que cerca de 15% das crianças em idade escolar apresentam dificuldades de aprendizagem relacionáveis com perturbações do neurodesenvolvimento; todavia, a actual prevalência pode ser ainda mais elevada se forem consideradas certas disfunções ligeiras e auto-limitadas. O sexo masculino parece ser mais afectado (2/1 a 4/1). Uma variante que traduza uma área fraca (como um problema na área da linguagem expressiva) corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção interferir com a aquisição de uma determinada competência (como a escrita), gera-se uma incapacidade; e, se esta for particularmente impeditiva de originar produtividade e gratificação, pode gerar-se um quadro de deficiência. Mas as variantes podem também incluir áreas de raro talento e força; e, ao descrever o perfil funcional de uma criança, é importante tomar em consideração as áreas fortes que constituem os seus recursos para fazer face às próprias dificuldades, (por exemplo a criatividade, a capacidade de organização ou a capacidade de resolução de problemas não-verbais). Etiopatogénese Para a compreensão dos problemas relacionados com o défice de aprendizagem com implicações práticas no tipo de intervenção a planear, cabe referir os principais factores etiológicos: – Défice cognitivo ou atraso global do desenvolvimento. – Alterações sensoriais (por exemplo, défice auditivo ou visual). – Doença motora (por exemplo, paralisia cerebral ou defeitos do tubo neural) – Perturbações da comunicação e da linguagem. – Problemas comportamentais e afectivos (por exemplo, ansiedade, inibição, défice de atenção). – Problemas em áreas específicas como a leitura, a escrita / ortografia, matemática, etc.. CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar – Doença crónica (em relação essencialmente com efeitos acessórios de medicamentos, e absentismo, hospitalizações ou actos médicos repetidos em ambulatório). Áreas-chave para a avaliação do insucesso escolar Analisam-se seguidamente as áreas consideradas chave para avaliação da aprendizagem e do insucesso escolar. 1. Atenção A disfunção da atenção constitui o problema de neurodesenvolvimento mais frequente em crianças, com um largo impacte no desempenho escolar diário. 2. Memória Existem fundamentalmente dois tipos de memória importantes para o bom desempenho académico: a de curta duração e a de longa duração. Muitas crianças apresentam dificuldades na memória de curta duração, nomeadamente na memória de trabalho. Esta consiste na capacidade de manter em mente, todas as diferentes componentes de uma tarefa, como por exemplo durante a resolução de um problema de matemática. A memória de trabalho permite, por exemplo, a que, após a memorização de um número, o utilizemos imediatamente (como por exemplo um número de telefone), e a memorização do início de um parágrafo ao chegar ao seu termo. Assim, as crianças com perturbações da memória de trabalho têm dificuldade em efectuar cálculos de matemática ou em memorizar ou reproduzir o que leram. Quando tentam escrever experimentam uma sobrecarga exagerada que se traduz, nomeadamente, em ilegibilidade, pontuação incorrecta, deficiente soletração, etc.. Outras crianças têm dificuldade em consolidar a informação na memória de longa duração. Este problema pode ter consequências graves no que diz respeito à escrita, que necessita de memorização de curta e longa duração quanto a soletração, formação das letras, pontuação, factos, ideias, vocabulário, para dar alguns exemplos. Os progressos académicos desenvolvem a 141 memória ao criar estratégias compensadoras (mnemónicas, técnicas facilitadoras do registo e de consolidação de dados em múltiplas categorias pré-existentes de conhecimento), para visualizarem o que se ouviu ou verbalizarem o que se viu, preparando e facilitando o seu armazenamento na mesma. 3. Linguagem A linguagem é o veículo do pensamento e muitas capacidades da mente e pensamento humanos são organizadas e transmitidas através da linguagem. As crianças linguisticamente (ou verbalmente) competentes representam um grupo de sucesso escolar, porque todas as capacidades académicas convergem para a linguagem verbalizada, e muito do que aprendem é codificado em linguagem escrita. Há muitas formas de disfunção da linguagem: algumas crianças têm problemas com a fonologia, apreciação e manipulação dos diferentes sons da linguagem, outras na discriminação e associação de sons; mais recentemente foram descritos problemas na memorização de fonemas (sons da linguagem), grafemas (combinações específicas de letras) e palavras (consciência fonológica), apontados como a causa mais comum de problemas de leitura e escrita. Estas crianças têm dificuldade em descodificar palavras durante a leitura e a codificá-las durante a soletração. Para muitas delas é difícil reter sons na memória, decompor palavras nos respectivos sons, e reutilizar estes para descodificar novos vocábulos. A semântica pode constituir outra dificuldade: repertório rígido e limitado do significado das palavras e difícil aquisição de vocabulário novo, importante em fases académicas mais diferenciadas em que a linguagem tecnológica é fundamental para a compreensão de diferentes matérias. Outros problemas da linguagem são a compreensão e utilização da sintaxe (ordenação de palavras), a limitada compreensão das regras linguísticas (metalinguística), a utilização de linguagem abstracta, a linguagem simbólica (metáforas, analogias) na formação de conceitos abstractos, e o domínio de uma segunda língua. A falta de aquisição de um determinado nível de sofisticação da linguagem condiciona o insucesso académico e está frequentemente associada a dificuldades de comportamento adaptativo. 142 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 4. Organização espacial Grande parte dos dados referentes ao espaço são adquiridos através de sensações propriocinéticas e de concepção abstracta, não verbal: o tamanho, posição, forma, constância da forma (independentemente da sua posição no espaço), as relações entre os corpos, são alguns dos pilares da organização visual-espacial. É evidente a repercussão que as perturbações nesta área podem ter, por exemplo, na aprendizagem da leitura e escrita. As crianças com este tipo de disfunção evidenciam dificuldades de discriminação direitaesquerda a que se associam frequentemente dificuldades de coordenação motora fina e coordenação motora global (crianças desajeitadas). 5. Organização temporal-sequencial A incapacidade de soletração, narrativa e sequenciação (do maior para o menor e vice-versa) pode ter consequências a diferentes níveis e áreas académicas como a escrita, matemática, tempo, hierarquização de tarefas por prioridades, ou limitação de tempos para a sua execução. 6. Função neuromotora As competências motoras da criança podem ter um papel significativo num largo repertório de actividades. Ao aspecto motor da escrita denomina-se função grafo-motora, que assenta numa boa coordenação motora fina, embora distinta desta; efectivamente, há crianças com bom desempenho na área da coordenação motora fina e que apresentam um mau funcionamento na escrita. A escrita exige uma rápida e precisa coordenação grafo-motora e a disfunção desta pode condicionar perturbações importantes do desempenho académico. 7. Desenvolvimento cognitivo superior Sob esta designação incluem-se a capacidade de abstracção (da qual depende a aquisição de conceitos), a solução de problemas, o pensamento crítico, a metacognição, várias formas de raciocínio, o reconhecimento de regras e a sua aplicação. A variabilidade no funcionamento de cada criança determina que a aquisição de novos conceitos dependa de conceitos pré-existentes e, ao longo da maturação destes, do desenvolvimento da capacidade de destrinça e relação entre uma ideia e um conceito. Infelizmente muitas crianças adquirindo poucos conceitos, na maior parte das vezes por deficiente estruturação do meio (famílias com elevado grau de iliteracia, condições socio-económicas pouco propícias à troca de informação e interacção e ao consequente desenvolvimento cognitivo) apresentarão naturalmente maiores dificuldades nas aprendizagens escolares. A capacidade de resolver problemas é fundamental para todos os conteúdos e actividades escolares. As crianças com esta capacidade bem desenvolvida mostram a sua criatividade na selecção e monitorização das várias técnicas possíveis para a solução de um problema, diferentes ideias e valores, permeabilizando-as à mudança, inovação ou diferença, fundamentais ao respeito para com os seus pares e a sociedade em geral, permitindo-lhe flexibilizar ideias, regras e atitudes. Uma vez que todas as áreas referidas apresentam diferente expressividade na mesma criança, sucesso académico pressupõe que as mais fortes compensam e equilibram as mais fracas. Intervenção Durante muito tempo a Pediatria avaliou o desenvolvimento psicomotor e cognitivo das crianças em idade pré-escolar, monitorizando a progressão nas áreas motora, cognitiva, adaptativa, linguística e social, com vista ao diagnóstico e orientação dos problemas de desenvolvimento. Mas o desenvolvimento infantil não termina aos 5 anos de idade e a diminuição de prevalência de outro tipo de patologia permitiu ao pediatra estar mais disponível para outras áreas como as dificuldades de aprendizagem, comportamento de desadaptação, desajustamento social, comportamental e perturbação da atenção, potencialmente responsáveis pelo insucesso escolar. O diagnóstico e proposta terapêutica do insucesso escolar exigem uma equipa multidisciplinar que inclui o médico-pediatra, o psicólogo clínico e educacional, o pedopsiquiatra, o neuropediatra, o médico de família, entre outros. A observação inclui a aplicação de determinados testes designados PEEP, PEER, PEEX 2, e PEERAMID 2, através dos quais se observa e 143 CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar avalia directamente funções chave nas áreas do neurodesenvolvimento como a atenção, linguagem e capacidades motoras. Com os referidos testes será possível obter o perfil funcional da criança (força e dificuldades nas diversas áreas académicas) como base para intervenção psico-educacional. As formas de apoiar e atenuar estes problemas compreendem os seguintes passos: – Desmistificação. – Utilizar estratégias de acomodação (dar mais tempo, simplificando explicações e orientações, reduzindo a carga académica nas áreas de menor desempenho, apresentando a informação de forma mais atractiva. – Terapias específicas: terapia da fala, ocupacional e comportamental. – Modificação dos currícula e conteúdos programáticos escolares e respectiva adequação às reais capacidades da criança (plano educativo individual). – Fortalecimento das áreas “fortes” como compensação das “fracas”, condicionando um reforço da auto-estima. – Medicação adaptada a cada caso e reajustada em avaliações periódicas. A ideia de aprendizagem activa, por contraposição à passiva apontada por autores como Piaget, revolucionou a metodologia de ensino; aplicando tal estratégia, a criança condicionada à exploração e descoberta, constrói o seu próprio conhecimento. O papel do professor ou educador seria o de facilitador da aprendizagem, encorajando a criança a questionar, especular e experimentar, fomentando o espírito crítico relativamente à informação. De acordo com Piaget é a criança que condiciona todo o processo de aquisição do conhecimento; o professor fomenta situações que desafiam a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a descobrir novos conceitos. Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget atribuindo papel igualmente relevante à interacção social e à comunicação e linguagem. Para ele a aprendizagem é conseguida através da cooperação com um largo repertório de interlocutores sociais – pares, professores, pais e outros intervenientes – bem como através dos símbolos representativos da cultura da criança, como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas e modelos. A teoria de Vygotsky assenta essencialmente no papel dos processos interpessoais e no papel da sociedade em que se enquadra a criança. Prevenção A prevenção dos problemas de aprendizagem em geral, e do insucesso escolar em especial, implica entre outras medidas melhoria dos cuidados primários e das condições, socioeconómicas, prevenção da prematuridade extrema e detecção precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-se duma tarefa difícil para a qual todos os profissionais de saúde, e em especial o pediatra e o médico de família, devem estar sensibilizados. BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Deficiência Mental in MSIV-TR. Lisboa: Climepsi Editores, 2000 Gouveia R. A criança e a aprendizagem escolar in Gomes Pedro J (ed). Lisboa: ACSM, 2001: 160-167 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Levine M. Neurodevelopmental Variation and Dysfunction Among School-Aged Children in Developmental- Behavioral Pediatrics. Levine M, Carey WB, Crocker AC. (eds). Philadelphia: Saunders, 1999:520-534 Sandler AD, Huff . Developmental Assessment of the SchoolAged Child in Developmental-Behavioral Pediatrics. Levine M, Carey WB, Crocker AC (eds). Philadelphia: Saunders; 1999:696-705 Smith PK, Cowie H, Blades M. Understanding Children’s Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001: 425-451 144 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 28 PERTURBAÇÕES DO SONO Maria do Carmo Vale e João M Videira Amaral Classificação e importância do problema O sono é um estado fisiológico, periódico e reversível, caracterizado essencialmente pela suspensão temporária do estado de consciência com graus variáveis de resposta a estímulos ambientais; é acompanhado de abolição mais ou menos importante da sensibilidade e abrandamento da maior parte das funções orgânicas: diminuição das frequências cardíaca e respiratória, da temperatura em cerca de 0,5 ºC, relaxamento muscular, diminuição do ritmo secretório(exceptuando o rim), etc.. Classicamente são considerados dois tipos de sono, identificáveis a partir dos 6 meses de idade: – não REM ou abreviadamente NREM (sigla do inglês (no rapid eye movements) chamado inactivo ou calmo sincronizado em que se verifica predomínio da actividade parassimpática (redução das frequências cardíaca e respiratória) e redução progressiva do tono muscular; – sono REM, definido como sono activo ou paradoxal, caracterizado por intensa actividade cortical cerebral, predomínio da actividade simpática (aumento das frequências cardíaca e respiratória) acompanhado de atonia muscular e movimentos oculares rápidos circulares bilaterais . No sono não-REM são individualizados quatro estádios (1-2-3-4) em função de outros tantos padrões electroencefalográficos (EEG). O estádio 1 corresponde ao início da transição vigília-sono, com um baixo limiar para o despertar; os estádios 3 e 4 são chamados de sono de ondas lentas ou sono profundo. Os ciclos NREM → REM → NREM → REM ... ocorrem em ciclos (com a duração aproximada de 70 a 100 minutos) durante o período do sono. O registo em simultâneo dos traçados electroencefalográficos,electromiográficos,dos movimentos oculares (electroculograma) associado à verificação dos vários graus de profundidade do sono constitui o polissonograma. O sono do lactente apresenta um predomínio de sono REM. Com a idade, a duração relativa do sono REM diminui, enquanto a do sono NREM vai aumentando até atingir 80% do tempo de sono no adulto e idoso. O recém-nascido (RN) dorme ainda com maior predomínio de “sono activo”, o precursor do futuro “sono REM”. Esta é uma das razões pelas quais os primeiros meses de vida apresentam uma vulnerabilidade maior às situações que ocorrem ou são agravadas durante o sono REM. De facto, sendo os RN e os lactentes jovens respiradores nasais quase obrigatórios, têm uma tendência única para episódios de obstrução durante o sono, em especial durante infecções das vias respiratórias superiores, uma vez que cerca de 50% são incapazes de iniciar a respiração oral alternativa antes de passarem 25 segundos a partir do momento em que a obstrução nasal se estabeleceu. As perturbações do sono – que surgem, em idade pediátrica, numa proporção estimada entre 25-43% – são classificadas em: – dissónias ou perturbações em que se verifica dificuldade em iniciar ou manter o sono e/ou sonolência excessiva; e – parassónias correspondendo a fenómenos físicos ocorrendo predominantemente durante o sono, não constituindo, de facto, anomalias do processo sono-vigília. O termo insónia na criança, fazendo parte das dissónias, refere-se à impossibilidade de manutenção duma boa qualidade do sono (por exemplo sono curto, interrompido ou intermitente, relacionável em geral com aquisição de determinados hábitos ou tensão emocional). Parassónias No âmbito das parassónias são consideradas: – as perturbações do despertar (incluindo o CAPÍTULO 28 Perturbações do sono despertar confusional, o sonambulismo, o terror nocturno, as perturbações da transição vigíliasono e as parassónias associadas ao sono REM); – as perturbações da transição vigília-sono (incluindo as perturbações dos movimentos rítmicos ou jactatio capitis nocturna e a sonilóquia); – as perturbações associadas ao sono REM (incluindo o pesadelo, o bruxismo do sono, a enurese do sono, a roncopatia primária, a síndroma de hipoventilação congénita de causa central, a mioclonia neonatal benigna do sono e a distonia paroxística nocturna). A síndroma de morte súbita do lactente/recém-nascido, ocorrendo em cerca de 80% dos casos enquanto a criança dorme, é abordada no capítulo 42. Relativamente a parassónias é dada ênfase às seguintes situações: Sonambulismo Mais frequente no sexo masculino entre os 4 e 15 anos, consiste numa série de actividades comportamentais complexas tais como: sentar-se na cama ou deambulação durante o sono, sem consciência, podendo levar à tentativa de sair do quarto ou de casa; se o doente for acordado, verifica-se estado confusional, sem se lembrar do ocorrido. Esta situação pode associar-se a terror nocturno e a sonilóquia. Na sua base exitem factores genéticos de ordem maturativa. O diagnóstico diferencial faz- se com a epilepsia parcial complexa nocturna. Como medidas terapêuticas apontam- se a psicoterapia incluindo tranquilização dos pais e, em casos especiais, administração de benzodiazepinas por períodos curtos. 145 Os episódios, variando entre 1 a 30 minutos, são caracterizados por intensa descarga autonómica com taquicárdia, taquipneia, erecção pilosa, midríase,etc.. A criança senta-se na cama assutada, chorando e gritando, e não respondendo a estímulos evidenciando estado confusional uma vez acordada. O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com estado confusional, pesadelo e epilepsia. As medidas terapêuticas são semelhantes às mencionadas para o sonambulismo. Perturbações dos movimentos rítmicos Trata-se de movimentos repetitivos e estereotipados envolvendo a cabeça, o pescoço e, por vezes, o tronco,pouco antes do início e por vezes mantidos durante o sono leve(estádio 1 não-REM); mais de 2/3 das crianças evidenciam este padrão comportamental aos 9 meses de idade,diminuindo depois a prevalência. Dum modo geral não se torna necessária qualquer terapêutica. Sonilóquia A sonilóquia consiste na emissão de palavras e frases desconexas emitidas involuntariamente durante o sono; está associada ao sono REM e não REM. Podendo surgir em qualquer idade, como factores etiológicos apontam- se ansiedade, estresse e febre. Não necessita de qualquer medida terapêutica. Despertar confusional Também por vezes associado a outras parassónias, em certos casos há que fazer o diagnóstico diferencial com epilepsia parcial complexa. Como medidas terapêuticas apontam- se a disciplina nos horários do sono,e a evicção de actividades físicas excessivas. Pesadelo Trata-se de sonho com algo que, provocando medo e ansiedade, desperta a criança do sono REM (segunda parte da noite). Estando provado que as crianças sonham já pelos 14 meses, os pesadelos são mais frequentes entre os 3 e os 6 anos, surgindo em cerca de 10 a 50% das crianças. Como medidas preventivas haverá que evitar situações que originem tensão emocional. Terror nocturno Esta situação surge em cerca de 3% das crianças com maior prevalência entre os 4 e 12 anos de idade, na primeira parte da noite, no sono não REM. Bruxismo O bruxismo do sono consiste em movimentos estereotipados de “ranger de dentes” em qualquer fase do sono podendo eventualmente conduzir ao 146 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA despertar. Com uma prevalência de cerca de 30%, superior em crianças saudáveis, tal parassónia é frequentemente descrita em crianças e adolescentes com paralisia cerebral e /ou atraso mental. Não requer medidas terapêuticas especiais; em certos casos poderá estar indicada a administração de benzodiazepinas. Roncopatia primária Consiste na emissão de ruído intenso, geralmente inspiratório e expiratório produzido nas vias respiratórias superiores, não acompanhado de episódios de apneia ou hipoventilação. Como factores etiopatogénicos apontam-se: hipertrofia amigdalina ou das adenóides, obstrução nasal, obesidade. O tratamento é etiológico podendo, em casos especiais, ser necessário o recurso à intervenção cirúrgica. Síndroma de hipoventilação congénita de causa central Esta síndroma, evidente já no recém- nascido, é explicada por falência do mecanismo de regulação central automática da respiração, na ausência de doença pulmonar primária ou de patologia muscular respiratória. A etipatogenia relaciona-se com anomalia do centro respiratório do tronco cerebral onde ocorre a integração dos quimiorreceptores periféricos e centrais. O quadro clínico decorre da exixtência de hipóxia e hipercápnia levando a sequelas, nomeadamente pulmonares e do sistema nervoso central. A manutenção da vida implica a necessidade de assistência respiratória (pressão positiva contínua nas vias respiratórias superiores). Enurese do sono Antes de abordar esta entidade clínica, será importante recordar algumas noções básicas sobre terminologia relacionada com o fenómeno da micção. A enurese, no sentido genérico do termo, define-se como a micção involuntária (incontinência urinária) mais do que duas vezes por semana durante três meses consecutivos em crianças com mais de 5 anos(idade em que, dum modo geral, o controle dos esfíncteres deve estar estabelecido). Considera-se primária (ou funcional) se a criança teve sempre este tipo de comportamento, excluindo-se patologia de base de tipo médico, neurológico, urológico ou mental; considera-se secundária (ou orgânica) se na criança for demonstrada patologia de base, e um período mínimo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia, com recorrência ulterior de micções involuntárias. A enurese nocturna (ou do sono) ocorre em tal circunstância; a enurese diurna ocorre durante o dia. De referir que a enurese diurna e nocturna podem coexistir A enurese primária representa cerca de 90% de todos os casos. A enurese secundária ocorre mais frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade. A enurese do sono, mais frequente na primeira parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2), ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos, 10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos. Admite-se hereditariedade de tipo autossómico recessivo, ou dominante com 90% de penetrância;outros estudos identificaram anomalias nos cromossomas 13 e 14 . A patogenia da enurese do sono não é bem conhecida; admite-se que possa estar em causa atraso da maturação neurofisiológica, bexiga de capacidade limitada e /ou aumento da contractilidade, discrepância entre a secreção de hormona antidiurética(HAD) nocturna e capacidade da bexiga,alteração do ritmo circadiano da HAD,etc.. Frequentemente existe associação com problemas de ordem psicoemocional e social. Estima-se que em cerca de 97% das situações de enurese do sono não existe causa orgânica. Em mais de 50% das situações de enurese nocturna primária existem antecedentes familiares. O diagnóstico diferencial da enurese do sono faz-se com situações de enurese secundária (doenças orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus ou insípida, bexiga neurogénica, anomalias do tracto urinário tais como uréter ectópico, obstipação crónica, estresse emocional, etc.). De salientar que em todos os casos de enurese verificada durante o sono importa proceder, como sempre, a um exame clínico completo da criança e, nomedamente, a detecção de anomalias do foro neurológico e espinhal. No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral será importante a realização dum conjunto de exa- CAPÍTULO 28 Perturbações do sono mes complementares mínimos,como determinação da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina com especial atenção para detecção de glicosúria, pH e densidade, eventual urinocultura, etc.. No que respeita à actuação na criança com idade igual ou inferior a 5 anos, há a referir um conjunto de medidas gerais cuja finalidade é explicar a situação, transmitir confiança e modificar alguns hábitos: – não criticar nem punir a criança, mantendo atitude de ambiente calmo; – apoio psicológico para criar auto-estima e tentar lutar contra o medo de ir à casa de banho; – nunca dormir com luz uma vez que esta diminui a secreção da hormona antidiurética – treino de consciencialização de “bexiga cheia” medindo a quantidade de urina que corresponde a tal sensação; – promover o esvaziamento regular da bexiga de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o suprimento em líquidos durante o dia (bebendo líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a partir das 19 horas; – evitar bebidas estimulantes da diurese (chá, café,chocolate, bebidas de cola, refrigerantes gaseificados); – responsabilizar a criança/jovem pela sua higiene, incumbindo-a/o do registo dos chamados calendários(incluindo o miccional); – retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar também o resguardo; – incutir a rotina de esvaziamento da bexiga antes de ir para a cama à noite; – entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das medidas gerais, a utilização de alarmes e fármacos como desmopressina (DDAVP), em geral sob a forma de spray nasal (10-40 mcg/dia), ou imipramina (para aumentar a capacidade da bexiga) na dose máxima de 2,5 mg/kg ao deitar . 147 Nos casos de insucesso destas medidas, a criança deverá ser encaminhada para consulta de subespecialidade (neurologia pediátrica, nefrourologia pediátrica, etc.), em função do contexto clínico para ulteriores exames complementares, nomeadamente imagiológicos. Dissónias No âmbito das dissónias são consideradas as seguintes situações: Narcolepsia Trata-se de uma perturbação de etiologia indefinida, caracterizada por sonolência excessiva diurna e outros fenómenos do sono REM . O diagnóstico diferencial deve ser feito com as situações a abordar seguidamente e com certas formas de epilepsia. Movimentos periódicos do sono São episódios periódicos de movimentos dos membros, repetitivos e estereotipados. Tais movimentos ocorrem geralmente nos membros inferiores e consistem em extensão do dedo grande do pé associada a flexão do pé, joelho e coxa. Esta situação é rara em idade pediátrica. Síndroma de membros inferiores “ inquietos” É uma situação também rara que consiste numa sensação desagradável e mal definida nos membros inferiores surgida antes do início do sono, e aliviada com a movimentação dos membros inferiores. Pode haver associação com défice de atenção e hiperactividade. No tratamento utilizam-se agentes dopaminérgicos. Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) Esta situação é abordada no capítulo seguinte. BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Parassónias. DMS-IV-TR. A estratégia que utiliza os calendários deve ter em conta o registo de uma tarefa ou objectivo (um de cada vez: ou registo de noites secas,ou de acordar espontaneamente para urinar, ou menor quantidade de perda urinária ou aumento de ingestão de líquidos durante o dia). Lisboa: Climepsi Editores. 2002; 109: 704-712 American Academy of Pediatrics. Clinical practice guideline: diagnosis and management of childhood obstructive sleep apnea. Pediatrics 2000; 109: 630-644 Howard BJ, Wong J. Sleep disorders. Pediatrics in Review 2001; 22: 327-342 148 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Kryger MH, Roth T, Dement WC. Principles and Practice of Sleep Medicine. Philadelphia:Saunders, 2000 Laberg l, Tremblay RE, Vitaro F, Montplisir J. Development of parasonias from childhood to early adolescence. Pediatrics 2000; 106:67-74 29 Owens L, France KG Wiggs L. Behavioral and cognitive behavioral interventions for sleep disorders in infants and children: A review. Sleep Medicine Reviews, 1999;3:281-302 SÍNDROMA DA APNEIA OBSTRUTIVA DO SONO (SAOS) Mário Coelho Definição A SAOS é uma perturbação respiratória caracterizada por episódios de obstrução parcial prolongada e/ou obstrução completa intermitente das vias aéreas superiores perturbando a ventilação normal durante o sono e os padrões normais deste. Tais episódios estão geralmente associados a diminuição da saturação da hemoglobina em oxigénio com hipoxémia e, por vezes, hipercápnia. Aspectos epidemiológicos e importância do problema A SAOS ocorre em todas as idades pediátricas, desde o recém-nascido ao adolescente, sendo mais prevalente na idade pré-escolar (2 a 6 anos), provavelmente pela relação aumentada entre as vegetações adenóides/amígdalas e o calibre das vias aéreas superiores(VAS) verificada nesta faixa etária. Estima-se que em Portugal existam cerca de 20.000 a 45.000 crianças e adolescentes com SAOS, o que transforma esta patologia num problema de grande magnitude, quer pela elevada prevalência, quer pelas consequências para a criança e para o futuro adulto, caso não surja em tempo oportuno a terapêutica adequada ou uma eventual resolução espontânea. Fisiopatologia Como resultado das diferenças de pressão geradas durante as fases da respiração, as vias aéreas 149 CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) extratorácicas (nasofaringe, laringe e traqueia) têm tendência ao colapso inspiratório e obstrução. Em condições fisiológicas existem forças de sentido contrário que levam à dilatação dessa via aérea, impedido o colapso. Essas forças dilatadoras são geradas por cerca de 40 músculos que fixam e puxam para diante, quer a língua (por ex: genioglosso), quer a laringe (por ex: aparelho muscular e osso hióide). Com frequência existem causas estruturais (vegetações adenóides e amígdalas palatinas hipertrofiadas, obesidade, macroglossia, etc.) e/ou funcionais (doenças neuromusculares com hipotonia, incoordenação neuromuscular local, hipossensibilidade dos centros respiratórios do lactente, fases do sono, etc.) que, actuando sinergicamente e por múltiplos mecanismos, acabam por potenciar a vertente colapsante. Neste caso, a obstrução instala-se, a resistência intraluminal aumenta desproporcionadamente (Lei de Laplace), o fluxo aéreo torna-se mais turbulento, os tecidos moles envolventes vibram e produz-se o característico ruído de obstrução parcial das vias aérea superiores – o “roncar” ou “ressonar” (“snoring”). O grau de obstrução das vias aéreas superiores pode situar-se entre dois extremos: uma expressão de gravidade mínima que cursa com obstrução ligeira sem outras repercussões aparentes – o “ressonar primário”, ronco ou roncopatia primários, já referido noutro capítulo; e, no extremo oposto, a obstrução completa intermitente com apneia e repercussões multissistémicas graves – a “síndroma de apneia obstrutiva do sono” (SAOS). Entre os dois extremos existe um espectro de situações clínicas resultantes de graus diversos de obstrução a que correspondem nosologias como por exemplo “síndroma de resistência aumentada da vias aéreas superiores” (SRAVAS) e “síndroma de hipopneia obstrutiva do sono” (SHOS). A Figura 1 procura representar o ciclo fisiopatológico da SAOS. Após o adormecer inicial, estabelece-se normal e progressiva hipotonia das VAS que, nestes casos, condiciona a sua obstrução e a ocorrência de redução significativa (hipopneia) ou paragem duradoura do fluxo ventilatório (apneia). A hipoxémia e retenção de CO2 resultantes são estímulos efectivos para o centro respiratório, levando a um novo aumento da actividade dos Redução tono das VAS Adormecer O2/CO2 Normal Desobstrução Obstrução Actividade aumentada dos musculos respiratórios Apneia obstrutiva Redução do fluxo aéreo Hipoxémia Hipercápnia “Despertar” Esforço respiratório aumentada FIG. 1 Fisiopatologia da SAOS músculos dilatadores da faringe que conseguem abrir o lume e, por vezes, tornar o sono mais superficial (“microdespertar”, “despertar”; “arousal”), recuperação do tono das VAS, desobstrução, retoma do fluxo ventilatório e normalização do PH e gases no sangue. Este ciclo repete-se a ritmos variáveis que podem chegar até dezenas de apneias/hora (índice de apneia). Quanto maior o índice de apneia, mais vezes o sono profundo é interrompido por “despertares”. Tal fenómeno leva à “fragmentação do sono” reduzindo a duração das fases de sono reparador. SAOS na criança e no adulto Apesar de muitos aspectos da fisiopatologia da SAOS serem comuns ao adulto e à criança, a SAOS na criança não é uma forma infantil da SAOS do adulto. De facto, os factores de risco, manifestações clínicas e complicações, critérios de diagnóstico e prioridades terapêuticas são muito distintos entre ambos. O Quadro 1 realça este aspecto comparando algumas das características da SAOS na criança e no adulto. Factores predisponentes Deve ter-se em conta que existem algumas situações predisponentes de SAOS; daí a importância da sua identificação para o rastreio da SAOS. O Quadro 2 dá exemplos de algumas das situações que requerem particular atenção. 150 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – SAOS na criança e SAOS no adulto Sexo SAOS no Adulto Sexo M/ Sexo F: 10/1 Respiração oral diurna Pouco comum Obesidade Comum Má progressão ponderal/emagrecimento Não Alterações neurocomportamentais Excessiva sonolência diurna Factor etiológico mais comum Tratamento Alterações neurocognitivas e dimunição da concentração Sinal major Obesidade Uvulopalatofaringoplastia CPAP SAOS na Criança Sexo M/ Sexo F: 1/1 Comum Pouco comum Comum Hiperactividade, irritabilidade, atraso do desenvolvimento Pouco comum Hipertrofia das vegetações adenóides Amígdalo-adenoidectomia CPAP (raro; casos seleccionados) Abreviatura: CPAP – Continuous Positive Airway Pressure ou pressão positiva contínua nas vias aéreas Manifestações clínicas A história clínica é um instrumento fundamental para a abordagem de uma criança com suspeita de SAOS (ou qualquer outra entidade do espectro da obstrução das vias aéreas superiores). QUADRO 2 – Factores predisponentes de SAOS I – Estreitamento ou compressão das vias aéreas; disfunção neuromuscular; hipertrofia das vegetações adenóides e amígdalas palatinas*; disfunção dos músculos das vias aéreas (doenças neuromusculares); hipotiroidismo; macroglossia; micrognatia*; retrognatia; nasofaringe estreita*; pólipos nasais; drepanocitose; tumor laríngeo; obesidade*; status pós reparação de fenda palatina; laringomalácia; etc.. II – Doenças neurológicas; disfunção neurológica de qualquer origem; paralisia cerebral; doenças neuromusculares*; defeitos do tronco cerebral (anomalia de Arnold-Chiari; hidrocefalia; mielomeningocele; distrofia miotónica; etc.) III - Supressão do controle das vias aéreas (álcool; anestesia; narcóticos; sedativos). IV – Anomalias genéticas e defeitos congénitos com hipoplasia do maciço facial (acondroplasia; síndroma de Down*; síndroma de Apert; artrogripose; síndroma de Beckwith-Wiedemann; doença de Crouzon; síndroma de Marfan; síndroma de Pierre-Robin*; mucopolissacaridoses; etc.) *risco major Pela anamnese há que pesquisar um conjunto de sintomas que, embora inespecíficos, devem ser valorizados no âmbito do diagnóstico de uma eventual SAOS: – Sintomas nocturnos/durante o sono – Ressonar: especialmente se crónico e/ou intenso: manifestação major cuja pesquisa deve fazer parte da anamnese nas consultas de rotina da criança de qualquer idade. – Esforço respiratório aumentado: graus diversos de taquipneia, adejo nasal, retracção inspiratória, movimento paradoxal tóracoabdominal, cianose – Episódios de apneia – Estertor: no retomar da ventilação após apneia – Respiração bucal – Posição particular a dormir (ex: extensão do pescoço) – Sono muito agitado – Sudação profusa – Enurese – Acordar frequente e parassónias (terrores nocturnos, pesadelos) – Dificuldade ao acordar e confusão – Mau humor – Cefaleia – Boca seca – Obstrução nasal e/ou respiração bucal – Náusea e vómito frequentes, dificuldade de deglutição, anorexia – Problemas escolares: alterações do compor- CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) tamento, irritabilidade, hiperactividade, redução da atenção, dificuldades de memória e concentração – Sonolência excessiva. Ao realizar o exame objectivo há que dar atenção aos seguintes aspectos: – Exame geral na vigília é “normal”na maioria dos casos – o que não exclui o diagnóstico. – Índice de massa corporal aumentado ou atraso de crescimento – Fácies adenoideia – Nariz, septo e fossas nasais (rinite, pólipos, desvios) – Orofaringe (volume das adenóides e amígdalas), anomalias do palato e úvula – Estruturas craniofaciais: micrognatia, hipoplasia do andar médio, hipoplasia mandibular – Atraso de desenvolvimento, atraso de crescimento ou morte são manifestações de formas muito graves já raramente observadas. – Manifestações de síndromas do neurodesenvolvimento (por ex.: síndroma de Down), anomalias do tórax, cardíacas ou neurológicas). Exames complementares Os exames complementares enquadram-se em dois grandes grupos, sendo dirigidos à avaliação de: 1. Obstrução significativa e parâmetros do sono - Polissonografia nocturna (PSN) Constitui o método de “ouro” ou de excelência“gold standard” para o diagnóstico. Requerendo tecnologia e profissionais diferenciados assim como equipamentos sofisticados, implica algum incómodo para a criança e acompanhante. A polissonografia é cara e de acesso difícil aos escassos laboratórios de sono existentes. A execução e interpretação dos resultados é mais difícil na criança. Trata-se do único exame susceptível de fornecer indicações simultâneas e quantificadas sobre importantes parâmetros biológicos durante o sono, permitindo obter índices funcionais indispensáveis à completa classificação e avaliação da situação (índice de apneia, índice de hipopneia, modo de despertar, eficácia do sono, estádios do sono, tipos de apneia – central, obstrutiva, mista, etc.), e dar indicações quanto à terapêutica mais adequada. 151 – Técnicas “abreviadas” ou de “rastreio” Tais técnicas incluem, designadamente PSN parcial, oximetria de pulso nocturna contínua ou de uma sesta, gravação áudio do ressonar, videograma do sono, registo dos movimentos dos membros (actigrafia), inquéritos do sono, várias combinações de técnicas, etc.. Estas técnicas abreviadas são úteis se os resultados forem positivos (valor preditivo positivo: oximetria de pulso isoladamente: 70 a 100%; videograma do sono isoladamente: 83%; audiograma do sono utilizado isoladamente: (50-75%). O valor preditivo negativo é, pelo contrário, muito fraco. De salientar que um resultado negativo em criança clinicamente suspeita de SAOS deve ser sempre ser confirmado por PSN. 2. Repercussões sistémicas da perturbação ventilatória – Para avaliar a repercussão sistémica da perturbação ventilatória, está indicado um conjunto de exames complementares essenciais tais como: hemograma (para detecção de eventual policitémia), estudo do pH e gases no sangue (para avaliar as eventuais alterações da relação ventilação/perfusão V/P), electrocardiograma (ECG), ecocardiograma/doppler, etc. em função do contexto clínico e, nomeadamente, da identificação de factores predisponentes. Face à escassez de meios humanos e de equipamento para responder em tempo útil às crianças com suspeita de patologia do sono, há que estabelecer prioridades nas indicações para realização de uma investigação clínico-laboratorial exaustiva, nomeadamente de PSN. Assim, devem ser prioritariamente encaminhadas para um centro com experiência no tratamento de perturbações respiratórias do sono as crianças que ressonam e nas quais se verifique um ou mais dos critérios referidos no Quadro 3. Em suma, no final da avaliação de uma criança que ressona havendo suspeita de SAOS, o médico deve estar em condições de identificar: a) Uma de duas situações “extremas”: – “Ronco primário”, se não existirem outras manifestações clínicas de perturbação ventilatória no sono, não existirem episódios de défice de saturação em O2, de apneia ou de hipopneia significativa. Trata-se de diagnóstico de exclusão; 152 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Critérios prioritários de encaminhamento para centro especializado (suspeita de SAOS) 1 – Descrição pelos pais de pausas e/ou estertores durante o sono 2 – Sonolência diurna excessiva ou alteração neurocomportamental 3 – Redução do rendimento escolar 4 – Hipertrofia das adenóides 5 – Infecções recorrentes das vias aéreas superiores 6 – Deficiente progressão ponderal – “SAOS” se, pelo contrário, as referidas perturbações incluirem episódios de hipopneia e apneia em número que cumpram os critérios de SAOS. b) ou situações “intermédias” com manifestações na fronteira das duas anteriores: – “SRAVAS (síndroma de resistência aumentada das VAS ), em que existe clínica de obstrução e défice de saturações em O2 nocturnas, mas índices de apneia e/ou hipopneia normais; – “SHOS” (síndroma de hipopneia obstrutiva do sono), com índices de hipopneia acima do limite superior do normal, mas sem apneias significativas. À medida que maior número de crianças que ressonam forem sujeitas a avaliação clínico-laboratorial, a proporção das situações incluídas em b) será cada vez maior. Tratamento O tratamento da SAOS deve ser o tratamento das situações ou causas predisponentes, nomeadamente das causas obstrutivas das VAS. As medidas terapêuticas mais comuns são: 1. Amigdalo-adenoidectomia Resultando em 75% a 100% de curas, é o tratamento de primeira linha em crianças com hipertrofia adenoamigdalina e ausência de contra-indicações para cirurgia. Algumas crianças (Quadro 4) com SAOS, pelo risco elevado de complicações pós-operatórias (edema das VAS, edema pulmonar, pneumotórax, morte, etc.) devem ser submetidas a plano anestésico-cirúrgico especial e a QUADRO 4 – Factores de risco pós-operatório em crianças com SAOS submetidas a adenoamigdalectomia • idade inferior a 2-3 anos • SAOS grave detectada por PSN (índice de apneia/ /hipopneia>10/h; Saturação em O2 <70%) • complicações cardíacas da SAOS • atraso de crescimento/má progressão ponderal • obesidade • história de prematuridade • infecção respiratória recente • anomalias craniofaciais • hipotonia muscular vigilância pós-operatória prolongada até ao dia seguinte, com monitorização por oximetria de pulso. 2. Ventilação por pressão positiva contínua (CPAP ou BiPAP) Permite o controlo da situação em 85% a 90% dos casos. A evolução tecnológica dos aparelhos na última década permitindo o seu uso domiciliário seguro a custos comportáveis: o aparecimento de máscaras nasais cada vez mais confortáveis e adaptáveis às dimensões faciais da criança com o crescimento, vieram transformar esta forma de ventilação não invasiva numa opção eficaz no tratamento da SAOS. É utilizada, quer em primeira linha (doenças médicas, patologia neuromuscular, dismorfias faciais, obesidade, contraindicações para cirurgia, persistência de SAOS após intervenção cirúrgica etc.), quer como alternativa à cirurgia ou à ventilação por traqueostomia, quer ainda de forma transitória (“tratamento em ponte”) quando é necessária uma estabilização clínica antes da intervenção cirúrgica. Persistem alguns problemas relacionados com a pressão local da máscara nasal e respectivas fitas suspensoras e com a secura/ congestão da mucosa nasal e ocular; contudo, dum modo geral, a tolerância é boa. 3. Outras terapêuticas e medidas coadjuvantes Técnicas como uvulopalatofaringoplastia, técnicas de ortodôncia e outras técnicas cirúrgicas, raramente utilizadas na criança, têm interesse muito CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) secundário. Poderão ser adoptadas as seguintes: posicionamento durante o sono com alívio da obstrução; emagrecimento se houver excesso ponderal; redução de medicamentos depressores do sistema nervoso; corticoterapia inalada; antibioticoterapia se se verificar infecção crónica local, etc.. Cabe referir, no entanto, que apesar dos recentes avanços na investigação e experiência adquirida nesta área da pediatria, ainda não há consenso sobre vários aspectos da SAOS na criança, tais como critérios de diagnóstico mais adequados e terapêutica ideal. GLOSSÁRIO Apneia > Critérios clínicos – ausência de fluxo aéreo bucal ou nasal; tipo central (ausência de esforço respiratório); tipo obstrutivo (presença de esforço respiratório continuado, devido a colapso das vias aéreas superiores); ou tipo misto (apneia central e obstrutiva ocorrendo sequencialmente sem que haja respiração normal entre os dois eventos). Critérios polissonográficos – tipo obstrutivo (ausência de fluxo oro-nasal na presença de esforço respiratório contínuo, durando mais de 2 ciclos respiratórios; geralmente, mas não sempre, associado a hipoxémia); tipo central (cessação de esforço respiratório que dura 2 ou mais ciclos respiratórios). Dessaturação (ou défice de saturação) > descida da SatO2 ≥4% Hipoventilação > Critérios clínicos – redução da ventilação pulmonar abaixo de um mínimo que assegure valores normais de O2 e CO2 sanguíneos: tipo obstrutivo (obstrução alta parcial levando a ventilação pulmonar inadequada com centro respiratório funcionante); ou tipo não-obstrutivo, (estado de depressão do centro respiratório, doença neuromuscular ou doença pulmonar restritiva). Índice de apneia/hipopneia > nº de episódios de apneia/ hipopneia/hora. Ressonar habitual > ressonar em todas as noites ou na maioria das noites (10% de todas as crianças). BIBLIOGRAFIA Academia Americana de Pediatria.Guia de Prática Clínica: Diagnóstico e terapêutica da Sindroma da Apneia Obstrutiva do Sono. Pediatrics (edição portuguesa) 2002;10:213-221 American Thoracic Society.Standards and indications for cardiopulmonary sleep studies in children. Am J Respir Crit Care Med 1996; 153: 866-878 Amorim A, Machado A, Winck JC, Almeida J. Síndroma de apneia obstrutiva do sono em crianças. Acta Pediatr Port 2004;35: 49-61 153 Duarte C, Santos I, Estêvão MH. Perturbações do sono na criança. Acta Pediatr Port 2004; 35; 349-357 Rosen CL. Obstructive sleep apnea syndrome in children: controversies in diagnosis and treatment. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 153-167 154 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 30 PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO DO AUTISMO Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto QUADRO 1 – Classificação das Perturbações Globais do Desenvolvimento segundo a DSM-IV 1. Perturbação Autística 2. Perturbação de Rett 3. Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância (síndroma de Heller) 4. Perturbação de Asperger 5. Perturbação Global do Desenvolvimento – sem outra especificação (PGD-SOE) Aspectos epidemiológicos. Importância do problema Em 1943 e 1944, o pedopsiquiatra americano Leo Kanner e o pediatra austríaco Hans Asperger descreveram uma doença infantil caracterizada pela tríade: défice na comunicação, comportamento repetitivo e défice na interacção social. A referida doença que viria posteriormente a ser designada por psicopatia autística ou autismo. Actualmente sabe-se que o autismo não é uma doença específica, mas uma perturbação do desenvolvimento cerebral com uma forte base genética e acentuada heterogeneidade, podendo apresentar desde sintomas ligeiros a alterações graves, sendo as formas ligeiras mais frequentes que a forma clássica. Tem sido referida a ligação entre o autismo e algumas variantes do gene do trasportador da serotonina, admitindo-se que a susceptibilidade genética possa ser potenciada por factores ambientais. Devido às variações qualitativas e quantitativas dos sintomas, passou a considerar-se a existência de um espectro do autismo. Assim, o autismo clássico, as doenças do espectro do autismo ou perturbações globais do desenvolvimento, como são designadas na classificação mais recente, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV (Quadro 1) fazem parte de um grande contínuo de perturbações cognitivas e neurocomportamentais com os mesmos critérios basilares acima referidos: alteração da interacção social, da comunicação (verbal e não verbal), e padrões de comportamento, interesse e actividades repetitivas, restritas ou estereotipadas. Estudos internacionais recentes estimam uma prevalência do autismo clássico oscilando entre 1 e 16/10.000 sendo que os valores têm aumentado nos ultimos 35 anos, com predomínio no sexo masculino numa relação de 3/1. O aumento da prevalência em relação a estudos anteriores resulta de uma combinação de factores como inclusão de formas mais ligeiras no espectro, maior informação e capacidade de diagnóstico, e subida real devida a influências ambientais. Não foi, porém, encontrada qualquer relação de causalidade entre o autismo e a vacina contra o sarampo, papeira e rubéola (VASPR). Os estudos em gémeos mostraram uma elevada concordância em gémeos monozigóticos e não em dizigóticos, sugerindo que se trata de uma doença genética. Os estudos epidemiológicos indicaram que os factores ambientais como a exposição a tóxicos ou lesões perinatais eram responsáveis por um número reduzido de casos e que as doenças médicas diagnosticáveis, alterações citogenéticas ou doenças monogénicas (como a esclerose tuberosa, síndroma do X frágil ou outras doenças metabólicas mais raras) correspondem a menos de 10% dos casos. Os estudos sugerem que se trata de uma patologia genética, provavelmente multigénica, sendo de referir que factores epigenéticos e a exposição a modificadores ambientais contribuem para a grande variabilidade de expressão fenotípica. No maior estudo epidemilógico realizado em Portugal por Guiomar Oliveira e colaboradores, divulgado em 2005, a prevalência de perturbações do espectro do autismo foi de 0,92/1.000 com predomínio no sexo masculino (75%). CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo Uma vez que se trata de uma patologia definida por sintomas comportamentais, e com um peso negativo importante para os pais, tem havido uma dificuldade em fazer um diagnóstico precoce, da parte dos técnicos, por receio, sobretudo, de diagnóstico incorrecto. Assim, o diagnóstico de autismo geralmente não é colocado antes dos 3 anos, idade em que os problemas de socialização ou da linguagem (comunicação) se tornam mais flagrantes. No estudo portugês atrás referido 93% dos casos foram identificados até aos 2 anos de idade. A criança em risco Em cada consulta de saúde infantil, é importante que os clínicos identifiquem as crianças em risco de desenvolvimento atípico, usando métodos de rastreio adequados e, inquirindo sobre a comunicação, o comportamento e a interacção social. Se a criança não atinge um dos seguintes marcos: palrar aos 12 meses; usar o gesto para apontar ou dizer adeus aos 12 meses; dizer palavras isoladas aos 16 meses; juntar palavras (espontâneo e não ecolálico) aos 24 meses. Se se verificar perda de competências sociais ou da linguagem em qualquer idade, deve ser feito um rastreio específico do autismo (usando testes como a Checklist for Autism in Toddlers – CHAT e um rastreio audiológico para excluir défice auditivo. Caso o referido rastreio confirme alterações ou no caso de o clínico não ter conhecimentos específicos sobre esta área, a criança deve ser encaminhada para um especialista em patologia do desenvolvimento. Os irmãos deverão ser alvo de uma vigilância rigorosa uma vez que o risco de repetição é cerca de 10-20%, ou seja, 50 vezes superior ao da população em geral. Manifestações clínicas O diagnóstico de perturbação autística (cujos critérios estão especificados no Quadro 2) não é fácil e deve ser feito por uma equipa multidisciplinar, com recolha de informação de vários contextos (casa, escola, actividades de tempos livres, etc.) e sob várias formas (inquéritos, questionários específicos, escalas específicas e testes), de forma a poder ser definido o perfil de desenvolvimento e planeada uma intervenção de acordo com as potencialidades e dificuldades da criança. 155 O desenvolvimento aberrante das competências sociais é a base das perturbações do espectro do autismo. Pode incluir alteração do contacto visual, isolamento, não responder ao seu nome, não usar o gesto para apontar ou mostrar, não ter jogo interactivo e não manifestar interesse pelos seus pares. A criança com autismo tem, frequentemente, alterações da linguagem expressiva, que podem ir do mutismo à fluência verbal, embora com perturbação da semântica e pragmática. O atraso na fala e alguns problemas de comportamentos bizarros ou atípicos constituem preocupações frequentes dos pais nas crianças entre 1 e 3 anos. No autismo, o valor do quociente intelectual de realização (QIR) quantifica o desempenho nas áreas não verbais; é habitualmente superior ao do quociente intelectual verbal (QIV). No entanto, a diferença entre QIR e QIV depende da gravidade do défice intelectual. O perfil cognitivo típico nos casos de autismo clássico avaliado através da prova WISC (escala de inteligência de Wechsler para crianças) caracteriza-se por resultados elevados na construção de cubos e baixos na compreenção e composição de figuras. As perturbações da motricidade fina e grosseira são também frequentes, associando-se a maneirismos e estereotipias motoras. O processamento sensorial pode estar alterado provocando respostas atípicas aos diferentes estímulos, com hiper ou hiporreactividade. Há dificuldades acrescidas nas actividades que requerem processos conceptuais complexos, raciocínio e interpretação, integração e abstracção, estando as competências que dependem de memória e repetição automática ou de processos perceptuais mais conservadas. Os instrumentos de diagnóstico classificam-se em 2 grupos: questionários ou entrevistas e escalas de observação directa; ambos os métodos se complementam. Citam-se alguns daqueles instrumentos mais utilizados: a Gilliam Autism Ratig Scale, a Parent Interview for Autism, o Pervasive Developmental Disorders Screening Test – Stage 3, a Autism Diagnostic Interview – Revised, a Childhood Autism Rating Scale, a Screening Tool for Autism in Two-Year-Olds, ou o Autism Diagnostic Observation Schedule – Generic. Devem ser complementados, quando necessário, 156 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Critérios de Diagnóstico de Perturbação Autística segundo a DSM-IV A. Presença de seis (ou mais) itens de (1), (2) ou (3), com pelo menos dois de (1), e um de (2) e um de (3) (1) défice qualitativo na interacção social, manifestado pelo menos por duas das seguintes características: a. acentuado défice no uso de múltiplos comportamentos não verbais, tais como, contacto ocular, expressão facial, postura corporal e gestos reguladores da interacção social; b. incapacidade para desenvolver relações com os companheiros, adequadas ao nível de desenvolvimento; c. ausência da tendência espontânea para partilhar com os outros prazeres, interesses ou objectivos (por exemplo, não mostrar, trazer ou indicar objectos de interesse); d. falta de reciprocidade social ou emocional; (2) défice qualitativo na comunicação manifestado, pelo menos, por uma das seguintes características: a. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral (não acompanhada de tentativas para compensar através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímica); b. nos sujeitos com um discurso adequado, uma acentuada incapacidade na competência para iniciar ou manter uma conversação com os outros; c. uso estereotipado ou repetitivo da linguagem ou linguagem idiossincrática; d. ausência de jogo realista espontâneo, variado, ou de jogo social imitativo adequado ao nível de desenvolvimento; (3) padrões de comportamento, interesses e actividades restritos, repetitivos e estereotipados, que se manifestam pelo menos por uma das seguintes características: a. preocupação absorvente por um ou mais padrões estereotipados e restritivos de interesses que resultam anormais, quer na intensidade quer no seu objectivo; b. adesão, aparentemente inflexível, a rotinas ou rituais específicos, não funcionais; c. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exemplo, sacudir ou rodar as mãos ou dedos ou movimentos complexos com todo o corpo); d. preocupação persistente com partes de objectos; B. Atraso ou funcionamento anormal em, pelo menos, uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade (1) interacção social (2) comunicação (3) comportamento repetitivo C. A perturbação não é explicada pela presença de uma perturbação de Rett ou perturbação desintegrativa da segunda infância por avaliações mais específicas da linguagem e avaliações cognitivas e do comportamento adaptativo, de forma a elaborar o perfil funcional da criança. Posteriormente, deve haver um cuidado de observação continuada e reavaliação, pelo menos com periodicidade anual. A maioria das crianças com doença do espectro do autismo idiopática evidencia um exame físico normal. No entanto, o autismo poderá coexistir com sintomalogia neurológica decorrente de disfunção cerebral difusa ou de imaturidade neurológica. São exemplos de tal comorbilidade o défice intelectual e outro défices cognitivos, a epilepsia, problemas auditivos, visuais, sensoriomotores, perturbações do sono, perturbações do foro psi- quiátrico e sinais dismórficos. Muitas crianças têm “cabeça grande”, somente preenchendo os critérios de macrocefalia associada a neuropatologia uma pequena percentagem. De referir igualmente a relação possível entre doença celíaca e autismo, não consensual para alguns investigadores. Assim, o recurso a determinados exames complementares deve ser ponderado caso a caso, designadamente na perspectiva do diagnóstico diferencial. Poderá ser recomendado um estudo genético, nomeadamente cariótipo de alta resolução e análise de ADN para X Frágil nas crianças com défice cognitivo, com antecedentes familiares relevantes ou dismorfias. A investigação metabólica deve ser iniciada CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo segundo a clínica, sobretudo nos casos de letargia, vómitos cíclicos, convulsões precoces, dismorfias, ou défice cognitivo. O EEG não deve ser feito por rotina, mas está indicado se houver convulsões, suspeita de convulsões subclínicas ou história de regressão do desenvolvimento. Embora as crianças com autismo possam ter, como foi referido, aumento do perímetro cefálico, não há evidência clínica que defenda o recurso por rotina à neuroimagiologia. Também não se justifica o estudo por rotina para para investigar, por exemplo, doença celíaca, atopia, alterações imunológicas ou neuroquímicas, micronutrientes, função tiroideia, estudos de permeabilidade intestinal ou doenças mitocondriais. Intervenção A intervenção requer, como foi salientado, cooperação multidisciplinar. Nesta perspectiva, este tópico é também abordado na parte referente Pedopsiquiatria. Segundo as revisões recentes as estratégias presentemente aceites são: 1. A melhoria do nível funcional global da criança, envolvendo-a num programa apropriado de intervenção educativa que promova o desenvolvimento das competências comunicativas, sociais, adaptativas, comportamentais e académicas (como por exemplo o programa TEACCH ou “Treatment and education of autistic and related communications of handicapped children); 2. A redução dos comportamentos desajustados e repetitivos através de controle farmacológico, nomeadamente com antidepressivos como a fluoxetina ou neurolépticos como a risperidona, ou comportamentais; 3. Apoio à família no sentido de gerir o estresse, fornecendo informação e fomentando apoio de grupos de pais. Em suma, o diagnóstico precoce associado a uma intervenção precoce, (idealmente pelos 2 ou 3 anos de idade) consistente e intensiva e com ensino entre 15-40 horas/semanais, educacional e comportamental, tem contribuído para melhorar o prognóstico. De notar que tem havido um número crescente de terapias alternativas não provadas cientificamente. São exemplos o treino de integração auditiva 157 ou a comunicação facilitada, modificações dietéticas, a integração sensorial, recurso a vários tipos de fármacos ou estimulação pelo contacto com animais. Prognóstico Dada a grande heterogeneidade da população com perturbação do espectro do autismo, o prognóstico é igualmente variável e tem vindo a melhorar, o que é explicável pelo diagnóstico e intervenção precoces. O prognóstico é francamente melhor nos indivíduos com QI acima de 6065 na infância e que adquirem linguagem funcional no início da idade escolar. Nas situações em que há uma regressão ou perda de competências, como na síndroma de Heller ou na síndroma de Rett, o prognóstico é naturalmente mais reservado. Apenas uma minoria de indivíduos atinge autonomia social na idade adulta, sendo que a percentagem que vem a obter emprego oscila entre 0-21,5% conforme os diversos grupos de investigadores. De referir que cerca de 50% dos casos mantêm dependência total. BIBLIOGRAFIA American Academy of Neurology and the Child Neurology. Report of the quality standards subcommittee of the society practice parameter: screening and diagnosis of Autism. Neurology 2000; 55: 468-479 American Academy of Pediatrics. Committee on Children With Disabilities. The pediatrician’s role in the diagnosis and management of autistic spectrum disorder in children.Pediatrics 2001; 107: 1221-1226 American Psychiatric Association. Perturbações globais do desenvolvimento in DMS-IV-TR. Lisboa: Climepsi, 2000:6984 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Kurita H. Disorders of the autim spectrum. Lancet 2006, 368:179-181 Muhle R, Trentacosta S V, Rapin I. The Genetics of autism. Pediatrics 2004; 113: 472-486 Oliveira G. Epidemiologia do Autismo em Portugal (Tese de Doutoramento - Universidade Coimbra). Coimbra, 2005 Teplin SW. Autism and Related Disorders In Levine MD, Carey WB, Crocker AC (eds). Developmental-Behavioral 158 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 589-605 Wallace GL, Treffert DA. Head size and autism. Lancet 2004; 363:1003-1004 Williams JG, Higgins JPT, Brayne CEG. Systematic review of prevalence study of autism spectrum disorders. Arch Dis Child 2006; 91:8-15 31 PERTURBAÇÕES DE HIPERACTIVIDADE E DÉFICE DE ATENÇÃO Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale Importância do problema A perturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA) é o distúrbio neurocomportamental mais comum na infância. Com uma prevalência estimada de 5-10% nas crianças em idade escolar, persistindo na adolescência e idade adulta, conta-se entre as doenças crónicas mais prevalentes no grupo etário pediátrico. Durante muitos anos pensou-se que resultaria de uma lesão cerebral, mas o predomínio familiar apontou para causas genéticas. Estudos mais recentes, especialmente estudos em gémeos monozigóticos e dizigóticos, revelaram tratar-se de uma doença multifactorial, com uma forte base genética. As investigações actuais consideram dever-se a uma alteração genética (aparentemente multigénica) que determina uma alteração na actividade dos neurotransmissores (especialmente da dopamina e serotonina) originando um padrão comportamental característico. Os familiares de crianças com PHDA têm um risco 6 vezes superior de terem PHDA relativamente à população normal. O ambiente, embora não tendo uma relação causal directa, é importante na modulação dos sintomas e no grau de disfunção causada. Os sintomas podem ser atenuados por um ambiente mais estruturado ou ser exacerbados por um ambiente menos favorável e mais desorganizado. Manifestações clínicas e diagnóstico A forma de apresentação clínica pode ser muito CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção variável, sendo frequentes as queixas de insucesso escolar, alterações do comportamento na sala de aula, desatenção, problemas nas relações sociais, ou baixa auto-estima. Os sintomas principais da PHDA incluem essencialmente falta de atenção, hiperactividade e impulsividade, não associados a qualquer patologia psiquiátrica. O Quadro 1, adaptado do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV, sintetiza os critérios diagnósticos da referida entidade clínica. As crianças com os sintomas típicos de hiperactividade e impulsividade são geralmente identificadas pelos professores porque perturbam a sala de aula. No entanto, as crianças com o subtipo desatento da PHDA, com sintomas de hiperactividade e impulsividade ausentes ou mínimos, podem passar despercebidas, manifestando apenas insucesso escolar, sendo por vezes rotuladas como desinteressadas ou desmotivadas em relação à escola. Na população em geral parece haver um predomínio no sexo masculino, embora possa haver subdiagnóstico no sexo feminino, devido a um predomínio do subtipo “desatento”. Em Portugal esta entidade apenas recentemente tem sido alvo de interesse pelos clínicos, o que explica a falta de estudos epidemiológicos nacionais, bem como uma taxa de diagnóstico seguramente inferior à real. Segundo as recomendações internacionais, perante uma criança entre os 6 e 12 anos, com falta de atenção, hiperactividade, impulsividade, insucesso escolar ou problemas de comportamento, o clínico deve iniciar uma avaliação de PHDA com encaminhamento para uma consulta de especialidade. Para o diagnóstico da PHDA torna-se fundamental recolher informação de várias fontes: dos pais, dos professores, ou de outros profissionais que conhecem a criança. Como não há instrumentos que indiquem com confiança o grau e a natureza da perturbação funcional de uma forma objectiva, devem ser utilizadas perguntas livres genéricas, perguntas específicas sobre alguns comportamentos, questionários semi-estruturados, assim como questionários e escalas específicas. A aplicação de escalas e questionários específicos tem evidenciado sensibilidade e es- 159 pecificidade acima de 94%, permitindo assim distinguir crianças com e sem PHDA. Estes questionários e escalas são aplicáveis aos pais e professores, com modelos específicos para cada. De salientar que não há testes físicos específicos para o diagnóstico da PHDA. Várias outras perturbações podem estar associadas à PHDA, consideradas como comorbilidade, sendo as mais frequentes: a perturbação de oposição/desafio ou a perturbação da conduta; as alterações do humor/depressão; a ansiedade e as perturbações da aprendizagem/défice cognitivo ligeiro. Podem estar presentes em cerca de um terço das crianças com PHDA. É importante a detecção destas situações uma vez que a sua identificação tem implicações na intervenção proposta. A existência de uma perturbação do desenvolvimento da coordenação motora, concomitante com a PHDA, resultando num quadro característico de défice da coordenação motora (grosseira e fina), de atenção e de percepção (visual e/ou auditiva), justificou a definição de uma entidade designada por défice de atenção, motricidade e percepção (DAMP), que é actualmente considerada um subtipo da PHDA. Esta entidade, cujo prognóstico é mais reservado, necessita de uma intervenção mais abrangente, abordando as dificuldades presentes nas diferentes áreas. É, portanto, fundamental a sua identificação precoce, devendo ser sempre excluída perante uma criança com PHDA. Intervenção O clínico responsável pelo diagnóstico (que deve ser desmistificado) deve informar a família sobre a doença, aconselhando-a e estar disponível para prestar todos os esclarecimentos e promover a ligação a outras famílias, assegurando a coordenação dos serviços de saúde e educação. A PHDA, como outras doenças crónicas, necessita dum plano de tratamento específico para a criança, idealmente levado a cabo por uma equipa multidisciplinar, com metas definidas, formas de seguimento e de vigilância. A principal meta do tratamento deve ser a de valorizar devidamente toda a função, melhorando a relação com os outros, melhorando o desempenho académico, independência e auto-estima. Na maioria das crianças o tratamento farmaco- 160 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de perturbação de hiperactividade e défice de atenção segundo a DSM-IV Critérios (1) ou (2) (1) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de falta de atenção persistindo, pelo menos durante seis meses, com uma intensidade inconsistente com o nível de desenvolvimento: Falta de atenção (a) com frequência não presta atenção suficiente aos pormenores ou comete erros por descuido nas tarefas escolares, no trabalho ou noutras actividades; (b) com frequência tem dificuldade em estar atento no desempenho de tarefas ou actividades; (c) com frequência parece não ouvir quando se lhe fala directamente; (d) com frequência não segue as instruções e não termina os trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho (não por comportamentos de oposição ou por incompreensão das instruções); (e) com frequência tem dificuldades em organizar tarefas ou actividades; (f) com frequência evita, sente repugnância ou está relutante em envolver-se em tarefas que requeiram esforço mental mantido (tais como trabalhos escolares ou de índole administrativa); (g) com frequência perde objectos necessários a tarefas ou actividades (por exemplo, brinquedos, exercícios escolares, lápis, livros ou ferramentas); (h) com frequência distrai-se facilmente; (i) esquece-se com frequência das actividades quotidianas; (2) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperactividade-impulsividade persistindo, pelo menos, durante seis meses, com uma intensidade não condizente com o nível de desenvolvimento: Hiperactividade (a) com frequência movimenta excessivamente as mãos e pés, mexe-se quando está sentado; (b) com frequência levanta-se na sala de aula ou noutras situações em que se espera que esteja sentado; (c) com frequência corre ou salta excessivamente em situações em que é impróprio fazê-lo (em adolescentes e adultos pode limitar-se a sentimentos subjectivos de impaciência); (d) com frequência tem dificuldade em jogar ou em se dedicar tranquilamente a actividades de ócio; (e) com frequência “anda”, ou só actua como se estivesse “ligado a um motor”; (f) com frequência fala “de mais”; Impulsividade (g) com frequência precipita as respostas antes que as perguntas tenham acabado; (h) com frequência tem dificuldade em esperar pela sua vez; (i) com frequência interrompe ou interfere nas actividades dos outros (por exemplo, intromete-se nas conversas ou jogos); Codificação baseada no tipo 314.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Misto: se preenchidos os critérios 1 e 2 durante os últimos seis meses. 314.00 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Desatento: se preenchido o critério 1 mas não o critério 2 durante os últimos seis meses. 341.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Hiperactivo-Impulsivo: se critério 2 preenchido mas não o critério 1 durante os últimos seis meses. Nota de codificação: Para sujeitos (especialmente adolescentes e adultos), actualmente com sintomas que já não preencham todos os critérios, deve especificar-se “em remissão parcial”. (Associação Psiquiátrica Americana, 1994)) CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção lógico é muito eficaz, particularmente no que respeita à atenção. O tratamento comportamental tem valor como abordagem inicial ou adjuvante. Os fármacos mais utilizados são os estimulantes, particularmente o metilfenidato, havendo em Portugal disponíveis no mercado formulações de longa acção e acção intermédia. A dextroanfetamina é mais raramente usada. Tratando-se de uma doença crónica, o tratamento é prolongado. Os sintomas podem persistir até à idade adulta, geralmente com uma atenuação dos comportamentos mais hipercinéticos, mas mantendo desatenção e impulsividade. De referir que os adolescentes e jovens adultos com PHDA não tratados estão em maior risco de instabilidade familiar e laboral, de consumo de drogas de abuso, de delinquência ou de gravidez indesejada. É possível que o futuro, com os avanços da genética, nos venha a elucidar melhor sobre os mecanismos etiopatogénicos da PHDA, e a permitir um diagnóstico mais fácil e um tratamento não apenas sintomático, mas sim dirigido à causa da perturbação. BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção in DMS-IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores, 2000 Biederman J, Faraone SV. Attention – deficit hyperactivity disorder. Lancet 2005; 366: 237-248 Committee on Quality Improvement and Subcommittee on Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline: Diagnosis and evaluation of the child with attention-deficit and hyperactivity disorder. Pediatrics 2000; 105: 1158-1170 Committee on Quality Improvement and Subcommittee on Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline: Treatment of the school aged child with attention-deficit and hyperactivity disorder. Pediatrics 2001; 108: 1033-1044 Gilberg C. Deficits in attention, motor control and perception: a brief review. Arch Dis Child 2003; 88: 904-910 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Levine M. Attention and Dysfunctions of Attention In Levine M, Carey WB, Crocker AC (eds) Developmental-Behavioral Pediatrics: Philadelphia: Saunders, 1999 Mercugliano M. Attention Deficit Hyperactivity Disorder in 161 Batshaw ML, Perret YM (eds). Children with Disabilities. Baltimore: Paul H. Brookes Publishing Co, 1992 Spencer TJ. ADHD and comorbidity in Childhood. J Clin Psychiatry 2006: 67 supp. 8: 27-31 PARTE VI Pedopsiquiatria 164 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 32 INTRODUÇÃO À CLÍNICA PEDOPSIQUIÁTRICA Maria José Gonçalves Âmbito da Pedopsiquiatria O campo de intervenção da Pedopsiquiatria é de difícil definição. Em termos gerais, o pedopsiquiatra interessa-se pelo bem-estar psíquico da criança em cada momento, no contexto do seu desenvolvimento e no contexto do seu envolvimento relacional, quer seja na família, quer seja na escola, quer noutras situações decorrentes das circunstâncias de vida, como no hospital ou em instituições de acolhimento. De uma forma mais específica, o campo da pedopsiquiatria define-se pelo estudo do funcionamento mental da criança (que ultrapassa largamente o funcionamento cerebral) e pela identificação e tratamento dos fenómenos psicopatológicos que põem em risco a sua saúde mental. Esta define-se pelo desenvolvimento das competências afectivas, cognitivas e sociais que permitirão à criança tornar-se num adulto saudável, na plenitude das suas capacidades. Tendo pontos comuns com a Pediatria do Desenvolvimento e disciplinas não médicas (psicologia, ciências psicossociais, pedagogia) que também se interessam pelo bem-estar da criança, a dimensão médica é dada pelo uso dos conhecimentos científicos disponíveis que permitem fazer o diagnóstico do quadro clínico e programar a intervenção terapêutica, com vista à retomada tanto quanto possível normal do desenvolvimento infantil. A teoria da vinculação. Uma das contribuições mais ricas do ponto de vista teórico é a teoria da vinculação. Nos dias de hoje é consensual a sua importância, tanto para a compreensão do desenvolvimento infantil como para a integração dos dados da clínica e da observação experimental nas políticas de prevenção em saúde mental infantil. O conceito de vinculação foi inicialmente introduzido por Bowlby para caracterizar a relação afectiva que se estabelece entre a mãe e a criança; constitui o ponto de partida para o desenvolvimento duma teoria que se tornou um instrumento valioso na compreensão do desenvolvimento psicológico e da psicopatologia da criança e do jovem. A teoria da vinculação surgiu numa altura em que havia uma grande preocupação com os efeitos da carência materna nas crianças e na sequência dum relatório feito em 1948 pelo próprio Bowlby, a pedido da Organização Mundial de Saúde (OMS), sobre crianças sem família. Milhares de crianças e jovens tinham ficado órfãos ou separados dos familiares após a segunda guerra mundial, tendo-se comprovado as graves consequências psicológicas que resultaram das perdas dos pais e das separações prolongadas. Simultaneamente, nos Estados Unidos multiplicaram-se os estudos sobre os efeitos da institucionalização de crianças pequenas, de que Spitz se torna a figura de proa, ao descrever um quadro depressivo nos bebés que eram separados das mães, a que chamou “depressão anaclítica do lactente”. Para o desenvolvimento da sua teoria, Bowlby contou ainda com o contributo dos etólogos com quem se cruzou e cujos trabalhos e conclusões foram para ele uma fonte de inspiração. A teoria da vinculação agregou, ao longo dos últimos 50 anos, contribuições de variados campos científicos, desde a psicanálise até às ciências cognitivas e transformou-se, graças à importante investigação a que deu origem, na mais fecunda forma de conhecimento sobre o comportamento social e relacional da criança e sobre a transmissão transgeracional dos modelos relacionais e da psicopatologia. A vinculação é um fenómeno complexo que se refere à ligação que se estabelece entre o dador principal de cuidados e a criança. É uma relação específica que se constrói progressivamente e se caracteriza por comportamentos activos de aproximação da criança, na procura de conforto, protecção e garantia de apoio e segurança. É a existência desse vínculo que origina as reacções de CAPÍTULO 32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica ansiedade e depressão da criança face à separação do prestador de cuidados e possibilita a actividade exploratória livre. Os comportamentos de vinculação da criança definem-se como sendo todas as manifestações que tendem a favorecer a proximidade com a figura de vinculação. A figura de vinculação, por definição, é aquela em relação à qual a criança dirige o seu comportamento de vinculação. A organização dos comportamentos de vinculação, cujo objectivo é manter a proximidade, faz-se em função de determinados contextos específicos de vida da criança e em torno duma figura particular. Os comportamentos básicos, inatos, descritos inicialmente por Bowlby, nos quais se funda a ligação da criança à mãe, são o olhar, o sorrir, o chorar, o agarrar e o chupar. Também a mãe desenvolve em relação à criança uma relação afectiva de grande intensidade a que se chama “bonding”. O sistema de vinculação tem um carácter estável e permanente tornando-se operativo entre os 9 e os 12 meses de idade da criança. A teoria da vinculação tem uma vasta aplicação clínica, nomeadamente nos casos de carência afectiva, de multiplicação dos dadores de cuidados e ainda nos casos das separações e dos lutos precoces; efectivamente, começou a haver uma maior atenção e preocupação dos profissionais em detectar estas situações e levar a cabo medidas terapêuticas e preventivas. Um exemplo foi a introdução da melhoria nas condições de acompanhamento das crianças nos hospitais e noutras instituições de acolhimento de menores. O conceito de vinculação foi posto em prática graças à classificação dos seus vários tipos, a partir das diferentes reacções da criança face à separação e à presença do estranho, feita por M. Ainsworth, discípula de Bowlby. Desde então a investigação nesta área tem tido um grande desenvolvimento e os estudos longitudinais realizados com base nas diferentes categorias do comportamento de vinculação (segura, insegura/evitante, insegura/ansiosa, desorganizada) têm demonstrado existir uma correlação significativa entre o desenvolvimento da resiliência e a vinculação segura. Por outro lado, são as crianças maltratadas e carenciadas que mais evidenciam vinculações de tipo desorganizado e que desenvolvem mais tarde perturbações de comportamento. 165 As perturbações reactivas da vinculação propriamente ditas são já contempladas nas diferentes classificações diagnósticas e os estudos existentes demonstram tratar-se de quadros clínicos bem individualizados que apresentam perturbações da socialização e/ou intensa angústia do estranho, e que se distinguem claramente da depressão e do “estresse” traumático. Há também evidência clínica de que, com elevada frequência, as perturbações “limite” estão relacionadas com histórias de vida em que as relações de vinculação são extremamente precárias. Avaliação diagnóstica Em Pedopsiquiatria, a abordagem diagnóstica é longa e complexa. Consiste na entrevista com os pais (anamnese), no exame objectivo, na observação da relação pais/criança, e na observação da criança em contexto livre e semi-estruturado. Deve ter em linha de conta a perspectiva evolutiva e multifactorial da patologia, pelo que agrega à informação clínica, a informação escolar e social. Os elementos colhidos, que deverão permitir a formulação dum diagnóstico e a elaboração dum projecto terapêutico, têm de ser avaliados em função de certos parâmetros que passamos a descrever: 1. Sinais e sintomas: devem ser valorizados caso a caso. Os mesmos sintomas podem ter significados patológicos diferentes consoante: a) o nível do desenvolvimento – é necessário ter em mente as fases de desenvolvimento infantil e as tarefas do desenvolvimento próprias de cada fase para se poder avaliar até que ponto os sintomas interferem com essas tarefas e/ou impedem a passagem à fase seguinte. Várias vertentes do desenvolvimento devem ser avaliadas, nomeadamente a psicomotora, cognitiva, afectiva, socialização, grau de autonomia, jogo, etc.. b) a estrutura do sintoma – os sintomas devem ser avaliados de acordo com a sua intensidade, factores desencadeantes, modo de início, duração, associação de sintomas de várias áreas de funcionamento e grau de limitação da actividade. 2. Antecedentes familiares: há que ter em linha de conta os acontecimentos de vida, espe- 166 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cialmente os relacionados com rupturas ou traumas: separações precoces, doenças incapacitantes dos pais, lutos, violência, abusos. A integração social da família e a sua capacidade para utilizar os recursos da comunidade são igualmente factores a considerar. 3. Observação das relações pais-criança: abrange os aspectos comportamentais, verbais e afectivos. Destes destacamos: a) as expectativas e as percepções subjectivas dos pais em relação à criança bem como as reacções das crianças; b) a qualidade afectiva das interacções (desligada, ansiosa, hostil, preocupada, etc.); c) a capacidade de os pais transmitirem padrões estruturantes de funcionamento, tais como: distinção clara dos diferentes papéis desempenhados pelos seus membros; respeito pela diferença entre gerações; consciência das necessidades básicas da criança em termos de segurança afectiva e dos limites, bem como da sua diferente percepção do mundo e do tempo. 4. Observação da criança: nem sempre a criança observada corresponde à criança descrita pelos pais, pelo que, tanto quanto possível, e com as limitações impostas pela faixa etária, a criança deve ser observada sozinha. Na observação da criança devem ser valorizados os seguintes elementos, de acordo com a idade: a qualidade da relação estabelecida com o observador, a motricidade e postura, o discurso, em termos formais e de conteúdo, o humor, a capacidade de brincar e nível do jogo (imitação, funcional, simbólico), o nível do desenho do ponto de vista gráfico e da capacidade de representação simbólica, a estrutura do pensamento, bem como o grau, tipo de ansiedade (separação dos pais, situação estranha, etc.) e estratégias de superação. 5. Subjectividade: um dos aspectos da avaliação clínica que o pedopsiquiatra não pode descurar é o seu carácter relacional. Existe sempre subjacente um factor de subjectividade a equacionar. A relação que se estabelece com os pais e com a criança tem um impacte afectivo no observador, maior ou menor, o qual constitui um ele- mento valioso no estabelecimento do diagnóstico. Exige treino na capacidade de auto-observação, mas o seu reconhecimento contribui para a evitar erros grosseiros que podem enviesar o processo de avaliação. É relativamente frequente, por exemplo, a tendência a fazer “alianças” imediatas quer com os pais, quer com a criança, ou a transportar para a observação elementos transmitidos por terceiros, sem tomar as distâncias necessárias. Nos capítulos seguintes são abordados os quadros clínicos mais frequentes em Clínica Pedopsiquiátrica. CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade 33 PERTURBAÇÕES DA ANSIEDADE Maria José Gonçalves e Margarida Marques Definição A ansiedade corresponde a um vivência penosa e inquietante, ligada a um sentimento de perigo iminente e indeterminado que provoca medo e insegurança. É muitas vezes acompanhada de reacções somáticas, tais como taquicardia, constrição respiratória e cardíaca, palidez, diarreia, relaxamento ou contracção muscular, etc., classicamente definidas como angústia. Muitas vezes usam-se os termos angústia ou ansiedade indiferentemente. A ansiedade é um estado afectivo considerado como um componente normal do desenvolvimento psicológico; só adquire significado patológico quando, pela sua intensidade, duração e carácter invasivo, determina alterações significativas na vida da criança, interferindo em diferentes áreas de funcionamento (sono, socialização, aprendizagem, etc.) e/ou impede o seu desenvolvimento. Manifestações clínicas A ansiedade e/ou a angústia pode aparecer de uma forma difusa, mas raramente é referida pela criança. Manifesta-se frequentemente através de: • medos (do escuro, da separação e abandono, de estar sozinho, medo das doenças, da morte dos pais); • sintomas somáticos (cefaleias, dores abdominais, vómitos, queixas inespecíficas); • perturbações do sono (oposição ao deitar, dificuldade em adormecer, insónia, acordar ansioso, terrores nocturnos e pesadelos); • perturbações do comportamento (instabilidade psicomotora, agitação ou inibição). 167 Convém salientar que, sendo a ansiedade considerada uma reacção normal e adaptativa às situações de estresse, as manifestações acima citadas podem aparecer de forma transitória, com uma intensidade moderada, relacionadas com acontecimentos de vida da criança (ida para a escola, nascimento dum irmão, doença, separação, etc.), sendo então consideradas como reacções de adaptação. De salientar que ansiedade nem sempre é evidente, isto é, nem sempre aparece sob a forma de sintomas. Estes aparecem em consequência da utilização pela criança de mecanismos inconscientes cuja função é reduzir a angústia resultante dos conflitos psíquicos. Estes sintomas podem ser considerados equivalentes da angústia. Consoante o tipo de angústia e os mecanismos de defesa usados pela criança podemos classificá-los em sintomas de tipo: fóbico, designados por fobias, obsessivo-compulsivo, histérico e de inibição. Sintomas fóbicos As fobias são medos injustificados desencadeados por uma situação, objecto ou pessoa e que não representam um perigo real. A angústia desencadeada na presença da situação geradora de fobia é acompanhada de estratégias defensivas, nomeadamente os comportamentos de evitamento ou fuga e a utilização de manobras de tranquilização (mecanismos contra-fóbicos), como o uso de pessoas (a mãe, por ex.) ou de um objecto, para enfrentar a situação sentida como perigosa. Alguns medos aparecem durante o desenvolvimento normal da criança e têm uma função estruturante do sistema psíquico. São eles: • medo (ou angústia do estranho) que aparece por volta dos 6 meses; • medo da separação (ou angústia de separação), a partir dos 18 meses; • medo do escuro, a partir dos 2 anos; • medo dos animais entre os 3 e os 6 anos. Existem medos que variam ao longo do tempo, sendo a plasticidade, um sinal do seu carácter benigno. As fobias são patológicas quando, isoladas ou associadas a outros sintomas, pela sua intensidade, persistência e complexidade dos mecanismos contra-fóbicos, limitam a actividade da criança, invadem a sua vivência psíquica, e comprometem o seu desenvolvimento. 168 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA As fobias aparecem em geral associadas a quadros de neurose infantil e necessitam de acompanhamento psicoterapêutico. As fobias atípicas são sintomas de tipo fóbico com características bizarras que estão inseridas em quadros de psicoses infantis ou quadros de tipo autista. Um dos quadros clínicos mais complexo é a fobia escolar. Caracteriza-se por um comportamento de recusa de ir à escola, acompanhado de intensas manifestações de angústia (choro, suores, opressão cardíaca) e manifestações somáticas (cefaleias, vómitos, diarreias), podendo chegar às manifestações de pânico. Todos estes sintomas desaparecem quando cessa a obrigatoriedade de ir à escola, dando lugar a um estado de tranquilidade normal. Podem existir sintomas associados, nomeadamente da linha fóbico-obsessiva ou depressiva. Este quadro aparece em crianças em idade escolar, que já tinham frequentado anteriormente a escola sem problemas, com bom rendimento escolar, mas dificuldade em aceitar maus resultados. Estas crianças apresentam um grau de dependência materna acentuada e uma fraca autonomia. O diagnóstico diferencial faz-se, nos casos das crianças mais novas, com os casos de angústia de separação, que se manifesta desde a entrada para a escola; e, nas crianças mais velhas, com os casos de faltas à escola por existência de dificuldades escolares (perturbações da conduta ou dificuldades de aprendizagem). A fobia escolar necessita de uma intervenção pedopsiquiátrica rápida e incisiva, de forma a não prolongar a situação de absentismo escolar, a evitar a cronicidade da situação e o risco de perda da inserção social. A intervenção terapêutica deve incidir na criança e na família, sendo por vezes necessário o recurso a fármacos. Sintomas obsessivo – compulsivos Neste grupo de sintomas incluem-se as obsessões, os rituais e as compulsões que podem aparecer isoladamente ou associados. As obsessões são pensamentos e ideias que se impõem de forma recorrente e contra a vontade da criança. As obsessões mais frequentes são as do medo da contaminação e da doença ou da ordenação/arrumação de objectos. Os rituais consis- tem em comportamentos efectuados de forma repetitiva e com carácter imperativo, sempre nas mesmas circunstâncias, como por exemplo os rituais de higiene, para comer, para se vestir, etc.. Estes rituais, por vezes, invadem toda a vida da criança, que passa grande parte do seu tempo a realizá-los, entrando num estado de grande ansiedade, por vezes catastrófica se for impedida de os realizar. As compulsões são comportamentos ou actos mentais repetitivos submetidos igualmente a regras inflexíveis que não podem ser alteradas. Algumas compulsões mais frequentes são as de verificação, de tocar, de repetição de gestos. Certos comportamentos de tipo obsessivo são frequentes e normais em certas fases do desenvolvimento: • rituais de adormecimento, a partir do 1º ano de vida • rituais de higiene e de verificação, entre os 6 e os 10 anos • coleccionismo na idade escolar É mais uma vez a intensidade, o carácter invasivo dos sintomas, a sua associação entre si ou com outros sintomas e os constrangimentos que impõem no quotidiano da criança e da família que conferem o carácter patológico, sendo os 11 anos a idade média de aparecimento deste quadro clínico. Sintomas de tipo histérico São sintomas da esfera corporal sem substrato orgânico que traduzem um conflito psíquico de que a criança não tem consciência. Neste caso, a ansiedade, que não chega a ser vivida pela criança, é convertida num sintoma somático. Os sintomas histéricos podem aparecer sob a forma de crise histérica, com queda, corpo em opistótono, movimentos desordenados de contracção e extensão dos membros, semelhantes às crises epilépticas. Outros sintomas, localizados e permanentes, são as paralisias funcionais, afonias, parestesias, perturbações da visão, etc.. Há ainda as manifestações ditas somatoformes, tais como as cefaleias, dores abdominais, algias osteoarticulares e outras síndromas dolorosas. Em todas estas situações este diagnóstico só deve ser feito após exclusão de patologia orgânica. O seu carácter involuntário permite diferenciá-los das simulações, se bem que CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade os benefícios secundários possam estar presentes em ambas as situações. Os sintomas histéricos predominam no sexo feminino, na idade escolar ou na adolescência, e aparecem isolados ou associados à neurose histérica, situação relativamente rara na criança (0,5%). Inibição A inibição consiste na manifestação de uma limitação, mais ou menos intensa, que pode atingir vários sectores da vida da criança, nomeadamente a área motora, os comportamentos sociais, a linguagem, a aprendizagem e o pensamento. Pode manifestar-se em geral crianças ou adolescentes com boas capacidades intelectuais e boas potencialidades cognitivas. Os comportamentos de inibição correspondem a mecanismos reguladores da ansiedade; e podem ter uma função adaptativa, aparecendo de forma circunscrita a certas situações (por ex. na adaptação a novos ambientes). A inibição, como sintoma, tem múltiplas configurações clínicas e pode prejudicar gravemente a aprendizagem escolar e as competências sociais da criança. Intervenção terapêutica A intervenção terapêutica nas situações de ansiedade deve incidir na criança e na família, sendo dada maior ou menor ênfase a cada uma destas vertentes consoante os casos. Na criança recomenda-se: • a intervenção psicoterapêutica: que favorece a compreensão do sintoma, como uma manifestação inconsciente dos seus conflitos relacionais e necessidade de regulação da sua auto-estima. Esta intervenção pode ter uma frequência variável, mas deve ser regular e prolongada. Permite uma resolução do sintoma mais definitiva e um salto maturativo no desenvolvimento afectivo da criança; • a terapêutica farmacológica que pode ser usada nos casos em que, pela sua intensidade, rigidez e fixação, os sintomas afectam gravemente a vida da criança e da família. São usados neurolépticos, em doses sedativas, ou pontualmente benzodiazepinas na redução dos níveis de ansiedade. Os antidepressivos revelam alguma eficácia nos casos 169 dos sintomas de tipo obsessivo-compulsivo, nas fobias escolares e nas crises de pânico, mas só deverão ser utilizados antes dos 13 anos de idade, em situações graves e sempre com vigilância pedopsiquiátrica. Na família, e concretamente com os pais, deverão ter-se em linha de conta: • os modos como os sintomas da criança são interpretados (maldade, manipulação, defeito, benefício secundário, etc.) e as respectivas reacções parentais; • as interacções patológicas pais - crianças que perpetuam os sintomas; • as repercussões dos sintomas na dinâmica familiar. Cada um destes aspectos deverá ser abordado em entrevistas com os pais, juntos ou separados, sob a forma de aconselhamento, orientação, ou mesmo consultas de acompanhamento psicoterapêutico regular. 170 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 34 DEPRESSÃO Maria José Gonçalves e Margarida Marques Definição A depressão é uma perturbação do humor mantida que se caracteriza por um estado de tristeza, mais ou menos manifesto, desinteresse, lentidão psicomotora, acompanhada de ideias de incapacidade ou culpa e ainda perturbações do sono e/ou alimentares. Manifestações clínicas e intervenção terapêutica São descritos os seguintes quadros e a respectiva intervenção terapêutica: 1. Perturbações depressivas na infância A depressão na criança é um quadro clínico relativamente frequente que atinge 2 a 3% da população infantil e tem gerado muita discussão, pela dificuldade em estabelecer o seu diagnóstico; de referir que não devem ser aplicados os mesmos critérios das classificações dos adultos. Na população infantil atendida nas consultas de saúde mental a frequência chega a atingir 20%. O polimorfismo dos seus sintomas, muito frequentemente na linha da inibição, e também a dificuldade da criança em tomar consciência das suas vivências de tristeza, obriga o clínico a ter uma atitude activa na exploração diagnóstica. O quadro clínico apresenta um elenco variado de sintomas, tais como: • tristeza, raramente expressa como tal, mas manifesta pela ausência de interesse e entusiasmo, raras manifestações de prazer, isolamento, passividade. Este grupo de sintomas ditos “negativos” é muitas vezes pouco notado, atrasando o reconhecimento da existência do problema; • diminuição e falta de prazer na actividade lúdica: incapacidade de brincar ou brincadeiras pobres, do ponto de vista do conteúdo, e repetitivas; • ideias de incapacidade, de desvalorização ou de culpa, de falta de segurança nas relações, nomeadamente com os colegas ou com os pais e família; • diminuição da atenção, da capacidade de memorização e do interesse intelectual, com consequentes dificuldades escolares; • alterações do comportamento, marcadas por irritabilidade, instabilidade, agitação psicomotora e crises de agressividade. Estes sintomas, quando estão presentes pelo seu carácter exuberante, dominam o quadro clínico. Outros sintomas, associados ou isolados, que podem mascarar o quadro depressivo, são: insónias, anorexia, enurese, encoprese, os síndromas dolorosas. A intensidade, duração e associação destes sintomas, não só pelo sofrimento que trazem à criança, mas também pelas suas repercussões na vida diária, nas relações familiares e nas dificuldades escolares, criam uma dinâmica de fracassos e malestar e determinam o carácter patológico das manifestações e a necessidade da intervenção pedopsiquiátrica. As manifestações depressivas podem aparecer associadas a várias circunstâncias: • saltos maturativos do desenvolvimento que implicam novos e mais complexos modos de funcionamento mental. Trata-se de crises em que os sintomas depressivos, como choro fácil, a irritabilidade, as alterações do sono, a instabilidade, são transitórios e não produzem alterações significativas na vida da criança. Em geral, quando necessárias, as intervenções são pontuais; • acontecimentos de vida que funcionam como factor desencadeante. Os mais frequentes implicam separações ou perdas de pessoas significativas. São consideradas reacções depressivas, devendo ser ponderada uma intervenção especializada e avaliado o prognóstico a curto e médio prazo; • interacções pais/crianças patológicas que se mantêm ao longo do tempo ou depressão parental crónica. CAPÍTULO 34 Depressão As tentativas de suicídio são difíceis de objectivar na criança, em parte, devido ao aparecimento tardio do conceito de morte em termos da sua irreversibilidade e, em parte, porque muitas das condutas suicidárias são confundidas com acidentes ou condutas perigosas. Entre estes acidentes ou comportamentos de risco, verdadeiros “equivalentes suicidários” estão a ingestão de produtos tóxicos domésticos, quedas, feridas, etc.. Ocorrem frequentemente no contexto duma crise familiar ou de violência, mas é difícil admitir a dimensão suicidária do acto; com efeito, tal aceitação traz uma grande culpabilidade aos pais tornando difícil aceitar a ideia do desejo de morte na criança. Antes de se elaborar um projecto terapêutico, deve ser feita uma avaliação diagnóstica aprofundada do grau de sofrimento da criança, da intensidade dos sintomas e do seu impacte no funcionamento mental e desenvolvimento afectivo, bem como dos factores desencadeantes. Em relação à criança, a intervenção directa deve contemplar o apoio psicoterapêutico ajudando a melhorar a auto-estima, a lidar com a adversidade e a elaborar os conflitos. O uso de antidepressivos não é recomendável, embora nalguns casos de maior gravidade possam ser usados com precaução e vigilância. Em relação aos pais deve ser feito um trabalho de consciencialização das necessidades de segurança afectiva da criança, de maior tolerância para com os seus insucessos e de flexibilização dos comportamentos interactivos. 2. Perturbações depressivas no adolescente No quadro do desenvolvimento normal do adolescente surgem frequentemente episódios breves de perturbação do humor que se confundem com perturbações depressivas recorrentes de curta duração. A prevalência da depressão no adolescente situa-se, segundo os diferentes estudos, entre os 3 e os 7%, com predomínio do sexo feminino. As manifestações clínicas da depressão no adolescente aproximam-se das do adulto e caracterizam-se por tendência para a recidiva. Cerca de 30% a 50% dos casos diagnosticados recidivam num período de 4 anos. O quadro clínico caracteriza-se por: • humor depressivo, irritabilidade e tendência, maior que nos adultos, para a reactividade e a instabilidade do humor; 171 • perda de interesse e prazer nas actividades habituais, acompanhada de um sentimento de tédio; • desempenho psicomotor feito com lentidão, com mímica pobre e discurso monótono, ou agitação; • fadiga fácil e dificuldades de concentração; • insónia ou hipersomnia; • sentimentos de desvalorização, vergonha, auto-acusação. As ideias de desvalorização e crítica são, por vezes, atribuídas a terceiros, nomeadamente aos companheiros ou aos professores, contribuindo para o isolamento do adolescente. Estes sintomas agrupam-se em quadros sindromáticos diferentes, segundo a forma clínica, duração, intensidade e existência, ou não, de factores desencadeantes. Assim, consideram-se: Depressão major, em que os sintomas devem estar presentes pelo menos 2 semanas e em quase toda a sua gama, com um elevado grau de intensidade. Perturbação distímica, clinicamente semelhante à depressão major, em que os sintomas são menos intensos, mas devem estar presentes no mínimo de 2 anos. Aparece com carácter insidioso e, pela sua cronicidade, provoca uma maior limitação escolar e social do jovem. Depressão reactiva, relacionada com factores desencadeantes, tais como acontecimentos de vida adversos (lutos, doenças na família, etc.). Depressão associada a outros quadros clínicos: comportamentos aditivos, perturbações do comportamento alimentar ou perturbações de personalidade, nomeadamente as perturbações “limite”, como um diagnóstico de comorbilidade. O diagnóstico diferencial da depressão no adolescente é difícil e só no enquadramento de uma intervenção psicoterapêutica regular se pode fazer um diagnóstico mais preciso e avaliar os riscos. Por outro lado, é também no âmbito da nova relação que se cria na psicoterapia que o adolescente consegue exprimir o seu sofrimento e os seus conflitos. As intervenções familiares podem ser úteis, sendo por vezes de aconselhar as intervenções de inspiração sistémica. 172 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A terapêutica farmacológica está indicada nas situações em que as manifestações depressivas apresentam maior intensidade; a mesma deve ser sempre acompanhada dum apoio psicoterapêutico individual e deve ser prescrita no quadro de um acordo entre o médico, o adolescente e os pais. Usam-se medicamentos antidepressivos, tendo sempre presente que a respectiva potencialidade de activação pode desencadear uma tentativa de suicídio até aí não concretizada. Os neurolépticos são por vezes usados com o objectivo de diminuir a impulsividade e de estabilizar o humor. As benzodiazepinas são de uso limitado pela dependência que podem criar e pela ausência de efeitos a médio prazo. 3. Perturbação bipolar Nos adolescentes cerca de 20% dos quadros depressivos entram na categoria diagnóstica da perturbação bipolar. Esta patologia caracteriza-se pelo facto de as alterações depressivas do humor alternarem com períodos de humor expansivo, exaltado, chamados episódios maníacos. Estes episódios são acompanhados frequentemente de irritabilidade, logorreia, ideias de grandeza, fuga de ideias, redução da necessidade de sono, desinibição social e sexual. Nos episódios maníacos francos, as alterações observadas sugerem uma perda de contacto com a realidade, enquanto noutros casos, chamados hipomaníacos, as ideias delirantes não estão presentes e o disfuncionamento psíquico não é tão grave. As perturbações bipolares apresentam uma forte incidência familiar e pertencem ao grupo das psicoses. Têm uma evolução crónica havendo, por vezes, necessidade de internamento hospitalar. Actualmente estão descritos casos de perturbações bipolares em crianças de idade escolar. O tratamento das perturbações bipolares combina o tratamento das perturbações depressivas com o carbonato de lítio e outros estabilizadores do humor. 4. Ideias e comportamentos suicidários no adolescente O suicídio representa a segunda causa de morte na adolescência, sendo mais frequente no rapaz do que na rapariga, embora nestas sejam mais frequentes as tentativas de tal acto. As tentativas de suicídio ocorrem na maioria dos casos no decurso de uma depressão diagnosticada (cerca de 80%). Em muitos casos, a depressão surge associada a perturbações do comportamento alimentar, dependência de drogas ou de uma perturbação da personalidade, pelo que o plano de cuidados deverá ter em conta as perturbações subjacentes. Não é raro que a tentativa de suicídio seja o acontecimento inaugural do quadro depressivo; contudo, mesmo nestes casos, existem quase sempre sinais preocupantes que antecedem o acto suicidário. Assim, embora as ideias suicidárias sejam bastante frequentes na adolescência, a sua verbalização não deve ser banalizada e deve alertar os familiares, professores e amigos próximos do jovem para a existência de risco, sobretudo se acompanhadas de isolamento, evitando a família e os amigos, períodos de ausência ou fugas, queixas somáticas várias e inespecíficas (cefaleias, astenia, falta de apetite, etc.).Há também que sublinhar que existe uma elevada taxa de recidiva (cerca de 20%,), o que mostra a importância de valorizar do ponto de vista clínico estas manifestações, fazendo a sua avaliação diagnóstica e prognóstica. A ideação e a tentativa de suicídio constituem um apelo do adolescente e reflectem uma situação de impasse psíquico, que nem sempre está associado a factores de risco externos familiares. Ladame considera potencialmente traumáticos do ponto de vista do impacte suicidário, dois tipos de acontecimentos: o suicídio de uma pessoa da família ou de amigos, e as situações de abuso ou de incesto. Perante uma tentativa de suicídio, a boa prática recomenda o internamento hospitalar cuja duração pode ir de uma a várias semanas por forma a potenciar os efeitos terapêuticos de uma intervenção em crise junto do adolescente e da família, e permitir uma avaliação aprofundada diagnóstica e prognóstica. CAPÍTULO 35 Psicoses 35 PSICOSES Maria José Gonçalves e Margarida Marques Definição O grupo das psicoses abrange uma grande diversidade de quadros clínicos, difícil de delimitar, cujo traço comum é a sua gravidade. De salientar um predomínio das perturbações do pensamento e da emergência de angústias profundas e intensas que interferem com o funcionamento psíquico normal da criança. Manifestações clínicas e intervenção terapêutica São descritos os seguintes quadros e a respectiva intervenção terapêutica: 1. Psicoses da criança As perturbações psicóticas da criança são muito diferentes das do adulto. Foi em 1961 que Creek, na Inglaterra, definiu os critérios mais específicos para o seu diagnóstico na infância. São eles: • alteração duradoura das relações interpessoais; • dificuldades em reconhecer a identidade própria; • fixação exagerada em objectos particulares sem relação com o seu uso habitual; • resistência às mudanças de ambiente; • crises de ansiedade intensa, frequentes, de início abrupto e sem motivo aparente; • atraso ou outras perturbações da linguagem; • anomalias do comportamento motor (estereotipias, gestos anómalos, alterações da tonicidade); • perfil psicológico desarmónico, com um funcionamento intelectual particularmente desenvolvido em certas áreas, embora num fundo de 173 atraso do desenvolvimento cognitivo. A psicose na criança pode ter um início precoce, antes dos 4 anos, sendo o quadro clínico dominado por comportamentos de retirada e de isolamento social com perda de aquisições já adquiridas, como a linguagem, o jogo, etc.. Nos casos de início mais tardio, na idade escolar, são mais evidentes as perturbações do pensamento e do discurso que se torna por vezes incoerente, impregnado de elementos de irrealidade e fantasia, muitas vezes de cariz persecutório. Estas crianças apresentam crises de ansiedade catastrófica e grandes dificuldades na adaptação e rendimento escolar, embora possam manter as potencialidades intelectuais normais. Actualmente o conceito de psicose desapareceu das classificações diagnósticas internacionais, com excepção da classificação francesa, sendo substituído por uma nova entidade nosográfica: a perturbação pervasiva do desenvolvimento, deixando para segundo plano a perturbação da ansiedade e o conflito psíquico, o que em nosso entender não corresponde à realidade clínica desta perturbação. Considerando os diversos quadros de psicose infantil de início precoce, e em que esta polémica tem sido mais viva, destaca-se pela sua gravidade a chamada perturbação do espectro do autismo, cuja a importância e prevalência foram referidas na parte sobre Desenvolvimento e Comportamento. O quadro clínico caracteriza-se sucintamente por alterações em 3 domínios principais do funcionamento da criança: • as interacções sociais (isolamento, retirada do contacto, olhar periférico, ausência de reciprocidade afectiva); • a comunicação e atraso ou ausência da linguagem verbal ou uso anormal da linguagem (estereotipias, neologismos, agramatismo, etc.); • actividades repetitivas, estereotipadas, resistência extrema à mudança de ambiente, uso inapropriado de objectos, maneirismos e estereotipias motoras. O prognóstico é reservado. Um quociente intelectual abaixo da média, a associação a doenças orgânicas e a ausência do aparecimento de linguagem antes dos 5 anos são considerados factores de mau prognóstico De uma maneira geral, a evolução da maioria 174 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dos casos de psicoses diagnosticados na infância é crónica, mantendo-se o diagnóstico de psicose em mais de 50% dos casos na adolescência e na idade adulta. Destes, um número reduzido de casos tem uma evolução demencial grave. Em cerca de 20% dos casos há evolução para perturbações da personalidade de tipo esquizóide e só em cerca de 10% se pode considerar uma evolução para a normalidade. A gravidade do quadro clínico obriga a uma intervenção intensiva com a criança e com a família. Com a criança impõem-se uma intervenção multicêntrica, intensiva, que inclui vários tipos de apoio consoante as áreas afectadas: psicoterapia, psicomotricidade, terapia da fala, apoio educativo. Nalguns casos é necessário o recurso ao hospital de dia. Pode ser necessário utilizar fármacos neurolépticos nas crianças mais velhas e quando a desorganização do pensamento e a ansiedade são mais graves. Com a família, o apoio e aconselhamento são indispensáveis para ajudar os pais a lidar com a própria ansiedade causada pelo comportamento da criança e para melhorar as interacções entre pais e filhos. 2. Psicoses da adolescência A esquizofrenia é a forma de psicose mais frequente e mais grave com início na adolescência; é provavelmente a doença psicológica mais grave e incapacitante, com consequências dramáticas para o próprio e para a família. Atinge cerca de 1% da população, tendo um curso habitualmente crónico, com períodos de remissão mais ou menos prolongados, mas raramente isentos de sintomas. Na ausência de tratamento conduz a uma deterioração intelectual; daí a sua denominação inicial de Demência Precoce, (Morel, 1860). O termo esquizofrenia só foi utilizado a partir de 1911 por Bleuler. O processo esquizofrénico parece ser determinado multifactorialmente. Estão reconhecidamente implicados factores biológicos (genéticos, bioquímicos), psicossociais e relacionais, cujo peso relativo é difícil de atribuir. Caracteriza-se por um vasto leque de sintomas relacionados com o pensamento, emoções e com- portamentos que se agrupam, classicamente, em dois tipos: positivos e negativos. Entre os sintomas positivos encontram-se as alucinações que são alterações da percepção. As mais frequentes e características da esquizofrenia são as alucinações auditivas, habitualmente sob a forma de vozes. Por vezes associam-se alucinações tácteis olfactivas ou visuais. A existência de alucinações visuais isoladas é extremamente rara e deve levar a considerar outra hipótese de diagnóstico, nomeadamente uma perturbação histeriforme. Os delírios constituem alterações do pensamento determinando convicções que não são, em princípio, postas em causa através dos dados da realidade. Podem apresentar uma temática persecutória, religiosa, grandiosa ou sexual. As alterações formais do pensamento incluem a perda da coerência associativa, bloqueios do pensamento (traduzidos frequentemente por uma paragem súbita do discurso) e pensamento hiper inclusivo. Podem surgir também sintomas de tipo obsessivo-compulsivo, com um cariz bizarro e ausência de angústia, o que os diferencia do tipo que surge no contexto de perturbações da ansiedade. Os sintomas negativos incluem um empobrecimento dos afectos e da sua expressão (fácies inexpressiva, mímica facial pobre, restrição do contacto visual e da motricidade geral), pobreza verbal, com aumento do tempo de latência das respostas e desadequação geral nos contactos sociais. Surgem ainda alterações acentuadas na atenção e anedonia (incapacidade para sentir prazer). O modo de início da esquizofrenia pode ser insidioso, numa personalidade já com alguns traços de sintomas negativos, ou agudo, com um quadro inaugural de delírios e alucinações. Em função do tipo de sintomas predominantes são considerados os seguintes subtipos: a) Esquizofrenia paranóide, no qual predominam os sintomas positivos e habitualmente um delírio de temática paranóide. b) Esquizofrenia catatónica, em que o quadro clínico é dominado por sintomas negativos psicomotores: períodos de imobilidade que pode ser quase absoluta ou alternar com períodos de agitação motora e intenso negativismo. Podem ainda aparecer quadros mistos, formas CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento predominantemente deficitárias (esquizofrenia hebefrénica), ou quadros que cursam com alterações do humor (depressão ou mania). Pela sua gravidade e implicações terapêuticas, o diagnóstico de esquizofrenia é um diagnóstico de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da doença deve ter uma duração superior a seis meses. O diagnóstico diferencial deve ser feito com as perturbações do humor, perturbações da personalidade, perturbações ligadas ao consumo de estupefacientes e algumas doenças orgânicas (epilepsia temporal, tumores cerebrais, doenças endócrinas ou autoimunes). A evolução faz-se em cerca de 30% dos casos para formas crónicas com incapacidade acentuada que implica hospitalização. Em cerca de 50% dos casos o curso da doença permite algum grau de reintegração social e até mesmo profissional. A intervenção terapêutica baseia-se na utilização de fármacos antipsicóticos em monoterapia ou em associação. A medicação deve manter-se fora dos episódios agudos, numa dose de manutenção que permita evitar recaídas, dado que cada novo surto psicótico deixa um défice no funcionamento global. O internamento psiquiátrico é habitualmente necessário nos períodos críticos. A intervenção psicossocial é fundamental para promover a reintegração destes adolescentes na família e na escola, por vezes após internamentos prolongados. O treino de competências sociais é um trabalho fundamental a desenvolver com este tipo de doentes. A família deve ser sempre integrada no projecto terapêutico de modo a ser capaz de lidar em sintonia com as características especiais que esta patologia determina. 175 36 PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO Maria José Gonçalves e Margarida Marques Definição e importância do problema As perturbações do comportamento constituem 30% dos pedidos de consulta psiquiátrica na criança e no adolescente; correspondem a um leque variado de situações em que os conflitos psíquicos se exprimem através do modo de agir, dependendo a sua expressão, em grande parte, da reacção do meio familiar ou escolar. As perturbações do comportamento vão desde simples irrequietude passageira e condutas de oposição ligadas às etapas do desenvolvimento, até às alterações de cariz patológico como as fugas, furtos e violência. Manifestações clínicas e intervenção terapêutica São descritos sucintamente os seguintes quadros e a respectiva intervenção terapêutica: 1. Hiperactividade Uma das queixas mais frequentes é a hiperactividade, que, em 80% dos casos se caracteriza por uma instabilidade psicomotora; aparece como uma manifestação sintomática das perturbações depressivas, de ansiedade ou ainda dos comportamentos de oposição. As atitudes de exigência excessiva e de censura frequente por parte dos pais ou, pelo contrário, a excessiva permissividade reforçam estes comportamentos por acentuarem o clima de conflitualidade, a insegurança da criança e diminuirem a sua auto-estima. A hiperactividade associa-se frequentemente às perturbações da atenção, sendo hoje em dia 176 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA uma das patologias mais frequentemente diagnosticadas na infância. Atinge 5 a 10% das crianças em idade escolar e 4 vezes mais em rapazes do que em raparigas. Pode aparecer associada a vários tipos de patologia, como as psicoses infantis, as depressões ou as debilidades. Impõe-se fazer o diagnóstico da perturbação subjacente, antes de estabelecer uma indicação terapêutica. 2. Perturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA) Em 20% dos casos de hiperactividade verifica-se a existência de uma tríada sintomática constituída para além daquela por alterações da atenção e impulsividade não associadas a qualquer outra patologia psiquiátrica; tais manifestações são responsáveis por grave desadaptação escolar e social. Nos Estados Unidos este diagnóstico tem vindo a banalizar-se e os respectivos critérios progressivamente alargados e redefinidos. Na Europa e também em Portugal, os pedopsiquiatras consideram esta entidade como um quadro clínico bem individualizado. Nestes casos tem-se verificado que existe um forte componente hereditário, com vulnerabilidade genética. Nestas crianças comprovou-se também alterações no sistema dopaminérgico as quais não são, no entanto, nem específicas nem determinantes. Actualmente a ênfase tem sido dada à perturbação da atenção, como o sinal mais característico desta patologia. Nesta perspectiva, a hiperactividade e a impulsividade podem ser entendidas como uma consequência do défice de atenção. Os critérios diagnósticos de perturbação de hiperactividade com défice de atenção, segundo o DSM-IV TR (Manual de Estatística e Diagnóstico das Perturbações Mentais) foram abordados em pormenor no âmbito da Parte sobre o Desenvolvimento e Comportamento, o que testemunha a afinidade da Pediatria do Desenvolvimento com a Pedopsiquiatria tal como foi dito na Introdução (Capítulo 32). Nos casos especificamente diagnosticados como de hiperactividade com défice de atenção, a terapêutica apoia-se na utilização de fármacos estimulantes (metilfenidato), que podem melhorar significativamente os sintomas, nomeadamente a atenção e permitir, assim, uma melhoria franca do aproveitamento escolar. A terapêutica farmacológica deve ser simultânea com outro tipo de abordagens individuais e familiares. A terapia relacional com a criança deve ajudá-la a ser capaz de pensar e expressar melhor as suas vivências e dificuldades de modo mais adequado, por forma a que a melhoria dos sintomas possa persistir e consolidar-se. O trabalho com as famílias deve ter como objectivo ajudá-las a compreender a criança, os seus ritmos, não lhes exigindo tarefas que ultrapassem aquilo de que a criança é capaz, permitindo que se crie um ciclo em que predominem as experiências positivas, visando melhorar a auto – estima. 3. Perturbações do comportamento alimentar As perturbações do comportamento alimentar surgem em qualquer período da vida da criança e do jovem, sendo as mais frequentes e as mais significativas do ponto de vista da psicopatologia, as que surgem na primeira infância e na adolescência. Na primeira infância, pela imaturidade psicológica, o corpo é um lugar privilegiado da expressão do sofrimento mental; na adolescência o corpo, com um papel fundamental na construção da identidade sexual, é objecto de um forte investimento por parte do jovem. São abordados, pela sua gravidade e frequência, os seguintes quadros: Anorexia do lactente: define-se como um comportamento de recusa alimentar, sem causa orgânica; trata-se da forma mais frequente de perturbação do comportamento alimentar nesta idade. Anorexia de oposição: é a forma mais comum e aparece a partir do 2º semestre de vida num contexto de oposição, tornando-se as refeições verdadeiros campos de batalha. A progressão ponderal é baixa, mas constante, e a perda de peso, quando se verifica, é motivo para preocupação. O seu início está ligado à mudança do regime alimentar do bebé e agrava-se durante a fase de aquisição do controle dos esfíncteres. Do ponto de vista psíquico, este sintoma associa-se ao processo de aquisição de autonomia da criança. Surge em crianças activas, com bom desenvolvimento psicomotor, vivas e alegres. As interacções mãe-criança CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento adquirem um carácter de imposição/oposição, criando-se um círculo vicioso de aumento da ansiedade materna e de ganhos secundários por parte da criança. A evolução é variável e depende muito da instalação de mecanismos de perpetuação do conflito na relação mãe-filho, não parecendo haver continuidade entre esta forma de anorexia e a anorexia mental da adolescência (ver capítulo 22). Existem, no entanto, formas de anorexia de oposição, com recusas alimentares graves, de início súbito e que se inscrevem no quadro de uma psicopatologia precoce, como as psicoses de tipo autista, desarmonias evolutivas, ansiedade maciça e invasiva. Anorexia passiva ou de inércia: é uma forma grave de anorexia que se manifesta por uma rejeição silenciosa dos alimentos em bebés tristes, apáticos, com desinteresse pela interacção social e pelas solicitações do exterior, pouco activos na procura de estimulação. Este quadro aparece geralmente no contexto de uma privação afectiva, como por exemplo a insuficiência crónica da vinculação ou as descontinuidades e incoerências nos cuidados e modos de vida da criança, nomeadamente nos casos de famílias com riscos múltiplos ou de patologia psiquiátrica materna grave. Anorexia nervosa do adolescente: atinge 1% da população total adolescente e caracteriza-se por uma tríada sintomática que inclui anorexia, emagrecimento (pelo menos 15% do peso normal) e amenorreia. Tem repercussões somáticas graves provocadas pela desnutrição e uma taxa de mortalidade de 7 a 10%. Há um predomínio do sexo feminino (em 10 casos, apenas 1 é do sexo masculino), com “picos” de frequência aos 14 e aos 18 anos. No entanto, em cerca de 8% de casos o início verifica-se antes dos 10 anos. Trata-se de uma patologia multifactorial que associa factores individuais (psicológicos e biológicos) familiares e sociais. Aparece com mais frequência nas classes médias e nas sociedades industrializadas. A problemática familiar é complexa. Combina alguns aspectos contraditórios do funcionamento familiar, nomeadamente uma aparente harmonia com 177 um funcionamento simbiótico, em que o pai é em geral uma figura apagada e submissa. As relações da jovem com a mãe são conflituosas e marcadas por grande dependência, embora mascaradas por uma pseudo-autonomia precoce. Em muitos casos o início da doença está associado a uma modificação na composição da família (saída dum elemento da família, morte ou doença, divórcio), o que ilustra bem o carácter simbiótico do funcionamento familiar. Do ponto de vista individual a anorexia traduz uma dificuldade da jovem no que respeita ao processo psicológico que leva à construção da sua identidade feminina, da aceitação da sexualidade e da negociação da sua autonomia psíquica. A anorexia caracteriza-se por uma restrição voluntária da ingestão dos alimentos ao serviço de uma intenção de emagrecer. O emagrecimento pode atingir níveis de caquexia sem demover a jovem da sua determinação de recusar os alimentos. Existem outros comportamentos associados, como uso de laxantes, diuréticos, acessos de bulimia com indução do vómito (50% dos casos ), prática exagerada de exercício físico, etc.. A amenorreia, habitualmente secundária, pode preceder a perda de peso. Outros elementos clínicos associados são: • desejo de emagrecer e negação da magreza; • alteração da representação da imagem do corpo; • tendência a restringir as relações sociais; • hiperinvestimento escolar; • desinteresse pela sexualidade e pela imagem corporal. Do ponto de vista orgânico, verifica-se: • diminuição do índice de massa corporal (IMC); • alterações cardiovasculares (bradicardia, hipotensão); • hipotermia; • Diminuição de TSH (tireotropina), FSH (hormona folículo-estimulante), T3 e T4 (tiroxina). O diagnóstico é, em geral, simples de estabelecer, havendo, nos casos atípicos, que distinguir outras formas de anorexia associadas à depressão ou ainda doenças do foro orgânico, nomeadamente patologia digestiva ou da tiróide. As recaídas são frequentes embora, a longo 178 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA prazo, haja tendência para o desaparecimento das perturbações alimentares. Em cerca de 15 a 20% dos casos há evolução para formas crónicas com limitações psicológicas e físicas importantes. A intervenção terapêutica deve obrigatoriamente incidir em 3 polos simultaneamente: 1 – O tratamento da alteração do comportamento alimentar e a retoma de peso que devem ser uma prioridade, pela gravidade das consequências orgânicas e pelo risco de tal comportamento se perpetuar, tornando-se crónico. A retoma de peso não pode ser obtida por meios puramente médicos considerando-se que tal estratégia tem um cariz persecutório cujos benefícios são de muito curta duração. Deve ser acordado com a jovem e com a família um contrato em que são definidos os objectivos em relação ao peso, (com a ajuda dum nutricionista que estabelecerá o plano dietético), e em fases bem definidas. O internamento está indicado nos casos de não adesão a este tipo de contrato ou quando o IMC é inferior a 14; poderá ter vantagem na promoção da autonomia da adolescente e no estabelecimento de novos modelos relacionais. 2 – Tratamento psicoterapêutico da perturbação psicológica e farmacoterapia nos casos de depressão ou ansiedade associada. 3 – Tratamento das interacções familiares distorcidas através de entrevistas familiares regulares ou mesmo terapia familiar. A inclusão da família no projecto terapêutico e a sua adesão ao tratamento é essencial para o sucesso terapêutico e para o prognóstico. (Ver parte sobre Nutrição). Conclusão Para terminar, é importante salientar alguns princípios estruturantes da intervenção clínica em saúde mental infantil: 1. O funcionamento psíquico da criança tem como substrato o funcionamento cerebral, mas ultrapassa-o largamente. 2. As relações de vinculação, uma vez estabelecida, tendem a manter as suas características ao longo da vida e constituem a base para a construção da personalidade. 3. A subjectividade é um elemento inerente a toda a intervenção. 4. Desde o primeiro contacto com a criança e com a família todas as intervenções devem ter um cariz terapêutico. 5. O valor dos sintomas deve ser avaliado em função da fase de desenvolvimento, da função que lhe é atribuída na dinâmica familiar e do contexto familiar. 6. As intervenções (farmacológicas, sociais, familiares) devem ter sempre um suporte psicoterapêutico. 7. A evolução terapêutica é avaliada em função da capacidade de a criança retomar o seu desenvolvimento. BIBLIOGRAFIA GERAL (Pedopsiquiatria) Ajuriaguerra J. Manuel de Psychiatrie de L`Enfant. Paris: Masson, 1970 American Psychiatric Association. DSM- IV-TR (tradução portuguesa). Lisboa: Climepsi Editores, 2000 Andreasen N, Black D. Introductory Textbook of Psychiatry. New York: American Psychiatric Publishing, Inc., 2001 College National des Universitares de Psychiatrie. Psychiatrie de L`Enfant et de L’Adolescent. Paris: Presse Editions, 2000 Guedeney N, Guedeney A. Vinculação. Conceitos e Aplicações. Lisboa: Climepsi, 2001 Houzel, D Emmanuelli M, Moggio F. Dicionário de Psicopatologia da Criança e do Adolescente, (tradução portuguesa). Lisboa: Climepsi, 2004 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2007 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 PARTE VII Ambiente, Risco e Morbilidade 180 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA INTRODUÇÃO À PARTE VII Reiterando o que atrás foi referido a propósito de Desenvolvimento, José Ortega e Gasset (18831955) ensinou-nos que “cada pessoa é ela própria e a sua circunstância”. Considera-se circunstância da criança e adolescente o ambiente que os rodeia, classicamente considerado num contexto físico e social; no entanto, cabe salientar que o conceito de ambiente, na sua essência, integra também aspectos morais, afectivos e de mudança. Esta parte do livro é dedicada à abordagem de alguns dos tópicos que exemplificam a influência do ambiente potencialmente adverso na saúde da criança e do adolescente. Noutros capítulos (sobre Imunoalergologia, Urgências, Cirurgia, Ortopedia, etc.) ressalta igualmente o papel do ambiente na morbilidade pediátrica. João M Videira Amaral 37 A CRIANÇA MALTRATADA Deolinda Barata e Ana Leça Definição De uma forma genérica, os maus tratos podem ser definidos como qualquer forma de actuação física e/ou emocional, não acidental e inadequada, resultante de disfunções e/ou carências nas relações entre crianças e jovens, e pessoas mais velhas, num contexto de uma relação de responsabilidade, confiança e/ou poder. Podem traduziu-se por comportamentos activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos (omissão ou negligência nos cuidados e/ou afectos). Pela maneira reiterada como geralmente acontecem, privam o menor dos seus direitos e liberdades afectando, de forma concreta ou potencial, a sua saúde e o desenvolvimento (físico, psicológico e social) e/ou dignidade. Importância do problema Tais comportamentos deverão sempre ser analisados tendo em conta a cultura e a época em que têm lugar, sendo importante conhecer as práticas e as ideias que apoiavam e promoviam muitos actos socialmente aceites em determinada época, relativamente à infância. Ao longo do tempo tem-se comprovado que tais práticas inadequadas e as agressões, sob as mais diversas formas, têm sido comuns desde os tempos mais remotos; ainda num período relativamente recente, há cerca de um ou dois séculos, eram considerados correctos e, como tal, socialmente aceites. Foram necessárias profundas modificações culturais, sociais e de sensibilidades até que fossem reconhecidos a individualidade e os direitos próprios da criança. CAPÍTULO 37 A criança maltratada Nota histórica A história da violência exercida sobre a Criança, ao longo dos tempos, confunde-se com a história da própria Humanidade. Quanto mais recuamos no tempo, maiores são as atrocidades cometidas contra as crianças. Assim, na Antiguidade o infanticídio era uma prática habitual que perdurou nas culturas orientais e ocidentais até ao século IV DC. Realizava-se por diversos motivos, entre os quais se contam: eliminar filhos ilegítimos, deficientes ou prematuros; dar resposta a crenças religiosas (salvar a vida do rei em perigo, acalmar a fúria dos deuses, demonstrar-lhes devoção ou pedir-lhe graças); controlar a natalidade, etc.. Na Roma antiga, o direito à vida era outorgado em ritual, habitualmente pelo pai, sendo ilimitados os seus direitos sobre os filhos. Os recémnascidos eram não só sacrificados em altares dedicados exclusivamente a este fim como também projectados contra as paredes ou abandonados sem qualquer vestimento às intempéries. O aparecimento do Cristianismo e a conversão do Imperador Constantino ao mesmo, provocou uma mudança fundamental da atitude da sociedade para com as pessoas mais débeis. Este Imperador, autor da primeira lei contra o infanticídio, influenciou decisivamente o percurso histórico da questão da violência exercida sobre os menores, através do conhecimento dos seus direitos, contribuindo para a redução dos casos de infanticídio. Durante a Idade Média, face às numerosas guerras e à precariedade económica, muitas crianças dos grupos sociais mais carenciados eram vítimas de infanticídio ou abandono. Nas classes abastadas verificava-se mais o abandono afectivo e as manifestações do poder do pai como dono da criança. As práticas sexuais com adolescentes eram naturalmente admitidas. Durante os séculos XVII e XVIII, a protecção das crianças era feita através do seu internamento em instituições. Nesse período a infância começou finalmente a ser encarada como uma etapa específica da vida, necessitando de atenções especiais. No entanto, ainda no século XVIII, foi criada a “Roda”, onde as crianças abandonadas eram expostas, acabando muitas delas por perecer. O interesse pela protecção infantil apareceu, 181 definitivamente, no século XIX, como consequência da Revolução Industrial, apesar de esta ter trazido consigo a exploração da criança pelo trabalho e de, ainda nesta época, ser frequente o infanticídio dos filhos ilegítimos. Em 1860, em França, começaram a ser denunciados os casos de maus tratos infantis. Nesse ano, Ambroise Tardieu fez a primeira grande descrição cientifica da síndroma da criança maltratada no seu livro “Étude médico-legal sur les sevices et mauvais traitements exercés sur les enfants”. O seu trabalho não foi valorizado pela comunidade científica durante quase cem anos, mas conseguiu despertar a consciência social naquele país, acabando por levar à promulgação de uma lei de protecção das crianças maltratadas. A I Guerra Mundial, pelos seus efeitos sobre a população civil e sobre a infância, teve uma influência decisiva nesta matéria, sendo fundada em Genebra, em 1920, a “União Internacional de Socorros às Crianças” a qual criou uma carta de princípios, conhecida pela “Carta dos Direitos da Criança ou Declaração de Genebra”. A II Guerra Mundial veio dar novo impulso à evolução nesta matéria. Foram então criados em 1947 organismos como a UNICEF ou “Fundo Internacional de Socorro da Infância”. Em 1948, foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança” que constituiu um importante avanço. (Parte I – Introdução à Clínica Pediátrica). Já a partir de 1939 Caffey, detectando fracturas e hematomas subdurais em certas crianças, veio definir uma entidade clínica que designou “traumatismo de origem desconhecida”. Na sequência desses estudos, Silverman, em 1953, admitiu que tais casos, acompanhados de sinais de traumatismo, poderiam ser provocados pelos pais tendo outros autores demonstrado que as lesões melhoravam com o afastamento da criança do seu núcleo familiar. Em 1961, H. Kempe começou a usar a expressão “battered child” ou “criança batida” e, em 1962, juntamente com os seus colaboradores, publicou um artigo sobre crianças maltratadas considerando esta situação como uma síndroma clínica (“the battered child syndrome”), relativamente à qual previa já a necessidade de uma 182 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA intervenção multidisciplinar e o afastamento temporário dos pais. Depois de Kempe os resultados de muitos estudos vieram reforçar a importância da protecção à infância e da sua defesa nos seus múltiplos e variados aspectos. Na década de setenta do século XX foram criados em muitos hospitais grupos multidisciplinares, tendo como objectivos o diagnóstico e a orientação das crianças maltratadas. Em 1989, na Assembleia Geral das Nações Unidas foi aprovada a Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se defende que as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e atenções especiais, sendo dada especial ênfase aos cuidados primários e às responsabilidades da família. Em Portugal, foi na década de oitenta passada que este assunto passou a merecer atenção especial com a criação dos primeiros núcleos de estudo e apoio à criança maltratada, integrando pediatras, técnicos do serviço social, enfermeiras, psicólogos, pedopsiquiatras, representantes dos tribunais de menores e outros profissionais. Em 1990 foi ratificada, na Assembleia da República, a Convenção sobre os Direitos da Criança, em sintonia com a deliberação anterior da Assembleia Geral da Nações Unidas. Em 1991 foram criadas as Comissões de Protecção dos Menores, com sede nas autarquias locais, integradas por representantes dos tribunais, técnicos de serviço social, médicos e elementos da autarquia e da comunidade. Em 1998 a Comissão Interministerial para o estudo da articulação entre os Ministérios da Justiça e da Solidariedade e Segurança Social, passou a utilizar o termo “criança em risco”. Em 1999 foi redigida a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2001), substituindo as Comissões de Protecção de Menores pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando previstas novas formas para a sua protecção. Tipologia dos maus tratos A violência para com as crianças e jovens manifesta-se por formas muito diferentes, como maus tratos físicos (que, no limite, se traduzem pelo infanticídio ou homicídio), abuso emocional ou psicológico, abuso sexual, negligência, abandono, exploração no trabalho, exercício abusivo da autoridade e tráfico de crianças e jovens, entre outras formas de exploração. Esta violência pode observar-se em diferentes contextos, designadamente familiar, social e institucional. Assim, as crianças e jovens podem ser maltratados por um dos progenitores ou por ambos, por um cuidador, por um irmão ou outro familiar, por uma pessoa conhecida ou por um estranho. O abusador pode ser um adulto ou um jovem mais velho. Apenas em situações de muita gravidade se consideram como situação de maus tratos os que acontecem fora do contexto familiar ou institucional. Pela sua frequência e relevância apenas serão consideradas as seguintes formas de maus tratos: negligência, maus tratos físicos, abuso sexual e abuso emocional, e a chamada síndroma de Munchausen por procuração. 1. Negligência A negligência constitui um comportamento de omissão relativamente aos cuidados a ter com as crianças e jovens, não lhes sendo proporcionada a satisfação das suas necessidades em termos de cuidados básicos e de higiene, alimentação, segurança, educação, saúde, estimulação e apoio. Pode ser voluntária (com a intenção de causar dano) ou involuntária (resultante da incompetência dos pais para assegurar os cuidados necessários e adequados). Inclui diversos tipos como a negligência intra-uterina (durante a gravidez), física, emocional e escolar, além da mendicidade e do abandono. Deste comportamento resulta dano para a saúde e/ou desenvolvimento físico e psicossocial da criança e do jovem. 2. Maus tratos físicos Esta forma de maus tratos corresponde a qualquer acção, não acidental, por parte dos pais ou pessoa com responsabilidade, poder ou confiança, que provoque ou possa provocar dano físico na criança ou jovem. O dano resultante pode traduzir-se em lesões CAPÍTULO 37 A criança maltratada 183 físicas de natureza traumática, doença, sufocação, intoxicação e a síndroma da criança abanada. 5. Síndroma de Munchausen por procuração 3. Abuso sexual Definição Abordar a problemática dos maus tratos na criança implica também a referência especial a uma situação designada por síndroma de Munchausen por procuração. Trata-se dum quadro clínico em que um dos progenitores- invariavelmente a mãe – está implicado, simulando ou causando doença no filho. Esta situação é perpetrada em crianças incapazes ou não desejosas de identificar a agressão e o agressor O abuso sexual traduz-se pelo envolvimento da criança ou jovem em práticas que visam a gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem mais velho, numa posição de poder ou de autoridade sobre aquele. Trata-se de práticas que a criança e o jovem, dado o seu estádio de desenvolvimento, não conseguem compreender e para as quais não estão preparados. Pode ser intra ou extra familiar, (muito mais frequente o primeiro) e ser repetido, ao longo da infância. São exemplos deste tipo de abuso: a obrigação de a criança e o jovem conhecerem e presenciarem conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou objectos pornográficos ou actos de carácter exibicionista; a utilização do menor em fotografias, filmes, gravações pornográficas, ou em práticas sexuais de relevo; a realização de coito (penetração oral, anal e/ou vaginal). 4. Abuso emocional Esta forma de abuso constitui um acto de natureza intencional caracterizado pela ausência ou inadequação, persistente ou significativa, activa ou passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento das necessidades emocionais da criança ou jovem. Do referido abuso resultam efeitos adversos no desenvolvimento físico e psicossocial da criança ou jovem e na estabilidade das suas competências emocionais e sociais, com consequente diminuição da sua auto-estima. São citados como exemplos insultos verbais, humilhação, ridicularização, desvalorização, ameaças, indiferença, discriminação, rejeição, culpabilização, críticas, etc.. Como se depreende, este tipo de maus tratos está presente em todas as outras situações de maus tratos, pelo que só deve ser considerado isoladamente quando constituir a única forma de abuso. O diagnóstico de qualquer destas situações requer, em geral, um exame médico e psicológico da vítima, e uma avaliação social e do seu contexto familiar. Etiopatogénese Existem várias possibilidades quanto à etiopatogénese: o progenitor propicia uma história clínica inventada; poderá falsificar os resultados ou o nome do titular de exames complementares laboratoriais; poderá provocar sintomatologia na criança através de diversos estratagemas: lesão traumática em condições especiais, administração de determinados fármacos tirando partido de determinados efeitos dos mesmos; simulação de síndroma febril exibindo o termómetro previamente introduzido em líquido quente; exposição repetida a determinada toxina; apneia e convulsões provocadas, por exemplo, por sufocação; coloração de fezes e urina com o sangue simulando respectivamente rectorragias e hematúria, etc.. Muitas vezes a mãe tem experiência de ambiente médico-assistencial, estando familiarizada com nomes e sintomas de determinadas doenças. As manifestações estão sempre associadas à proximidade entre a mãe e a criança. Noutras circunstâncias a mãe incute no filho a ideia de situação de risco ou mesmo de doença, o que origina da parte da criança o desejo de mais dependência e de estar com ela , implicando, por exemplo, absentismo escolar. Neste contexto, o cenário habitual é o de um pai que tem um papel passivo e distante deixando a cargo da mãe todas as diligências relativas aos cuidados a prestar ao filho. Manifestações clínicas A detecção da síndroma de Munchausen por procuração requer um elevado índice de suspeita; 184 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA os sintomas e sinais, atípicos e incompatíveis com processos mórbidos naturais e reconhecidos, poderão ser indiciadores. As manifestações são diversas e dedutíveis das circunstâncias etiopatogénicas atrás referidas, conforme a idade da criança; por exemplo: hiperactividade, sonolência, febre, convulsões, apneia, cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma variedade de processos patológicos. Por vezes existem antecedentes maternos da referida síndroma. Classicamente a síndroma é mais frequente em crianças que ainda não falam; no entanto, estão descritos casos no período pubertário. De referir, no entanto, que por vezes existe doença orgânica associada. Diagnóstico Face às suspeitas da situação, para além de redobrada vigilância estando a criança hospitalizada, haverá que proceder a exames complementares comprovativos estritamente necessários e minimamente invasivos segundo o princípio de “primum non nocere”. Aspectos epidemiológicos É impossível determinar a verdadeira incidência de casos de maus tratos em qualquer país e, consequentemente, a morbilidade e mortalidade a eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto de um elevado número de casos acontecer em meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade), à aceitação social de muitos deles, às dificuldades no seu diagnóstico e à falta de notificação sistemática dos mesmos. A maior parte dos maus tratos surge em todos os grupos sociais. Admite-se que acontecem com maior frequência nas classes sociais mais desfavorecidas, em virtude das carências económicas a que se associam as más condições habitacionais, o baixo nível ou ausência de instrução escolar e da promiscuidade, e a desorganização da vida profissional, social e familiar. Algumas estimativas sugerem que o número de casos detectados corresponde apenas a 30 – 35% do total. De acordo com o estudo epidemiológico reali- zado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985, haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Por outro lado, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte a frequência relativa: • Negligência e abandono: 65,8%; • Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%; • Abuso Sexual: 5,5% De salientar que o número de casos aumentou 82% entre 1998 e 1999; provavelmente este achado deve-se, não a um aumento real das situações de maus tratos, mas a uma maior inquietação e sensibilidade na detecção dos mesmos. Deste estudo realça-se que em 83% dos casos, os abusadores residem com a criança, sendo que em cerca de 65% dos casos o abusador é a mãe ou o pai. Como se deduz, poucos casos de maus tratos chegam a ser detectados e a ser objecto de tratamento, sobretudo os casos de abuso intra familiar, os quais se repetem frequentemente no anonimato da família, muitas vezes com a conivência de alguns dos seus membros. Os estudos epidemiológicos nesta área realizados mais recentemente corroboram, no essencial, os resultados referidos naquele. Factores de risco São considerados factores de risco dos maus tratos todas as influências que aumentam a probabilidade de ocorrência ou de manutenção de tais situações. Contudo, na sua avaliação deve imperar sempre o bom senso, tendo em conta o contexto da situação, uma vez que qualquer destes factores, isoladamente, poderá não constituir um factor de risco. Tais influências estão relacionadas com características individuais dos pais, da criança ou jovem, assim como do contexto familiar, social e cultural. As características individuais dos pais são múltiplas, enumerando-se as mais frequentes: alcoolismo, toxicodependência; perturbação da saúde mental ou física; antecedentes de comportamento desviante; personalidade imatura e impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerância às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes de maus tratos na infância; idade muito jovem CAPÍTULO 37 A criança maltratada (inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível económico e cultural; desemprego; perturbações no processo de vinculação com o filho (especialmente mãe/filho no período pós-natal precoce); excesso de vida social ou profissional que dificulta o estabelecimento de relações positivas com os filhos. As características da criança ou jovem mais frequentemente associadas ao tópico em análise são: a vulnerabilidade em termos de idade e de necessidades; a personalidade e temperamento não ajustados aos pais; a prematuridade; baixo peso de nascimento; perturbação da saúde mental ou física (anomalias congénitas, doença crónica), etc.. As características do contexto familiar, isto é, as fontes de tensão facilitadoras dos maus tratos são: gravidez não desejada; família mono parental, reconstituída com filhos de outras ligações, com muitos filhos, não estruturada (relação disfuncional entre os pais, crises na vida familiar, mudança frequente de residência ou emigração); famílias com problemas socioeconómicos e habitacionais (extrema pobreza, situações profissionais instáveis, isolamento social), entre outras. Também as características do contexto social e cultural, tais como a atitude social para com as crianças, as famílias e atitude social em relação à conduta violenta, são factores de intensificação do trauma. Diagnóstico As manifestações clínicas são muito variadas, dependendo do tipo de mau trato; com efeito, não existindo lesões patognomónicas, tornam-se necessários uma particular atenção e um elevado índice de suspeita diagnóstica. Assim, para além duma anamnese minuciosa e com bom senso, obtida, por técnico de saúde experiente, em ambiente de privacidade, tentando obter o maior número possível de informações dos diferentes elementos da família, ouvidos em separado e confidencialmente, é indispensável efectuar um exame físico completo, no sentido de identificar o tipo de lesões mais frequentes ou mais sugestivas: as equimoses ou hematomas com estádios de evolução diferentes e de localização preferencial na face, pescoço, pavilhões auricu- 185 lares, tronco e nádegas, as queimaduras circulares ou de limites muito bem definidos, os hematomas subdurais nos lactentes, particularmente se associados à presença de hemorragias retinianas; as fracturas dos membros no primeiro ano de vida; a detecção de várias fracturas com diferentes estádios de calcificação ou de fracturas de arcos costais. Em suma, uma história clínica inverosímil, com contradições ou diferentes versões e, sobretudo, as discrepâncias entre a história relatada e o tipo de lesões observadas, aliados ao atraso na procura de cuidados médicos, constituem a chave para o diagnóstico. Intervenção Na suspeita de maus tratos, a criança (ou jovem) deve ser internada ou temporariamente afastada do meio familiar, com um duplo objectivo: em primeiro lugar, a sua protecção, impedindo que os maus tratos continuem e provoquem lesões mais graves; em segundo lugar, dispor de tempo suficiente para um estudo familiar e social completo. Esta actuação vai permitir que se tomem as diligências necessárias ao seu encaminhamento correcto. Contudo, nalgumas situações de maus tratos perpetrados por alguém não próximo da criança/jovem em que não são necessários cuidados médicos, pode ponderar-se a eventualidade de a criança/jovem voltar ao seu domicílio, desde que os pais sejam “de confiança” e protectores, permitindo um acompanhamento seguro em situação de não internamento. A observação do comportamento dos pais, da criança, e da relação entre ambos, pode fornecer elementos adicionais importantes para a formulação do diagnóstico de maus tratos. Ao contrário do que acontece com as situações acidentais em que os pais se mostram geralmente preocupados com o estado de saúde da criança, nas situações de maus tratos devem ser considerados suspeitos: os que recusam o tratamento ou o internamento dos filhos; os que se mostram indiferentes ou agressivos; ou os que colocam as suas preocupações acima do estado de saúde da criança. Por sua vez, as crianças podem mostrar-se demasiado assustadas, não acalmando com a presença ou com as carícias dos pais ou assumin- 186 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do posturas de defesa à aproximação de adultos. A atitude da equipa (multidisciplinar) que orienta estes casos deve pautar-se sempre por extrema prudência e calma, mostrando uma atitude de compreensão e evitando juízos de crítica ou atitudes de punição da família. É fundamental, pois, perceber que se está perante uma família doente e que uma intervenção de ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais eficaz. Consequências orgânicas e psicossociais Não é possível estabelecer uma relação simples entre o tipo de maus tratos e as suas consequências a longo prazo, dado que na maior parte das vezes se trata de situações mistas, em todas elas estão subjacentes os maus tratos emocionais que, pela sua natureza, são difíceis de identificar e controlar. Os maus tratos intrafamilares são aqueles que mais graves consequências têm para crianças e jovens, dado que dos mesmos resultam uma profunda quebra de confiança e uma importante perda de segurança em casa, por sua vez uma ameaça profunda para o desenvolvimento. É sabido que uma criança vítima de maus tratos corre sérios riscos de morte, de lesões cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro ano de vida, se não for diagnosticada e não se providenciarem as medidas adequadas à sua protecção. A grande maioria dos casos fatais de maus tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. As causas mais frequentes são os traumatismos cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas lesões intra-abdominais (rotura de vísceras), asfixia e sufocação. Nas crianças mais velhas, em idade escolar, não existe geralmente risco de vida. A repetição dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter, contudo, repercussões graves na vida futura da vítima; importa, por isso, estar atento a estas questões no sentido de as prevenir, identificar e tratar. Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as seguintes consequências psicossociais: atraso de crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de linguagem, insucesso escolar, alterações de comportamento, risco elevado de delinquência, diminuição da auto-estima, dificuldades no relacionamento social, baixas expectativas de vida e transmissão do mau trato às gerações futuras. Prevenção Em todo o processo de protecção da infância, a prevenção dos maus tratos constitui a sua prioridade fundamental. Existem três níveis de prevenção, consoante os objectivos e os alvos a que é dirigida: • Primária – prestação de serviços à população em geral, tendo em vista evitar o aparecimento de casos de maus tratos; • Secundária – prestação de serviços a grupos específicos de risco, a fim de tratar ou evitar novos casos, promovendo o regresso da criança à família; • Terciária – prestação de serviços a vítimas de maus tratos, para minorar a gravidade das consequências e evitar a recidiva. A prevenção primária engloba vários tipos de medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de níveis distintos, pelo que se designam prevenção primária inespecífica, ou específica. A prevenção primária inespecífica é dirigida à população em geral e deve começar por fomentar uma cultura antiviolência, passando pela informação da comunidade; pela promoção da saúde materno-infantil; pela preparação de técnicos que trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela protecção legal, e pela criação de estruturas sociais de apoio à maternidade e a criança e ao jovem. Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de cariz social, como a promoção da melhoria das condições de vida, da saúde, e do emprego; e o combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à toxicodependência, entre outras. A prevenção primária específica tem como principal objectivo a identificação das crianças e famílias em risco. A estratégia de intervenção depende do tipo de problemas identificados em cada família. A identificação de crianças em risco na maternidade deve levar a maior vigilância e apoio à mãe: ensino de regras de puericultura; estimu- CAPÍTULO 37 A criança maltratada lação do aleitamento materno e da relação mãefilho; acompanhamento mais estreito nas consultas de saúde infantil; promoção de programas de visitas domiciliárias; ensino da prevenção de acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica ou toxicodependência dos pais; auxílio na aquisição de benefícios sociais; melhoria das condições habitacionais; integração em creches; e ocupação dos tempos livres. Estas medidas devem ser desenvolvidas em todas as situações familiares de risco. A prevenção secundária inclui: o tratamento adequado da criança e intervenção na família, e o apoio e vigilância no domicílio e na comunidade. As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras, assistentes sociais, a colaboração do médico de família, e a integração das crianças em creches ou jardins de infância são medidas que devem fazer parte deste deste tipo de prevenção. As modalidades de abordagem acima referidas não terão êxito se não puderem contar com o apoio de meios adequados e legislação que, garantindo os direitos humanos, permita a sua aplicação. Assim, as estruturas políticas deverão ser consideradas como parceiros sociais nas acções de prevenção relativas aos maus tratos. A reflexão sobre os programas de prevenção do mau trato permite deixar uma nota de optimismo desde que o apoio seja precoce e continuado e, sobretudo, se se conseguir o estabelecimento de uma relação respeitosa e de confiança entre os técnicos e as famílias das crianças maltratadas. Esta intervenção reestruturante da anarquia das relações familiares consegue muitas vezes estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar das potencialidades intelectuais e afectivas das crianças e jovens vítimas de maus tratos. BIBLIOGRAFIA Canha J. Criança maltratada. O papel de uma pessoa de referência na sua recuperação. Coimbra: Quarteto Editora, 2000: 17-27 De Mause (ed). The History of Childhood. New York: Harper and Row Publishers Inc, 1974 Finkelhor D, Omrod R, Turner H. The victimization of children and youth: A comprehensive, national survey. Child Maltreat 2005; 10: 5-25 Gallardo J A: Maus tratos à criança. Porto: Porto Editora, 2005 Giardino A, Alexander R (eds). Child Maltreatment: A Clinical 187 Guide and Reference. St. Louis: GW Medical Publishing, 2005 Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A Criança e a família no século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005 Hicks RA, Gaughan DC. Understanding fatal child abuse. Child Abuse Negl 1995; 19: 855-863 Hobbs CJ, Hanks HGI, Wynne JM (eds). Child Abuse and Neglect: A Clinician´s Handbook. London: Churchill Livingstone, 1993 Huertas JA. El maltrato infantil en la história. In: Niños Maltratados. Madrid: Ediciones Díaz de Santos, 1997 Kasim MS, Cheah I, Shafie H M. Childbook deaths from physical abuse. Child abuse Negl 1995;19:847-854 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Leventhal JM. Twenty years late: we do know how prevent child abuse and neglect. Child Abuse Negl 1996; 20: 647-653 Magalhães T. Maus tratos em crianças e jovens. Guia prático para profissionais. Coimbra: Quarteto Editora, 2002: 33-36 Silverman FN. The roentgen manifestations of unrecognized skeletal trauma in infants. Am J Roentgenol 1953; 69: 413427. Teicher MH, Samson JA, Polcari A, McGreenery CE. Sticks, stones, and hurtful words: relative effects of various forms of childhood maltreatment. Am J Psychiatry 2006; 163: 9931000 Terreros IG. Los professionales de la salud ante el maltrato. Granada: Editorial Comares, 1997 UNICEF. A League Table of Child Maltreatment in Rich Nations. Innocenti Report Card nº 5. New York: Unicef, 2003 188 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 38 TRAUMATISMOS, FERIMENTOS E LESÕES ACIDENTAIS – O PAPEL DA PREVENÇÃO Mário Cordeiro Importância do problema Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais (TFLA) constituem, em quase todos os países do Mundo, nos grupos etários da infância e da adolescência, a maior causa de morte, anos de vida, potenciais perdidos, doença, internamento, recurso aos serviços de urgência, incapacidades temporárias e definitivas. Consequentemente, constituem um dos problemas com custos socioeconómicos mais elevados. Infelizmente, no nosso País o problema revelase de uma agudeza extrema, com taxas de mortalidade, por exemplo, quatro vezes superiores às da Suécia. Encarar os acidentes como um grave problema nacional e assumir a sua resolução como uma tarefa de toda a sociedade é um passo fundamental e indispensável. A impessoalidade das cifras pode fazer-nos esquecer o drama humano, ao qual só damos a necessária atenção quando somos confrontados com ele nas nossas casas ou no nosso círculo pessoal de amigos. Os acidentes manifestam-se por "doenças" – os traumatismos, ferimentos e lesões deles decorrentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter presente que os TFLA: • têm uma causa (um agente, a energia resultante dos impactes, do calor, do movimento de objectos, etc.); • provocam sintomas e sinais bem definidos; • têm um processo de diagnóstico; • têm um processo de terapêutica; • são passíveis de prevenção primária, secundária e terciária, tal como a maioria das doenças. O que talvez diferencie os TFLA de outras doenças é a rapidez da acção da causa e o pequeníssimo lapso de tempo entre a acção do agente e os sintomas e sinais, o que também contribui para a dificuldade da prevenção, se analisarmos esta numa perspectiva médica estrita. Podemos também considerar os TFLA numa perspectiva ecológica, tal como por exemplo as doenças infecciosas: o acidente resulta da interacção entre o agente, o meio humano e o meio material, envolvendo o indivíduo. A aceitação desta tríade (ou tétrada) traz consequências imediatas: qualquer acção preventiva que deixe de lado um dos elementos será votada ao insucesso; por outro lado, a compreensão do problema na sua plena extensão passará obrigatoriamente por uma análise aprofundada das circunstâncias e da história destas várias vertentes. O planeamento urbano e a construção, o design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa complexa na qual é necessário ter em conta as diversas, e por vezes contraditórias, necessidades dos diversos grupos de cidadãos. Quando o desenvolvimento urbano – para citar um dos exemplos actualmente mais preocupantes –, se baseia em interesses pouco claros ou unilaterais, remetendo para segundo lugar os interesses dos cidadãos, designadamente a sua saúde, o resultado é frequentemente um ambiente de má qualidade no qual as gerações presentes e vindouras terão de viver. Acresce que os erros estruturais se traduzem geralmente por consequências a longo prazo, sendo a sua inversão extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo impossível. A origem dos acidentes que envolvem crianças e jovens não reside assim, como veremos mais desenvolvidamente, no "mau" comportamento daquelas ou destes mas, pelo contrário, na agressividade e desadaptação do ambiente às suas características físicas, mentais e psicológicas. Por outras palavras, não são as crianças e os adolescentes que estão errados – o mundo que os rodeia e onde são forçados a viver é que se torna, dia a dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais recheado de armadilhas. CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção As principais vítimas de um ambiente insalubre e perigoso são sempre os grupos psicológica ou fisicamente mais vulneráveis, ou com menores capacidades adaptativas, seja decorrentes da sua própria vulnerabilidade e das suas características bio-psico-sociais (designadamente do seu grau de resiliência), seja dos seus estilos de vida próprios. As crianças, os idosos e os cidadãos com deficiência estão no epicentro deste problema e é nestes grupos que se tornam mais evidentes e mais graves as consequências da desadequação entre o “continente” e o “conteúdo”, ou seja, entre o mundo onde os seres humanos têm que viver e as capacidades e necessidades desses mesmos seres humanos. O ambiente constitui pois, actualmente, a maior ameaça à vida e à saúde das crianças e dos jovens. Culpar a criança dos acidentes será, afinal, culpar a vítima e desculpar o "criminoso". Aspectos epidemiológicos Na abordagem dos TFLA, revela-se indispensável um conhecimento epidemiológico aprofundado, pois será certamente muito difícil delinear uma estratégia pertinente e adequada para controlo de um problema quando se desconhece a sua verdadeira dimensão e, ainda mais importante, os pormenores e as circunstâncias que rodeiam o acontecimento. Este facto é tanto mais gravoso quanto é verdade estarmos na presença de um conjunto de situações de origens várias, em que causas distintas podem gerar o mesmo efeito ou, ao invés, causas semelhantes efeitos diferentes: uma queda pode ter etiologias díspares e gerar diversos traumatismos ou lesões; por outro lado, a mesma lesão – uma fractura de um membro, por exemplo – pode ser causada por agentes diferentes, como um choque de automóveis, um coice de cavalo ou uma queda de uma árvore. A diversidade de local para local, relacionada com distintas identidades culturais, constitui outro factor de importância inegável, não podendo ser subvalorizado. Num capítulo de um livro como este, não é possível desenvolver exaustivamente a questão dos indicadores epidemiológicos. Entendemos, no entanto, justificar-se encarar os TFLA nas suas diversas vertentes: mortalidade, morbilidade, 189 anos de vida, potenciais perdidos, idas ao serviço de urgência, internamentos, dados do Sistema ADELIA (Acidentes Domésticos e de Lazer – Informação Adequada), e também de outras fontes menos ligadas à Saúde (Instituto de Socorros a Náufragos, Companhias de Seguros, Ministério da Educação, Serviço de Bombeiros, etc). (Quadro 1) Além do escasso âmbito ou representatividade de alguns dos dados, a metodologia adoptada por cada uma, designadamente em parâmetros tão básicos como os grupos etários, as definições de caso, etc., não é frequentemente a mesma, impedindo muitas vezes a junção ou a comparação1. Falta assim fazer um trabalho de recolha dos indicadores existentes e sua análise crítica, identificação de eventuais áreas com lacunas e propostas metodológicas consensuais para que, sem um esforço acrescido, se possam obter informações mais amplas e fiáveis, portanto mais úteis. Este problema não é, contudo, exclusivamente português. No que respeita ao impacte económico do problema em Portugal, designadamente, foi estimado que os acidentes de viação, por exemplo, somando todos os tipos de custos, custaram ao País, quase 4% do PIB, ou seja, cerca de 25.000 milhões € por ano, algo como cinco mil euros por minuto. Admitindo um gasto equivalente nos acidentes domésticos de lazer (ADL) – mais frequentes mas globalmente menos graves –, os acidentes custariam, em Portugal, mais de uma vez e meia o orçamento do Ministério da Saúde, sendo a maior parcela equivalente a gastos com TFLA. Prevenção 1. Obrigação da Sociedade A opção por medidas modificadoras do ambiente são geralmente caras, mais radicais e de maiores custos políticos, em comparação com a fácil, 1. É sintomática (e preocupante) a “anarquia” reinante em items tão simples como as idades consideradas: depois dos 4 anos de vida cada sistema utiliza a sua classificação etária, dividindo em grupos de 5 anos ou juntando dos 5 aos 14, uns terminando aos 16, outros aos 17, 18 ou 19 anos. Outro exemplo elucidativo diz respeito à mortalidade por acidente de viação, considerada por algumas entidades como a ocorrendo no local do acidente, por outras como indo até às 48 horas após o evento e, por outras ainda, como a resultante do acidente, não importando o lapso de tempo decorrido. 190 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Colheita de dados epidemiológicos sobre TFLA Sistemas nacionais de colheita de dados Mortalidade (Instituto Nacional de Estatística) Viação (Observatório Rodoviário e DGV) ADELIA (Observatório Nacional de Saúde) Inquéritos complementares (Instituto do Consumidor) Inquérito Nacional de Saúde (Observatório Nacional de Saúde) Fontes complementares Instituto de Medicina Legal de Lisboa Centro de Reabilitação do Alcoitão Dados colhidos a nível nacional e de forma contínua Acidentes escolares (Ministério da Educação) Acidentes desportivos (Ministério da Educação) Intoxicações (Centro de Informação Anti-Venenos) Dados recolhidos a nível nacional ou regional de fontes relacionadas com os serviços de saúde ou de emergência Projecto "médicos-sentinela" (Observatório Nacional de Saúde) Cruz Vermelha Portuguesa Serviço Nacional de Bombeiros Instituto Nacional de Emergência Médica Polícia de Segurança Pública Polícias Municipais Instituto de Socorros a Náufragos Inquéritos ad-hoc locais ou regionais (vários) Outras fontes Acidentes pessoais/trabalho (Companhias de Seguros e Segurança Social), etc.. barata e tradicional (mas muitas vezes ineficiente) “educação para a saúde”. Há, muito claramente, uma relação inversamente proporcional entre o dinheiro atribuído às várias medidas e a sua eficiência. Praticamente em todas as culturas, à semelhança do que acontece na maioria das espécies animais, é considerado natural proteger a vida e a saúde das crias. No chamado "Mundo Ocidental", este conceito desenvolveu-se não apenas em termos de disponibilidade e adequação de cuidados – saúde, educação, segurança social, entre outras – como também em termos ambientais – provimento de ar puro, água potável, nutrição correcta, etc.. Paralelamente, depois do reconhecimento gradual e sequencial dos direitos dos homens, dos trabalhadores e das mulheres, registou-se neste século um movimento crescente a favor dos direitos das crianças e dos adolescentes, tão bem resumidos na Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU a 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal. A Convenção reconhece que as crianças têm o direito de crescer e de se desenvolver normalmente, sem limitações desnecessárias, e o direito à protecção, os quais devem ser garantidos pelo Estado através de medidas de vária ordem. Portugal, tendo ratificado a Convenção em 1990, está comprometido com a sua população infantil e juvenil, e não poderá ignorar as suas responsabilidades. A sociedade portuguesa, de onde emana o Estado, tem igualmente de assumir de forma global a protecção da sua população infantil e juvenil. 2. Perspectiva dinâmica e inovadora Os acidentes sempre acompanharam a vida dos homens; e, se por um lado esse facto permitiu acumular conhecimentos e experiências milenárias, conduziu, por outro, à aceitação dos acidentes como parte da própria existência e à interiorização do problema como algo de insondável e superior à força humana. Por outro lado, as tentativas para os evitar, pecando talvez por timidez mas condicionadas pelo ritmo humano, foram rapidamente ultrapassadas pela extraordinária rapidez da evolução tecnológica e pelo aparecimento de forças que, se bem que concebidas pela mente do Homem, se afastam da sua própria escala – tenha-se em consideração a velocidade dos automóveis, as alturas dos prédios, a energia da electricidade e tantos outros exemplos de como nos deslocamos, vivemos e utilizamos dimensões e forças totalmente estranhas às nossas características biológicas e mesmo psicológicas, com o consequente desfasamento entre as necessidades e capacidades, por um lado, e a realidade, por outro. CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção Os próprios estilos de vida, geradores de estresse e de uma vida "acelerada", contribuiram para o aumento dos riscos e para uma maior incapacidade de lidar com eles "a tempo e horas", não havendo para muitos destes riscos, o verdadeiro conhecimento da sua existência. Assim, embora não se possa dizer que as crianças e os jovens de sociedades anteriores à nossa estivessem livres de sofrer TFLA – basta recordar os ataques das feras na idade das cavernas ou o trabalho infantil em condições precárias nos tempos da revolução industrial – pode contudo afirmar-se que as crianças e os adolescentes de hoje estão mais expostos aos riscos, sendo também provavelmente detentores de uma resiliência menor. O estresse representa, assim, um factor fundamental para a compreensão do problema dos TFLA. Felizmente, nos últimos anos, muitos autores têm dedicado tempo e reflexão ao estresse e, principalmente, à gestão do estresse. Este elemento tão importante, tão presente e tão condicionante das opções de vida, ocupou durante muito tempo um lugar quase ridículo na construção fisiopatológica dos TFLA, bem como de muitas outras situações de doença ou de falta de saúde. Importa analisar e sistematizar o estresse e traçar os princípios mestres da sua boa gestão e aproveitamento enquanto energia positiva e mobilizadora, transformando-o em factor de resiliência em vez de factor de risco. Com a evolução tecnológica e as consequentes mudanças nos estilos de vida – designadamente a entrada das crianças em massa no mundo dos adultos desde idades muito precoces (inclusivamente no mundo laboral) e a ausência de um espaço próprio infantil para crescerem -, os riscos aumentaram ou pelo menos tornaram-se mais "acessíveis" à maioria das crianças e dos adolescentes. Os acidentes passaram assim a fazer de tal modo parte da nossa vida quotidiana que, por impregnação e habituação, deixaram de nos tocar no plano colectivo – só somos verdadeiramente afectados se nos atingem directamente ou pelo menos a quem nos está próximo. Por outro lado, a própria palavra "acidente" desencadeia mecanismos psicológicos adaptativos tendentes a integrar o conceito como associado a fatalismo, determinismo, um acontecimento 191 que existe devido a um acto incontrolável e incontornável do destino, ou seja, que aconteceu "por acidente". Quantas pessoas vacinam os filhos, dão-lhes vitaminas e, afinal, olham para a prevenção dos TFLA como algo desnecessário ou pouco importante, considerando até as consequências do acidente como uma punição inevitável e “normal” para um erro que se cometeu? Actualmente, a maioria das pessoas ao serem questionadas sobre o que significa a palavra "acidente" responderão provavelmente: "serviço de urgência". A esta resposta não será estranho o facto de as consequências imediatas de um acidente grave serem médicas. Contudo, o que fica subvalorizado nesta atitude é a vertente preventiva (ambiental), ignorada pela maioria, ao contrário do que acontece com outros grandes problemas de saúde pública como a hipertensão, a diabetes, a obesidade (em que os termos evocarão ao cidadão comum outros como “açúcar”, “sal”, “exercício físico”, “gorduras” - afinal elementos inerentes à actividade preventiva). A utilização da palavra "acidente" para definir os eventos de que estamos a falar é parcialmente responsável por esta atitude. Não foi por acaso que os autores de língua anglo-saxónica optaram pela palavra "injury" em vez de "accident", pois esta escolha não só permite fugir à noção fatalista da palavra "acidente", como também concentrar as atenções sobre o principal aspecto da questão e que importa enfatizar – as lesões, os ferimentos e os traumatismos que decorrem dos referidos acidentes. Por outras palavras, se por absurdo (como nos filmes de desenhos animados ou de super-heróis), um indivíduo não fosse minimamente afectado quando caísse do alto de um prédio ou quando fosse atropelado por um camião, o acontecimento em si – o "acidente" afinal –, deixaria de nos interessar em termos de problema de saúde. As suas consequências, ou seja, os traumatismos, ferimentos e lesões resultantes da queda do prédio ou do atropelamento é que representam a fonte de preocupação e de interesse. Infelizmente, a língua portuguesa não tem uma palavra que expresse totalmente o que se pretende. A palavra “ferimento”, por exemplo, exprime mal as consequências de um afogamento. “Traumatismo” não descreve bem o que se passa no decurso de uma intoxicação. A palavra “lesão” 192 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA será pouco adequada para o que resulta da introdução de um corpo estranho. Porém, o que encontramos nos serviços de urgência, nas consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são traumatismos, ferimentos e lesões causados por um agente ambiental. Deveremos, pois, fazer um esforço para começar a usar, tanto quanto possível, uma terminologia mais correcta, com vista a reforçarmos e simplificarmos a compreensão do cerne do problema. A expressão "traumatismos, ferimentos e lesões acidentais" parece a mais adequada aos objectivos subjacentes às acções preventivas; e poderá chegar o dia em que as pessoas, interrogadas sobre o significado da palavra "acidente", respondam "cintos de segurança", "leis antiálcool", "protectores de tomadas", etc.. A maioria das definições enferma um erro substancial: o carácter "não premeditado" ou "inesperado" da situação, e a consequente falência da "vontade humana" em a evitar. Isto seria admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer acção preventiva, o que não corresponde à verdade: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis, já que os comportamentos das crianças e dos jovens fazem parte integrante do seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo normal. Na realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo previsíveis e evitáveis. Os próprios dados epidemiológicos mostram que a tipologia dos acidentes corresponde a um padrão estreitamente relacionado com os consecutivos estádios de desenvolvimento e com as actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente. Assim, sendo este padrão previsível, existem bases para intervenção e para acções preventivas, quer através de meios abstractos como a informação e educação no sentido de melhorar comportamentos individuais e padrões de comportamento colectivos (nos quais se incluem as modas e a pressão social e de grupo), quer sobretudo activamente, através da construção de um ambiente seguro onde o desenvolvimento normal possa ter lugar sem se correrem riscos inaceitáveis. 3. Compreensão do desenvolvimento e comportamento humanos O ser humano, ao contrário de outros mamíferos, nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de vista de maturação neuro-sensorial sendo portanto muito dependente do meio que o rodeia e da protecção da sociedade. O desenvolvimento do sistema nervoso central, até atingir a soma extraordinária de um bilião de sinapses, prolongase após o nascimento, fundamentalmente no primeiro quinquénio da vida. Por outro lado, para além da estrutura neurológica há a construção da personalidade, a qual vai depender muito do ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita relação, quer com o meio, quer interpares. Os óptimos resultados da utilização das próprias crianças como orientadoras do tráfego à saída de uma escola demonstram bem o efeito estruturalizante positivo sobre os colegas, em contraponto ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios lançados também por colegas: "aposto que não és capaz de fazer isto ou aquilo!". É o ambiente que se deve adaptar à criança e ao jovem e não o contrário. Qualquer programa de prevenção dos TFLA terá, assim, de tomar em consideração algumas características básicas do desenvolvimento infantil, componentes indispensáveis para a compreensão das várias etapas "acidentais" da criança e para, em termos de cuidados em antecipação, promover as indispensáveis modificações ambientais para que os riscos possam ser minorados, designadamente. • a descoberta progressiva de si próprio, dos outros, do espaço e dos objectos que estão no primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão e da visão; depois dos que estão mais longe; a seguir dos que estão escondidos para além de outros objectos até ao mundo na sua totalidade; esta evolução é acompanhada por uma correspondente capacidade motora e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e um banco, etc); • a curiosidade progressiva; • o uso dos cinco sentidos para conhecer o mundo, incluindo a necessidade imperiosa de mexer nos objectos e de levar tudo à boca; • as características associadas às outras idades – escolar, adolescência –, associadas ao crescimento e à maturação, quer orgânica, quer psicológica, emocional e da personalidade. CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção As limitações fisiológicas das capacidades da criança, decorrentes dos estádios do seu desenvolvimento neuro-psíquico-sensório-comportamental, devem ser tidas muito em conta, como se pode demonstrar através de alguns exemplos: – uma criança de três anos que se debruça numa varanda não tem a sensação da distância até ao solo e atirar-se-á para os braços de alguém que, lá de baixo, esteja a chamá-la; – uma criança de dois anos não tem a sensação da profundidade: verá uma escada na continuação directa e plana do corredor de onde vem a correr; – uma criança com menos de dez anos de idade poderá não ter ainda capacidade para atravessar uma rua sozinha pois frequentemente não entende de onde vem o som, não consegue calcular a velocidade dos automóveis nem a distância a que se encontram; dificilmente será capaz de integrar a informação recebida quando olhar para a esquerda e a que seguidamente recebe quando olhar para a direita sem esquecer a primeira; demorará mais tempo a efectuar qualquer tipo de análise da situação em termos espaciais e sensoriais, designadamente a exclusão de estímulos inúteis para o objectivo em causa; e, finalmente, distrair-se-á com estímulos que para ela são mais atractivos, como um amigo, uma bola ou qualquer outra coisa. Incorporar na mentalidade dos pais e profissionais estes conceitos, cientificamente demonstrados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acresce que os comportamentos associados às diversas características e etapas do desenvolvimento infantil não são passíveis de "correcção" substancial, nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança verse-ia privada de elementos estimulantes da sua criatividade, inteligência, capacidade de resolver situações, de experimentar, numa palavra, de crescer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de um dos seus mais elementares direitos - o de "ser criança", no que isso implica de exploração do mundo, de actividades lúdicas, de ausência de responsabilidades não adequadas à idade. É assim entre estes dois objectivos aparentemente contraditórios – a necessidade de aprender experimentalmente e a necessidade de ser protegido – que teremos de desenvolver os programas de preven- 193 ção de acidentes, com a noção de que uma criança não é um adulto em miniatura.2 Há que dar ao conceito de “exposição ao risco” um lugar fundamental, embora se tenha de admitir que o mesmo risco se pode expressar de modo diferente conforme os casos. Só assim se poderá explicar – através de um modelo comportamental – a maior frequência de acidentes nesta ou naquela situação. Nos acidentes desportivos, por exemplo, há maior envolvimento de rapazes, à excepção dos TFLA sofridos na prática de equitação, justamente porque este desporto é mais praticado por raparigas. A opção individual face aos diferentes riscos é igualmente um elemento a considerar: sabe-se, por exemplo, que para a mesma viagem o risco de mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes superior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da viagem de comboio. Obviamente que uma escolha criteriosa e informada obrigará ao conhecimento prévio dos diversos riscos e seus graus. Ainda no que respeita aos comportamentos, na adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou menor grau comportamentos experimentais ou condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis e importantes em termos de integração no grupo e de avaliação das próprias capacidades num corpo que se transforma e num espírito que se autopropõe desafios constantes. Outro aspecto a ter em linha de conta nos jovens são os comportamentos para-suicidários, ou seja, aqueles em que, por diversas razões de ordem psicológica, numa idade em que podem com maior frequência ocorrer momentos frágeis ou de maior vulnerabilidade, mormente com dificuldade na gestão do estresse, o risco é assumido de uma forma excessiva, através de comportamentos em que um dos resultados possíveis, quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave. Para compreender a génese dos acidentes juvenis, designadamente os que ocorrem com veículos de 2. Um exemplo bem elucidativo do que não deve ser feito relata-se em breves palavras: num parque de baloiços sueco, um rapaz caiu de um escorrega e partiu uma perna apesar de o chão ser de areia. Após a ocorrência, a associação de pais desenvolveu uma acção intensa para que os escorregas e demais equipamentos fossem retirados do parque. As entidades locais cederam às pressões e assim aconteceu. Imediatamente as crianças começaram a brincar e a trepar para locais muito mais perigosos, com consequências muito mais graves. 194 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA duas rodas, é necessário compreender estes comportamentos. Todavia, convém não esquecer que os riscos são úteis e têm mesmo uma função individual e social – a abolição total das actividades de risco significaria o fim de diversos desportos profissionais, da aviação civil, da profissão de bombeiro, polícia e (porque não), se calhar mesmo, a de médico. De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si próprio como tendo comportamentos menos arriscados (ou por outras palavras, mais "ajuizados") do que a maioria das pessoas o que, a ser verdade, levaria a um problema matemático complicado, do todo ser superior à soma das partes – se perguntarmos a cada um de nós como classificamos o trânsito diremos que é caótico e que as pessoas não respeitam as regras. Mas diremos também que se isso acontece é porque "nós" respeitamos as regras e os "outros" não. Os outros responderão da mesma forma, o que levará decerto o investigador a não saír da “estaca zero”. Ao pretendermos estudar e equacionar o comportamento das crianças urge também tomar em consideração os comportamentos dos adultos, designadamente: • incumprimento de regras; • estar-se convencido de que se cumpre mesmo quando não se cumpre; • má gestão do estresse; • incapacidade de lidar simultaneamente com todos os desafios para os quais se requer atenção e acção; • alterações comportamentais motivadas pelo cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc.. Só assim se explica, por exemplo, a falência de medidas que à primeira vista poderiam ser consideradas fáceis e ideais, como por exemplo dos sinais avisadores da proximidade de uma escola, de redução de velocidade ou as passadeiras e os semáforos junto aos portões das escolas. Se as determinações subjacentes fossem inteiramente cumpridas, o problema dos atropelamentos estaria praticamente resolvido; mas a prática demonstra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder uma parte essencial para a compreensão global do problema. Por outro lado, não se pode exigir de seres imperfeitos, como os seres humanos, análises de si- tuações, atitudes e comportamentos perfeitos: um condutor, por exemplo, é confrontado em cada milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões. Admitindo uma incidência perfeitamente razoável de um erro em cada quarenta decisões (2,5%), tal corresponderia a um risco de um erro por cada três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão aumenta. Este tipo de análise é de grande interesse, não apenas porque demonstra a incerteza da confiabilidade humana, repudiando a teoria de que os "maus condutores" são “loucos”, “assassinos” ou ambas as coisas, mas também porque, correlacionando este indicador com a velocidade, pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80 km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar sobre uma máquina de várias centenas de quilos, que desloca uma massa de muitas toneladas, não sentida por quem está confortavelmente sentado, ouvindo música e à temperatura desejada, sem ruído e com excelentes amortecedores, é facilmente compreensível o enorme risco que um condutor tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que quase se torna estranho não haver mais acidentes. Mais: quantos condutores saberão, por exemplo, que a 90 km/h a distância média de travagem é de pelo menos 45 metros? E que, em caso de piso molhado, esta distância sobe para praticamente o dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a noção do perigo até se travar (“distância de reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos, conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que, portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não se conseguiu travar a tempo é porque se circulava a velocidade excessiva para as circunstâncias da altura”? Poder-se-á quase perguntar: como é possível autorizar-se a condução a indivíduos que desconhecem a máquina que conduzem, os elementos que circulam e tantos outros indicadores que eliminariam à partida a sua capacidade de manobrar outras máquinas industriais? Poderá jogar xadrez quem não conhece os nomes das peças, os seus movimentos e os objectivos e regras do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou anatomia ou utilizou um bisturi? Só será possível gizar e aplicar efectivamente CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção medidas de prevenção dos acidentes e consequentemente dos TFLA, se houver uma profunda compreensão das características do comportamento humano, quer em termos de "laboratório", quer na vida real, perante os estímulos de ordem vária e perante o estresse. 4. O ambiente como factor fundamental Não nos podemos esquecer de que os agentes envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legisladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à espécie humana, são de "carne e osso" e, como tal, comportam-se humanamente, quer no que toca à riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das suas falhas e lacunas. Assim, sem eliminar completamente a responsabilidade individual – quer das crianças e jovens, quer sobretudo das famílias – deve atribuir-se o maior peso a outros factores. Hugh De Haven, um piloto de aviões da I Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão pela qual algumas pessoas, sofrendo o mesmo tipo de acidente (neste caso a queda), não sofriam praticamente qualquer lesão enquanto outras faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de que não era a força da queda, per se, que infligia as lesões, mas sim o ambiente estrutural que controlava a desaceleração da força e a sua distribuição pelo corpo. De Haven concluiu então que "se não fosse possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir as pressões de modo a aumentar as hipóteses de sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível da aviação, quer do transporte em terra". Hugh de Haven foi, assim, o primeiro investigador a compreender a importância dos limiares traumáticos e a possibilidade de redistribuir e redimensionar a energia dos impactes por forma a torná-los menos agressivos para o corpo humano. Este princípio serviu de base ao uso do cinto de segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais nas carrocerias e habitáculos dos automóveis. Ou seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer também ao domínio da biomecânica. Gibson, um psicólogo experimental da Universidade de 195 Cornell, referiu que o homem interage com os diversos fluxos de energia que o rodeiam – gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos, eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando não equilibradas, podem causar traumatismos, ferimentos e lesões. Assim, a melhor forma de classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de energia envolvida. O problema de classificação de alguns tipos de acidentes que não se encaixavam em nenhum destes tipos de energia – como os afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi resolvido por Haddon ao incluir o conceito de "agentes negativos", os quais se explicariam pelo défice de elementos energéticos essenciais como o oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA. Os estudos de Haddon constituem marcos essenciais para a compreensão inovadora dos acidentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente três fases (antes, durante e depois do acidente) com quatro elementos verticais (hospedeiro, vector, ambiente físico e ambiente sócio-económico) permite explicar os vários condicionalismos e factores que tornam cada acidente um caso diferente, com resultados diferentes: • na fase "antes" encontram-se os diversos factores que fazem com que o acidente vá ocorrer – por exemplo, segundo os quatro elementos verticais mencionados, o hospedeiro que está ébrio, os travões do carro que funcionam mal, a estrada que tem uma curva mal desenhada e a atitude permissiva da sociedade perante o álcool e a condução; • na segunda fase, "durante", estão os elementos que determinam se o acidente (que entretanto ocorreu) dá ou não origem a um traumatismo, ferimento ou lesão – no exemplo vertente, e ainda segundo os quatro parâmetros verticais: os ocupantes da viatura usam cinto de segurança?, o carro é pequeno ou é grande?, o carro bate numa árvore ou num monte de feno? existe ou não uma lei que reforce o uso de cintos?; • a terceira fase ("depois") contém elementos que determinam se a gravidade das consequências pode ser minorada: A hemorragia é importante? Os primeiros socorros chegaram rapidamente? Os cuidados intensivos são eficientes? A sociedade investiu num sistema de emergência médica? 196 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Para Haddon, modificando um ou alguns destes parâmetros teria implicações nas consequências de um acidente. Através da legislação, da sua fiscalização, da utilização das tecnologias para alterar a concepção e o fabrico dos produtos, os técnicos de diversas áreas têm como objectivo evitar o contacto do ser humano com quantidades de energia que lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí a chave da prevenção dos TFLA. Obviamente que não deve ser retirada ao ser humano a sua quota parte da responsabilidade. Se a energia de um impacte de um automóvel com uma árvore, por exemplo, é independente do condutor e depende, sim, do cinto de segurança, da estrutura do automóvel, da velocidade, do peso, do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna do volante ser colapsável ou não, etc., também não restam dúvidas de que a atitude de o condutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de colocar ou não o cinto de segurança, pode ser decisiva para a sua ocorrência ou para as suas consequências. Só que, em vez de uma acção "educativa" que é apenas informativa e muitas vezes assustadora ou punitiva, as modificações no sentido de actuar "pensando segurança" fazem-se através de uma aprendizagem comportamental que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e que tem de se iniciar muito precocemente, tal como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumprimentar os pais e os amigos. Daí a prioridade que deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos etários estes que estão numa fase eminentemente formativa da sua vida. Só incorporando a segurança nos gestos banais e nos actos instintivos poderá haver uma certa garantia de êxito. Não nos podemos esquecer de que a larga maioria dos acidentes ocorre, quer numa normalíssima situação do dia-a-dia, quer numa situação de estresse, e que, em ambas, o "catálogo" das recomendações de segurança não está presente na mente das pessoas. A educação para a prevenção dos acidentes deverá, assim, privilegiar os meios mais adequados à interiorização das mensagens (e não apenas o "bombardeamento" do alvo com mensagens) para o que são indispensáveis a utilização das técnicas de comunicação e de marketing, o contacto pessoal e a demonstração das alterações am- bientais a efectuar, de preferência nos locais onde elas devem ter lugar. Daí a importância de, por exemplo, incrementar a visitação domiciliária para cuidados de antecipação nesta área da prevenção, desde que os agentes sejam preparados convenientemente. Os meios de comunicação constituem, por outro lado um poderosíssimo meio de transmissão de mensagens, de informação e de modelação de comportamentos (bem como de criação de necessidades), nomeadamente através de programas informativos, educativos, lúdicos ou de entretenimento. 5. Estratégias A construção de um meio ambiente de qualidade que permita o desenvolvimento harmonioso da família e dos cidadãos é da responsabilidade de todos nós, requerendo um trabalho multi – e transdisciplinar. A prevenção dos acidentes passa por um programa centrado na comunidade, de acção ambiental, no qual os médicos deverão, evidentemente, desempenhar um papel de relevo, sendo que não se deverão considerar os detentores exclusivos do protagonismo. Alguns TFLA podem ser prevenidos através de uma acção global, nacional ou internacional, como certas intoxicações (se houver legislação e cumprimento desta no que se refere às embalagens de segurança), ou acidentes com a criança como passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei referente ao transporte correcto for cumprida). Outros que têm a sua génese em inadequações urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma abordagem local (é o caso dos atropelamentos à porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques infantis, em quedas de varandas, afogamentos em piscinas ou rios) e exigem transformações ambientais de tipo estrutural. Em alguns países, como a Suécia, foi possível (graças a uma acção sistemática integrada, iniciada ainda na década de 50 que reuniu as autoridades oficiais, organizações não governamentais, companhias de seguros e forças-vivas da sociedade) uma redução muito significativa no número de óbitos e na morbilidade por TFLA, até a Suécia se tornar o país com indicadores mais CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção baixos de todo o mundo industrializado. Curiosamente, o ponto de partida no final da década de 50, quando estas acções começaram a ter lugar, era muito semelhante ao de outros países, designadamente de Portugal. Para tal, é indispensável, como já referimos, conhecer a situação com vista a identificar prioridades, utilizando para tal a abordagem da saúde pública, classificando os problemas segundo a sua prevalência/incidência, a sua transcendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às diversas acções e medidas. Será também indispensável fazer uma ampla revisão da literatura e consultar peritos de várias instituições para identificar quais as medidas e acções que são verdadeiramente eficientes, separando-as das que, embora aparentemente eficazes, não se traduzem muitas vezes por uma melhoria da situação. Outro aspecto fundamental é não desenvolver programas demasiado alargados. "Prevenir os acidentes" é um conceito demasiado vago para ser entendido em termos práticos e, novamente, podendo desencadear a noção de falsa-segurança. Em cada local haverá que identificar por ordem de prioridade quais os tipos de acidentes que estão a produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a iniciar programas para os mais frequentes, mais graves, com maior vulnerabilidade às medidas e acções, com maior relação benefício/custo. Será igualmente fundamental ampliar a informação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a sensibilizar o público, designadamente sobre as prioridades e as medidas propostas, a fim de obter uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento destes na definição do problema, em toda a sua extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos mas também como seres humanos com experiência acumulada, não só é fundamental como representa o reconhecimento de um direito legítimo. Para além disso, no sentido de produzir as necessárias modificações ambientais: 1) há que fazer um levantamento dos recursos materiais e humanos; 2) analisar através da matriz de Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada TFLA, a fim de os "partir"; 3) redimensionar o contacto entre a energia (agente + situação) e a vítima. 197 O ponto 3) poderá ser concretizado com certas medidas a saber: A. Medidas com o objectivo de impedir a troca de energia entre um e outro: • evitar a situação ou abolir o agente (eliminar um pesticida perigoso) • separar o agente da criança (vedar uma piscina) • vigiar a criança para impedir o contacto, apesar de não haver separação (acompanhar uma criança de casa à escola) • informar a criança dos riscos (educação para a segurança) B. Medidas que reduzem a troca de energia ou melhoram a recepção da energia • reduzir a quantidade ou a agressividade do agente (reduzir a temperatura máxima da água canalizada) • modificar a situação e o agente (embalagens de segurança) • aumentar a resistência da criança (usar cadeira de segurança no automóvel) • treinar a criança para melhor enfrentar o agente (aprender a nadar) Para além destas, é essencial desencadear também as medidas que, uma vez ocorrido o TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e terciária. Notas importantes: • algumas medidas devem ser tomadas “de uma vez”, como a compra por exemplo de um fogão no qual não haja aquecimento da porta – é relativamente fácil concretizar este grupo de medidas (consideradas evidentemente a acessibilidade, disponibilidade e outros factores); • outras deverão ser repetidas todos os dias, como colocar o cinto de segurança – podendo, contudo ser estabelecidas desde que se crie o hábito; 6. Legislação A integração de Portugal na União Europeia reforçou o naipe legislativo português, pela transposição para o Direito Interno do nosso País, 198 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA das directivas e normas europeias. Poder-se-á dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um conjunto leis que, se levadas à prática, poderiam contribuir para reduzir de forma muito evidente o número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto, alguns problemas que subsistem – a segurança no transporte colectivo de crianças ou o uso do capacete de bicicleta. O problema principal no processo legislativo reside no atraso registado na regulamentação das leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade) dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a propósito, que as Câmaras Municipais e os Serviços de Saúde, designadamente, não dispõem ainda de meios legais para controlar aspectos essenciais relacionados com a construção de edifícios e com o ambiente onde as crianças vão viver. Na Suécia, apesar de a utilização de dispositivos para transporte de crianças ter tido início quando Olof Palme era Ministro dos Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e existindo programas de aluguer e outros que generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo o grau de utilização de praticamente 100%), a legislação só foi produzida em 1988, numa altura em que qualquer pai ou mãe suecos já não admitiriam a hipótese de transportar incorrectamente os filhos. No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primeira vez, se levantou no Parlamento a questão do uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este lapso de tempo pode ser considerado grande e levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA evitáveis, por outro lado permite que, desde que bem utilizado, o processo legislativo seja acompanhado pela população e o articulado legal entendido e aceite. A existência de Provedorias da Criança, com tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do Cidadão (designadamente nos direitos do consumidor) permitiu também em muitos países (enca- beçados pelos nórdicos mas também na Holanda, Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de padrões sociais de exigência mesmo na ausência de legislação na perspectiva do bem-estar da população em idade pediátrica. 7. Consciencialização dos cidadãos É imperioso aumentar o reconhecimento e a consciencialização da população e de todos os níveis dos sectores público e privado relativamente à necessidade do controlo de TFLA. A natural lentidão do processo de interiorização de conceitos novos não deverá ser impedimento à transmissão de mensagens que são consideradas correctas, pelo que as campanhas de educação para a saúde e de chamada de atenção para os problemas, deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabilitação). Claro está que, dadas as reticências que actualmente são levantadas a estes processos, designadamente no que se refere à sua eficácia e eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com extensa utilização das técnicas de comunicação existentes e com uma noção clara do que será importante transmitir. Os profissionais estão frequentemente alheados do problema ou das formas de o resolver. Quantos arquitectos e engenheiros não conhecem ou não utilizam a legislação existente relativa aos materiais de construção e à segurança da construção? Quantos médicos ignoram os ditames da segurança no que toca aos medicamentos? Quantos tóxicos são vendidos sem um alerta para as condições de utilização e armazenamento? etc.. O ensino/ aprendizagem da segurança deverá começar quando começa o de outras áreas mas, dentro do percurso de formação profissional, importa investir mais e melhor, em quantidade e qualidade. Em suma, os acidentes custam tantos ou mais anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro. Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um pouco à margem da preocupação dos cidadãos. BIBLIOGRAFIA American Academy of Pediatrics. Committee on Injury and Poison Prevention: Children in Pick up Trucks. Pediatrics 2000; 106: 857-859 CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas Committee on Injury, Violence and Poison Prevention. The teen drive. Pediatrics 2006; 18: 2571-2581 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 199 39 INTOXICAÇÕES AGUDAS Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, António Marques e Margarida Santos 2007 Norton C, Nixon J, Sibert JR. Playground Injuries to Children. Arch Dis Child 2004; 89: 103-108 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 Definição e importância do problema Tremblay RE, Nagin DS, Seguin JR. Physical aggression during early childhood: trajectories and predictors. Pediatrics 2004; 114: e 43-50 Intoxicação é definida como a acção exercida por substância tóxica (veneno) no organismo e o conjunto de pertubações daí resultantes. Na sua forma aguda, trata-se de situações classicamente abordadas no capítulo sobre Urgências e Emergências. De acordo com estudos epidemiológicos, cerca de 3/4 dos casos surgem em crianças com menos de 5 anos (de forma acidental) enquanto cerca 1/4 dos casos após a referida idade (em geral de forma voluntária e intencional, sobretudo na pré-adolescência e adolescência). As exposições acidentais, susceptíveis de prevenção através de educação cívica e campanhas de esclarecimento, têm, na maioria dos casos, consequências bem menos temíveis (1,4 % de mortalidade) que as intoxicações de origem voluntária (6% de mortalidade) o que se justifica, nesta última circunstância, pela exposição a maior número de tóxicos e a doses mais elevadas ingeridas. Etiopatogénese e semiologia Algumas particularidades caracterizam o risco na criança mais jovem: maior susceptibilidade à hipóxia e à falência respiratória (devido a taxas metabólicas mais elevadas e a menores reservas compensatórias), à desidratação por perdas insensíveis mais significativas, e à hipoglicémia devido a escassez de reservas de glicogénio. Na criança mais jovem a substância em causa é mais facilmente identificável, embora a quantidade o seja menos (Quadro 1). Se mais do que 200 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Substâncias potencialmente tóxicas Agentes frequentemente envolvidos Paracetamol Produtos de limpeza Benzodiazepinas e antidepressivos Álcool Antiasmáticos Anti-histamínicos Anti-inflamatórios Pesticidas uma criança está envolvida, há que partir do princípio de que cada uma tomou a quantidade máxima possível e não o contrário. Na mais velha, poderão não ser óbvios nem o(s) produto(s), nem as quantidades, devendo ser investigadas todas as hipóteses e circunstâncias, incluindo as drogas de abuso. Em ingestões deliberadas deve fazer-se o rastreio, não só dos tóxicos comuns, mas também de outros menos óbvios que ponham em risco a vida. Manifestações clínicas e exames complementares O Quadro 2 discrimina um conjunto de sintomas e sinais relacionáveis com a exposição a determinadas substâncias. Tais sinais e sintomas integram determinadas síndromas (s) sendo que determinada sintomatologia obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com as situações assinaladas por (DD). A natureza, a quantidade e as circunstâncias do contacto devem ser tomadas em conta, incluindo a possibilidade de abuso ou negligência. Em todas as ingestões potencialmente tóxicas a avaliação deve compreender, para além do exame geral (que inclui o neurológico, da pele e mucosas, pesquisa de ruídos intestinais e de sinais de retenção vesical), uma atenção especial aos sinais vitais dada a possibilidade de alterações respiratórias e cárdio-circulatórias. A avaliação laboratorial compreenderá sempre um painel bioquímico de base. Os restantes exames deverão basear-se no padrão sintomatológico para confirmar ou excluir a situação clínica e guiar o tratamento. Gases, fumos e vapores Analgésicos e antipiréticos Cáusticos Antidepressivos Tóxicos cardiovasculares Drogas de abuso (adolescentes) Abordagem terapêutica A maioria da crianças apresenta-se assintomática no serviço de urgência, sendo necessário um período de observação determinado pela situação clínica com que se depara. A metodologia de abordagem deve compreender: 1. Ressuscitação: a primeira preocupação deverá ser a estabilidade ventilatória (incluindo a protecção das vias aéreas) e circulatória. Aquando da transferência para uma unidade de cuidados mais diferenciados deverá acautelar-se essa estabilidade. 2. Descontaminação: na possibilidade de contaminação cutânea é imprescindível a lavagem total, incluindo o cabelo e os olhos. Nas ingestões, não é preconizada a administração de antieméticos e a lavagem gástrica não deve ser feita de rotina. Este último procedimento apenas tem indicação se a apresentação do caso fôr muito precoce, estando contraindicado nas ingestões de corrosivos e substâncias voláteis (hidrocarbonetos). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas. A administração de carvão activado (15-30 gramas “per os”) é útil na maioria das ingestões, mas não deve ser feita se a mesma anular, por adsorção, a acção de antídotos orais tais como a Nacetilcisteína. 3. Aumento da excreção - Doses repetidas de carvão activado (0,5 g/Kg de 6/6 horas “per os”): para carbamazepina, barbituratos, dapsone, quinino, teofilina, salicilatos, amanita phalloides, preparações de libertação lenta, digitálicos, fenilbutazona, fenitoína, sotalol, piroxicam. É ineficaz para álcoois, óleos de essências, ferro, lítio e lixívia. – Alcalinização da urina com bicarbonato de CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas 201 QUADRO 2 – Síntomas e sinais relacionáveis com intoxicações agudas e diagnóstico diferencial Sindroma (S) ou Sintomas e sinais Causas Hipersecreção exócrina, sede, rubor, Alcalóides da beladona, alguns cogumelos, midríase, hipertermia, retenção urinária, anti-histamínicos, antidepressivos tricícli- delírio, alucinações, taquicardia, insuficiên- cos, escopolamina diagnóstico diferencial (DD) com Anticolinérgica (S) cia respiratória Colinérgica (S) Hipersecreção exócrina, incontinência Insecticidas organofosforados e carbamatos, (muscarínica e urinária, náuseas, vómitos, diarreia, fascicu- alguns cogumelos, tabaco, envenenamentos nicotínica) lações musculares, miose, fraqueza muscu- por aranhas “viúvas negras” lar ou paralisia, broncospasmo, taquicardia ou bradicardia, convulsões, coma Extrapiramidal (S) Tremor, rigidez, opistótono, torcicolo, disfo- Fenotiazidas, haloperidol, metoclopramida nia, crises oculógiras, Hipermetabólica (S) Opióides (S) Febre, taquicardia, hiperpneia, prostração, Salicilatos, alguns fenóis, triatilina, clor- convulsões, acidose metabólica fenoxi-herbicidas Depressão do SNC, hipotermia, hipotensão Todos os opióides, propoxifeno, heroína arterial, hipoventilação, miose Simpaticomimética (S) Excitação, psicose, convulsões, hipertensão Anfetaminas, fenilciclina, cocaína, “crack”, arterial, taquipneia, hipertermia, midríase fenilpropanolamina, metilfenidato, teofilina, cafeína Abstinência (S) Cólicas abdominais, diarreia, lacrimejo, Cessação de álcool, barbituratos, benzo- sudação, “pele de galinha”, bocejos, diazepinas e opióides taquicardia, prostração, alucinações MCAD, doença de Colapso, hipoglicémia não cetótica Etanol Insuficiência hepática aguda Paracetamol Hiperglicémia, cetose, depressão do SNC Acetona; teofilina Convulsão febril (DD) Depressão do SNC; tremor, febre MDMA (“Ecstasy”) Pneumopatia (DD) Hipertermia, taquipneia, início súbito Salicilatos armazenamento de glicogénio (DD) Insuficiência hepática idiopática (DD) Cetoacidose diabética (DD) Abreviaturas: MCAD – Medium – Chain Acyl CoA Dehydrogenase; MDMA – Metileno- Dioxi – Metanfetamina; SNC – Sistema Nervoso Central sódio a 8,4% (1-2 ml/kg/dia i.v. para manter pH urinário> 7,5): para salicilatos, barbituratos, isoniazida, ácido diclorofenoacético. – Irrigação intestinal completa (administração entérica de uma solução electrolítica osmoticamente equilibrada de polietileno glicol – 30 ml/Kg/ hora – para induzir fezes líquidas, continuando tratamento até que as emissões rectais sejam claras): para substâncias que não são adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito intestinal lento e apresentem risco de vida. – Remoção do tóxico (em unidades de cuidados intensivos) por: • Diálise: moléculas com baixo peso molecular (para salicilatos, metanol, etilenoglicol, vancomicina, lítio, isopropranolol). • Hemoperfusão: para tóxicos com solubilidade baixa na água, grande afinidade para o adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos periféricos para o sangue e baixa afinidade para as proteínas plasmáticas (carbamazepina, barbituratos e teofilina) 202 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Tóxicos e antídotos Tóxico Benzodiazepinas ␤-bloqueantes Monóxido de Carbono Tetracloreto de Carbono Digoxina Ferro Isoniazida Lítio Metemoglobinémia Metanol Etilenoglicol Metoclopramida Opióides Organofosforados Paracetamol Tiroxina Anticolinérgicos Sulfonilureias Antidepressivos tricíclicos • Hemofiltração: para remoção de moléculas com grande peso molecular (aminoglicosídeos, teofilina, ferro e lítio). Nota: há substâncias que tornam inúteis as técnicas extracorporais: benzodiazepinas, antidepressivos tricíclicos, fenotiazidas, clorodiazepóxido e dextropropoxifeno. 4. Antídotos: a utilização dos antídotos (Quadro 3) deve ser guiada pela suspeita específica e pode constituir prova terapêutica. Prevenção Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de suporte conduzirem a uma recuperação na maioria das situações, torna-se obrigatório falar na prevenção e na abordagem psicossocial das intoxicações e acidentes em geral; todas as noções gerais explanadas no capítulo sobre traumatismos, ferimentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento no âmbito das intoxicações (capítulo 38). BIBLIOGRAFIA Barry JD. Diagnosis and management of the poisoned child. Pediatr Ann 2005; 34: 937-946 Bryant S, Singer J. Management of toxic exposure in children. Antídoto Flumazenil Adrenalina(infusão), glucagom Oxigénio N-acetilcisteína Anticorpos antidigoxina Desferroxamina Piridoxina, bicarbonato de sódio Substituição salina, dopamina Azul de metileno Etanol Fomepizol Prociclidina Naloxona Atropina, pralidoxina, toxogonina N-acetilcisteína Propranolol Fisiostigmina Octreotido Bicarbonato de sódio Emerg Med Clin North Am 2003; 21: 101-119 Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am 2006; 53: 293-315 Michael JB, Sztajnkrycer MD. Deadly pediatric poisons: nine common agents that kill at low doses. Emerg Clin North Am 2004; 22: 1019-1050 Riordan M, Rylance G, Berry K. Poisoning in children. Arch Dis Child 2002; 87: 392-410 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 CAPÍTULO 40 Viagens 40 VIAGENS Luís Varandas Importância do problema Por ano partem da Europa e dos Estados Unidos da América vários milhões de pessoas, tendo como destino as regiões tropicais; de tal resulta que muitas famílias se desloquem e residam por períodos mais ou menos longos nos países em desenvolvimento. Apesar de as crianças representarem uma pequena percentagem dos viajantes, os acidentes, doenças infecciosas cosmopolitas, e outras, próprias de regiões tropicais, constituem de facto um risco para quem se desloca para essas regiões. Embora nalgumas situações seja aconselhável o recurso a uma consulta de aconselhamento pré-viagem a cargo de um médico ou equipa experiente em Medicina das Viagens, na generalidade das situações o pediatra deve estar apto a prestar esclarecimentos à família. No Hospital Dona Estefânia existe desde 2002 uma consulta de aconselhamento à criança e à família que pretendam viajar para regiões tropicais. (Nota: Uma vez que este capítulo contém matéria relacionada com a Parte de Infecciologia, sugere-se ao leitor a respectiva consulta). Preparação da viagem A viagem deverá ser preparada com o máximo cuidado e com o conhecimento tão completo quanto possível do local de destino. Os pais deverão estar esclarecidos antecipadamente sobre possíveis problemas que possam ocorrer e estar preparados para os resolver. Para a tradicional pergunta “e se?” deverão ter a resposta preparada. Sempre que possível, a viagem deverá ser preparada com as crianças o que implica alteração das rotinas diárias discutidas previamente. Durante a viagem as mesmas 203 deverão andar sempre identificadas e saber o que fazer no caso de se perderem. No avião o barotrauma é mais frequente durante a descida, ocorrendo otalgia numa pequena proporção (cerca de 15%). Aos lactentes poderá ser oferecido um biberão enquanto as crianças mais velhas poderão mascar pastilha elástica ou soprar um balão. O uso de vasoconstritores nasais é controverso. Os acidentes são a principal causa de morte entre os viajantes. A utilização de cadeiras de criança nos automóveis, os cintos de segurança e o respeito pelas regras de trânsito contribuem para a redução da morbilidade e mortalidade pelos acidentes de viação. O hotel ou a casa onde vão ficar devem ser cuidadosamente inspeccionados para identificar e corrigir possíveis causas de acidentes. O contacto com animais deve ser evitado. Os afogamentos são a segunda causa de morte em crianças viajantes. Os banhos só deverão ser autorizados em locais considerados seguros e de fácil supervisão por parte dos pais. Só a água salgada e a água clorada das piscinas são consideradas seguras. A exposição solar nas horas de maior calor e/ou prolongada deve ser evitada. Alimentos e bebidas A água deve ser sempre desinfectada [duas a quatro gotas de uma solução de cloro (hipoclorito de sódio a 2-4% ou vulgar lixívia pura) por litro de água], ou fervida durante três a cinco minutos; pode optar-se pela engarrafada que é considerada mais segura. As bebidas carbonatadas são de baixo risco, mas não se deve adicionar gelo obtido a partir de água não tratada. A carne, o peixe e os vegetais devem ser bem cozinhados e ingeridos ainda quentes. Os vegetais a comer crus devem ser lavados e mergulhados em soluções de iodo ou cloro durante 20 minutos. Os frutos devem ser descascados de preferência pelo próprio. Protecção contra insectos Casas com ar condicionado, redes mosquiteiras nas janelas e nas camas (de preferência impregnadas com permetrina), insecticidas em “spray” ou de libertação lenta devem ser usados para protecção de toda a família. As roupas de cor clara, facilitando a 204 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Precauções no uso de repelentes • Aplicar apenas na pele exposta • Não inalar, ingerir ou permitir o contacto com os olhos • Não aplicar repelentes nas mãos das crianças, para evitar contacto com a boca e com os olhos • Usar calças e camisas de manga comprida aplicando repelente na roupa • Nunca aplicar repelentes em feridas ou na pele irritada • Não os usar em excesso, pois aplicações muito frequentes não aumentam a eficácia (uma aplicação exerce efeito durante 4-8 horas) • Remover o repelente, ao regressar ao hotel/casa visualização dos insectos, as camisas de manga comprida e calças em detrimento dos calções, são outras medidas de protecção individual contra a picada dos insectos. As crianças podem ainda usar repelentes. O mais eficaz e menos tóxico é o DEET (N,N-dietil-meta-toluamida) em concentrações não superiores a 30%. Para alguns autores, até aos 12 anos de idade, esta não deve ultrapassar os 10%; e em crianças com idade inferior a dois anos deve ser efectuada apenas uma aplicação diária. A sua duração de acção é de quatro a oito horas. O Quadro 1 resume algumas precauções a ter com os repelentes. Vacinas No que respeita às vacinas do programa nacional de vacinação (PNV), as anti poliomielite, tríplice e anti Haemophilus influenzae tipo b podem anteciparse para as 6, 10 e 14 semanas ou completar-se a primovacinação com intervalos de quatro semanas. A vacina anti-sarampo isolada ou, se não for possível, combinada (sarampo, rubéola e paratodite) pode administrar-se a partir dos seis meses de idade. Se administrada antes do ano de idade deve manter-se o esquema habitual de vacinação com mais duas doses. A vacina conugada antimeningocócica do serogrupo C é recomendada do segundo modo: 2 doses (aos 3 e 5 meses de idade) e reforço aos 15 meses. A vacina anti-hepatite B pode ser administrada aos 0, 1, 2 com reforço aos 12 meses. Das vacinas não incluídas no PNV (Quadro 2), as, vacinas anti-encefalite japonesa, vacinas antifebre tifóide, meningocócica e rábica são, habitual- QUADRO 2 – Vacinas não incluídas no PNV disponíveis em Portugal Vacina Cólera (Dukoral®) Encefalite japonesa Febre amarela1 Febre tifóide Hepatite A2 (Havrix® Júnior e Adulto; Epaxal®) Meningocócica polissacárida Pneumocócica polissacárida Pneumocócica conjugada (Prevenar®) Raiva Rotavírus Rotarix® RotaTeq® Varicela (Varilrix®; Varivax®) Esquema recomendado 0, 1-6 semanas (> 6 anos) 0, 1-6 sem, 1-6 semanas(2-6 anos) 0, 7, 21 a 28 dias, sc Toma única, sc Toma única, im Inicio da eficácia 7 dias 10 a 14 dias 10 dias 7 a 10 dias Reforço 3 anos 6 meses 1 - 4 anos 10 - 10 anos 2 - 3 anos Toma única, im Toma única, im Toma única, im 2 - 4 semanas 15 dias (?) 6 - 24 meses 3 - 5 anos 3 anos 2, 4, 6, 15-18 meses, im 0, 7, 21, 28 dias (?) após a 3ª dose (?) 2 - 5 anos 2, 4 meses 2, 4, 6 meses Toma únca (?) / Duas tomas separadas, no mínimo, 4 semanas (?) (?) (?) Abreviatura: sc = subcutânea; im = intramuscular; ? = assunto em debate Países que exigem a vacina a todos os viajantes: Angola, Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro Africana, Congo,República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Guiana Francesa, Gabão, Gana, Libéria, Mali, Níger, Ruanda, S. Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Togo, Zimbabué; 2 pode ser administrada mesmo na véspera da partida. 1 CAPÍTULO 40 Viagens mente recomendadas a quem permaneça por longos períodos em regiões endémicas. A vacina antifebre amarela é recomendada a todos os viajantes para as zonas endémicas de África e América do Sul, podendo ser exigida pelas autoridades locais. Está contraindicada nas crianças alérgicas ao ovo e imunocompremetidas. A vacina anti-hepatite A é recomendada para quem viaja para todas as regiões tropicais e subtropicais, independentemente da duração da estadia. A vacina anticolérica (Dukoral‚) tem a vantagem de conferir protecção cruzada contra a diarreia do viajante causada por algumas estirpes de E coli. A vacina antipneumococo poderá ser recomendada a crianças viajantes para regiões com difícil acesso aos serviços de saúde. Relativamente aos dois tipos destas vacinas comercializadas em Portugal, cabe salientar o seguinte: 1) A vacina com polissacáridos contendo 23 serotipos está indicada em crianças com idade superior a 2 anos (dose única, 0,5 ml por via IM ou SC); 2) a vacina conjungada com 7 serotipos pode ser administrada a partir dos 2 meses de idade com intervalos de 4 a 8 semanas; às crianças com idades entre 1-2 anos são recomendadas, apenas, 2 doses, sem reforço. A vacina anti-rotavírus poderá ser administrada sempre que um lactente com idade inferior a 3 meses se desloque para regiões tropicais. Com efeito, nas regiões tropicais a infecção gastrintestinal ocorre durante todo o ano, ao contrário do que acontece nos países de clima temperado, com pico de incidência nos meses mais frios. Em Portugal estão comercializadas duas marcas de vacinas diferindo pelo número de serotipos, respectivamente com cinco e dois, podendo coincidir a sua administração com as do PNV. A de 2 205 serotipos é administrada em duas doses e a de 5 serotipos em três doses; em ambas, com intervalo mínimo de 4 semanas, a partir das seis semanas e, somente até às 12 semanas de idade. A vacina antivaricela não é recomendada como rotina embora possa ser administrada nos casos de viajantes de longa duração para áreas muito isoladas. Trata-se duma vacina de vírus vivo atenuado indicada para crianças com idade superior a 12 meses de idade (2 doses com 4 semanas de intervalo (mínimo). (Quadro 2) (Consultar Parte referente a Infecciologia). Profilaxia da malária Em áreas de sensibilidade à cloroquina (Resochina®‚) (América Central, Caríbas, raras zonas da América do Sul e Médio Oriente), esta mantém-se como primeira escolha. Nas áreas de resistência à cloroquina (África, Sudoeste Asiático, Polinésia, bacia do Amazonas) o fármaco de primeira escolha é a mefloquina (Mephaquin®‚); como alternativa pode usar-se a atovaquona/proguanil (Malarone®‚) e a doxiciclina (Quadro 3). A associação cloroquina (Resochina®‚) e proguanil (Paludrina®‚) (o Savarine®‚ contém os dois fármacos) pode ser usada em áreas sem resistência ou de resistência intermédia. O Malarone®‚ e o Savarine®‚ encontram-se nalguns locais onde funcionam Consultas do Viajante; e o Malarone®‚ pediátrico, apenas, no Hospital de Dona Estefânia em Lisboa. Nenhum tratamento profiláctico é totalmente seguro, razão pela qual o diagnóstico precoce e o tratamento imediato e adequado são fundamentais em caso de doença. Viagens que impliquem esta- QUADRO 3 – Fármacos utilizados na profilaxia da malária Fármaco Atovaquona/proguanil Cloroquina# Doxiciclina§ Mefloquina* Proguanil Dose 3,1 a 5,7 mg/kg de atovaquona/dia 5 mg/kg de cloroquina base/semana 1,5 mg/kg/dia 5 mg/kg/semana 3 mg/kg/dia Esquema de profilaxia Um dia antes da partida até sete depois Uma semana antes até quatro depois Uma semana antes até quatro depois Uma semana antes até quatro depois Um dia antes até quatro semanas depois # contraindicada na presença de deficiência de G-6-PD (deficiência de desidrogenase da glucose-6-fosfato), retinopatia, epilepsia, psicose e miastenia gravis; §contraindicadas em grávidas e crianças com menos de oito anos de idade; *contraindicada em casos de epilepsia, perturbações psiquiátricas e distúrbios da condução cardíaca. 206 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Autotratamento da malária (OMS) Profilaxia Nenhuma Cloroquina ou cloroquina/proguanil Mefloquina Doxiciclina Autotratamento Cloroquina (áreas de P vivax) Mefloquina Quinino Atovaquona/proguanil Artemether/lumefantrina* Mefloquina Quinino Quinino** Quinino+doxiciclina Mefloquina Quinino * não disponível em Portugal; ** reiniciar profilaxia com mefloquina uma semana após a última dose de quinino dias prolongadas em regiões isoladas e com deficientes cuidados de saúde poderão justificar o autotratamento na suspeita de uma crise de malária. Os fármacos a utilizar dependem da área geográfica, da circustância de a criança estar já submetida a profilaxia e do respectivo fármaco (Quadro 4). Não existe ainda experiência suficiente sobre a utilização de atovaquona/proguanil e artemether/ lumefantrina para autotratamento nos casos em que a profilaxia está já em curso com outros antimaláricos. Consulta após regresso da viagem Esta consulta recomenda-se sempre que a estadia tenha sido prolongada, sobretudo em meio rural, ou se tenham registado algumas problemas de saúde. A criança que regressa doente ou adoece logo após o regresso deve ser avaliada, de imediato, independentemente da duração e do local da estadia. Contudo, não deve ser esquecido que o período de incubação das várias doenças é muito variável (Quadro 5). O conhecimento da epidemi- QUADRO 5 – Períodos de incubação médios de algumas doenças prevalentes em regiões tropicais Curto (< 1 semana) Tripanosomose (cancro de inoculação) Chikungunya Cólera Dengue Diarreia aguda Ébola Febre amarela Febre recorrente Legionelose Peste Salmonelose Shigelose Tétano Intermédio (1-4 semanas) Amebose Brucelose Doença de Chagas Febres hemorrágicas Febre tifóide Giardiose Hepatite A Hepatite E Leptospirose Malária Riquetsioses Shistosomose aguda Estrongiloidose Tripanossomose (rhodesiense) Adaptado de Mahmoud AAF, ed. Tropical and Geographical Medicine. Singapore: McGrawHill, 1993. Longo (1 a 6 meses) Ascaridose Buba Hepatite B Hepatite C Leishmaniose cutânea Loiose Malária Pinta Raiva Teniose Tracoma Tricuriose Muito Longo (2 meses a anos) Cisticercose Equinococose Fasciolose Filariose Leishmaniose vísceral Lepra Shistosomose SIDA Tripanossomose (gambiense) CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão ologia e da clínica das doenças mais prevalentes nos locais de estadia da criança permitirá estabelecer a lista de diagnósticos mais prováveis e a subsequente investigação laboratorial. SÍTIOS A CONSULTAR NA INTERNET (acesso 20/3/2008) 207 41 ACIDENTES DE SUBMERSÃO • www.who.int.ith (World Health Organization) • www.cdc.gov.travel (Centers for Disease Control and José Ramos e Isabel Fernandes Prevention, USA) • www.istm.org (International Society of Travel Medicine) • www.csih.org (Canadian Society for International Health) • www.paho.org (Organização de Saúde Pan-Americana) Definição e importância do problema BIBLIOGRAFIA O afogamento é a morte por asfixia nas primeiras 24 horas após submersão ou imersão em líquido. No quase afogamento há sobrevivência por mais de 24 horas após a submersão. Este tipo de problema comporta elevado número de casos fatais e de sequelas graves nos sobreviventes. Salienta-se que a lesão neurológica devida a hipóxia-isquémia constitui a causa principal de mortalidade e de morbilidade a longo prazo. Koren G, Matsui D, Bailey B. DEET-based insect repellents: safety implications for children and pregnant and lactating women. CMAJ 2003;169: 209-212 Stauffer WM, Konop RJ, Kamat D.Traveling with infants and young children. Part I: Anticipatory guidance: travel preparation and preventive health advice. J Travel Med 2001; 8: 254-259 Stauffer WM, Kamat D.Traveling with infants and children. Part 2: immunizations. J Travel Med 2002; 9:82-90 Stauffer WM, Konop RJ, Kamat D.Traveling with infants and Aspectos epidemiológicos young children. Part III: travelers' diarrhea. J Travel Med 2002; 9:141-150 Stauffer WM, Kamat D, Magill AJ.Traveling with infants and children. Part IV: insect avoidance and malaria prevention. J Travel Med 2003; 10:225-240 Varandas L. Viajar com crianças para regiões tropicais. Lisboa: GSK editora, 2007 De acordo com dados da OMS, estima-se que cerca de 450.000 pessoas morrem anualmente em todo o mundo (cerca de uma pessoa por minuto) o que o que corresponde a uma taxa de mortalidade aproximada de 6,8/100.000. Na Europa a referida taxa ronda 3-4/100.000; em Portugal a incidência estimada é 2-3/100.000. De facto, a incidência actual não é perfeitamente conhecida na medida em que muitos casos fatais não são notificados. Salienta-se, a propósito, que as medidas de reanimação imediatas precoces por pessoal treinado antes da admissão hospitalar reduzem a mortalidade relacionada com as consequências cardiorrespiratórias. Fisiopatologia Ocorrendo submersão todos os órgãos e tecidos correm o risco de hipóxia-isquémia. Em minutos a hipóxia-isquémia pode levar a paragem cardíaca a que se poderá associar laringospasmo e aspiração de água para a via respiratória, o que contribui para agravar a hipóxia. Seja por aspiração ou por laringospasmo surge 208 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA a hipoxémia com consequente morte celular. A mortalidade e morbilidade estão, no essencial, dependentes da duração da hipoxemia. No quase afogamento são frequentes o aparecimento de complicações multiorgânicas resultantes da hipoxémia, seja directamente relacionada com a submersão ou secundária a complicações, mais frequentamente pulmonares, cardíacas e as neurológicas. A hipovolemia é frequente por perdas de líquidos relacionadas com as alterações de permeabilidade vascular secundária à hipóxia. E a hiponatremia, quando se desenvolve, está mais relacionada com os líquidos deglutidos do que com os líquidos aspirados e eventualmente com a consequente síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIHAD). A nível pulmonar, que por alteração do surfactante, quer por diluição do mesmo, o resultado é uma acentuada diminuição da capacidade residual funcional, alteração na permeabilidade da membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxémia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3 ml/Kg de líquido aspirado. De referir o papel importante dos mediadores inflamatórios, da hipersecreção nas vias respiratórias e da vasoconstrição no território da artéria pulmonar originando hipertensão pulmonar. A hipoxémia, a acidose metabólica, e a hiperpermeabilidade vascular condicionam o aparecimento de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a breve trecho, hipotensão importante, muitas vezes irreversível. As tradicionais questões relativas à submersão em água muito fria (<5º C), água fria e água quente (>20º C), água doce e água salgada são de nula relevância clínica. As alterações osmóticas surgem acima de 22ml/kg aspirados, sendo que na maioria dos afogamentos não são aspirados mais de 5ml/kg. Avaliação A história clínica é importante e inclui a eventualidade de existência de água perto da área do acidente, pais distraídos ou vigilantes ainda que momentaneamente, rapidez e silêncio. Haverá que inquirir sobre antecedentes de epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervicais e ingestão de álcool ou drogas. Os sintomas e sinais habitualmente associados são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos, diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciência, paragem cardio-respiratória, morte. Haverá que avaliar a estabilidade cervical pela probabilidade de acidentes com fractura das vértebras cervicais. Haverá igualmente que detectar eventuais sinais de abuso e negligência. Em função do contexto clínico, poderá haver necessidade de proceder a: a) Monitorização contínua cardio-respiratória, da pressão arterial e da saturação O2-Hb (oximetria de pulso), ECG. b) Exames complementares: hemograma, gasometria, ionograma, enzimas hepáticas, glicémia, doseamento de drogas e álcool. c) Estudos imagiológicos: radiografia do tórax, do crânio e da coluna cervical, etc.. Procedimento A actuação deve ser doseada de acordo com os dados da história clínica e dosexames complementares. • A medida prioritária é a administração de oxigénio suplementar a 100%, sempre e em primeiro lugar. O uso de Ambú pode implicar a utilização de pressões bastante superiores às habituais devido à baixa distensibilidade pulmonar, resultante do edema pulmonar. • Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a colocação de colar cervical. Pacientes com breves momentos de submersão e sem sintomatologia podem regressar a casa após 4 a 6 horas de observação. Pacientes com sinais de disfunção respiratória, hipoxémia, alterações do estado de consciência ou suspeita de abuso/negligência devem ser transferidos para unidade de cuidados intensivos, onde deverá proceder-se a: • Entubação nasogástrica • Expansão vascular (soro fisiológico: 20 ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxigenação, resolve quase sempre a acidose metabólica. • Entubação e ventilação mecânica se se verificar dificuldade respiratória, alteração do sensório, paO2 < 60 torr ou pH < 7,20. É fre- CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão quente a necessidade de PEEP (pressão positiva contínua no fim da expiração) elevada. • Algaliação • Cateterização venosa central • Broncoscopia Nota: Os doentes afogados em água muito fria, < a 5ºC, devem ser observados com especial cuidado. Devem ser aquecidos até atingirem temperaturas normais ao mesmo tempo mantendo as manobras de reanimação. A monitorização da pressão intracraniana não parece ser útil nem necessária. Complicações As complicações imediatas são as relacionadas com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o sistema cardiovascular, tendo em atenção a possibílidade de disritmias e, em particular, fibrilhação ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for muito grave o choque cardiogénico irreversível é uma possibilidade. As lesões do SNC dependem igualmente da intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência em estado vegetativo é uma complicação particularmente grave. O quase afogamento associa-se muito frequentemente a pneumonia, e no caso da submersão em piscina, a pneumonite. 209 rança infantil – APSI morrem anualmente em Portugal, por afogamento cerca de 30 crianças por ano. Ocorrem predominantemente em rapazes de 1 a 4 anos e dos 15 a 19 anos. É importante notar que por cada morte existirão cerca de 20 atendimentos em serviços de urgência e até 5 sobreviventes com alguma forma de deficiência. Quase sempre acidentais, as situações de afogamento podem ser prevenidas com medidas simples de fácil aplicação prática. • Bom senso e medidas simples: colocação de portas de segurança, muros e redes, em torno de poços, tanques, piscinas, etc.. • Mesmo sob vigia: as bóias devem ser evitadas. • Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar em caso de acidente. • Banheiras, baldes e alguidares esvaziados após utilização. • Nunca nadar só ou sem vigilância NB – Crianças que sabem nadar constituem as de maior risco pela sensação de segurança que transmitem. BIBLIOGRAFIA American Heart Association: 2005 AHA guidelines for cardiopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular care. Circulation 2005; 112 (suppl): IV-133-IV-138 Bifrens JJ, Knape JT, et al. Drowning. Curr Opin Crit Care 2002; 8: 578-586 Prognóstico Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics. Philadelphia: O prognóstico está directamente relacionado com a duração e magnitude da hipóxia e com a qualidade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes que necessitam de ressuscitação cárdio-respiratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no serviço de urgência). Dos sobreviventes, em 60 a 100% poderão registar-se sequelas neurológicas. Nos doentes admitidos em estado vigil no serviço de urgência o prognóstico depende de eventuais complicações pulmonares. Crianças em coma, continuam a ter um prognóstico reservado. Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Prevenção Segundo a Associação para a Promoção da Segu- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Quan L, Cummings P. Characteristics of drowning by different age groups. Inj Prev 2003; 9: 163-168 Ruza F. Tratado de Cuidados Intensivos Pediátricos. Madrid: Norma-Capitel, 2003 http://www.apsi.org.pt/index.html, (2008) 210 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 42 SÍNDROMA DA MORTE SÚBITA DO LACTENTE Hercília Guimarães Definição e importância do problema Em 1969 Beckwith e Bergman da Universidade de Washington propuseram o nome de síndroma da morte súbita do lactente (SMSL), (SIDS – sudden infant death syndrome), que definiram como a morte inesperada de qualquer recém-nascido ou lactente, inexplicada pela história, exame físico, autópsia e investigação da cena da morte. De acordo com a definição deduz-se que se torna indispensável proceder a exame necrópsico exaustivo em cada caso, pois trata-se de um diagnóstico de exclusão, que só poderá ser considerado se o estudo realizado após a morte for adequado. A morte súbita de uma criança, é, sem dúvida alguma, um acontecimento brutal e devastador para os pais, família, profissionais de saúde e comunidade. A primeira referência escrita sobre morte súbita do lactente foi encontrada no Antigo Testamento. Posteriormente várias descrições surgiram, sendo a maioria das vezes interpretadas como homicídio ou sufocação na cama dos pais. Só no séc. XVIII se procurou distinguir entre morte súbita acidental e homicídio, através de uma investigação policial. Mais tarde, no séc. XIX, surgiu um estudo escocês que, pela primeira vez, se dedicou à epidemiologia destas mortes. Aspectos epidemiológicos A SMSL, a causa mais comum de morte em lactentes nos países desenvolvidos, comparticipa em cerca de 40 a 50% a taxa de mortalidade entre 1 mês e 1 ano de idade. Nos Estados Unidos a SMSL ocorre em cerca 1,3/1000 nado-vivos. Desconhece-se a sua verdadeira dimensão em Portugal. A ocorrência de morte súbita é rara no primeiro mês de vida, aumenta até um valor máximo entre os 2 e os 4 meses, sendo de referir que cerca de 95% dos casos surgem antes dos 6 meses de idade. Acontece geralmente no domicílio, sendo o lactente encontrado morto no leito. As campanhas de sensibilização para colocar os lactentes em decúbito dorsal no berço resultaram numa acentuada diminuição da incidência da morte súbita em vários países, embora esta ainda continue a ser a maior causa de mortalidade nos lactentes após o período neonatal, como foi acentuado. Após esta redução, o peso da exposição ao tabaco, como factor de risco, aumentou. No nosso país, foi efectuado um estudo retrospectivo dos casos autopsiados de lactentes vítimas de morte súbita, nos Institutos de Medicina Legal do Porto e de Coimbra, entre 1979 e 1994, que mostrou um aumento do número de casos de 1974 a 1990, com decréscimo a partir de 1992. Verificou-se um predomínio acentuado da síndroma da morte súbita do lactente no sexo masculino, entre ao 1 e 4 meses, nos meses de Dezembro a Março, nos fins-de-semana, no domicílio, em períodos de sono e à noite. Etiopatogénese Apesar de exaustiva investigação (laboratorial e clínica) sobre a etiopatogénese da SMSL, esta continua desconhecida, o que também limita uma adequada estratégia de intervenção. A concepção actual de morte súbita do lactente é a de um acidente multifactorial, no qual vários aspectos serão considerados, tais como: 1) factores genéticos/ constitucionais – maturação do controlo das funções vitais (ritmo cárdio-respiratório, sono, imunidade, etc.), maturação essa, programada geneticamente, que se efectua nos primeiros meses de vida, com importantes variações individuais; 2) factores desencadeantes – as patologias habituais desta faixa etária, numerosas e variadas, por vezes acumuladas, nomeadamente infecção, refluxo gastro-esofágico, hipertonia vagal, hipertermia; 3) factores predisponentes ligados ao 211 CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente ambiente do lactente, como sejam, condições sócio-económico-culturais precárias, o tabagismo e a posição de dormir no berço. O Quadro 1 discrimina os factores ambientais associados a risco elevado de SMSL. Apesar da etiologia multifactorial deste problema, a disfunção do tronco cerebral é considerada o factor mais importante na génese da SMSL (Figura 1). Todas as crianças acordam durante o sono calmo em resposta à hipercápnia, mas as crianças normais acordam com uma pCO2 (pressão parcial de CO2) significativamente mais baixa. Nos exames necrópsicos das vítimas de SMSL observa-se astrogliose focal, anomalias dendríticas e anomalias do desenvolvimento no tronco cerebral, havendo evidência de asfixia crónica em 66 % dos casos. Estudos recentes primitiram demonstrar caracQUADRO 1 – Factores de risco de SMSL e ambiente Factores maternos e pré-natais • Restrição do crescimento intrauterino • Intervalo curto intergravidezes • Separação marital • Idade mais jovem • Estado sócio-económico precário • Gravidez não vigiada • Subnutrição • Toxicodependência • Tabagismo • Alfa--fetoproteina sérica elevada no 2º trimestre da gravidez. Factores de risco do lactente • Posição de dormir (decúbito ventral e lateral) • Ausência de uso de chupeta • Idade (2-4 meses) • Sexo masculino • Hipocrescimento • Antecedentes de prematuridade • Doença febril recente • Exposição ao fumo do tabaco (pré e pós-natal) • Colchão do berço mole • Dormir na cama dos pais ou com outra pessoa • Aquecimento exagerado do quarto • Baixa temperartura do quarto / estação fria. Disfunção /imaturidade do tronco cerebral Sono/vigília cárdio-respiratória temperatura Ritmo circadiano Apneia prolongada/ bradicardia SMSL FIG. 1 Hipótese do controlo cárdio-respiratório para a SMSL. terísticas genéticas diferentes nas crianças vítimas de SMSL em comparação com grupos de controle (polimorfismos relacionandos com certos genes designadamente nos implicados com o desenvolvimento do sistema nervoso autónomo, o canais de sódio e potássio no miocárdio e com a proteína transportadora da serotonina). Sabe-se hoje que há características clínicas que apontam para uma maior vulnerabilidade das crianças que morrem súbita e inesperadamente, e que são evidentes ao nascer, durante a vida e nas 24 horas antes de morrer. Estas características são semelhantes nos doentes que morrem subitamente ou de SMSL, propriamente dita. São recém-nascidos/lactentes com um alta prevalência de episódios de ameaça vital (ALTE - apparent life threatening event), nos quais a avaliação exaustiva em cada caso pode ajudar a identificar casos em risco de morte súbita, particularmente nos grupos de risco. ALTE em Português poderá ser traduzido por “Acontecimento com aparente ameaça de vida”: é definido como “episódio assustador para o observador, caracterizado por alguma combinação de apneia (central ou ocasionalmente obstrutiva), alteração da cor (cianose ou palidez, ocasionalmente aspecto pletórico), alteração do tono muscular (usualmente marcada hipotonia), sufocação, ou engasgamento”. Embora, em regra, constitua um achado isolado, esta ocorrência tem sido referida em diversas pessoas na mesma família, o que sugere a hipótese de uma base genética. 212 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA O aumento da temperatura corporal e do ambiente associa-se, também como foi referido, a SMSL. Há interacções entre a regulação da temperatura, sensibilidade dos químio-receptores, controlo cardíaco e o acordar. Estudos realizados ao nivel dos neurotransmissores no nucleus arcuato identificaram anomalias nos respectivos receptores (défice de capacidade de captação/ligação) com implicações funcionais no que respeita ao controlo autonómico da respiração e à capacidade de resposta a estímulos. Nas crianças vítimas de SMSL foram encontrados níveis elevados de interleucina 1-beta (IL-1B) no arcuato e nos núcleos vagais. Uma percentagem pequena de casos de SMSL tem como causa um prolongamento do intervalo QT, o que sugere que a repolarização cardíaca também está prolongada, podendo condicionar o aparecimento de arritmia ventricular. Cabe aos pediatras em especial o estudo exaustivo dos doentes dos grupos de risco, bem como o correcto diagnóstico das causas de morte, com a realização sistemática da autópsia anátomo-clínica ou médico-legal. Tivémos a oportunidade de demonstrar que a autópsia modifica o diagnóstico clínico da causa de morte, ou acrescenta algo a este, em cerca de 30 % dos casos (dados não publicados). Em suma, pode afirmar-se que o grande desafio no âmbito da investigação sobre SMSL é procurar uma prova/exame complementar de rastreio que permita identificar as crianças com risco de morte por SMSL. Refira-se que os estudos polissonográficos não têm especificidade nem sensibilidade suficientes para serem recomendados por rotina na identificação de futuras vítimas de SMSL (capítulo 28). Prevenção Coo foi referido, conhecem-se vários factores de risco de SMSL, classificados em pré-natais, neonatais e pós-natais. De todos eles, o que mais tem sido referido na literatura é a posição de dormir no berço dos recém-nascidos e lactentes. Está demonstrado actualmente que a posição em decúbito ventral no berço constitui um factor de risco (o risco relativo passa de 3,5 para 9,3) de SMSL. Esta relação foi sugerida, pela primeira vez, por Carpenter et al em 1965. Posteriormente vários autores, têm-se dedicado ao estudo da relação entre posição no berço e risco de morte súbita. Estudos epidemiológicos demonstram que a publicidade contra a posição ventral permitiu reduções de SMSL entre 20 % e 67 %, sem aumento do número de mortes por aspiração de vómito. Em Abril de 1992 a Academia Americana de Pediatria, baseada na avaliação cuidadosa dos estudos publicados, passou a recomendar o decúbito dorsal para os lactentes. Esta recomendação foi também publicada no mesmo ano, em Portugal, pela Direcção Geral da Saúde e consta do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil. Não obstante estas recomendações oficiais nota-se ainda alguma relutância entre os profissionais de saúde em mudar a sua opinião. Recentemente Angeline Chong et al, demonstraram que a posição em decúbito ventral tem um efeito mensurável no controlo circulatório, com redução do tono vasomotor resultando em vasodilatação periférica, aumento da temperatura cutânea, hipotensão e taquicardia. Como o tono vasomotor é fundamental no controlo circulatório, o mesmo pode ser considerado um factor de risco de morte súbita. Numa era em que a chamada Medicina Baseada na Evidência assumiu um papel importante valorizando os resultados de estudos epidemiológicos em situações em que a fisiopatologia não permite ainda uma explicação de certos fenómenos, as provas acumuladas legitimam que nos serviços e unidades assistenciais em que se prestam cuidados a recém-nascidos/lactentes , os mesmos sejam colocados no berço em decúbito dorsal.Torna-se lógico, pois, que tais recomendações sejam feitas igualmente a pais e profissionais responsáveis pela assistência a essas crianças, incluindo no ambulatório. Mas… na Medicina como no Amor nem sempre nem nunca, e situações particulares existem em que há controvérsias como é o caso dos doentes com refluxo gastro-esofágico: o decúbito lateral direito promove esvaziamento gástrico mais rápido e o lateral esquerdo diminui significativamente o conteúdo gástrico refluído. Nesta situação, a recomendação para a prevenção da morte súbita consiste em usar um colchão não mole, firme, bem adaptado às dimensões do berço, não cobrir 213 CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente demasiado o lactente – a roupa não deve ultrapassar os ombros e evitar o sobreaquecimento. O tipo de decúbito poderá, pois, ter prescrição médica variável em situações específicas, como o RGE. Em França, nas décadas de 80 e 90, com as campanhas realizadas contra a posição de decúbito ventral, para dormir, assistiu-se a uma descida dos casos de morte súbita de 1500 casos em 1987, para 500 em 1995, o que corresponde a uma diminuição de 2 % para 0,5 % na taxa de mortalidade por morte súbita. Em Portugal, a divulgação dos conhecimentos sobre morte súbita do lactente e a formação dos profissionais e pais não adquiriu a dimensão que decorreu das campanhas realizadas noutros países da Europa. No Boletim de Saúde Infantil é referido, nos conselhos aos pais, que o bebé deve ser colocado “preferencialmente de costas”. Este aspecto, ainda motivo de admiração de muitos pais, é confirmado muitas vezes nas consultas de saúde infantil. O decúbito dorsal, posição permite respirar o ar ambiente normalmente; em caso de febre pode facilmente libertar-se da roupa que o cobre, não correndo o risco de se sufocar. Até aos 2 anos a criança deve dormir sobre um colchão firme, numa cama de grades para evitar que respire o ar expirado, e sem almofada ou fralda na mão. A temperatura do quarto deve ser entre 18º e 20ºC e, em caso de febre a mesma deve ser despida (arrefecimento físico). Os pais devem ser igualmente informados dos malefícios do fumo do tabaco, que também está implicado como factor de risco de SMSL. Sabe-se que um recém-nascido ou lactente privado do sono é mais vulnerável, pelo que o seu sono deve ser respeitado. A monitorização no domicílio só terá lugar em casos seleccionados, pois constitui um factor de estresse para a família, e não permite a detecção da apneia obstrutiva, porque a detecção é feita por impedância torácica e não pelo débito nasal. No Hospital de S. João, com o objectivo de conhecer a informação que os pais possuem relativamente à morte súbita do lactente, foram realizados 134 inquéritos a puérperas do Serviço de Obstetrícia. Verificou-se um total desconhecimento desta entidade clínica em 28,5 % das mães, sendo que 24 % consideravam que nada poderia ser feito para evitar tal ocorrência. Apenas 35,8 % das mães conhecia a associação da morte súbita do lactente com a posição deste no berço, e 1,5 %, com o consumo de tabaco pela grávida e/ou lactante. A posição de decúbito ventral no berço foi referida como a mais indicada por 2,2 % das mães. Em igual percentagem as mães agasalham os filhos em caso de febre, apenas 35 % afirmavam que o lactente deve ser despido em caso de febre, e 14 % ministravam antipirético. Este estudo mostra que continua a ser essencial a divulgação das recomendações sobre as estratégias de evicção dos factores de risco conhecidos. Esta é uma função de todos os profissionais de saúde que devem dar informação e formação aos pais, aproveitando o período de permanência nas maternidades. Em Portugal, assiste-se actualmente a uma preocupação sobre esta problemática e será necessário continuar: 1) a sensibilizar os médicos para um registo adequado das causas de morte e 2) a levar a cabo Campanhas Nacionais de Prevenção da Morte Súbita, no âmbito da educação para a saúde da população, que permitam, à semelhança doutros países, uma diminuição do número de casos. BIBLIOGRAFIA American Academy of Pediatrics – Task Force on Infant Sleep Position and Sudden Infant Death Syndrome: changing concepts of sudden infant death syndrome, implications for infant sleeping environment and sleep position. Pediatrics, 2000; 105:650-656 Amestad M, Andersen M, Vege A, Rognum TO. Changes in the epidemiological pattern of sudden infant death syndrome in southeast Norway, 1984-1998: implications for future prevention and research. Arch Dis Child 2001;85:108-115 Ferreira MC, Gomes A, Pinto E, Marques R. Síndroma da morte súbita do lactente. Estaremos mesmo a prevenir? Saúde Infantil 2004; 26 :13-22 Juchet A, Micheau P, Brémont F, Dutau G. Les méfaits du tabagisme chez l´enfant : les pédiatres doivent agir. Arch Pédiatr 2001;8:539-544 Guardiano M, Ribeiro MC, Vasconcellos G, Ramos Alves J, Centeno MJ Guimarães H. Síndrome da Morte Súbita - Que mensagem temos transmitido? Nascer e Crescer 2004;XIII:118-120 Guimarães L, Pereira PM, Carneiro de Sousa MJ, Pinheiro J, Santos A, Silva A et al.. A síndroma da morte súbita inesperada e inexplicada do lactente em Portugal. Um levanta- 214 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA mento retrospectivo (1979-1994). Acta Pediatr Port 1997; 28:19-26 Gaultier C, Amiel J, Dauger S, Trang H , Lyonnet A, Gallego J et al. Genetics and early disturbances of breathing control. Pediatr Res 2004; 55: 729-733 Hauck FR, Omojokun DO, Siadaty MS. Do pacifiers reduce the risck of sids? A meta-analysis. Pediatrics 2005; 116:716-723 Horn MH, Kinnamon DD, Ferraro N, Curley MAQ. Smaller mandibular size in infants with a history of an apparent life threatening event. J Pediatr 2006; 149: 499- 504 Hunt CE. Gene-environment interactions: Implication for sudden unexpected deaths in infancy. Arch Dis Child 2005; 90: 48-53 Li DK, Willinger M, Petitti DB, et al. Use of a dummy (pacifier) during sleep and risk of sids: Population based casecontrol study. BMJ 2006; 332: 18-21 Poets CF. Apparent life-threatening events and sudden infant death on a monitor. Paediatr Respir Rev 2004; 5:s383-386 PARTE VIII Clínica da Adolescência 216 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 43 ADOLESCÊNCIA, CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO Maria do Carmo Silva Pinto O critério cronológico, porém, não é o mais correcto para classificar adequadamente um adolescente. As acentuadas mudanças que ocorrem nas áreas – biológica, cognitiva, afectiva, e social, estão estreitamente ligadas entre si, embora nem sempre decorram em simultâneo; exemplificando: um adolescente com crescimento e desenvolvimento físico em fase adiantada pode apresentar ainda características emocionais da faixa etária anterior e vice-versa. Por este motivo a adolescência corresponde a uma fase da vida com grande vulnerabilidade em que se manifestam dúvidas e problemas que, a não serem devidamente resolvidos, podem deixar marcas importantes de imaturidade na pessoa adulta. Definição e importância do problema Crescimento estaturo-ponderal A adolescência (do latim adolescere, significando crescer) corresponde a um período da vida caracterizado por um crescimento e desenvolvimento biopsicossocial marcados, o qual decorre entre o final do período de criança (~10 anos) e a adultícia. Neste período ocorrem várias alterações a diferentes níveis: • biológico – correspondendo a grandes modificações anátomo-fisiológicas; • psicológico – correspondendo à conquista da identidade e à aquisição de autonomia; • social – correspondendo à adaptação harmoniosa ao meio social. A idade de início do amadurecimento físico, bem como o intervalo de tempo decorrido até à aquisição de maturidade psicossocial plena, é variável de indivíduo para indivíduo, com possibilidade de desfasamento, o que dificulta a delimitação do começo e do fim da adolescência. Contudo, quer por motivos científicos(por ex. comparação de resultados de estudos), quer por motivos burocrático-administrativos (por ex. realização de trabalhos, programação de serviços, etc.),torna-se indispensável estabelecer limites cronológicos de idade para este grupo. Assim, a OMS em 1965 definiu a adolescência como o período que se estende aproximadamente dos 10-20 anos, compreendendo três fases: • dos 10 a 12 – adolescência precoce; • dos 13 a 15 – adolescência média; • dos 16 a 20 – adolescência tardia. O ritmo acelerado de crescimento nesta fase é consequência da secreção de hormona de crescimento e dos esteróides sexuais (estradiol e testosterona). A paragem do crescimento, evidenciada pelo encerramento epifisário, é influenciada pela acção das hormonas sexuais (testosterona e estrogénios), parecendo ser os estrogénios os responsáveis pelo encerramento das cartilagens de crescimento em ambos os sexos. À medida que o amadurecimento sexual avança, a aceleração do crescimento diminui. Por este motivo, na avaliação do crescimento do adolescente, deve relacionar-se a sua altura e idade com o seu estádio de desenvolvimento sexual e a idade óssea, para se poder determinar a potencialidade de crescimento. Assim, um jovem pré-adolescente de 12 anos, com altura no percentil 3 (P3), mas sem manifestações pubertárias, tem maior potencialidade de crescimento do que outro com a mesma altura, mas desenvolvimento mais acentuado dos caracteres sexuais secundários. O aumento estatural durante a adolescência equivale a 20-25% da altura final do adulto; tal resulta, em primeiro lugar, do crescimento dos membros inferiores e, em segundo lugar, do crescimento do tronco. Esta situação pode ser traduzida ao estilo lúdico – pela verificação do seguinte: começam por deixar de servir os sapatos, depois as calças e, por fim, as camisolas. CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento Como resultado deste importante crescimento do tronco, é frequente o aparecimento ou agravamento de desvios da coluna – escoliose do adolescente e cifose juvenil. Por este motivo, o exame da coluna deve sempre fazer parte da observação do adolescente. As diferenças individuais no que respeita ao crescimento em estatura, da sua normalidade, e da forma como se relacionam com a maturação sexual, devem ser transmitidas ao adolescente de forma a reduzir ao mínimo as preocupações que habitualmente surgem nesta fase de rápidas e muito relevantes transformações corporais. As preocupações com a altura surgem quando o adolescente se compara com os seus pares no seu grupo de referência, sendo mais frequente no rapaz de estatura baixa e nas raparigas com excesso de altura. O ganho de peso corresponde a cerca de 50% do peso adulto final. O ritmo de aceleração do ganho em peso é semelhante ao do ganho em altura, sendo que a curva de velocidade de crescimento se inicia 1 ano e meio mais precocemente e com menor intensidade na rapariga do que no rapaz. O pico de velocidade máxima em ganho de peso, ocorre cerca de 6 meses após o pico de crescimento em estatura nas raparigas, enquanto nos rapazes coincide no tempo. No sexo masculino, a elevação ponderal pode chegar aos 6,5 Kg – 12,5 Kg por ano, em média 9,5 Kg/ano, fazendo-se sobretudo à custa do aumento da massa muscular. O número de células musculares aumenta cerca de 14 vezes desde os 5 aos 16 anos, e as dimensões das células aumentam até quase ao final da 3ª década de vida sob acção dos androgénios. Por esta razão o homem tem, em regra, mais 30% de massa muscular que a mulher. O pico do crescimento muscular coincide com o pico de velocidade máxima de peso e de altura. No sexo feminino o aumento de peso é cerca 5,5 - 10,5 Kg/ano, em média 8,5 Kg/ano, fazendose fundamentalmente por deposição de gordura sob a influência de estrogénios. Também se verifica acréscimo da massa muscular, mas em menor grau do que no sexo masculino. Este facto é devido ao aumento do volume das células musculares, sem aumento do número das mesmas. A deposição de gordura subcutânea na fase 217 pré-adolescente ocorre lentamente nos dois sexos, diminuindo na fase do pico de crescimento, e chegando a ser praticamente nula no sexo masculino. Após esta fase, a deposição de gordura volta a aumentar, sendo então mais acentuada nas raparigas do que nos rapazes. As preocupações com o peso surgem no adolescente quando o mesmo estabelece comparação com os seus pares; nas raparigas é mais frequente a preocupação com o excesso de peso (sinto-me gorda…), enquanto nos rapazes com a escassez de musculatura (tenho pouco músculo…). Crescimento de órgãos e sistemas Na adolescência verifica-se o crescimento de vários órgãos, tais como coração, pulmões, fígado, baço, rins, assim como de glândulas: pâncreas, tiróide, suprarrenais, etc.; no tecido linfóide, por outro lado, verifica-se involução. Do crescimento do tecido ósseo resulta,em diversas regiões: – Aumento da estatura (o de maior magnitude) – Aumento discreto dos ossos da cabeça e face, com consequente modificação da expressão facial, essencialmente devido à pneumatização dos seios frontais; – Crescimento do nariz e maxilar superior; – Aumento da distância interescapular e do diâmetro transversal do tronco, mais marcado no sexo masculino, devido ao facto de as células cartilagíneas das articulações do ombro responderem selectivamente ao aumento da testosterona; – Aumento da distância intertrocanteriana no sexo feminino (alargamento da cintura pélvica) nas raparigas devido à maior sensibilidade das células cartilagíneas da articulação coxo-femoral ao aumento dos estrogénios. Assim, verifica-se : 1) aspecto de ombros largos tipicamente masculino, com relação diâmetro biacromial/diâmetro bi-ilíaco mais acentuada no rapaz; 2) aspecto de anca larga tipicamente feminino com relação diâmetro biacromial/ diâmetro bi-ilíaco menos acentuada na rapariga. No sistema nervoso central ocorre uma verdadeira reconstrução do cérebro. Do início da puberdade até aos 15 anos desenvolvem-se sobretudo as regiões cerebrais ligadas à linguagem; este período é, por isso, ideal para a aprendizagem de 218 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA línguas. O cérebro da rapariga amadurece mais cedo do que o do rapaz. Os estrogénios têm um papel importante nesta mudança. No rapaz o amadurecimento é mais tardio, o que é explicável pela síntese mais tardia dos estrogénios a partir da testosterona. A maior parte das alterações do cérebro ocorre no córtex préfrontal – área responsável pelo planeamento a longo prazo, pelo controlo de emoções e pelo sentido de responsabilidade. Esta área desenvolver-se-á até por volta dos 20-25 anos. Por este motivo o adolescente na hora de tomar uma decisão nem sempre está apto para entrar em conta com as informações de que precisa para o fazer correctamente. Não se trata, pois, duma simples oposição aos pais, mas sim duma limitação biológica. No que respeita aos olhos verifica-se um aumento maior no seu eixo sagital, o que justifica o desenvolvimento mais frequente da miopia durante a fase de crescimento rápido pubertário. Sob a influência da testosterona, a actividade da eritropoietina aumenta, o que explica, no rapaz, valores mais elevados do número de eritrócitos , do hematócrito e da concentração de hemoglobina. A pressão arterial sofre um aumento consequente às alterações fisiológicas do sistema cardiovascular próprias deste período, nomeadamente expansão do volume plasmático, aumento do débito cardíaco e da resistência vascular periférica, com estabilização da frequência cardíaca. A avaliação da pressão arterial deve constituir uma rotina da consulta de adolescentes de modo a permitir um diagnóstico precoce de hipertensão arterial. Desenvolvimento biológico À componente biológica das transformações características da adolescência dá-se o nome de puberdade. Assim, puberdade não é sinónimo de adolescência, mas apenas uma parte integrante da mesma; trata-se, pois, dum epifenómeno da adolescência, traduzido fundamentalmente pela aquisição da capacidade de reprodução. Caracteriza-se por: 1. desenvolvimento do aparelho reprodutor, objectivado: • pelo aparecimento de caracteres sexuais secundários – botão mamário, aumento dos testículos e pénis e desenvolvimento do pêlo púbico e axilar e; • pela conquista da capacidade reprodutora; 2. aceleração da velocidade de crescimento – pico de crescimento pubertário 3. alterações da composição corporal resultantes: • do desenvolvimento esquelético, muscular, modificação da quantidade e da distribuição da gordura corporal; • do desenvolvimento dos diferentes órgãos e sistemas, nomeadamente dos aparelhos respiratório e cardiocirculatório, com aumento da força e resistência física. De facto, não se sabe o que realmente desencadeia a puberdade. Num determinado momento do amadurecimento global do organismo, o córtex cerebral gradualmente começa a emitir estímulos para receptores hipotalâmicos produtores de polipéptidos – factores libertadores – os quais promovem, ao nível da hipófise anterior, a produção de gonadotrofinas hipofisárias. Estas, pela via sanguínea, vão estimular as gónadas femininas e masculinas com consequente produção de hormonas sexuais as quais, em conjunto com os androgénios suprarrenais, vão promover as diferentes alterações orgânicas, finalizando a diferenciação sexual (iniciada in utero) e o crescimento estaturo-ponderal. Nos últimos 100 anos, devido à melhoria das condições de vida, nomeadamente no que se refere à nutrição, tem-se verificado um aumento da estatura final com antecipação da idade da menarca. A este fenómeno evolutivo , observado principalmente a partir do início do século XIX, chama-se aceleração secular do crescimento. Nas sociedades ditas desenvolvidas ou industrializadas de hoje tal fenómeno parece ter terminado pois, nas últimas décadas, não se têm observado mudanças nos parâmetros de crescimento e de maturação biológica. A variabilidade individual e populacional existente – não só na idade de início da puberdade, mas também na duração, sequência, combinação e dimensão das diferentes modificações corporais – parece depender de vários factores, nomeadamente, carga genética, meio ambiente, nutrição, padrão sócio-económico e estimulação sensorial. CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento No sexo feminino a puberdade pode ter início entre os 10-13 anos (em média aos 11 anos). No sexo masculino as alterações surgem mais tardiamente, começando entre os 11-14 anos (em média aos 12 anos). Enquanto alguns jovens têm o seu desenvolvimento completo em 2-3 anos, outros têm-no em 4-5 anos. Assim, num grupo de adolescentes com a mesma idade cronológica, pode haver: – jovens em que ainda não se começou a verificar sinais de puberdade; – jovens com amadurecimento sexual já iniciado, ou até mesmo completo. O desconhecimento da normalidade desta ocorrência pode causar grande ansiedade ao adolescente e preocupação para a família, levando a situações de instabilidade e desconforto psíquico. Desenvolvimento e maturação sexual Na puberdade a maturação sexual inclui o desenvolvimento das gónadas, dos órgãos da reprodução e dos caracteres sexuais secundários. A designação de gonadarca refere-se ao aumento da glândula mamária, útero e ovários na rapariga, e ao aumento dos genitais externos – testículos e pénis no rapaz; tal se deve, respectivamente, à elevação dos níveis dos estrogénios na rapariga, e dos androgénios no rapaz. Na rapariga, a menarca ou aparecimento da primeira menstruação constitui um marco importante do desenvolvimento sexual. O termo adrenarca refere-se ao aparecimento de pelos púbicos, axilares e faciais devido ao aumento dos androgénios suprarrenais. Todos estes dois fenómenos estão interligados verificando-se uma associação no seu tempo de aparecimento. No sexo feminino A primeira manifestação da puberdade é o aparecimento do botão mamário (cerca dos 9 anos) ou telarca; inicialmente unilateral, o aparecimento de tal transformação no lado oposto surge geralmente cerca de seis meses depois; pode haver dor local e, nalguns casos, a telarca pode ser precedida de aumento da estatura. No mesmo ano, em regra, aparece o pêlo púbico. 219 Nesta fase, a jovem muitas vezes interroga-se acerca da sua nova imagem. No que respeita ao desenvolvimento mamário, cabe referir algumas possíveis alterações associadas sem significado patológico, tais como: – Assimetria mamária Considerada fisiológica no começo do desenvolvimento mamário, em cerca de 25% dos jovens aquela mantém-se bem notória na idade adulta. Havendo repercussão psicológica, está indicada a terapêutica cirúrgica, mas somente após terminada a puberdade; – Hipertrofia mamária É muito frequente, podendo ser exuberante e causar problemas físicos (dores no pescoço, defeito postural, parestesias) e psíquicos. No final da puberdade tende a diminuir; contudo, se os problemas psicológicos se mantiverem, com tendência para isolamento e diminuição da auto-estima, estará também indicada a terapêutica cirúrgica uma vez completado o crescimento. – Hipoplasia mamária O tamanho reduzido das mamas pode ser constitucional, ou consequente a problemas nutricionais ou a défice hormonal. A terapêutica cirúrgica, quando indicada, também só deve ser efectuada no final da puberdade. Simultaneamente modificam-se útero, ovários, trompa, vagina e vulva. Os ovários crescem progressiva e lentamente desde o nascimento, verificando-se um aumento superior nos meses que antecedem a menarca. Nesta fase, são várias as alterações dos genitais externos da adolescente: – O comprimento da vagina aumenta, com espessamento, protrusão e enrugamento dos pequenos lábios e desenvolvimento dos grandes lábios. – O pH da vagina diminui devido a produção do ácido láctico pelos bacilos de Doderlein que, a partir de agora passam a fazer parte da flora vaginal normal. – Surge o corrimento vaginal de cor clara e cheiro inespecífico; trata-se da leucorreia fisiológica da adolescência, também resultado da estimulação estrogénica, com maior secreção do muco cervical e maior descamação das células da mucosa vaginal. A menarca é um acontecimento tardio da pu- 220 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA berdade feminina. Ela ocorre após o pico de velocidade máxima de crescimento, já na fase de desaceleração da curva de crescimento. As adolescentes crescem em regra 3-4 cm nos 2-3 anos que se seguem à menarca. O tempo que medeia entre o aparecimento do botão mamário e a menarca varia entre 2-5 anos. Os primeiros ciclos menstruais são anovulatórios, o que justifica a irregularidade menstrual típica dos dois primeiros anos pós-menarca. Após este período, na sequência do amadurecimento do eixo hipótalamo-hipofisário e maior número de ciclos ovulatórios, os ciclos tendem a tornar-se regulares. O aparecimento do pêlo púbico surge cerca de seis meses após a telarca. Os pêlos axilares aparecem mais tarde, acompanhados do desenvolvimento das glândulas sudoríparas e consequente aparecimento do odor e da transpiração característica do adulto. No sexo masculino A primeira manifestação de puberdade no rapaz, por vezes não perceptível, é o aumento do volume testicular, seguindo-se o crescimento do pénis, primeiro em comprimento e depois em diâmetro. O aparecimento do pêlo púbico ocorre mais tarde; e os pêlos axilares, faciais e do restante corpo, aparecem depois. A sequência habitualmente é: – pêlo púbico, cerca dos 10-11 anos; – pêlo axilar, mais ou menos aos 12-13 anos – pêlo do restante corpo, mais ou menos aos 1415 anos. A sequência do aparecimento dos pêlos faciais é a seguinte: primeiramente nos lábios superiores junto às comissuras e, posteriormente, em toda a extensão da parte superior do lábio superior; posteriormente na porção central , debaixo do lábio inferior; e, por fim, estendendo-se a toda região mentoniana. Tal como no sexo feminino, o desenvolvimento das glândulas sudoríparas acompanha o crescimento do pêlo axilar. A próstata, glândulas bulbo-ureterais e vesículas seminais também apresentam crescimento acentuado na puberdade. A espermarca – idade da 1ª ejaculação – ocorre na fase de aceleração da curva de crescimento em estatura, coincidindo com a fase ascendente da curva. A mudança de voz – típica do sexo masculino, mas tardia ,surge como consequência do aumento das dimensões da laringe por acção dos androgénios. Ao nível da glândula mamária verifica-se um aumento do diâmetro e da pigmentação da aréola mamária. Contudo, numa proporção importante de adolescentes (cerca de 1/3), verifica-se concomitantemente aumento do tecido mamário –tratase da ginecomastia pubertária; é bilateral e por vezes dolorosa, restringindo-se ao aumento do tecido mamário sub-areolar; mede geralmente 23 cm de diâmetro, no máximo 4 cm. Móvel e de consistência firme, ocorre transitoriamente (meses) na fase de crescimento estatural rápido, não sendo aderente à pele nem ao tecido celular subcutâneo. Deve-se ao aumento dos níveis dos androgénios testiculares. É importante tranquilizar o adolescente, informando-o a esse respeito. A ginecomastia que não regride após 24 meses, provavelmente permanecerá inalterada ao longo dos anos. O aumento da glândula mamária superior a 4 cm, designado macroginecomastia, tem frequentemente importantes repercussões fisiológicas no adolescente, pois a mama adquire características femininas. A regressão espontânea nestes casos é rara, podendo estar indicada terapêutica cirúrgica. O diagnóstico diferencial da ginecomastia fazse com: – Adipomastia Trata-se de aumento da mama por acumulação de tecido adiposo sub-areolar. É comum em jovens obesos pré-púberes ou púberes – Ginecomastia patológica Contrariamente à pubertária, é rara. Deverá admitir-se situação patológica sempre que a mesma ocorra antes do início da maturação sexual, ou após o final da mesma. A anamnese deve incluir um inquérito sobre a ingestão de drogas; o exame físico deverá valorizar, designadamente, a palpação abdominal e os genitais externos (fígado e testículos); para esclarecimento da situação poderá haver necessidade de exames complementares. As principais causas de ginecomastia patológica são: CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 221 FIG. 1 FIG. 2 Desenvolvimento Pubertário Feminino: Critérios de Tanner. Desenvolvimento Pubertário Masculino: Critérios de Tanner. – Drogas: hormonas, fármacos psicoactivos, agentes cardiovasculares, antagonistas de testosterona, tuberculostáticos, citostáticos, drogas ilícitas,etc.; – Doenças endocrinológicas: hipogonadismo, hipotiroidismo, tumores da hipófise, supra-renal, testículos, e do fígado. – Doenças crónicas: hepática (cirrose, hepatoma), renal (insuficência renal, tumor, etc.). – Desenvolvimento mamário na rapariga (M) – Desenvolvimento dos genitais externos no rapaz (G) – Desenvolvimento do pêlo púbico em ambos os sexos (P). Avaliação da maturação sexual A sequência do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários foi sistematizada por Tanner (estádios de Tanner) entrando em conta com os seguintes parâmetros: A classificação compreende 5 estádios (correspondentes a outras tantas características) referentes a cada parâmetro (de 1 a 5), e designados como se segue: M1 a M5, G1 a G5 e P1 a P5. As Figuras 1 e 2 são elucidativas. (DGS, 2002) Por definição o estádio 1 corresponde à inexistência de desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários e o estádio M2/G2 ao aparecimento de botão mamário / aumento do volume testicular > 4 ml (este último avaliado com o chamado orquidómetro de Prader (conjunto de 222 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA esferas de volumes variáveis) e eixo maior do testículo > 2,5 cm (medido com uma simples régua). Na rapariga, a menarca define o estádio P5. A avaliação da maturação da glândula mamária, dos genitais externos e do pêlo púbico deve ser feita individualmente, pois poderá não se verificar concordância entre estádios. Por exemplo: uma jovem pode estar em estádio 3 da mama e 2 de pêlo púbico – isto é M3 P2 e um rapaz pode estar em estádio 2 de genitais externos e estádio 1 de pêlo púbico – isto é G2 P1. A classificação dos estádios de desenvolvimento mamário depende das características e não do tamanho das mamas, o qual é determinado por factores genéticos e nutricionais. Habitualmente a avaliação é efectuada durante o exame físico do jovem, em ambiente de privacidade e após prévio esclarecimento e consentimento do mesmo. Quando o adolescente recusar a observação pode optar-se pela auto-avaliação, em que o adolescente indica num esquema/figura o estádio em que se encontra. Regra geral a correspondência entre a auto e a hetero-avaliação é boa, excepto se se tratar das fases iniciais do desenvolvimento masculino. De facto, os critérios de Tanner constituem um instrumento de avaliação muito importante pelas seguintes razões: 1. Existe uma relação directa entre determinado estádio de maturação sexual e determinada fase de crescimento e desenvolvi-mento, o que permite avaliar de uma forma correcta toda a dinâmica do crescimento na adolescência. Exemplificando: no sexo feminino o pico de crescimento inicia-se em M2, atinge a velocidade máxima em M3, e desacelera-se em M4 ,fase em que ocorre a menarca, parando o crescimento em M5; no sexo masculino o pico de crescimento começa em G3, atinge a velocidade máxima em G4 e desacelera em G5. Assim, esta diferença temporal no pico de crescimento associado ao facto de a velocidade de crescimento máxima durante o pico pubertário ser menor nas raparigas, explica a diferença média de cerca de 13 cm, existente entre indivíduos do sexo masculino e feminino. Na prática clínica estes aspectos são importan- tes, nomeadamente quando se pretende esclarecer os jovens quanto a dúvidas ou problemas relacionados com prática desportiva – nomeadamente, tipo de actividade desportiva mais aconselhada, maior risco de lesões por exercício físico eventualmente excessivo e não adequado relativamente a determinado período de crescimento. 2. Uma vez que a composição corporal do adolescente varia em função da sua maturação sexual, os estádios de Tanner devem ser utilizados, não só para avaliar e monitorizar o desenvolvimento pubertário, o pico de velocidade de crescimento e a idade da menarca, mas também para interpretar valores laboratoriais, como por exemplo, hemoglobina, hematócrito, ferritina e fosfastase alcalina. 3. Estando as necessidades nutricionais dos adolescentes directamente relacionadas com o crescimento e sua variação dentro da normalidade, as necessidades poderão variar significativamente de jovem para jovem. Durante o pico de velocidade máxima de crescimento existe um aumento das necessidades proteico-calóricas e consequentemente do apetite, originando uma maior ingestão alimentar. Assim, o jovem do sexo masculino durante o pico de crescimento – em estádio 3 e 4 – terá necessidade de maior suprimento proteico e energético, do que um adolescente em estádio 1; neste último, de acordo com os critérios de maturação sexual, ainda não terá atingido fase a que corresponde o pico de crescimento e as necessidades nutricionais máximas. No sexo feminino, se já tiver ocorrido a menarca , tal significa que a adolescente já está em fase de desaceleração de crescimento, o que implicará, por um lado, redução de alguns nutrientes indicados na fase de pico de crescimento e, por outro, aumento de ingestão de outros, como por exemplo, ferro e ácido fólico, tendo em conta as perdas relacionadas com a menstruação. O médico pediatra, o médico de família e o profissional de saúde em geral deverão reconhecer todas as alterações, suas variações dentro da normalidade e respectivas implicações na saúde do adolescente; deste modo, aqueles estarão em condições de informar, esclarecer e ajudar o jovem e seus familiares. CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento Desenvolvimento psicossocial Generalidades No adolescente, a par do desenvolvimento biológico, verifica-se igualmente evolução nas áreas psicológica e social. É nesta fase que uma pessoa se torna física e psiquicamente madura e capaz de se tornar independente. Embora alguns dados recentes demonstrem que cerca de 75% dos adolescentes e suas famílias têm uma experiência de transição considerada sem problemas, muitos descrevem este período como sendo um período de estresse e conflitos. Embora as alterações biológicas que ocorrem nesta fase da vida sejam universais, as modificações ligadas ao desenvolvimento psicossocial são vividas de modo diferente de indivíduo para indivíduo em função do tipo de família e de sociedade em que os mesmos estão inseridos. Nas sociedades primitivas a passagem da infância para a idade adulta é facilitada pelos rituais, definindo o momento a partir do qual o adolescente fica capacitado para desempenhar o papel de adulto. Nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas tecnicamente o amadurecimento biológico (tipificado por ex. com a idade cada vez mais precoce da menarca), assim como o desenvolvimento intelectual, são atingidos cada vez mais cedo. Pelo contrário, a maturidade social é alcançada cada vez mais tarde; verifica-se mesmo uma tendência para os jovens permanecerem na dependência paterna, nomeadamente no que se refere ao apoio financeiro: é o contexto da chamada geração canguru. Nas regiões com desenvolvimento precário – por vezes determinadas áreas de países desenvolvidos e altamente industrializados – quanto mais baixo for o estrato sócio-económico do indivíduo, menor duração terá o período da adolescência, uma vez que, ao ser obrigado a trabalhar para sobreviver, o adolescente se vê forçado a assumir as obrigações da adultícia, mesmo antes de ter terminado o seu desenvolvimento físico. Etapas do desenvolvimento psicossocial À semelhança do desenvolvimento da criança, o adolescente também passa por etapas no desenvolvimento biopsicossocial. Considerando a adolescência arbitrariamente 223 dividida em 3 etapas – precoce, média e tardia – em cada uma delas podem ser consideradas, respectivamente, as características de ordem psicológica e social em correspondência com as características de ordem física; salienta-se, a propósito, que alguns autores consideram a divisão em subgrupos etários, diversa da adoptada pela (OMS) (Quadro 1). Impacte da puberdade no adolescente As mudanças físicas operadas são vividas pelos jovens com ansiedade e, muitas vezes, e de uma forma aparentemente desordenada, levando o adolescente a perder a noção do seu esquema corporal. Na prática fica como que desajeitado, derrubando e pisando tudo e todos. Concomitantemente com estas alterações biológicas do pico de crescimento, poderão surgir fadiga e hipersónia. Os pais, nesta fase, deverão reconhecer que o adolescente passa a ter necessidade de mais sono, promovendo horas de deitar regulares, e tentando reduzir ao mínimo distracções na cama (TV, telemóveis, jogos de computador). Nesta fase, uns crescem mais, outros menos, parecendo que o corpo fica parado enquanto a “cabeça vai amadurecendo” progressivamente. Quanto menor a auto-estima, mais defeitos o jovem assume e encontra em si próprio. As raparigas têm mais tendência para partilhar as suas preocupações, e os rapazes para passar por uma fase de timidez que por vezes os leva ao isolamento. Tanto nos adolescentes “com maturação mais precoce” como naqueles com “maturação mais tardia” existe maior probabilidade de surgirem perturbações da imagem corporal. Contudo, os adolescentes “precoces” têm maior tendência para problemas de saúde mental (depressão), início mais precoce de actividade sexual, (nomeadamente relações sexuais com número variável de parceiros) e para a marginalidade. A rapariga quer ter o seu grupo de amigas, sendo que a tendência poderá indiciar algo anómalo quanto a comportamento. O rapaz, nesta fase, tipicamente “com muita hormona e pouco cérebro”, apresenta mais modificações físicas do que comportamentais, fazendo valer o seu ponto de vista, mesmo que ainda não o tenha. 224 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Adolescência: características físicas, psicológicas e sociais FÍSICAS PSICOLÓGICAS SOCIAIS Precoce: 10-13A (F); 11-14A (M) Média: 13-17A (F); 14-17A (M) Tardia: 17-20 A (M e F) – Mudanças biológicas – Telarca – Pubarca – Caracteres sexuais secundários – Menarca – Transformações corporais já ocorridas – Modificação de composição corporal; incremento de massa gorda e de massa magra – Término do crescimento e maturação – Atinge-se a composição corporal final Precoce Média Tardia – Reformulação do esquema e da imagem corporal – Busca de identidade – Tentativa de independência, rebeldia – Má aceitação dos conselhos dos adultos – Desenvolvimento do pensamento formal – Preocupação pela aparência – Grande influência do exterior – Continua o processo de separação dos pais – Desenvolvimento intelectual, visão crítica da sociedade e busca de novos valores – Predomínio do pensamento formal – Consolida-se a identidade – Separação final do núcleo familiar – Responsabilidades e papéis de adulto asumidos Precoce Média Tardia – Interesse reduzido pelas actividades paternas – Relações interpessoais sustentadas por grupos de pares do mesmo sexo – Sexualidade: comportamento exploratório – Ambivalência entre busca de identidade e responsabilidade – Vinculação principal com o grupo – Comportamentos de risco por necessidade de experimentar o que é novo e de desafiar o perigo – Sexualidade: necessidade de experimentação sexual; relações mais estáveis – Retoma do interesse pelas actividades paternas – Estabelecimento da identidade sexual com relação mais madura e estável – Momento de escolha profissional Abreviaturas: A = anos; M = sexo masculino; F = sexo feminino As raparigas dão maior importância aos relacionamentos e os rapazes ao desempenho; no entanto, ambos se consideram omnipotentes e invulneráveis. Porém, ter capacidade física não significa ter maturidade psíquica, o que se torna verdadeiramente problemático. Com o aparecimento do primeiro amor – tipicamente de duração inversamente proporcional à intensidade emocional – surge muitas vezes a primeira desilusão e, posteriormente, o sentimento depressivo transitório. A expressão “estar apaixonado” nos dias de hoje quase que ficou reduzida ao simples “fazer amor”. Tendo a sexualidade sido alvo de repressão e interdição, tornou-se nos nossos dias um aspecto explorado e exibido. Na fase de adolescência precoce e média em que é fundamental a identificação com o grupo de pares, o jovem tem necessidade de fazer o mesmo que os outros, levando-o a praticar uma sexualidade realmente desprovida de afectos, bastantes vezes “ensombrada” por gravidez ou doença sexualmente transmissível (DST).Cabe referir, a propósito, que cerca de 25% dos adolescentes que se tornam sexualmente activos, adquirem DST. De facto, nos dias de hoje, a actividade sexual começa cada vez mais cedo, o que pode ser explicado pelos seguintes factos: • início mais precoce da puberdade contra- CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento pondo-se à idade mais tardia da independência económica; • ausência de família contentora, com regras, valores e boas imagens de referência com as quais o jovem se possa identificar • características do próprio adolescente – indestrutibilidade • pressão do grupo – “se os outros fazem….” • diferentes influências sócio-culturais • influência dos meios de comunicação social – com a difusão de imagens valorizando as relações casuais, sem protecção e com vários parceiros. Importância da família e dos grupos de pares As crianças e os adolescentes, aprendem com o que vivem. Assim, médico que cuida de adolescentes deverá reconhecer a importância da compreensão da dinâmica familiar e do potencial impacte dessa dinâmica nos sintomas do adolescente. Este aspecto é particularmente importante quando o médico está a avaliar o adolescente do ponto de vista psicológico. Nesta perspectiva é importante que o referido médico caracterize o tipo de família: se se trata de tradicional, com pai como único elemento de sustento,ou com os dois, pai e mãe empregados, fora de casa; ou se se trata duma família mono parental, cabendo avaliar o papel do outro progenitor. De facto, o problema do adolescente poderá ser uma replicação do problema dos pais. O absentismo escolar pode , por ex., ser modelado pelos hábitos laborais dum pai alcoólico com faltas frequentes ao emprego. O adolescente obeso, poderá ter pais obesos, com pouco tempo ou interesse em providenciar em casa refeições adequadas e programar actividades que envolvam exercício físico. O estrato socioeconómico e cultural da família pode igualmente ajudar o médico a compreender os meios de desenvolvimento do adolescente. Nas classes mais elevadas os jovens viajam mais, têm mais actividades culturais e comunitárias. Na classe média os adolescentes têm mais actividades desportivas e grupos de jovens. Nas classes mais baixas o mais frequente é não terem qualquer tipo de actividade estruturada. 225 No que respeita a diferentes culturas sabe-se que nalgumas têm menos conflitos parentais ao longo desta fase da vida; habitualmente nas culturas menos diferenciadas e menos tecnológicas existem menos conflitos. Nas primeiras fases do seu desenvolvimento, o jovem procura, de uma forma natural, fora do agregado, outras imagens ou figuras adultas de referência. Grupos de voluntários, clubes desportivos, actividades recreativas e grupos religiosos são meios sociais através dos quais os jovens têm a possibilidade de desenvolver esses modelos de identificação constituindo um bom factor protector no seu desenvolvimento psicossocial. No que respeita ao estresse no seio familiar, a presença do adolescente pode ser causadora do mesmo, sendo que muitas vezes existem outras fontes de tensão que deverão ser devidamente valorizadas pelo clínico: problemas conjugais, ausência frequente de um dos progenitores, insegurança no emprego, situação de doença, nomeadamente psiquiátrica, abuso de drogas, um membro da família a cumprir pena de prisão; todas estas situações podem ter, de facto, consequências graves na saúde mental do adolescente. Para além da família, os pares constituem uma importante influência para o adolescente, sendo que na construção do relacionamento com os pares, a maioria dos adolescentes não pretende, de uma forma intencional, isolar-se dos pais. Os jovens separando-se dos membros da sua família (pais), em regra aproximam-se dos pares do mesmo sexo. O adolescente precoce esforça-se por ser aceite entre os seus grupos de pares os quais exercem diariamente uma poderosa influência, não só quanto a comportamentos saudáveis, mas também quanto aos não saudáveis; salientase que álcool, tabaco, uso de drogas ilícitas, são inicialmente experimentados no contexto dos grupos de pares. Como se pode depreender, o decréscimo do envolvimento dos pais, a sua falta de comunicação, de diálogo e a falta de disciplina, contribuem para o grau de influência que os pares têm sobre um jovem adolescente. Os clínicos devem chamar a atenção dos pais para a importância do seu papel em minorar a influência negativa dos pares e encorajá-los, bem como à família, a adoptar uma auto-imagem posi- 226 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tiva no adolescente através de reforço positivo, elogio e de aceitação. O elogio deverá ser dirigido não só ao adolescente, mas também a outras pessoas que figuram na sua vida, tais como pares e professores. Os jovens precisam de ouvir os pais, e outros adultos a falar positivamente de outras pessoas em geral, pois essa é uma forma de aprendizagem da tolerância. A presença de doença crónica durante a adolescência pode, independentemente das manifestações próprias da doença, interferir directamente no comportamento dos jovens. Entre as principais alterações observam-se: interrupção na consolidação do processo de separação dos pais comprometendo a aquisição de autonomia, modificação da imagem corporal, limitação das actividades com o grupo de pares e dificuldade no desenvolvimento da identidade. Todos estes aspectos podem manifestar-se através de comportamentos de risco devido à consequente baixa auto-estima, segregação do grupo, absentismo escolar, disfunção sexual e sintomas depressivos. BIBLIOGRAFIA Dahl RE. Adolescent brain development and opportunities. Ann NY Acad Sci 2004; 1021: 1-22 Delemarre-van de Wool. Regulation of puberty. Best Pract Res Clin Endocrinal Metab 2002; 16: 1-12 Joffe A, Blythe M (eds). Handbook of adolescent Medicine. State of the Art Reviews: Adolescent Medicine 2003; 14. 231-262 Strasburger VC, Donnerstein E. Children, adolescents and the media in the 21st century. Adolescent Medicine: State of the Art Reviews 2000; 11: 51-68 Tanner JM, Growth at Adolescence. Oxford, England: Blackwell scientific Publications, 1962 44 ADOLESCÊNCIA E COMPORTAMENTO: ABORDAGEM CLÍNICA Maria do Carmo Silva Pinto Síndroma da adolescência normal As manifestações exteriores do comportamento dos adolescentes são diferentes conforme as diversas culturas, mas as bases, bem como as atitudes e ideias manifestas, são basicamente as mesmas em todo o mundo. Daí a descrição da chamada síndroma da adolescência normal a qual integra as várias características psicológicas do adolescente: 1. Busca da identidade e de si próprio 2. Separação progressiva dos pais 3. Necessidade de grupo 4. Desenvolvimento do pensamento formal 5. Vivência temporal singular 6. Flutuações do humor 7. Comportamento contraditório 8. Evolução da sexualidade 9. Crises religiosas 10. Atitude social reivindicativa Esta perspectiva permite ao clínico o conhecimento do desenvolvimento psicossocial do adolescente e uma maior compreensão dos comportamentos que o mesmo evidencia, com implicações práticas por permitir evitar diagnósticos errados e, por vezes, preconceituosos. As referidas características são analisadas a seguir. 1. Busca de identidade e de si próprio Com o início da puberdade, as transformações corporais vão-se sucedendo. Vive a perda do corpo de infância (luto do corpo infantil), tendo que CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica reformular o seu novo esquema corporal, o qual constitui a representação mental que o indivíduo faz de si mesmo, conduzindo mais tarde ao sentimento de identidade. Nesta fase, em que se modificam as relações com o corpo, o pudor que o adolescente exibe deve ser devidamente respeitado. O mesmo passa longas horas fechado na casa de banho, olhandose ao espelho e sentindo necessidade de se afastar fisicamente dos pais; por vezes torna-se mesmo agressivo, antipático e até mesmo rebelde. Os pais deverão perceber que os seus filhos precisam desta mudança para que o desenvolvimento se processe de forma harmoniosa. 2. Separação progressiva dos pais A separação progressiva dos pais tem início no nascimento, mas só se concretiza na adolescência. Ao contrário da infância em que a relação de dependência é a relação normal, desejável e habitual entre pais e filhos, na adolescência, os pais outrora considerados como seres ideais e super valorizados, vão ser alvo de críticas surgindo a necessidade de um afastamento (luto dos pais da infância) que leva a uma maior autonomia e, consequentemente, à busca de outras pessoas que constituam figuras de identificação. Com o crescimento físico dos filhos e conquista da sua independência, os pais sentem-se muitas vezes afastados, excluídos e até mesmo menos úteis. Para que tal não aconteça, o estabelecimento de limites pelos pais é fundamental nesta fase, pois irá permitir que o jovem compreenda a diferença entre liberdade e permissividade, reduzindo substancialmente a tendência para comportamento de risco. O clínico poderá ajudar os pais nesta fase da vida dos seus filhos, esclarecendo-os de modo a aceitarem a distância, mais física que psíquica. 3. Necessidade do grupo de pares Na busca da sua individualidade, o adolescente vai deslocar a dependência dos pais para o grupo de companheiros e amigos no qual todos se identificam com cada um. O adolescente veste-se de modo semelhante, tem gostos idênticos, pois a aceitação revela-se na “obediência” a regras de grupo. Esta saída do núcleo familiar e entrada para o grupo com ulterior individualização é perfeitamente sadia, e até mesmo necessária, para um de- 227 senvolvimento harmonioso. Com efeito, a vinculação ao grupo pode favorecer o espírito de equipa e o aparecimento de lideranças, o que será muito saudável se persistir na idade adulta. Nesta fase, a ambivalência dos familiares deve ser evitada. Frases como “já estás suficientemente crescido para…” seguidas de outras como “ainda és muito criança para…” só contribuem para tornar mais indefinidos os limites de actuação que ajudam a promover uma autonomia responsável. 4. Desenvolvimento do pensamento formal O desenvolvimento do pensamento formal (Piaget) constitui, do ponto de vista cognitivo, uma das características da adolescência. O desenvolvimento intelectual fá-lo pensar, pôr em causa e formular teorias. A capacidade de intelectualização leva cada vez mais o adolescente a preocupar-se com princípios éticos, problemas sociais e a propor reformas que tornem o mundo melhor. Nesta fase ele sente muito a necessidade de ter o seu próprio território (quarto, gaveta, armário, diário), contribuindo para um reconhecimento da sua identidade. Neste período é importante o respeito pela privacidade e confidencialidade, aspecto fundamental no atendimento e na relação médicodoente. 5. Vivência temporal singular O critério tempo é muito peculiar na adolescência, parecendo próximo o que é distante, e vice-versa. Por exemplo, o adolescente ao ser alertado para estudar para um exame no dia seguinte, é capaz de responder – “ainda tenho muito tempo”, e contudo considerar “urgente ir comprar roupa nova para levar à passagem de ano” daí a dois meses! A esta característica, associa-se o imediatismo; tal traduz uma incapacidade de conviver com a frustração da espera a qual interfere com vários factores da vida de relação e caracteriza a chamada geração micro-ondas! Exemplifica-se com o que se passa com a alimentação: preferência por alimentos prontos ou quase prontos, nem sempre os mais adequados. Esta forma singular de lidar com o tempo pode interferir nas propostas terapêuticas. O jovem obeso tem frequentemente tendência para desistir 228 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do plano terapêutico por este não ter resultados rápidos e visíveis; interfere igualmente nas propostas de prevenção – tomar atitudes hoje, para prevenir coisas de amanhã – como por exemplo anticonceptivos para evitar a gravidez – praticamente impossível nesta fase da vida. Por este motivo, a orientação preventiva é muito mais eficaz quando envolve questões do presente – não engravidar para não interromper todas as actividades de que gosta (desporto, música, etc.) e, sobretudo, o percurso saudável de adolescente. 6. Flutuações do humor As flutuações do humor incluem múltiplas variações de humor que vão desde crises depressivas, sentimentos de angústia, solidão refugiando-se em si próprio, até às sensações de euforia e sucesso, durante as quais o adolescente se sente indestrutível, imortal e omnipresente. É comum a adolescente, num dado momento, encontrar-se triste e chorosa (após o terminar um namoro ou uma nota má em exame) e momentos depois já poder estar feliz, de conversa ao telefone, falando com uma amiga, a planear novas conquistas, tendo esquecido o episódio de insucesso escolar. 7 . Comportamento contraditório A necessidade de o adolescente experimentar diferentes papéis na busca da sua identidade de adulto, faz com que, por vezes, tome atitudes profundamente contraditórias.Tal contradição é considerada normal; contudo, adolescentes com comportamentos rígidos permanentes deverão ser alvo de preocupação, necessitando de acompanhamento. Nestes casos, o jovem poderá não estar a beneficiar da liberdade necessária para experimentar e amadurecer de forma desejável. 8. Evolução da sexualidade A sexualidade existe desde o início da vida intrauterina, na sua dimensão biológica, baseada em genes, cromossomas, hormonas, gónadas,etc.. Na pré-adolescência a identidade de género (sentido de feminilidade e masculinidade) já está estabelecida. Com o início da puberdade a energia sexual transforma-se juntamente com as mudanças físicas conduzindo à etapa genital adulta. Na fase inicial da adolescência surgem os caracteres sexuais secundários e, consequentemente a curiosidade acerca dessas mudanças. É a fase das fantasias sexuais (paixões imaginárias, sem contacto físico). Na fase intermédia já está, em regra, completa a maturação física. Aenergia sexual mais desenvolvida leva ao maior interesse pelo contacto físico, sendo o comportamento sexual de natureza exploratória. A negação das consequências da actividade sexual é típica e fruto da imaturidade, tornando esta fase a de maior risco relativamente à probabilidade de ocorrência de doenças sexualmente transmitidas ou de uma gravidez não desejada. Na fase tardia o comportamento sexual tornase mais expressivo e estável, com relações íntimas e trocas de afectos vividas com mais maturidade. Na adolescência pode ocorrer transitoriamente a proposta homossexual, a qual não é preditiva do comportamento sexual futuro. Nem todos os adolescentes que estão emocionalmente atraídos por um indivíduo do mesmo género se envolvem em actividade sexual. O jovem deverá ser informado da evolução que pode ter a sua identidade sexual, de forma a podermos evitar, quer uma auto-imagem negativa com risco de depressão e suicídio, quer um sentimento de ansiedade gerador de comportamentos anti-sociais (por ex. uso de drogas). Os pais deverão igualmente ser esclarecidos, pois, na grande maioria reagem com vergonha e não-aceitação, exibindo frequentemente casos de psicossomatização. 9. Crises religiosas Estas chamadas crises caracterizam-se por atitudes de radicalismo, desde situações extremas de fé, até ao ateísmo. O adolescente defende-as com grande convicção, como se fossem realidades momentâneas. O confronto religioso está frequentemente ligado à contestação de padrões vigentes no momento. Muitos dos valores apregoados voltam a ser reformulados já no final da adolescência, persistindo depois na vida adulta. 10. Atitude social reivindicativa Trata-se do conjunto de procedimentos ou atitudes que o adolescente utiliza para reivindicar e contestar de forma a ser reconhecido por grupos de CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica referência, como por exemplo, família, amigos, escola e a própria sociedade. Tais procedimentos ou atitudes são reforçados por outras características do adolescente, já descritas: tendência grupal, pensamento abstracto e crítico, auto-afirmação e radicalismo. A sociedade, por vezes sentindo como que “uma ameaça”, um incómodo ou até mesmo uma agressão, submete o adolescente a uma disciplina e a um comportamento quase sempre ineficazes. É importante que se tenha em consideração que o jovem neste tipo de movimento não pretende propriamente agredir, mas sim conquistar o seu lugar, o que faz parte da sua caminhada para a adultícia. Os adultos deverão, por conseguinte, ser mais tolerantes, usando o diálogo e sabendo escutar a opinião do adolescente como formas de diminuir o conflito. Abordagem clínica do adolescente A abordagem clínica do adolescente, à semelhança de outras áreas da Medicina, deve ser feita por equipa multidisciplinar. Esta equipa deve ser composta por médico – pediatra ou médico de clínica geral, ginecologista, endocrinologista, pedopsiquiatra, enfermeiro, dietista, assistente social e outros profissionais (sociólogo, professor, jurista,etc.). Não existindo equipa especialmente criada para o efeito, o problema pode ser resolvido através duma boa parceria – menos formal – entre especialistas e técnicos com a garantia de manutenção de diálogo permanente. Consulta do adolescente O atendimento ao adolescente tem determinadas particularidades: – os pais deixam de ser os únicos interlocutores – há necessidade de maior privacidade e confidencialidade como garantia de diálogo em ambiente de confiança – a consulta deve ser desburocratizada e de fácil acessibilidade, e efectuada em espaço próprio, separada da dos mais pequenos e sem longas esperas. A consulta propriamente dita contempla seis etapas: 1ª – Entrevista com a família (anamnese) 229 2ª – Entrevista a sós com o adolescente 3ª – Exame físico do adolescente 4ª – Conversa com o adolescente 5ª – Nova entrevista com o adolescente e família 6ª – Diagnóstico e actuação A abordagem correcta do adolescente deve englobar, para além dos dados da anamnese (incluindo anamnese psicossocial), o exame físico. Nesta avaliação que, por este motivo se considera global, deve ser estabelecida uma conversa aberta durante a consulta de vigilância de saúde, de forma a identificar, não só problemas de saúde, mas também factores de risco. Se a anamnese psicossocial não for realizada existirá maior dificuldade na identificação precoce de problemas, o que tem implicações na redução da morbilidade. Cabe referir que a doença, qundo ocorre, é relacionada frequentemente com comportamentos de risco. O comportamento de risco pode, com efeito, trazer consequências trágicas. A causa mais frequente de mortalidade na adolescência é constituída pelos acidentes de viação os quais estão, em cerca de metade dos casos, relacionados com o consumo de álcool e drogas. Como causas de morbilidade são referidas síndromas relacionadas com o estresse e depressão, doenças do comportamento alimentar e elevadas taxas de doenças sexualmente transmissíveis. Pode depreender-se que todos estes problemas não são facilmente abordáveis no âmbito duma “consulta de rotina”. A entrevista deverá ser reservada para uma ocasião em que o adolescente evidencie estado de aparente estabilidade emocional (i.e. esteja “relativamente bem”), com o objectivo de obtenção do máximo de informação com o mínimo de estresse. A forma como se começa contribui de forma decisiva para o resultado final. Sempre que necessário, poderá realizar-se em mais que uma consulta, para assim se obter melhor colaboração. Contudo, se o jovem evidenciar situação de crise quando se apresenta na consulta, ele deverá ser atendido de forma a sentir-se à vontade para falar sobre o problema que o inquieta. Pais, outros membros da família ou acom- 230 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA panhantes não deverão estar presentes a não ser que o adolescente o solicite expressamente ou dê autorização. Se os pais estiverem presentes, antes de iniciar a entrevista, o clínico deverá apresentarse sempre em primeiro lugar ao adolescente; este gesto, valorizando de sobremaneira a pessoa do jovem, corresponde a um claro sinal de que o médico está disponível para estabelecer empatia com abertura e sem tecer juízos de valor. Confidencialidade Todo o adolescente deve ser informado acerca da confidencialidade garantida pelo clínico no início da entrevista e, posteriormente, antes de serem QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial Home / Casa • Com quem vives? Onde? Tens quarto próprio? • Como é o ambiente em casa? • Qual a profissão dos pais? • Vives em instituição? Em qual? Tentaste fugir? Porque motivo? • Mudaste de casa recentemente? • Tens pessoas novas com quem coabitas? • Com quem tens confidências? Em quem confias? Education / Escola • Que escola frequentas? • Em que ano estás? • Mudaste recentemente de escola? • Tiveste experiências marcantes no passado? • Disciplinas preferidas? • Disciplinas de que menos gostas; e que notas ? • Alguma vez reprovaste e em que anos? • Já foste suspenso? E expulso? Abandono escolar? • No futuro: planos de emprego ou profissionalização? E que objectivos? • Tiveste ou tens emprego? • Relacionamento com os colegas, professores e outros elementos da escola/ou colegas de trabalho? • Mudança de escola? Quantas escolas frequentaste nos últimos 4 anos? Eating disorders / Alimentação • Quantas refeições habitualmente fazes por dia? • Nos fins-de-semana? Quando sais com os amigos? • Quando praticas desporto? • Alimentos preferidos? De quais menos gostas? • Alguma vez fizeste dietas? Porquê? Com que duração? • Quantas refeições fazes em família? E fora de casa ou na escola? Activities / Actividades • Com os pares (Que fazes com os teus amigos nos tempos livres? Onde, quando e com quem?) • Tens grupo de amigos? Melhor amigo/a? Mudaste de amigos recentemente? • Em casa? Em associações? • Desporto – praticas com regularidade? • Actividades religiosas; recreativas? Quais? Onde? • Actividades preferidas (hobbies) • Tens hábitos de leitura? De que tipo? • Músicas preferidas • Tens viatura própria? • Estiveste envolvido em problemas com as autoridades? Porquê? Quais as consequências? Drugs / Drogas • Os teus amigos consomem drogas? E tu, já experimentaste? (inclusive álcool e tabaco) • Sabes se alguém na família consome? (inclusivé álcool e tabaco) • E tu, que quantidade consomes? Com que frequência? Que tipo de utilização (esporádica/habitual)? • Que fonte? Como costumas pagar? • Conduzes quando consomes? Security/Segurança • Quando conduzes usas cinto de segurança ou capacete? • Quando tens relações sexuais sabes que tipo de prevenção deves ter? Qual costumas utilizar? Sexuality / Sexualidade • Orientação? Estás apaixonado? Por quem? • Grau e tipos de actividade sexual e relações sexuais? • Número de parceiros? • Doenças sexualmente transmissíveis: Sabes sobre esta questão?Como as prevines? • Contracepção? Frequência, uso? • Conforto, prazer com a actividade sexual? • História de abuso psíquico ou físico? CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica 231 QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial (cont.) Suicidal Ideation / Ideação suicida 1. Perturbação do sono – problemas na indução, interrupção frequente no início, hipersónia e queixas de fadiga progressiva? 2. Perturbações do comportamento alimentar ou do apetite? 3. Sentimentos de aborrecimento, tristeza? 4. Explosões emocionais e comportamento altamente impulsivo? 5. História de afastamento/isolamento? 6. Sentimentos de desespero/abandono? 7. História de depressão, tentativa de suicídio? 8. História de depressão, tentativa de suicídio na família ou pares? 9. História de abuso de álcool, drogas, inaproveitamento e abandono escolares ou crimes? 10. História de acidentes graves recorrentes? 11. Sintomatologia psicossomática? 12. Ideação suicida (incluindo perdas significativas actuais ou no passado)? 13. Desinteresse na entrevista evitando encarar de frente o entrevistador– postura depressiva? 14. Preocupação com a morte (roupa, música, meios de comunicação social, arte)? colocadas as questões relacionadas com sexualidade e consumo de drogas. Deve, entretanto, explicar-se que poderá haver alguns limites éticos e legais relativamente à confidencialidade; eis um exemplo prático: “Nesta entrevista vou colocar-te algumas questões que são pessoais, de forma a poder conhecer-te melhor. As respostas que tu deres podem ser importantes para a tua saúde. Mas, como as questões são pessoais e delicadas, prometo-te que serão confidenciais, o que quer dizer que ficarão só entre mim e ti Não revelarei aos teus pais, professores, ou outras autoridades nada do que me contares, a não ser que me autorizes. Uma única excepção: no caso de tu ou outra pessoa estarem em risco de vida, ou no caso de haver implicações médico-legais. O que conversarmos ficará entre nós até que digas o contrário, ou a não ser que algum outro médico precise de saber de ti, para poder cuidar do teu caso na minha ausência, garantindo de igual forma a confidencialidade.” Avaliação psicossocial/HEADSSS Desenvolvida por Harvey Berman (1972) e reformulada mais tarde por Cohen e Goldenring, a metodologia de abordagem da história psicossocial do adolescente é conhecia pelo acrónimo HEADSS que significa (Quadro 1): H – Home – Casa/família E – Education – Ensino/projectos Eating Disorders – Distúrbios alimentares/ alimentação A – Activities – Actividades de lazer, desporto, amigos, grupos, trabalho D – Drugs – Drogas (álcool, tabaco, etc.) S – Security – Segurança S – Sexuality – Sexualidade S – Suicidal ideation – Ideação suicida A ordem pela qual as questões são colocadas é aleatória devendo, contudo, ser deixadas para o final as que envolvem maior privacidade. A experiência e a sensibilidade do médico são fundamentais para o sucesso da avaliação psicossocial e consequentemente, da investigação de comportamentos de risco. Perguntas mal elaboradas, baseadas em termos técnicos ou colocadas de forma insegura por parte do entrevistador, podem gerar respostas (falsamente) negativas por parte do jovem, levando ao encerramento precoce do diálogo. As perguntas devem ser feitas com clareza, ainda que seja necessário repeti-las ou formular de novo a questão, explicando o porquê da pergunta e as vantagens em saber-se a resposta; efectivamente o adolescente pode sentir-se “intimidado”, ansioso, envergonhado ou assustado com a possibilidade de revelar a sua intimidade. 232 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A qualidade do vínculo estabelecido entre o médico e o adolescente será determinante para que sejam abordadas questões mais pessoais e inclusive para uma melhor aceitação de esclarecimentos e doutras questões muitas vezes não consideradas importantes pelo jovem. Um dos principais objectivos da entrevista psicossocial é procurar identificar elementos que se relacionem com a ansiedade e depressão, frequentes precursores do suicídio nos adolescentes. Na avaliação de risco, mais do que estabelecer um diagnóstico de perturbação de saúde mental, é fundamental que seja identificada a suspeita ou perturbação de comportamento para que o adolescente possa ser correctamente orientado e posteriormente acompanhado . Por vezes acontece ser o profissional de saúde o único adulto que interage repetida e confidencialmente com o adolescente ao longo do seu desenvolvimento. Compete, pois, àquele saber atender e entender de forma integral o referido adolescente, procurando reconhecer as suas necessidades específicas de acordo com a idade e contexto (familiar, social e religioso) em que está inserido. BIBLIOGRAFIA Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Fonseca H. Compreender os adolescentes - Um desafio para pais e educadores. Lisboa: Editorial Presença, 2002 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Merenstein LS. Adolescent Health Care – A practical guide. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,2002 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 PARTE IX Aspectos da Relação entre Medicina Pediátrica e Medicina do Adulto 234 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 45 DOENÇAS DA IDADE PEDIÁTRICA COM REPERCUSSÃO NO ADULTO – GENERALIDADES João M. Videira Amaral “Em ciência, o importante é mudar as ideias à medida que a ciência progride” Claude Bernard, 1877 Introdução O ser humano, desde a concepção até ao termo da adolescência, cresce e desenvolve-se modelado pela interacção de factores genéticos e ambientais. Muitas vezes, estes últimos constituem verdadeiras agressões (físicas, químicas, estresse, nutricionais, hipóxicas, etc.), sendo a resistência do concepto a tais eventos, (que podem incidir na fase pré-natal e/ou na fase pós-natal do desenvolvimento) condicionada, quer pelo património genético, quer pelas condições do ambiente nas suas diversas vertentes (ambiente intra-uterino ou micro-ambiente, ambiente constituído pelo organismo materno ou matro-ambiente e ambiente extra-uterino). O resultado final, cuja expressão clínica se poderá verificar apenas na idade adulta depende, designadamente, do tipo de agente agressor, da intensidade da sua acção e do momento em que actua. Neste capítulo são analisados alguns problemas clínicos que têm expressão na idade adulta na perspectiva da sua relação com eventos surgidos no período pré-natal e na idade pediátrica, com importância em saúde pública. Importância do problema A relação entre certas doenças do feto e criança e doenças do adulto constitui um tópico de grande actualidade, o que é fundamentado em numerosos estudos epidemiológicos na sequência de múltiplas investigações, cabendo destacar o pioneirismo do grupo de Barker no Reino Unido. A realização dum congresso mundial reunindo especialistas de diversas áreas , pediatras e não pediatras, sobre “doenças do adulto com origem no feto” em 2001 em Bombaim, Índia , traduz , em certa medida, a importância dum problema em saúde pública que foi identificado. Nesse mesmo congresso, tendo sido dada ênfase ao papel do pediatra e do perinatologista num conjunto de intervenções para inverter tendências de incremento de certo tipo de morbilidade , um dos tópicos discutido foi o panorama da saúde na Índia em que a coronariopatia e a diabetes mellitus de tipo 2 alcançaram proporções epidémicas, em associação a uma das mais elevadas prevalências de baixo peso de nascimento em todo o mundo – cerca de 30%. Debateu-se igualmente a associação entre obesidade, urbanismo e doenças cardiovasculares , estas últimas a principal causa de mortalidade em todo o mundo, correspondendo mais de metade desta parcela aos países em desenvolvimento. O papel da Genética Tratar de determinado tema com objectivo pedagógico obriga, por vezes, a compartimentações algo artificiais. De facto, às influências de diversos factores ambientais intervenientes em muitas situações a abordar, sobrepõe-se a predisposição genética, ambas condicionando variantes quanto às manifestações clínicas e ao período da vida em que estas emergem. Feita esta ressalva, torna-se obrigatório mencionar, tendo como base o tema em análise, um conjunto de situações clínicas clássicas, de tipo hereditário poligénico, cuja manifestação poderá ocorrer em diversas fases da vida, incluindo a idade adulta. Actualmente, com os avanços tecnológicos e as novas atitudes de antecipação, é possível fazer-se a sua identificação cada vez mais precocemente. Como exemplos podem citar-se: – Doenças cardiovasculares: aterosclerose, doença isquémica do miocárdio, hipertensão arterial, doença reumática. – Doenças do foro imunoalérgico: atopia, asma, CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto eczema, enxaqueca, colite ulcerosa, etc.. – Doenças acompanhadas de obesidade. – Determinadas doenças renais. – Determinadas anomalias congénitas (por ex. luxação congénita da anca , etc.). – Doenças cardiovasculares: aterosclerose, doença isquémica do miocárdio, hipertensão arterial, doença reumática, etc.. Calcula-se que mais de 400 genes estejam implicados na regulação de muitos preocessos tais como função endotelial, inflamação, e metabolismo. Relativamente aos processos metabólicos, o relacionamento com as lipoproteínas é seguramente o mais conhecido, sendo que foram identificados muitos genes relacionados com a doença aterosclerótica (por ex. gene do receptor das LDL, gene da LPL, gene da apolipoproteína e com variantes) e a hipertensão( por ex. genes do sistema renina-angiotensina – evidenciando polimorfismos – com papel na regulação da pressão arterial e da homeostasia do sódio, e explicando certas formas de hipertensão com graus diversos de sensibilidade ao sal. Conceito de programação Para compreendermos o papel de certos eventos durante a gravidez no desenvolvimento de doenças no adulto, será importante reter a noção de “influência programada” (com o significado do “efeito de certas noxas que deixam marca ou registo – “programming”na língua inglesa), a qual está ligada ao fenómeno de adaptação e tem as suas raízes na biologia. Com efeito, tal como se comprovou em certas espécies animais, a ocorrência de determinados estímulos ou insultos relacionados com o ambiente, actuando numa fase precoce do desenvolvimento humano (na vida fetal ou na infância) tem efeitos variáveis a longo prazo na estrutura ou na função de determinados órgãos (programação) se os mesmos tiverem lugar nos chamados períodos sensíveis ou críticos. Por conseguinte, se o mesmo insulto se verificar fora de tal período crítico, provalvelmente não surgirá o efeito. É importante referir que, sob o ponto de vista teleológico, a capacidade de resposta do organismo a determinado insulto corresponde, na maior parte das vezes, a um mecanismo de adaptação no 235 sentido de manutenção do equilíbrio biológico. No entanto, determinados insultos ou factores ambientais poderão originar efeitos adversos no organismo, não sendo , nesta circunstância , considerados adaptativos. O feto e doenças do adulto Doença cardiovascular e doença metabólica De acordo com dados epidemiológicos, considerando o cômputo geral de recém-nascidos (RN) de peso inferior a 2500 gramas ou de baixo peso (BP) em todo o mundo, a proporção dos mesmos com restrição de crescimento intra-uterino ou RCIU (peso inferior ao correspondente ao percentil 10 nas curvas de Lubchenco, para qualquer idade gestacional) é muito maior nos países em desenvolvimento (cerca de 75%) em comparação com a que ocorre nos países desenvolvidos (cerca de 25%). A nutrição do feto e, por consequência, o respectivo peso, depende do suprimento em nutrientes através da circulação materno-placentar-fetal, por sua vez em relação com a nutrição materna e o metabolismo e função placentares. A regulação da transferência de nutrientes para o feto depende não só do próprio suprimento , mas também da insulina fetal e do factor de crescimento designado por IGF-I (sigla de “insulin-like growth factor I) (IGF-I). Barker, baseado em estudos anteriores, descreveu três padrões de hipocrescimento fetal correspondentes a outros tantos mecanismos de subnutrição actuando em diferentes fases do crescimento fetal com implicações futuras em termos de manifestação de problemas clínicos na idade adulta: a) a subnutrição na fase precoce da gravidez (período de hiperplasia entre as 4-20 semanas caracterizado por mitose activa e aumento do conteúdo de DNA) que origina baixo peso de nascimento com uma relação harmónica, simétrica ou bem proporcionada entre peso, comprimento e perímetro cefálico. Este fenotipo corresponde à forma de restrição de crescimento intra-uterino inicialmente descrita por Clifford como “crónica” e afectando os tecidos moles, o esqueleto e o crânio. A este perfil somatométrico associou-se deficiente incremento ponderal no primeiro ano de vida, e risco elevado de subsequente desenvolvi- 236 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA mento de hipertensão arterial e de acidente vascular cerebral na idade adulta; b) a subnutrição, entre as 20-28 semanas, (período caracterizado por hiperplasia e hipertrofia) condicionando baixo peso de nascimento com um baixo índice ponderal (relação peso em gramas x 100/ comprimento em centímetros elevado ao cubo), inferior a 2.32. Neste grupo verificou-se risco ulterior, na idade adulta, de hipertensão arterial, de coronariopatia e de diabetes não insulinodependente; c) a subnutrição no final da gravidez, após as 28 semanas; é a fase da hipertrofia em que, em condições normais se acumula tecido adiposo e ocorre aumento das dimensões celulares. A forma clínica resultante é designada por RCIU assimétrica ou desarmónica (sub-aguda na nomenclatura de Clifford) com crescimento relativamente mantido da cabeça , tronco e esqueleto , mas hipotrofia das massas musculares e do tecido celular subcutâneo. A este fenótipo associou-se o risco, na vida adulta, de hipertensão, de dislipidémias (sobretudo hipercolesterolémia à custa das lipoproteínas de baixa densidade – LDL), doença coronária e acidente vascular cerebral. (consultar capítulo 47 e parte XI) Este modelo proposto por Barker foi questionado por outros investigadores concluindo que: no sexo masculino foi o peso ao 1 ano e não o baixo peso ao nascer que se associou a coronariopatia; no sexo feminino, pelo contrário, verificou-se associação entre o baixo peso ao nascer e coronariopatia, intolerância à glucose e colesterol -LDL elevado, mas não com outros factores como hipertensão arterial e hiperfibrinogenémia). A evidência da associação entre baixo peso de nascimento (com ou sem RCIU) e determinados problemas metabólicos (essencialmente diabetes de tipo 2 e obesidade de tipo central) e/ou coronariopatia na idade adulta, levaram à criação do conceito de “fenotipo da “ poupança” ou da “frugalidade” cuja fisiopatologia deverá ser entendida de modo dinâmico e numa perspectiva teleológica: as alterações neuro-endócrino-metabólicas (mediadas através de alterações do eixo hipotálamo-hipofisário, e surgidas como resposta de adaptação à subnutrição fetal), mantêm-se na vida extra-uterina influenciando ulteriormente a secre- ção de insulina e promovendo alterações morfofuncionais ao nível da parede vascular. As referidas alterações são consideradas benéficas se a escassez nutricional se mantiver após o nascimento. No entanto, se na vida extra-uterina a alimentação for abundante, as referidas alterações endócrino-metabólicas podem predispor a obesidade ou a peso excessivo e a anomalias da tolerância à glucose. Esta associação constitui, na actualidade um problema importante de saúde pública na Índia, onde têm sido realizados numerosos estudos. Admite-se hoje que os genes que permitem a sobrevivência em situação de fome, são os mesmos que podem conduzir à obesidade e diabetes em ambiente de abundância. Relacionando ainda o peso de nascimento com problemas na idade adulta, cabe referir a associação entre baixo peso de nascimento e hipocrescimento no primeiro ano de vida, com osteoporose e diminuição da massa óssea no adulto, e risco de fractura do colo do fémur na idade avançada. Com efeito, foi estabelecida uma correlação entre baixo peso de nascimento no sexo feminino e conteúdo mineral ósseo e densidade mineral óssea deficitários 70 anos mais tarde. Outro aspecto merece ser realçado – o que se refere à acumulação de gordura intra-abdominal profunda, nos casos de RCIU a maior acumulação de gordura intra-abdominal (detectável e quantificada por RMN) relaciona-se com eventos adversos durante a gravidez e com ulterior resistência à insulina; não se verificando eventos adversos há maior tendência para acumulação de gordura subcutânea em vez de abdominal, o que condicionada melhor prognóstico em termos metabólicos futuros. Relação feto/placenta e hipertensão arterial Barker e colaboradores verificaram maior prevalência de hipertensão arterial em adultos com antecedentes perinatais de RCIU e/ou BP e discordância com o tamanho e peso da placenta (placenta de grandes dimensões). Por outro lado, estudos experimentais demonstraram que, como resultado da hipóxia fetal, há redistribuição de sangue favorecendo a perfusão do encéfalo. Nas situações com placenta de maiores dimensões verificou-se diminuição da relação comprimento/perímetro cefálico, podendo explicar-se tal desproporção por um desvio de CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto sangue do tronco para o encéfalo. A discordância entre o peso fetal (deficiente ou baixo) e o tamanho (grande) da placenta pode conduzir a fenómeno de adaptação circulatória no feto, com alteração estrutural progressiva das grandes artérias na criança, traduzida por alterações nas escleroproteínas com repercussão na distensibilidade e consequente hipertensão arterial na idade adulta. Diabetes mellitus gestacional e doença metabólica O peso elevado de nascimento (superior a 4000 gramas ou macrossomia) relacionado com diversos factores etiopatogénicos incluindo a diabetes mellitus gestacional (DMG), comporta risco elevado de peso excessivo na adolescência e idade adulta. De acordo com os estudos do grupo de Gillman a DMG reflecte um ambiente fetal alterado em termos de relação: metabolismo da glucose mãe – feto. Reportandonos ao conceito de programação, a DMG actuaria como um factor predisponente em relação a determinados insultos que poderão conduzir à obesidade, e não como factor causal directo. Nutrição materna, feto e doença metabólica Os efeitos da nutrição materna na gravidez sobre o feto a longo prazo constituem matéria de controvérsia dada a grande variabilidade de resultados traduzindo heterogeneidade das populações estudadas e diversidade das metodologias aplicadas. Estudos epidemiológicos em populações humanas demonstraram que a composição corporal da grávida influencia o desenvolvimento fetal com implicações futuras em termos de risco de doenças cardiovasculares no produto de concepção na idade adulta. Mães magras tendem a ter filhos magros com tendência para ulterior insulino-resistência; e mães obesas ou com peso excessivo tendem a ter filhos gordos/pesados que poderão ser ter insulinodeficiência. Demonstrou-se também que o regime alimentar durante a gravidez pode ter efeitos permanentes, influenciando de modo programado o metabolismo do feto, nomeadamente em termos de sensibilidade à insulina. Cabe citar, a propósito, um interessante trabalho realizado numa zona rural da Índia em que se verificou relação directamente proporcional entre peso ao nascer e teor de suprimento em lípidos, legumes verdes e em frutos. 237 Doença neoplásica Diversos estudos prospectivos observacionais têm demonstrado uma associação positiva entre peso de nascimento elevado e risco subsequente de diversos tipos de neoplasias na idade adulta. 1. Cancro da mama Em 1990, Trichopoulos admitiu a hipótese de o cancro da mama poder ter a sua origem in utero. Num estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, envolvendo 5358 mulheres, verificou-se uma associação a risco de cancro da mama antes dos 50 anos 3,5 vezes superior nos casos de antecedentes de macrossomia ao nascer (peso igual ou superior a 4000 gramas), em relação aos casos com idêntica idade gestacional, mas peso de nascimento inferior a 3000 gramas. De acordo com diversas investigações demonstrou-se o papel da elevada concentração de estrogénios endógenos nas mulheres com cancro da mama em idades pós-menopausa. Nos casos de associação entre macrossomia e ulterior cancro da mama em idade pré-menopáusica, demonstrou-se que havia elevadas concentrações de IGF-I (insulinlike growth factor) comprovada nos casos que evoluiram para cancro da mama pré-menopáusica. 2. Cancro colo-rectal Relativamente a este tipo de cancro encontrou-se uma incidência maior nos casos associados a antecedentes de macrossomia fetal. Embora a base etiopatogénica não esteja ainda perfeitamente esclarecida, admite-se que a sequência de eventos biológicos associados (macrossomia com hiperinsulinémia) tenham papel importante na carcinogénese colo-rectal. Com efeito, a IGF- I e as suas proteínas de ligação influenciam o crescimento fetal, podendo a insulina comparticipar a carcinogénese através da interferência nos níveis de IGF-I circulante. Doença respiratória Na investigação de Barker, estudando a função pulmonar de 825 homens nascidos entre 1911 e 1930, concluiu-se que o volume expiratório forçado em 1 segundo (FEV 1) era tanto maior quanto menor tinha sido o peso de nascimento. Este achado, interpretado como resultado dos efeitos a longo prazo do ambiente pré-natal adverso durante um período crítico de rápido desenvolvimento pulmonar in 238 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA útero, está de acordo com os resultados de estudos experimentais em ratos. Verificou-se, com efeito, que o estado de má- nutrição provocado em período anterior ao parto ou no final da gravidez, reduz permanentemente as dimensões pulmonares e o conteúdo de DNA pulmonar. Mais recentemente diversos estudos têm avaliado se o peso de nascimento influencia o aparecimento de manifestações de asma em idade pediátrica e no adulto. Estudos realizados no Canadá demonstraram que o peso de nascimento elevado, sobretudo a partir de 4500 gramas, se associou a maior risco de asma na adolescência e no adulto. O mecanismo etiopatogénico desta associação parece ser multifactorial relacionandose com a maior tendência para obesidade infantil, juvenil e na idade adulta em indivíduos com antecedentes de macrossomia ao nascer. Com efeito, a adiposidade interfere adversamente na função pulmonar, nomeadamente no que respeita ao débito expiratório, ao calibre das vias aéreas e à função dos músculos respiratórios. Demonstrou-se também que os adipocitos têm um papel regulador na produção de várias citocinas pró-inflamatórias (leptina, interleucina 6, factor de necrose tumoral alfa); tais citocinas comparticipam, por isso, a inflamação da vias aéreas e a activação dos mastocitos predispondo ao broncospasmo. Aparentemente os resultados do estudo canadiano estão em desacordo com os de Barker anteriormente mencionados, em que se associou maior incidência de asma no adulto e adolescência ao baixo peso de nascimento. De facto, a população de RN de BP estudada por Barker incluia casos de RN pré-termo (idade gestacional inferior a 37 semanas). Em estudos mais recentes, a associação BP de nascimento a maior incidência de asma no adolescente e adulto, demonstrou-se apenas nos casos com antecedentes de BP de nascimento acompanhados de prematuridade e não nos exRN de BP não pré-termo. A criança, o adolescente e doenças do adulto Aleitamento materno e perfil lipídico Estudos de há duas décadas demonstraram que o tipo de leite utilizado nas primeiros dois anos de vida e a idade do desmame podem ter influência permanente no perfil lipoproteico sérico (com especial realce para o teor do colesterol – LDL) com repercussões futuras em termos de risco de morte por coronariopatia no adulto. O grupo de Barker avaliou adultos que pertenceram a uma época em que era habitual o aleitamento materno exclusivo mais prolongado e o prolongamento deste para além de 1 ano de idade. Comprovou que o aleitamento materno prolongado para além de 1 ano conduziu na idade adulta a elevadas concentrações de colesterolLDL e a maiores taxas de mortalidade por doença isquémica do miocárdio independentemente dos valores doutros parâmetros lipoproteicos; e que o efeito era semelhante ao que se obtinha com leite industrial dado exclusivamente durante o primeiro ano de vida. Pelo contrário, os valores de colesterol-LDL eram mais baixos nos casos de aleitamento materno exclusivo apenas até ao 1 ano de vida. Face a estes resultados, poderá argumentar-se que o regime alimentar realizado durante o período pós-desmame e na idade adulta tenha influenciado o perfil lipoproteico no adulto. No entanto, Barker demonstrou que todos os grupos estudados evolutivamente com regimes alimentares diferentes até à idade do desmame, eram homogéneos sob o ponto de vista de classe social, de regimes alimentares pós-desmame, assim como de factores de risco cardiovascular, incluindo o índice de massa corporal e a concentração do factor de coagulação VII. O mecanismo desta evidência não está completamente esclarecido, mas poderá eventualmente extrapolar-se com base na análise doutros parâmetros. Com efeito, demonstrou-se que a pressão sanguínea, os valores de fibrinogénio, de factor VII, de glucose são parcialmente determinados ou programados durante determinados períodos críticos da vida fetal e da primeira infância. Embora existam dados incompletos que exigem ulterior investigação, cabe referir que: o período crítico poderá ser diferente de variável para variável relacionando-se respectivamente com períodos de crescimento rápido dos vasos sanguíneos, do fígado e do pâncreas exócrino; e que a regulação das concentrações dos lípidos e das lipoproteínas no soro envolve CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto vários tecidos, com especial destaque para o fígado e o intestino. A este propósito, estudos experimentais em diversas espécies animais demonstraram que a manipulação de dietas no recém-nascido e em animais recém – desmamados pode produzir aumentos a longo prazo das concentrações de lípidos, lipoproteínas e apolipoproteínas, e assim com alterações da actividade da redutase da HMGCoA (hidroxi-metil-glutaril coenzima A) com papel na síntese do colesterol, e da 7-alfa –hidroxilase (síntese dos ácidos biliares). Outro mecanismo implicado poderá estar relacionado com o facto de o leite materno conter diversas hormonas (tiroideias e esteróides) e factores de crescimento, os quais podem influenciar o metabolismo dos lípidos. Embora o efeito destas hormonas maternas sobre o lactente seja desconhecido, estudos experimentais em babuínos demonstraram diferentes níveis de tri-iodo-tironina e de cortisol conforme alimentados com leite materno ou com leite industrial. Reportando-nos aos estudos de Barker, os lactentes alimentados com leite materno para além da idade de 1 ano, continuaram , por isso, a ser submetidos por mais tempo ao efeito das hormonas maternas e doutros componentes. Alimentação com leite materno, leite industrial, hipertensão arterial e esclerose múltipla A etiopatogénese da hipertensão arterial no adulto é de tipo multifactorial englobando um componente importante que diz respeito aos hábitos alimentares em relação com o consumo elevado de sódio, e baixo de cálcio e potássio. Num estudo realizado pelo grupo de Singhal incidindo sobre 926 crianças com antecedentes de prematuridade e com regimes diferentes de alimentação láctea no primeiro mês de vida (comparando fórmula de pré-termo com fórmula para RN de termo, e fórmula para pré-termo com leite humano de mistura de diversas dadoras), e seguidas até aos 16 anos de idade, verificou-se associação de valores mais baixos de pressão arterial nos indivíduoas alimentados no período de estudo com leite humano. Na análise estatística dos resultados foram ponderados diversos factores de possível interferência, tais como o teor em sódio dos diversos leites. 239 Este efeito foi atribuído não só ao possível papel de hormonas e de substâncias tróficas que fazem parte da composição do leite humano, mas sobretudo aos ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa (LC-PUFA) do leite humano. São hoje atribuídas diversas acções aos LCPUFA, cujas reservas são deficitárias no RN prétermo. Tais ácidos gordos são preferencialmente incorporados nas membranas das células neurais, o que influencia o desenvolvimento visual e cognitivo. Os mesmos LCPUFAs também são incorporados nas membranas doutras células como as dos endotélios vasculares, o que poderá explicar o seu efeito na distensibilidade da parede das artérias.Efectivamente, foi demonstrado que em adultos hipertensos o regime alimentar suplementado com n-3 LCPUFA é susceptível de reduzir os valores tensionais em comparação com os que não são suplementados. Tendo como base a noção de que as crianças alimentadas com leite materno têm valores mais baixos de pressão arterial que as alimentadas com fórmulas industriais (não suplementadas com LCPUFAs) verificou-se que da suplementação com tais ácidos gordos n-3 LCPUFA resultam valores mais baixos de pressão arterial na infância, o que tem implicações na prática clínica tendo em conta a tendência para os referidos valores se manterem até à idade adulta; desconhece-se, até ao momento se, tal influência dependerá do tempo que durou o tipo de alimentação. De referir ainda estudos que levantaram a hipótese de o défice de LCPUFAs na alimentação da primeira infância , condicionando disfunção da membranas celular e da barreira hematoencefálica, facilitar a entrada de determinados agentes infecciosos promovendo a degradação acelerada da mielina e a génese do quadro de esclerose múltipla. (consultar parte sobre Nutrição) Dislipoproteinémias em idade pediátrica e doenças cardiovasculares Constituindo as doenças cardiovasculares um problema de saúde pública em todos os países, nomeadamente nos industrializados, e tendo em consideração que os factores de risco, ocorrendo muitas vezes associados em “constelações”, estão já presentes em idade pediátrica e são preditivos 240 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de risco cardiovascular no adulto, justifica-se a sua identificação precoce na perspectiva de medidas específicas de intervenção em idade pediátrica sobre os factores relacionados com o ambiente. De acentuar que as lesões arteriais poderão ser já detectadas no feto, tendo a dislipoproteinémia materna mantida durante a gravidez importância na patogénese. Entre diversos estudos de correspondência de perfil lipoproteico idade pediátrica – adulto, valerá a pena citar o Fels Longitudinal Study em que se demonstrou que o perfil aos 9-11 anos era preditivo do perfil aos 19-21 anos, nomeadamente em relação ao parâmetro colesterol total e colesterol-LDL. De acordo com a nossa experiência, numa amostra de 50 crianças entre 4-5 anos, encontrámos um coeficiente de correspondência de 0.8 relativamente aos marcadores colesterol total, colesterol- LDL, Apo A, Apo B e Lp(a) num intervalo de tempo de 8-9 anos (dados não publicados). Hipertensão arterial Admite-se hoje que a hipertensão essencial tem a sua origem na infância sendo a sua patogénese relacionada com factores hereditários, estresse, suprimento em sal e obesidade. Gillman procedeu ao estudo evolutivo seriado de uma população de indivíduos entre os 8 anos e os 26 anos de idade, tendo encontrado um coeficiente de correlação com referência àqueles limites de idades, de 0.55 para a pressão sistólica e de 0.44 para a pressão diastólica. Este tópico é pormenorizado no capítulo 46. Infecções respiratórias na infância e bronquite crónica no adulto Em diversos estudos incidindo sobre crianças hospitalizadas por infecções das vias respiratórias inferiores (peumonias e bronquiolites por vírus sincicial respiratório-VSR) verificou-se na idade adulta uma proporção significativa de hiperreactividade brônquica e de anomalias da função respiratória em relação aos casos-controlo. Tal tipo de evolução atribui-se ao papel da infecção do tracto respiratório (com especial relevância para a infecção por VSR que pode originar alterações ultra-estruturais), sobretudo se houver antecedentes de atopia. Doenças da nutrição 1. Má nutrição energético-proteica (MNEP) e o ciclo de gerações Nos países em desenvolvimento, as adolescentes com MNEP em idade reprodutiva(em relação a adolescentes sem MNEP) têm um risco de mortalidade cerca de 5 vezes superior por complicações relacionadas, quer com a gravidez, quer com o próprio parto. Tratando-se de parturientes com baixo peso(inferior a 45 kg) e com baixa estatura (inferior a 145 cm), criam-se condições para desproporção feto-pélvica, nomeadamente. Como consequência do défice de progressão ponderal, de infecção associada e de anemia durante a gravidez, surge um quadro de RCIU e/ou BP de nascimento. Relativamente ao BP e à RCIU já foram abordados tópicos que relacionam esta situação com outros problemas manifestados no adulto. 2. Carências nutricionais específicas de expressão tardia O suprimento inadequado de determinados nutrientes à criança pode originar mais que uma doença por mecanismos diversos. Tais doenças, associadas a carências específicas manifestam-se classicamente em idade pediátrica, ou seja, após um período curto de latência uma vez verificada a situação biológica de carência, não sendo de excluir predisposição genética. São exemplos as seguintes associações, algumas das quais têm elevada prevalência nos países em desenvolvimento: tiamina-béri-béri, niacina-pelagra, vitamina D-raquitismo, iodo-bócio, vitamina C-escorbuto, vitamina A – xeroftalmia e ceratomalácia, ácido fólico e ou/ vitamina B12 – anemia megaloblástica, fluor-cárie dentária, ferro-anemia ferripriva. Embora cada micronutriente tenha um papel – chave no metabolismo de diversos tecidos, a manifestação que diz respeito à doença considerada clássica ou “index”, traduz a maior vulnerabilidade de determinado tecido. Em confronto com o conceito de doenças de carência nutricional manifestando-se após um período de latência curto, cabe referir um conjunto doutros problemas igualmente de tipo carencial, mas de manifestação após um período de latência longo, atingindo a idade adulta. CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto São citados três exemplos: a) Cálcio: foi descrito um mecanismo associando a carência em cálcio a uma elevação “paradoxal” de cálcio ionizado intracelular e a uma diminuição da capacidade de ligação ácidos gordos – ácidos biliares; este achado biológico é relacionado com cancro do cólon na idade adulta. b) Vitamina D: um dos efeitos do calcitriol – para o qual existem receptores em muitos tecidosé induzir a diferenciação e regular a proliferação celulares. O seu défice tecidual (que poderá coincidir com valores séricos normais) poderá ter , por isso, efeito oncogénico pelo défice da regulação exercida sobre a proliferação celular. A este respeito, cabe referir que existem investigações demonstrando uma associação entre níveis baixos de calcitriol e mais elevada incidência de cancro da próstata. c) Ácido fólico: na doença – index (anemia megaloblástica e defeitos do tubo neural no feto em situações de carência na gravidez), o efeito da carência é explicado pela alteração da síntese de DNA; no caso dos defeitos do tubo neural intervém igualmente a hiper-homocisteinémia secundária ao défice de ácido fólico. Em termos de expressão da doença após longo período de latência, comprovou-se que a homocisteína tem um papel importante na degradação das proteínas de tecido elástico, conduzindo a um processo degenerativo do tecido conectivo com repercussão em vários territórios: sistema ocular (ectopia lentis), tecido ósseo (osteoporose), sistema vascular (doença vascular oclusiva), sistema nervoso central (demência). De salientar que a homocisteína, cujos níveis séricos se elevam com suprimento abudante em proteínas, tem uma acção pró-oxidante e prócoagulante ao nível do endotélio vascular, favorecendo a aterogénese. (consultar parte sobre Nutrição). 3. Obesidade A obesidade na infância e adolescência constitui na actualidade a doença nutricional de maior prevalência em todo o mundo(segundo alguns “a nova síndroma mundial”), assumindo nalgumas regiões as características de verdadeira epidemia. Portugal, juntamente com a Irlanda e EUA detêm elevadas taxas de excesso de peso , situação que antecede a obesidade. 241 A estabilidade ou tendência para manutenção da obesidade (tracking) da infância para a adolescência é baixa, sendo, no entanto, elevada da adolescência para a idade adulta. A probabilidade de uma criança obesa ser um adulto obeso é tanto menor quanto maior o tempo decorrido entre o início da obesidade na criança e o início da idade adulta; e tal probabilidade aumenta se a obesidade tiver início na adolescência e se existirem antecedentes familiares de obesidade, nomeadamente na mãe. (Capítulo 57). Implicações na prevenção e controvérsias As investigações de Barker e do seu grupo chamaram a atenção para a origem fetal de muitas afecções que têm expressão no adulto. Este novo paradigma , que tem implicações práticas preventivas na prática clínica, está em perfeita sintonia com o conceito genuíno de Pediatria como medicina integral de um grupo etário desde a concepção até ao fim da adolescência. Daí a grande responsabilidade do pediatra e do médico que cuida de crianças a cujo desempenho sempre se ligou uma forte vertente preventiva; e agora, numa nova perspectiva face a novos paradigmas, cada vez mais partilhada pelo perinatologista . Os tópicos abordados levantam questões interessantes. Muitos dos resultados de investigações nem sempre são coincidentes; por vezes são contraditórios, procedendo os autores a especulações etiopatogénicas, o que gera polémica. Analisemos o parâmetro “peso de nascimento”, um dos pontos de partida nas investigações de Barker. Sorensen e Seidman, separadamente, concluiram que baixo peso de nascimento e restrição de crescimento intra-uterino são factores de risco preditivos, não de obesidade, mas sim de coronariopatia, de acidente vascular cerebral e de diabetes. Oken e Gillman chamaram a atenção para o que foi designado por fenómeno paradoxal do aumento da adiposidade central na idade adulta relacionável, quer com baixo peso, quer com peso elevado de nascimento. Reportando-nos ainda ao parâmetro peso de nascimento, será interessante analisar outro acha- 242 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do curioso: enquanto o baixo peso de nascimento foi correlacionado com risco elevado de coronariopatia, o peso elevado associou-se a maior risco de cancro da mama. Alguns resultados discrepantes poderão explicar-se pela diversidade metodológica (dimensão das amostras, factores de interferência residuais, etc.) e pela interacção de factores genéticos e ambientais cujo peso relativo por vezes é de difícil determinação. Gillman, a este propósito , pôs duas questões muito pertinentes: Os genes com influência no baixo peso de nascimento são os mesmos que determinam a doença cardiovascular? Qual o efeito dos vários nutrientes sobre a embriogénese e sobre o crescimento fetal? Em 2003, em San Diego (EUA), num congresso organizado pela Society for International Nutrition Research foi retomado o debate sobre as origens das doenças do adulto, revisitando muitos dos tópicos discutidos dois anos antes em Mumbai, Índia. Novos contributos de investigações mais recentes levaram a questionar alguns princípios defendidos por Barker e a confirmar outros. Eis alguns dos temas que tiveram maior impacte em tal evento mais recente: a) a modificação dos hábitos alimentares nas zonas urbanas dos países em desenvolvimento O fenómeno actual da epidemia da obesidade está a atingir actualmente as zonas urbanas dos países em desenvolvimento como a Índia e Brasil, o que contribuirá em futuras gerações e após vários ciclos de mais adequada nutrição para que mais mulheres, melhor nutridas, com peso e altura progressivamente mais elevados, com úteros cada vez de maiores dimensões, venham a ter filhos de peso progressivamente mais elevado, reduzindo progressivamente a taxa de RCIU, mas com risco metabólico crescente. b) Os dilemas da intervenção nutricional no período pré-natal. As intervenções nutricionais ditas agressivas na grávida subnutrida tentando reverter o quadro de má-nutrição fetal conduziram na Índia, ao fenómeno do bébé magro-gordo com incremento rápido da massa gorda. Como consequência, de acordo com as investigações de Yajnik, começaram a surgir casos de resistência à insulina em crianças, adolescentes e adultos jovens. O mesmo grupo comprovou que a má-nutrição fetal com microssomia é explicada por défice predominante de massa muscular e não de massa gorda, o que poderá conduzir na idade adulta, se houver excesso alimentar, a obesidade central coincidindo com incremento deficitário da massa muscular. c) O dilema da intervenção nutricional pós-natal Em termos de estratégias nutricionais, outro dilema é posto hoje em dia aos neonatologistas nos casos de RCIU com BP. De facto , demonstrouse que um suprimento mais “agressivo”, propiciando maior quociente energético e maior incremento ponderal a curto prazo, comporta maior risco metabólico e cardiovascular a curto e médio prazo. A este propósito, considerou-se da maior importância a noção de “crescimento rápido no primeiro ano de vida , preditivo de maior risco metabólico e cardiovascular”. (consultar parte Neonatologia) d) Outros aspectos Em Portugal no ano de 2003 registaram-se 106690 óbitos, correspondendo 38% a doença cardiovascular, 20% a doença cerebrovascular cerebral(DCV) e 9% a enfarte do miocárdio. No mesmo ano a prevalência de hipertensão arterial, o principal factor de risco de DCV, foi 43%. Dados recentes do INE (2008) apontam para o facto de a hipercolesterolémia na população portuguesa afectar cerca de 3,9 milhões em todas as idades (mais de 25%). Com a aplicação do conhecimento científico na actualidade, está provado que é possível evitar 50% dos óbitos por DCV, sendo de referir que parte importante das estratégias exequíveis para atingir tal objectivo têm ponto de partida no período perinatal e em idade pediátrica com extensão ao adulto: nutrição adequada (rica em fibra evitando excesso de sal e o regime hipercalórico) e estilo de vida saudável dos progenitores para evitar a obesidade, vigilância pré-natal no sentido de promover crescimento adequado do feto para prevenir quer o baixo peso, quer o peso excessivo do recém-nascido, promoção do aleitamento materno até aos 6 meses, exames de saúde em idade infantil e juvenil incluindo vigilância da pressão arterial a partir dos 3-4 anos (ou antes em situações específicas), nutrição adequada e estilo de vida saudável. Trata-se, portanto de estratégias que, CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto para serem efectivas, terão que ser aplicadas de geração em geração. Afigura-se, pois, importante desenvolver no futuro, diversas linhas de investigação no âmbito da genética molecular e da nutrição pré-natal englobando designadamente o estudo evolutivo da relação massa gorda – massa magra desde o período pré-natal até ao fim da adolescência e a avaliação imagiológica da gordura abdominal interior, preditiva de risco cardiovascular. 243 ly mediated effect. Br Med J 2001; 323: 352-356 Lucas A. Role of programming in determining adult morbidity. Arch Dis Child 1994; 71: 288- 290 Lucas A. Early nutrition and later outcome. In Ziegler EE, Lucas A, Moro GE, (eds). Nutrition of the very low birth weight infant. Philadelphia: Nestec Ltd, Vevey/Lippincott Williams & Wilkins, 1999: 1-13 Michels K, Trichopoulos D, Robins JM, Manson JE, Hunter DJ. 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Videira Amaral Definição Considera-se hipertensão arterial (HTA) a situação clínica acompanhada de valores de pressão arterial sistólica ou diastólica correspondendo ao percentil 95 ou percentil >95 para a idade e o sexo, em 3 ocasiões diferentes. A chamda HTA limite corresponde às situações em que os valores da pressão arterial sistólica ou distólica correspondem ao intervalo entre os percentis 90 e 95 para a idade e sexo. A pressão arterial será considerada normal se os valores da pressão arterial sistólica e diastólica forem inferiores aos do percentil 90 para a idade e sexo. (ver parte Nefrologia). Os valores detectados deverão ser interpretados com base nos valores das tabelas de percentis (Quadros 1, 2, 3, 4). Aspectos epidemiológicos A hipertensão arterial (HTA)constitui um factor de risco idependente e importante para doença crónica do adulto, em especial para a DCV e para a doença vascular cerebral. Com efeito, a elevação de apenas 5mmHg na pressão diastólica resulta, respectivamente, em aumento de risco de DCV da ordem de 20% e de 35% para a doença vascular cerebral. Por sua vez, a HTA constitui ainda um factor de risco para doença renal terminal na idade adulta. Relativamente a dados epidemiológicos relacionados com este problema, cabe dizer que afecta mais de 60 milhões de de pessoas nos EUA e cerca de 1 milhão em Portugal. Em décadas anteriores a HTA em idade pediátrica era abordada apenas nas suas formas secundárias relacionadas com patologia renal, cardíaca ou endócrina. No entanto, estudos epidemiológicos recentes em várias regiões do globo, demonstraram que a chamada HTA designada por “essencial” ou não secundária é mais frequente que a secundária atingindo cerca de 2% da população pediátrica. Como a HTA essencial na criança e adolescente é habitualmente assintomática uma vez que os níveis tensionais se encontram apenas moderadamente elevados embora acima do percentil 95 para o grupo etário, o seu reconhecimento só é feito se a medição da pressão arterial passar a constituir um procedimento de rotina no âmbito do exame clínico de rotina ou exame de saúde. É importante acentuar que a HTA não reconhecida em idade pediátrica e, consequentemente não tratada, manifesta tendência para se manter durante a idade adulta; ou seja, a noção de estabilidade, ou tendência para a manutenção (tracking) aplicada às dislipoproteinémias em idade pediátrica aplica-se também a este problema clínico. Factores etiopatogénicos Admite-se hoje que a HTA essencial tem a sua origem na infância, sendo a sua etiopatogénese relacionada com factores hereditários,estresse, suprimento em sal e obesidade. A obesidade, por exemplo, é reconhecida como um dos mais importantes e idependentes factores de risco para a HTA em crianças a partir dos 5 anos, e com maior relevância a partir da adolescência. Outro factor de ordem ambiental implicado diz respeito à ingestão de sal na alimentação; de referir, a propósito, alguns estudos intervenção alimentar: a restrição de sal durante os primeiros 6 meses promove a descida dos valores de pressão sistólica. O potássio também actua na regulação da pressão arterial através da indução da natriurese e da acção sobre a renina, suprimindo a sua produção e libertação. Dados preliminares também constituem argumento para uma correlação inversa entre suprimento de cálcio no regime alimentar e pressão ar- CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 245 QUADRO 1 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos) Idade (anos) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Percentil Pressão arterial* 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 5% 97 101 99 102 100 104 101 105 103 107 104 108 106 110 108 112 110 114 112 116 114 118 116 120 118 121 119 123 121 124 122 125 122 126 Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg** 10% 25% 50% 75% 90% 95% 98 99 100 102 103 104 102 103 104 105 107 107 99 100 102 103 104 105 103 104 105 107 108 109 100 102 103 104 105 106 104 105 107 108 109 110 102 103 104 106 107 108 106 107 108 109 111 111 103 104 106 107 108 109 107 108 110 111 112 113 105 106 107 109 110 111 109 110 111 112 114 114 107 108 109 110 112 112 110 112 113 114 115 116 109 110 111 112 113 114 112 113 115 116 117 118 110 112 113 114 115 116 114 115 117 118 119 120 112 114 115 116 117 118 116 117 119 120 121 122 114 116 117 118 119 120 118 119 121 122 123 124 116 118 119 120 121 122 120 121 123 124 125 126 118 119 121 122 123 124 122 123 125 126 127 128 120 121 122 124 125 126 124 125 126 128 129 130 121 122 124 125 126 127 125 126 128 129 130 131 122 123 125 126 127 128 126 127 128 130 131 132 123 124 125 126 128 128 126 127 129 130 131 132 * Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura ** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento (Adaptado da DGS com autorização, 2007) Nota importante: Em clínica pediátrica é necessário dispor de braçadeiras/garrotes de diversas larguras a aplicar no braço em função da idade: – Lactentes: 2,5 cm; 1 - 4 anos: 5,6 cm; 5 - 8 anos: 9 cm; > 8 anos: 12 cm No que respeita ao comprimento da braçadeira, o mesmo deverá ser suficiente para envolver completamente o braço. Se a pressão arterial for determinada no membro inferior (coxa), pode utilizar-se a mesma braçadeira com o respectivo bordo inferior a 3-5 cm do cavado popliteu. 246 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos) Idade (anos) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Percentil Pressão arterial* 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg** 5% 10% 25% 50% 75% 90% 53 53 53 54 55 56 57 57 57 58 59 60 57 57 58 58 59 60 61 61 62 62 63 64 61 61 61 62 63 63 65 65 65 66 67 67 63 63 64 65 65 66 67 65 69 67 71 69 73 70 74 71 75 73 77 74 78 75 79 76 80 77 81 78 82 79 83 79 83 67 66 70 67 71 69 73 70 74 72 76 73 77 74 78 75 79 76 80 77 81 78 82 79 83 79 83 68 66 70 68 72 69 73 71 75 72 76 73 77 75 79 76 80 77 81 78 82 79 83 79 83 79 83 69 67 71 69 73 70 74 71 75 73 77 74 78 75 79 76 80 78 82 79 83 79 83 80 84 80 84 69 68 72 69 73 71 75 72 76 74 78 75 79 76 80 77 81 78 82 79 83 80 84 81 85 81 85 70 68 72 70 74 72 76 73 77 74 78 76 80 77 81 78 82 79 83 80 84 81 85 82 86 82 86 95% 56 60 61 65 64 68 67 71 69 73 71 75 72 76 74 78 75 79 76 80 77 81 78 78 80 84 81 85 82 86 82 86 82 86 * Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura ** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento (Adaptado da DGS com autorização, 2007) 247 CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil QUADRO 3 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos) Idade (anos) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Percentil Pressão arterial* 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg** 5% 10% 25% 50% 75% 90% 94 95 97 98 100 102 98 99 101 102 104 106 98 99 100 102 104 105 101 102 104 106 108 109 100 101 103 105 107 108 104 105 107 109 111 112 102 103 105 107 109 110 106 104 108 105 109 106 110 107 111 109 113 110 114 112 116 115 119 117 121 120 124 123 127 125 129 128 132 107 105 109 106 110 107 111 108 112 110 114 112 115 113 117 116 120 118 122 121 125 124 128 126 130 129 133 109 106 110 108 112 109 113 110 114 112 116 113 117 115 119 117 121 120 124 123 127 125 129 128 132 131 135 111 108 112 110 114 111 115 112 116 113 117 115 119 117 121 119 123 122 126 125 128 127 131 130 134 133 136 113 110 114 111 115 113 116 114 118 115 119 117 121 119 123 121 125 124 128 126 130 129 133 132 136 134 138 114 112 115 113 117 114 118 115 119 117 121 118 122 120 124 123 126 125 129 128 132 131 134 133 137 136 140 95% 102 106 106 110 109 113 111 115 112 116 114 117 115 119 116 120 117 121 119 123 121 125 123 127 126 130 128 132 131 135 134 138 136 140 * Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura ** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento (Adaptado da DGS com autorização, 2007) 248 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos) Idade (anos) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Percentil Pressão arterial* 90 95 90 95 90 95 90 5% 50 55 55 59 59 63 62 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 90 95 66 65 69 67 72 69 74 71 75 72 76 73 77 74 78 75 79 75 79 76 80 77 81 79 83 81 85 Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg** 10% 25% 50% 75% 90% 95% 51 52 53 54 54 55 55 56 57 58 59 59 55 56 57 58 59 59 59 60 61 62 63 63 59 60 61 62 63 63 63 64 65 66 67 67 62 63 64 65 66 66 67 65 70 68 72 70 74 71 76 73 77 74 78 74 79 75 79 76 80 76 81 77 82 79 83 81 85 67 66 70 69 73 71 75 72 76 73 78 74 79 75 79 76 80 76 81 77 81 78 83 80 84 82 86 68 67 71 70 74 72 76 73 77 74 79 75 80 76 80 77 81 77 82 78 82 79 83 81 85 83 87 69 68 72 70 75 72 77 74 78 75 80 76 80 77 81 78 82 78 83 79 83 80 84 82 86 84 88 70 69 73 71 76 73 78 75 79 76 80 77 81 78 82 78 83 79 83 80 84 81 85 82 87 85 89 71 69 74 72 76 74 78 75 80 77 81 78 82 78 83 79 83 80 84 80 85 81 86 83 87 85 89 * Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura ** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento (Adaptado da DGS com autorização, 2007) CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 249 terial: tal suprimento, conduzindo a maior teor em cálcio intracelular, tem influência na dimi-nuição do tono vascular e na resistência arteriolar. Outro aspecto – abordado no capítulo 45 – diz respeito à relação entre baixo peso de nascimento e HTA na vida adulta. Lurbe E, Sorof JM, Daniels SR. Clinical and research of ambu- Actuação Newman WP 3rd, Freedman DS, Voors AW, et al. Relation of latory blood pressure monitoring in children. J Pediatr 2004; 144: 7-16 McGill HC Jr, McMahan CA, Zieske AW, et al. Effects of nonlipid risk factors on atherosclerosis in youth with a favourable lipoprotein profile. Circulation 2001; 103: 15461550 serum lipoprotein levels and systolic blood pressure to O Programa –Tipo de Actuação em Saúde Infantil e Juvenil da Direcção Geral da Saúde recomenda a medição da pressão arterial a partir dos 4 anos, e a Academia Americana de Pediatria a partir dos 3 anos . Tal medição deverá ser levada a cabo com técnica e equipamentos adequados, tendo em conta, nomeadamente, a aferição dos aparelhos e a largura da braçadeira, esta útima devendo ser adaptada para cada idade. Em complemento do que é referido nas partes sobre Nefrologia e Nutrição cuja consulta se sugere, acentuam-se os seguintes pontos que fazem parte da actuação preventida. – restrição de sal no regime alimentar – prevenir e combater a obesidade – estimular o consumo de alimentos ricos em potássio – promover a actividade física – prevenir o baixo peso de nascimento BIBLIOGRAFIA Bartosh SM, Aronson AJ. Childhood Hypertension. An update on etiology, diagnosis, and treatment. Pediatr Clin North Am 1999, 46: 235-252 Direcção Geral da Saúde. Saúde Infantil e Juvenil. Programa – Tipo de Actuação nº12. Lisboa: DGS, 2002 Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al. American Heart Association guidelines for prevention of atherosclerotic cardiovascular disease beginning in childhood. J Pediatr 2003; 142: 368- 372 Kay JD, Sinaiko AR, Daniels RS. Pediatric hypertension. Am Heart J 2001; 142: 422- 432 Kliegman RM, Behrman RE, Jeson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007. Labarthe D. Nondrug interventions in hypertension prevention and control. Cardiol Clin 2002; 20: 249-263 Luepker RV, Jacobs DR, Prineas RJ, et al. Secular trends of blood pressure and body size in a multi- ethnic adolescent population: 1986 to 1996. J Pediatr 1999; 134: 668-674 early atherosclerosis:the Bogalusa Heart Study. N Engl J Med 1986; 314: 138-144 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw - Hill, 2002 250 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 47 DOENÇA ATEROSCLERÓTICA João M. Videira Amaral Importância do problema No âmbito das doenças degenerativas (DD), a doença cardiovascular (DCV) constitui a principal representante e, simultaneamente, a principal causa de morte no mundo, seguida da doença neoplásica e da doença vascular cerebral. Nos Estados Unidos da América(EUA) cerca de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de americanos vivem com alguma forma de DCV. A principal representante da DCV é a doença coronária cardíaca(DCC), clinicamente manifestada como angor pectoris, enfarte do miocárdio ou morte súbita.Outras formas de manifestação da DCV incluem a doença vascular cerebral e as vasculopatias renais e periféricas A causa básica é a aterosclerose. Em Portugal, no ano de 2003, registaram-se 106690 óbitos, correspondendo 38% dos mesmos a DCV, 20% a doença vascular cerebral e 9% a enfarte do miocárdio. As repercussões económicas deste tipo de patologia são preocupantes tendo em conta, designadamente, o seu elevado custo e o aumento crescente da sua incidência. Com efeito, no que respeita à prevenção e controle da mesma, não tem sido possível obter resultados tão bons como aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se pode explicar pela complexidade dos respectivos factores etiopatógenicos. De acentuar que os melhores resultados obtidos se relacionam com programas de intervenção incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de hábitos alimentares como sejam: combate ao sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto mais eficaz quanto mais precocemente tiver início. Tendo em conta que o estilo de vida e os hábitos alimentares se adquirem na infância, conclui-se que o pediatra (ou o clínico que presta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem uma grande responsabilidade na redução do impacte. Aterosclerose A aterosclerose é um processo crónico degenerativo e progressivo, caracterizado por depósito lipídico na íntima das artérias, de modo mais acentuado nas de calibre grande ou médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferiores, aorta,etc.). Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão endotelial vascular englobando, sob o ponto de vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas provocadas pela acumulação de gordura, precursoras das chamadas placas fibrosas que aparecem mais tarde. Tais lesões originam fenómenos obstrutivos vasculares com consequente isquémia nos territórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões renais, doença isquémica dos membros inferiores podendo evoluir para gangrena) manifestando-se na idade adulta; é igualmente possível o desprendimento de trombos de lesões vasculares ulceradas e/ou hemorrágicas. As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipoproteins na sua forma oxidada desempenham papel primordial na génese das estrias gordas, as quais poderão ser já evidentes em exames postmortem na íntima da aorta desde a infância. Stary encontrou também em exames postmortem lesões coronárias em 20% de crianças falecidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia há décadas, foram detectadas lesões do tipo descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%. Recentemente, em estudos realizados em adolescentes com valores elevados de colesterol no sangue,através de exames ecográficos foi possível demonstrar sinais de placas fibrosas nas carótidas em 10% dos casos. Mais recentemente, no âmbito dos estudos de Bogalusa em 1992, e no estudo PDAY (Pathobio- CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica logical Determinants of Atherosclerosis in Youth) em 2002, foram detectadas lesões ateroscleróticas na aorta a partir dos 3 anos de idade e nas coronárias na segunda década da vida, tendo sido possível relacionar o maior grau de défice da função endotelial com o mais baixo peso de nascimento. Actualmente chama-se a atenção para a importância das células progenitoras ou estaminais endoteliais que se formam na medula óssea, as quais têm potencialidades para reparar a parede endotelial quando esta é lesada. Através de técnicas especiais é hoje possível proceder à determinação quantitativa de tais células progenitoras, sendo de referir que indivíduos com mais elevado número de células progenitoras, em presença de factores de risco, têm maior probabilidade de manter a normalidade da função endotelial cardiovascular. Todos estes achados fundamentam, com consistência, a noção de que a aterosclerose é uma doença que tem início na idade pediátrica, apesar de habitualmente só ter expressão clínica na idade do adulto. Por consequência, a prevenção da aterosclerose e das suas complicações deve iniciar-se desde a idade pediátrica. Factores de risco Considerando factores de risco (noção decorrente de estudos epidemiológicos) as características identificáveis que, quando presentes, se associam a mais elevada incidência da doença, relativamente à aterosclerose foram estabelecidos os discriminados no Quadro 1 englobados, numa perspectiva prática, em factores modificáveis e não modificáveis; noutra perspectiva, a referida lista engloba factores genéticos e factores ambientais, interagindo entre si. Nem todas as crianças, com estrias gordas apenas, desenvolvem aterosclerose na idade adulta, do que resulta o papel de conjugação de outros factores. De facto, para além dos factores de risco clássicos, influências de tipo metabólico, infecção, inflamação, assim como a influência programada desde a vida fetal podem afectar a função endotelial vascular e o consequente desenvolvimento de aterosclerose. Serão abordadas, a seguir, as questões fundamentais relacionadas com os referidos factores 251 QUADRO 1 – Factores de risco de aterosclerose Não Modificáveis Hereditariedade Género Idade Raça Modificáveis Dislipoproteinémias Hipertenão arterial Tabagismo Obesidade Sedentarismo Estresse Diabetes Baixo peso de nascimento tendo em vista a intervenção aplicável na idade pediátrica susceptível de redução do impacte. Dislipoproteinémias As dislipoproteinémias são situações clínicas caracterizados por alterações do nível plasmático de colesterol total, (CT), triglicéridos, e das lipoproteínas habitualmente determinadas: LDL, VLDL, HDL, apo A, apo B, Lp (a). Os valores elevados de colesterol, principalmente do transportado pelas proteínas de baixa densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão associados a patogénese das estrias gordas e placas fibrosas (placa de ateroma). Diversos estudos epidemiológicos, experimentais, clínicos e de anatomia patológica, demonstraram uma relação entre coronariopatia, enfarte do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais elevados de colesterol, por sua vez em relação com suprimentos alimentares mais elevados de gorduras saturadas. Inversamente, foi demonstrado que os indivíduos com doença aterosclerótica e coronariopatia melhoravam com a diminuição dos valores de colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela comprovação de regressão do ateroma e da diminuição da mortalidade em 2% por coronariopatia, reduzindo em 1% o valor da colesterolémia, segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP). Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente agudo relacionado com caronariopatia de base é da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com valores elevados de colesterolémia (total > 300 mg/dl e colesterol LDL > 240 mg/dl), aumentan- 252 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do o risco para 50% aos 50 anos (consultar parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo). Noutros estudos concluiu- se que a redução em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40 anos se traduziu numa diminuição da incidência coronariopatia na ordem dos 50%. Acontece que as lipoproteínas circulantes na idade pediátrica tendem a manter-se com idênticos valores na idade adulta. É esta a noção de estabilidade ou de “tracking” empregando a terminologia muito corrente da língua inglesa. Nos estudos de Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) os valores de colesterolémia aferidos aos 20 anos constituem um factor preditivo de risco de coronariopatia entre os 50 e 60 anos; 2) 50% das crianças com valores de colesterolémia acima do percentil 75 evidenciavam hipercolestrolémia 10 a 15 anos mais tarde; 3) entre as crianças com valores baixos de colesterol HDL pelos 10-14 anos, cerca de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos mais tarde. No conjunto das dislipoproteinémias primárias, a capacidade aterogénica é variável entre as mesmas. 1. Rastreios Classicamente, em idade pediátrica, com o objectivo de identificar através do perfil lipoproteico os casos com maior risco de DCV, são descritos dois tipos de rastreio: o rastreio universal e o rastreio selectivo. – Rastreio universal Este tipo de rastreio está hoje abandonado. Era feito anteriormente nalguns países acompanhando o exame de saúde na data de entrada para a escola, entre os 4-7 anos, e não antes, tendo em conta as variações do colesterol total nos primeiros anos de vida. Valores de colesterolémia total > 200 mg/dl implicavam a determinação do perfil lipoproteico completo. Actualmente recomenda-se que em todos os indivíduos após os 18 anos de idade seja realizado o estudo do perfil lipídico. – Rastreio selectivo Neste tipo de rastreio procede- se à colheita de sangue em circunstâncias específicas discriminadas no Quadro 2 nas crianças a partir dos 2-5 anos conforme diversas escolas. Em geral, como primeira análise após jejum de 12 horas, determina- se a colesterolémia total; se os valores ultrapassarem 200 mg/dl, deverá pro- QUADRO 2 – Rastreio selectivo de dislipoproteinémias História familiar de: – Coronariopatia ou doença cerebrovascular antes dos 55 anos em progenitor ou avô – Hipercolesterolémia > 240 mg/dl em progenitor – Dislipoproteinémia primária em progenitor ou familiar – Morte súbita – História familiar desconhecida e/ou factores de risco associados Estilo de vida de risco da criança/adolescente: – Hábitos tabágicos – Sedentarismo – Obesidade – Hipertensão arterial – Fármacos com efeito dislipoproteinémico ceder-se ao estudo doutros parâmetros, designadamende colesterol LDL e colesterol HDL, triglicéridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp(a). Se valor de colesterol-LDL(C-LDL) for < 110 mg/dl a análise deverá ser repetida em função do contexto clínico, em geral 4-5 anos depois. Se C-LDL entre 110-130 mg/dl, a análise deverá ser repetida em função do contexto clínico para reavaliação. Se C-LDL > 130 mg/dl, está indicado regime alimentar restritivo e eventual farmacoterapia em função do contexto clínico conforme está especificado na parte XXXII. Nos casos com anomalias bioquímicas detectadas deverá ser estabelecido um esquema de vigilância periódica incluindo determinações do perfil lipoproteico cada 2 a 3 anos para além do esquema alimentar restritivo quanto a suprimento de gorduras e doutros tipos de intervenção referidos na parte Nutrição. A propósito do rastreio selectivo, cabe dizer que pelo critério “antecedentes familiares “ deixam de ser rastreadas 50% de crianças portadoras de dislipoproteinémias. Nos casos de hipercolesterolémia familiar homozigótica está indicado o rastreio no recémnascido (sangue do cordão umbilical). 2. Intervenção e recomendações Nos primeiros 2 anos não está indicada a restrição CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica 253 QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco Idades 12-24 M > 2-4 A 5-9 A 10-14 A 15-18 A Nº 23 57 83 59 10 Colesterol Total Média (DP) 185 (15) 173 (28) 174 (31) 180 (28) 172 (25) Colesterol LDL Média (DP) 102 (29) 97 (25) 102 (23) 103 (25) 99 (12) Triglicéridos Média (DP) 89 (33) 76 (32) 67 (22) 71 (44) 64 (32) Valores em mg/dl; DP = desvio-padrão A= anos; M= meses (JMV Amaral, 2005) no suprimento em colesterol tendo em consideração o crescimento rápido do sistema nervosos central e o facto de os lípidos constituirem o substrato essencial para a mielinização. Após este período etário há que respeitar as recomendações de consenso international publicadas por diversos organismos: (American Heart Association, American Academy of Pediatrics, ESPGHAN, etc.) referidas na parte Nutrição. De acordo com normas de actuação de consenso internacional são considerados ideais valores de colesterolémia total (CT) < 170 mg/dl e de C-LDL < 110 mg/dl, C-HDL > 35 mg/dl ( relação C-LDL/ C-HDL < 3.0 ) e de triglicéridos < 125 mg/dl. Reiterando o que foi já explanado são mencionadas as seguintes medidas dietéticas que interferem nos níveis plasmáticos de lipoproteínas: – As fibras, além de diminuirem a absorção do colesterol e de ácidos gordos saturados, competem com a síntese hepática de LDL; – As frutas e os vegetais, possuindo propriedades antioxidantes e preservando a estrutura e função do endotélio vascular, contribuem para prevenir a formação de placas de ateroma. Relativamente ao estilo de vida, deverão ser promovidas a actividade física de forma regular e contínua(30 minutos diários, pelo menos 5 dias por semana), a prevenção do consumo de álcool e de tabaco nos adolescentes como formas de prevenir e controlar as dislipoproteinémias. Os fármacos (estativas, colestiramina, etc.) são abordados a propósito das Doenças Hereditárias do Metabolismo. colaboração laboratorial do Departamento de Bioquímica da FCM/UNL em crianças da clínica privada e da consulta externa do Hospital Dona Estefânia (amostras de sangue obtidas na circunstância de existir prioritariamente a indicação de outros exames analíticos do sangue), foi encontrada uma prevalência de dislipoproteinémias primárias da ordem de 5%, na sua maioria hipercolesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203 crianças aparentemente saudáveis); havia antecedentes familiares de hipercolesterolémia em um dos progenitores em 26% dos casos. Noutra amostra constituída por 232 crianças aparentemente saudáveis de idade compreendida entre 12 meses e 18 anos e sem factores de risco cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, CLDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3 sobreponíveis aos valores de referência obtidos por outros autores. BIBLIOGRAFIA Austin MA, Hutter CH, Zimmern RL, et al. Familial Hypercholesterolemia and Coronary Heart Disease: A huge Association Review. AM J Epidemiol 2004; 160: 421-429 Berenson GS. Childhood risk factors predict adult risk associated with subclinical cardiovascular disease: the Bogalusa Heart Study. Am J Cardiol 2002; 90(suppl): 3L-7L Falkner F. Adult diseases arising during childhood. International Child Health 1995; VI: 93-98 Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al. American Heart Association guidelines for prevention of atherosclerotic cardiovascular disease beginning in childhood. J Pediatr 2003; 142: 368-372 Lee PJ. The management of familial hypercholesterolaemia in 3. Aspectos epidemiológicos Num rastreio oportunista por nós realizado com a chilhhood. Current Pediatrics 2002; 12: 104-109 Lloyd JK. Cholesterol: should we screen all children or change 254 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA the diet of all children. Acat Paediatr Scand (Suppl) 1991; 373:66-72 Raitakari OT. Arterial abnormalities in children with familial hypercholesterolemia. Lancet 2004; 363: 342-343 Stary HC. Lipid and macrophage accumulations in arteries of children and the development of atherosclerosis. An J Clin Nutr 2000: 72 (suppl):1297S-1306S Szamosi T (ed). Current Trends of the Prevention of Atherosclerosis in Childhood. Budapest: NRK Studio Bt, 1994 Wiegman A, Hutten BA, de Groot E, et al. Efficacy and safety of statin therapy in children with familial hypercholesterolemia. JAMA 2004; 292: 331-337 PARTE X Fluidos e Electrólitos 256 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 48 EQUILÍBRIO HIDROELECTROLÍTICO E ÁCIDO-BASE Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral Homeostase da água, líquidos e electrólitos Líquidos corporais, compartimentos e osmoles O organismo humano necessita de água e electrólitos para manter a sua actividade metabólica. Ao nascer , a água corresponde a cerca de 7580% do peso corporal, diminuido esta percentagem ao longo do primeiro ano de vida até 55% a 60%, semelhante à do adulto. A totalidade da água corporal distribui-se principalmente por dois espaços (E) ou compartimentos: o intracelular (contendo LIC ou líquido intracelular) e o extracelular (LEC). Ao nascer o LEC corresponde aproximadamente a 45% do peso corporal e o LIC a cerca de 35%. O LEC diminui rapidamente a partir da data do nascimento, ao contrário do LIC que vai aumentando, o que é relacionável com o crescimento celular; atingida a idade de 1 ano, a relação entre estes dois compartimentos, semelhante à que se verifica no adulto, passa a ser a seguinte: LEC 20% a 25% do peso corporal, e LIC 30 a 40% do peso corporal. O LEC compreende a água do plasma (cerca de 5% do peso corporal ) e o líquido intersticial (cerca de 15% do peso corporal). O volume de sangue (volémia) na criança em geral, sendo o hematócrito de de 40%, corresponde a cerca de 8% do peso corporal (ou 80 ml x peso corporal em kg); em termos comparativos, no recém-nascido prétermo e ou de peso inferior a 1500 gramas, a volémia corresponde a cerca de 10% do peso corporal. O LEC e o LIC têm composições diferentes. No LEC, entre os catiões predomina o sódio (Na+: cerca de 140 mEq/L), seguindo-se quantitativamente o potássio (K+: cerca de 4 mEq/L) ; entre os aniões predominam o cloro (Cl–: cerca de 104 mEq/L), seguindo-se o bicarbonato (HCO3–: cerca de 24 mEq/L), e as proteínas ou aniões orgânicos (Prot–: cerca de 14 mEq/L). No plasma a soma de catiões (154 mEq/L) deve ser igual à soma de aniões (154 mEq/L) para que seja mantida a neutralidade eléctrica. A este propósito é importante abordar sucintamente a noção de hiato iónico (aniões GAP) com implicação prática importante na interpretação de certas alterações do equilíbrio ácido-base; hiato iónico é a diferença entre o valor medido do catião Na+ e os aniões Cl– e HCO3–. Hiato Iónico = Na+ - [(Cl–) + (HCO–3)] (Normal: 4-11) Hiato iónico é igualmente a diferença entre catiões não medidos (k+, Ca++, Mg++) e aniões não medidos (albumina, fosfato, urato, sulfato). A situação de acidose metabólica (ver adiante) pode estar associada ou não a hiato iónico alterado, considerando valores normais os compreendidos entre 4 e 11. No LIC entre os catiões predomina o potássio (K+, cerca de 155 mEq/L) e entre os aniões (orgânicos): o fosfato (P–: cerca de 95 mEq/L) e as proteínas (Prot–: cerca de 65 mEq/L) (Quadro 1). Os dois subcompartimentos do EEC (de acordo com referido atrás o componente intravascular e o espaço intersticial), estão separados pela membrana capilar; esta possui características dialíticas, permitindo a livre passagem de água e solutos, permanecendo impermeável às substâncias de elevado peso molecular (proteínas). Estas localizam-se no espaço intravascular sem passar para o interstício, fixando a água e condicionando a distribuição de líquidos de acordo com a pressão oncótica e as leis de Starling. No que respeita à diferença de composição entre LEC e LIC quanto aos catiões K+ e Na+ , tal é explicável pela actividade energética duma bomba ATPase que promove, respectivamente, a entrada de potássio para o espaço intracelular e a saída de sódio para o espaço extracelular. Relati- CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 257 QUADRO 1 – Iões e compartimentos coporais Osmolalidade efectiva = 2 x [Na] + [Glucose]/18 Plasma Em situações de hiperglicémia, a qual é responsável por elevação da osmolalidade plasmática, ocorre movimento de água do espaço intracelular (IC) para o extracelular (EC) o que pode levar a hiponatrémia (de diluição). A magnitude deste efeito pode ser calculada através da fórmula: Catiões (mEq/L) Na+ K+ Ca++ Mg++ Aniões (mEq/L) Cl– HCO3– Proteínas Ác. Orgânicos HPO4= SO4= Plasma Líquido Líquido intersticial intracelular 140 5 5 4 138 8 8 6 9 155 4 32 100 26 19 6 2 1 119 26 7 6 1 1 5 10 65 – 95 2 vamente aos restantes iões, as diferenças relacionam-se com permeabilidade ou impermeabilidade da membrana celular aos mesmos. Como exemplos de situações que alteram o volume da água do plasma citam-se os que ocorrem mais frequentemente na prática clínica: desidratação, osmolalidade anormal do plasma, policitémia, anemia, insuficiência cardíaca, hipoalbuminémia, etc.. Como exemplos de situações que contribuem para aumentar o líquido intersticial, citam-se doenças acompanhadas de edema de diversas etiopatogenias: síndroma nefrótica, enteropatia com perda de proteínas, insuficiência cardíaca, insuficiência hepática, etc.. Existem diversos mecanismos que regulam a normal mautenção, quer da volémia, quer da composição dos LIC e LEC em electrólitos , quer da osmolalidade do plasma a qual deverá oscilar entre 285 e 295 mOsm/L. Tal corresponderá a densidade urinária de cerca de 1.010 ou osmolalidade urinária de 280- 310 mOsm/L (urina isotónica)*. A chamada osmolalidade efectiva (que corresponde à força osmótica que determina o movimento de água entre o espaço EC e o espaço IC) calcula-se através da fórmula: Conceitos fundamentais: • Osmolalidade – concentração de partículas osmoticamente activas existentes numa solução, expressa em osmoles por kg (ou por kg de água). • Osmolaridade – tensão osmótica expressa pela quantidade de moléculas-grama existentes num litro de solução. [Na] corrigido = [Na] valor laboratorial + 1.6 x ([Glucose] - 100 mg/dL)/100 O valor de [Na] corrigido constitui um achado mais representativo da verdadeira concentração de Na plasmático. Habitualmente a diferença entre a osmolalidade medida laboratorialmente e a calculada pela fórmula atrás referida não ultrapassa 10 mOsm/L; tal diferença permite definir o conceito de hiato (GAP) osmolar. Se o valor do hiato ultrapassar 10 mOsm/L existirá a possibilidade interferência de osmóis presentes “não medidos”; é o que acontece, por exemplo na intoxicação pelo metanol ou etilenoglicol. Os mecanismos homeostáticos que dizem respeito aos movimentos da água entre a célula e o espaço extracelular são regulados pela intervenção dum conjunto de processos integrando hormonas e outros componentes de características hormonais, os quais têm particularidades e limitações no recém-nascido (RN). Em tais mecanismos intervêm essencialmente: o rim e o sistema renina-angiotensina, o péptido natriurético e a hormona antidiurética (HAD). O rim e o sistema renina – angiotensina De modo sucinto, pode afirmar-se que o rim tem a capacidade de alterar a percentagem de sódio filtrado no glomérulo em função da taxa de reabsorção tubular. Com efeito, o aparelho justaglomerular produz renina como resposta à diminuição do volume intravascular; os estímulos da secreção da renina são: diminuição da pressão de perfusão ao nível da arteríola aferente do glomérulo, diminução do teor em sódio que atinge o túbulo distal, e a elevação do nível de agonistas beta-adrenérgicos como reacção à hipovolémia. A renina, enzima proteolítica, produz uma cli- 258 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA vagem da angiotensina, do que resulta o composto designado por angiotensina I que, por acção da enzima de conversão da angiotensina, se transforma em angiotensina II. A angiotensina II tem duas acções principais: estimulação da reabsorção proximal tubular de sódio e da secreção de aldosterona pela supararrenal; esta última, por sua vez, aumenta a reabsorção de sódio ao nível do túbulo distal. Péptido natriurético Este péptido, produzido no miocárdio auricular sempre que se verifica distensão da cavidade auricular, tem as seguintes acções: aumento da taxa de filtração glomerular, inibição da reabsorção tubular de sódio, o que tem como consequência facilitar o aumento da excreção urinária de sódio. Hormona antidiurética (HAD) A secreção da HAD aumenta como reacção à osmolalidade plasmática elevada; a consequência é maior reabsorção tubular de água e diminução do débito urinário. Em situações de diminuição acentuada da volémia verifica-se estimulação da HAD e da sede independentemente osmolalidade plasmática. Relativamente à manutenção da volémia, considerando que o sódio constitui o principal catião extracelular, praticamente confinado a este compartimento(LEC), pode inferir-se que, para a manutenção da volémia, se torna absolutamente necessário o suprimento em sódio dentro de determinados limites. Perdas e necessidades de fluidos (Manutenção) Na perspectiva da administração de água e electrólitos (fluidoterapia) e da garantia de manutenção das condições fisiológicas (homeostase), torna-se fundamental conhecer as respectivas necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas) e anormais. É igualmente importante reter as seguintes noções: 1 – o movimento e renovação (turnover) de água no organismo (entrada/suprimento e saídas/perdas) são, relativamente ao peso, tanto maiores e mais rápidos quando menor a idade a velocidade do crescimento; deduz- se que esta particularidade cria maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desequilíbrio em crianças mais pequenas; 2 – a água é fundamental para o crescimento; 3 – como resultado dos processos metabólicos produz-se água endógena; 4 – ao falar-se em necessidades em fluidos em termos gerais a noção de fluido (ou líquido) engloba igualmente os lípidos; de facto, se falarmos em necessidades hídricas (em água) os lípidos, que são anidros, ficam excluídos, tendo no entanto, impacte na volémia e hemodinâmica; este aspecto é importante em nutrição parentérica. Perdas As perdas habituais ou fisiológicas verificam-se principalmente através da pele e aparelho respiratório (perdas de água sem electrólitos por evaporação ou perdas insensíveis), urina (perdas urinárias) e fezes (perdas fecais). Em circunstâncias anómalas, para além destas perdas, há ainda que contar: com as chamadas perdas para o terceiro espaço (desvio de líquidos do espaço intravascular para o espaço intersticial); e com as perdas através de tubos de drenagem (por exemplo, torácicos, abdominais). Saliente-se que as perdas através da sudação não são consideradas perdas insensíveis: as perdas de água por evaporação não contêm electrólititos enquanto as perdas por sudação contêm água e electólitos. Sistematizando, apontam-se os seguintes valores: perdas insensíveis • 30 ml/kg/dia no lactente(valores superiores no recém-nascido, sobretudo se de muito baixo peso(inferior a 1500 gramas). • 12 ml/kg/dia na criança maior Como regra prática em função do contexto clínico: 0,5 a 1 ml/kg/hora. Situações como temperatura ambiente elevada (incremento de 12% por cada grau acima de 38ºC), taquipneia, traqueostomia, febre, fototerapia, etc. aumentam as perdas insensíveis; outras, como ambiente em incubadora com humidade relativa aumentada, diminuem tais perdas. Refira-se que as queimaduras aumentam as perdas, não só de água , mas de electrólitos. CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base QUADRO 2 – Composição aproximada de fluidos orgânicos em electrólitos Proveniência Suco Gástrico Suco Pancreático Intestino Delgado Bílis Fezes de Diarreia Normal Suor Fibrose quística Queimaduras 冦 Na+ mEq/L 20-80 120-140 K+ mEq/L 5-20 5-15 Cl– mEq/L 100-150 90-120 100-140 5-15 90-130 120-140 5-15 80-120 10-90 10-30 10-80 3-10 10-110 10-35 50-130 110-140 5-25 50-110 110-140 perdas urinárias • 2 ml//kg/hora (1 a 3 ml/kg/hora); cerca do 1 ano de idade: 400-500 ml/dia). perdas fecais • 5ml/kg/dia Em situações de diarreia tais perdas de água e de electrólitos aumentam significativamente. As perdas para o chamado “terceiro espaço” são difíceis de quantificar. Manifestam-se por edema e/ou ascite, podendo o clínico confrontarse com uma situação especial: sinais de hipovolémia e aumento do peso explicado pelo edema. O Quadro 2 discrimina o conteúdo em electrólitos de vários líquidos orgânicos, a considerar em caso de perdas anormais Líquidos de manutenção Tendo em consideração as perdas atrás referidas (perdas ordinárias), em condições de normalidade– criança apirética, em estado de normovolémia, sem que seja necessária compensação renal atrás descrita, produzindo urina isotónica (densidade ~1.010), as mesmas deverão ser compensadas (para que não se gere desequilíbrio) através do suprimento de líquidos e electrólitos (líquidos de manutenção). Para melhor compreensão do problema da fluidoterapia a realizar nos casos de desequilíbrio 259 (desidratação ou outros problemas), opta-se por considerarar a modalidade de manutenção de líquidos por via endovenosa . Para o cálculo do volume de líquidos de manutenção há que atender também ao consumo energético no pressuposto de que existe uma fonte endógena de água – a água resultante dos processos de oxidação celular) (ver parte Nutrição). Na prática, para atingir o referido equilíbrio, utiliza-se habitualmente a tabela de correspondência de Holiday e Segar em termos de necessidades em volume de líquidos de manutenção na base de 100 mL de água exógena por cada 100 kcal de energia despendida. O objectivo principal é manter a normovolémia. (Quadro 3). Por exemplo, no caso de uma criança que pese 14 kg, o cálculo será: 1000 mL para os primeiros 10 kg+ 50 mL/kg para os restantes 4 kg, ou seja, 200mL. O total será, pois, 1200 mL para um dispêndio energético de 1200 kcal/dia. Composição em electrólitos Com base em estudos empíricos, as necessidades em electrólitos a veicular em função do volume de líquidos atrás definido são assim estabelecidas: Por cada 100 mL de líquido administrado/ por 100 kcal despendidas: • Na: 2 a 4 mEq (em média, 3 mEq) • Cl: 2 a 4 mEq • K: 2 mEq À água que serve de veículo acrescenta-se 5 gramas de dextrose por cada 100 mL (dextrose a 5%), o que permite suprimento calórico suficiente para impedir o catabolismo proteico e a cetose. Em situações especiais utiliza-se a 10 %. Em suma, o modelo recomendado de solução a administrar por via endovenosa para a manutenção contém: quer Cl, quer Na → 20 a 40 mEq/L QUADRO 3 – Necessidades em volume de líquidos de manutenção Peso (kg) kcal ou mL/kg/dia 1-10 100 11-20 1000+50x(Peso Kg-10) 21-80 1500+20x(Peso Kg-20) mL/kg/hora ~4 40+2x(Peso Kg-10) 60+1x(Peso Kg-20) (100 mL/100 kcal despendidas) 260 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA (média 30 mEq/L); K→ 20 mEq/L; dextrose → 50 gramas/L. Na prática, trata-se dum soluto de “soro” fisiológico diluído a 1/5 (SF a 1/5) acrescentado de 20 mEq/L de cloreto de potássio(KCl). Uma vez que o Cl é também veiculado pelo “soro”, ou melhor, soluto fisiológico(NaCl a 9/1000 ou SF-isotónico), o conteúdo de Cl excede, de facto as necessidades; na prática, tal excesso face aos cálculos efectuados é irrelevante,sem qualquer implicação. O Quadro 4 resume vários tipos de solutos utilizados em fluidoterapia endovenosa. A obtenção de “soros” a 1/2, 1/3, etc., pode alcançar-se por simples mistura “soro” salino fisiológico a “soro” glicosado ou dextrosado a 5 ou a 10%. Por ser mais prático, utilizamos o soluto de cloreto de sódio a 20%, que adicionamos nas quantidades referidas ao soro glicosado. Assim: – Para obter soro a 1/2: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 22ml de soluto de cloreto de sódio a 20% – Para obter soro a 1/3: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 15ml de soluto de cloreto de sódio a 20% - Para obter soro a 1/5: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 9ml de soluto de cloreto de sódio a 20%. Equilíbrio Ácido – Base Fisiopatologia (Noções fundamentais) Tendo em conta o papel importante do pulmão e do rim na regulação do equilíbrio ácido-base, é importante recordar: – O conceito básico de pH: número que exprime o logaritmo do inverso da concentração QUADRO 4 – Composição de solutos utilizados em fluidoterapia endovenosa Na+ Cl– K+ Ca++ Lactato Osmolaridade SF 154 154 – – – 308 SF a 1/2 77 77 – – – 154 SF a 1/5 34 34 – – – ~60 Lactato de Ringer 130 109 4 3 28 271 Electrólitos e lactato em mEq /L; Osmolaridade em mOsm/L hidrogeniónica em hidrogeniões – grama/litro. (pH= log 1/[H+]) – O conceito de reacção de equilíbrio (anidrase carbónica) C02 + H20 ← → H2C03 → H+ +HCO–3 (A maior parte do C02 é transportado pelo sangue sob a forma de HCO–3, havendo apenas uma pequena porção de C02 livre dissolvido no plasma. – A equação do Henderson – Hasselbalch: pH = pH + log [H C0–3]/[PC02] O pH do sangue depende, em cada momento, da quantidade de base (HC0–3) e de C02 livre – As funções do túbulo renal • Proximal Reabsorção passiva da maior parte da água filtrada, do sódio, do potássio e do bicarbonato • Distal Reabsorção activa do sódio Concentração da urina Excreção de [iões H+] e acidificação da urina O pulmão, eliminando através da respiração o CO2, impede a acumulação de CO2 produzido pelo metabolismo normal do organismo. Assim, a hiperventilação promove a eliminação de CO2, assim como a hipoventilação contribui para diminuir a eliminação de CO2 aumentando a sua acumulação no organismo. Enquanto o pulmão regula o CO2, o rim regula a concentração de bicarbonato sérico por um processo em que simultaneamente, por um lado, os túbulos renais reabsorbem o bicarbonato que é filtrado no glomérulo e, por outro, os túbulos excretam hidrogeniões. Por sua vez, a excreção urinária de hidrogeniões gera bicarbonato que vai neutralizar a produção ácido endógeno. Assim, o aumento de CO2 (acidose respiratória) conduz ao aumento da reabsorção tubular proximal de bicarbonato, enquanto a redução de CO2 (alcalose respiratória) diminui a reabsorção tubular proximal de bicarbonato. Por outro lado, a perda excessiva de bicarbonatos pelas fezes em caso de diarreia pode condicionar acidose metabólica, secundariamente compensada por uma eliminação de CO2 (acidose metabólica compensada respiratoriamente). Neste caso a redução do pH sérico aumenta a frequência respiratória causando descida de CO2, condicionando, por outro lado, CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base subida compensadora de pH sérico. A subida de CO2 pode, assim, ser devida a uma alcalose respiratória primária, ou secundária a compensação respiratória por acidose metabólica. Por sua vez a compensação respiratória de uma alcalose metabólica primária traduz-se pela retenção respiratória de CO2. Num processo respiratório primário há uma compensação renal; com efeito, se se verificar acidose respiratória (hipoventilação), o rim aumenta a produção de bicarbonatos, enquanto numa situação de alcalose respiratória (hiperventilação), por ansiedade ou crise asmática ligeira, o rim excreta maior quantidade de bicarbonatos, reduzindo a concentração sérica de bicarbonatos durante cerca de 72 a 96 horas. Comparativamente, cabe referir que a compressão respiratória de processos metabólicos decorre em tempo mais curto: 12 a 20 horas. Na maior parte das situações surgem alterações de tipo misto; são exemplos a criança com displasia broncopulmonar, em que podem coexistir acidose respiratória (pela patologia pulmonar crónica) e alcalose metabólica iatrogénica secundária à utilização de furosemido (por falência cardíaca direita). Outro exemplo é o da sépsis, situação emergente, em que podem coexistir acidemia e acidose metabólica grave por acidose láctica devido a hipoperfusão, bem como, acidose respiratória por falência respiratória. Define-se acidose metabólica como diminuição do pH sérico (< 7.35) secundária a um aumento de hidrogeniões. Define-se alcalose metabólica como elevação do pH sérico (>7.42) secundária a excesso de bases. Os termos acidémia e alcalémia referem-se a anomalia bioquímica do pH em contraposição, respectivamente, a acidose e alcalose que traduzem o processo fisiopatológico subjacente. Por exemplo: a acidémia é sempre acompanhada de acidose; contudo, determinado doente pode apresentar acidose com pH normal se se tiver processado a compensação respiratória. Valores de referência no sangue (equilíbrio ácido-base,PCO2 e PO2). São descritos seguidamente os valores dos parâmetros classicamente considerados: 261 – Défice de base: RN: (-10) a (-2) mmol/L Lactente: (-7) a (-1) mmol/L Criança/adolescente: (-4) a (+3) mmol/L – Bicarbonato: 21 a 28 mmol/L (sangue arterial) 22 a 29 mmol/L(sangue venoso) – PCO2: 32 a 48 mmHg – PaO2 (sangue arterial): RN (1 hora - 1 dia): 55 a 95 mmHg Após período neonatal: 80 a 108 mmHg – pH: 7.34 a 7.46 262 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 49 DESIDRATAÇÃO AGUDA Mária do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral Etiopatogénese e manifestações clínicas Condições anómalas podem causar perda aguda excessiva para o exterior, ou desvio para espaço não funcional, de água e electrólitos, em proporções variadas (desidratação aguda). Exemplos: diarreia, vómitos, fibrose quística, golpe de calor, queimaduras, peritonite, ascite, etc.. De todas as etiologias referidas a mais frequente é a causada por diarreia. Para calcular o défice hidro-electrolítico a corrigir, ou o valor das perdas, é necessário avaliar o grau de desidratação de acordo com a semiologia clínica e a perda de peso (%): • Desidratação ligeira (3-5%) – frequência cardíaca normal ou aumentada, diminuição do débito urinário, secreção lacrimal mantida, observação clínica normal. • Desidratação moderada (6-10%) – taquicardia, diurese escassa ou ausente, olhos encovados e fontanela deprimida, diminuição de lágrimas, mucosas secas, prega cutânea moderada, pele fria e pálida, tempo de recoloração capilar aumentado e letargia ou irritabilidade. • Desidratação grave (> 10%) – pulso rápido e filiforme, pressão arterial diminuida, ausência de débito urinário, olhos e fontanela muito deprimidos, ausência de lágrimas, mucosas muito secas, prega cutânea marcada, pele fria e marmoreada (choque). Para o cálculo deste défice é, pois, fundamental, em primeiro lugar proceder à anamnese e ao exame objectivo; em casos especiais de interpretação mais difícil, de gravidade comprovada e/ou em regime hospitalar realizam-se determinados exames complementares. Saliente-se, no entanto, que a experiência clínica e a observação cuidadosa atendendo à valorização de determinados sinais clínicos poderá tornar dispensáveis os exames complementares, referidos adiante. A proporção relativa da perda de electrólitos e de água determina o tipo de défice e de desidratação. Este aspecto é importante, pois em função do referido tipo são adoptados procedimentos diversos relacionados com a composição dos solutos e a velocidade de administração: Hipotónica Na desidratação hipotónica há um desvio de água do compartimento extracelular EEC (intravascular) para o EIC, o que condiciona um agravamento da depleção intravascular e clínica exuberante de desidratação. Neste tipo o sódio sérico é inferior a 130 mEq/L e a osmolalidade sérica é inferior a 270). Os sinais clínicos são sobreponíveis aos da desidratação isotónica, embora mais notórios. Na hipotónica e na isotónica a desidratação é predominantemente extracelular. (Quadro 1). Hipertónica Pelo contrário, na desidratação hipertónica há um desvio de água do EIC para o EEC com a consequente preservação de volume intravascular, quadro clínico de desidratação menos exuberante, manutenção do débito urinário e pressão arterial até estádios mais avançados de desidratação. Neste tipo, a natrémia é superior a 150 mEq/L (osmolalidade sérica superior a 310), chamandose a atenção para os sinais clínicos diversos dos da desidratação hipotónica. Trata-se duma desidratação predominantemente intracelular com elevada morbilidade na ausência de tratamento correcto por exempo: trombose, hemorragia intracraniana, etc.. (Quadro 1) Isotónica Neste tipo, caracterizado pelos sinais e sintomas resumidos no Quadro 1 o sódio sérico encontra-se dentro dos limites da normalidade (Na+ : 130- 150 mEq/L) explicável por perda proporcional de água e de electrólitos. A osmolalidade sérica varia CAPÍTULO 49 Desidratação aguda 263 QUADRO 1 – Sinais e sintomas de desidratação Desidratação hipertónica Desidratação hipotónica Desidratação isotónica Perda acentuada de peso Irritabilidade Hipertonia / convulsões Meningismo Pele quente Fontanela deprimida/normal Língua muito seca (~”lixa”) Sede intensa Olhos pouco encovados Febre Perda de turgor ligeira Prega abdominal + Oligúria Escleredema Pressão arterial +/-mantida Respiração de Kussmaul Perda de Peso Prostração Perda de Peso Prostração Hipotonia muscular Pele acinzentada e fria Fontanela deprimida Língua pastosa Ausência de sede Olhos encovados Febre inconstante Perda de turgor acentuada Prega abdominal ++++ Oligúria Taquicardia Hipotensão acentuada Respiração de Kussmaul Choque Hipotonia muscular Pele pálida e fria Fontanela deprimida Língua seca Sede moderada Olhos encovados Febre inconstante Perda de turgor acentuada Prega abdominal +++ Oligúria Taquicardia Hipotensão Respiração de Kussmaul Choque N. B. Nos casos de obesidade é mais frequente a desidratação hipertónica: São importantes os sinais a pesquisar: – Olhos encovados – Mucosas secas – Turgor mantido (o tecido adiposo tem menor quantidade de água) Nos casos de subnutrição são importantes os seguintes sinais de desidratação: – Taquicardia (o subnutrido hidratado tem habitualmente bradicárdia) – Fontanela deprimida – Mucosas secas – Olhos encovados – Prega abdominal entre 270-300). Trata-se do tipo mais frequente (cerca de 85% dos casos). Na desidratação isotónica ambos os mecanismos descritos atrás estão presentes. De referir que a concentração de sódio sérico e a osmolalidade de sérica permitem, em princípio, determinar o tipo de desidratação. No entanto, se este facto se verifica na maior parte das patologias, tal não acontece nalgumas situações (por exemplo na cetoacidose diabética) em que ocorre desidratação hipertónica hiponatrémica (a hipertonia ou hiperosmolalidade é condicionada pela hiperglicémia e não pela hiper- natrémia). Este aspecto foi já focado anteriormente a propósito do papel dos osmoles. Outro exemplo é a insuficiência renal aguda em que se observa desidratação iso/hiponatrémica hipertónica condicionada pelos elevados níveis séricos de ureia. 264 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 50 REIDRATAÇÃO João M Videira Amaral, Maria do Carmo Vale e João Estrada Aspectos gerais O esquema terapêutico da desidratação (ou reidratação) é um processo dinâmico que implica vigilância constante ou frequente “à cabeceira do doente”, devendo, pois ser individualizado. A reidratação pode ser levada a cabo por via oral, por via endovenosa ou pelas duas vias em combinação. Em muitos casos poderá haver necessidade de modificação de estratégias inicialmente planeadas face à evolução clínica, o que é explicável: pelos mecanismos de compensação do organismo que variam em função da gravidade; pela possibilidade de, a partir de determinada fase, o doente passar a tolerar a administração de solutos por via oral (nos casos de ser ter iniciado a correção por via endovenosa), ou o contrário (nos casos em que a correção iniciada por via oral passar a ser inviável por diversos motivos). Numa primeira fase haverá que calcular o valor das perdas, ou seja, o défice em líquidos. Os exames complementares considerados essenciais são: ionograma sérico, (prioritário) determinação de ureia e creatinina no sangue, pH e gases no sangue, análise sumária de urina (densidade e osmolalidade) e hematócrito. Em casos especiais pode estar indicado o ionograma urinário de 12 ou 24 horas. Quantificação do défice Quantificando a desidratação pela percentagem de perda de peso relacionada com os sinais e sintomas atrás apontados são adoptados os seguintes procedimentos para reposição do défice: Défice entre 3- 5% Pode ser corrigido, em geral, com solutos por via oral e em regime ambulatório mantendo o regime alimentar habitual com algumas restrições (ver parte Gastrenterologia) Défice entre 6-10% Pode ser corrigido, em geral, com solutos por via endovenosa inicialmente, seguindo-se a administração ulterior de solutos por via oral, dependendo da tolerância digestiva (vómitos ou não). Défice superior a 10% Nesta situação acompanhada ou não de choque, há indicação de fluidoterapia endovenosa e de seguimento inicial no hospital. Para melhor compreensão do problema é descrita primeiramente, como modelo, a correcção por via endovenosa. Reidratação endovenosa 1ª Fase: reposição da volémia em situação de défice > 10-15% (choque) Trata-se duma actuação prioritária tendo em vista a preservação da função cardiovascular para garantia de eficaz da perfusão dos órgãos, com especial relevância para o encéfalo e rins. Actuação prática: solução isotónica (em geral “soro” fisiológico ou lactato de Ringer) ao ritmo de 10-30 mL/kg/hora; a duração desta fase, (entre 1 a 2 horas ) variará em função do contexto clínico, grau de desidratação e resposta inicial. No caso de se tratar de situação com predomínio de vómitos (por exemplo estenose hipertrófica do piloro com perdas de conteúdo gástrico, ácido), dada a probabilidade de surgir alcalose metabólica, não está indicado o lactato de Ringer que pode exacerbar esta última. 2ª Fase: reposição do défice de líquidos e electrólitos O plano de reposição do défice implica a obediência a um conjunto de princípios: administração concomitante, nesta fase, dos líquidos e electrólitos para a manutenção; reposição do défice em tempo a determinar, variando em função do tipo de desidratação; relativamente ao catião potássio (K+), predominantemente intracelular, a compensação / reposição das perdas não pode ser imediata pelos perigos que tal envolve: somente deverá 265 CAPÍTULO 50 Reidratação ser incorporado no soluto de manutenção após comprovação de diurese mantida respeitando certos limites no suprimento (não exceder 40 mEq/litro de solução nem 0,5 mEq/kg/hora). Tipo de solução Na prática utiliza-se soluto salino fisiológico (SF ou NaCl a 0,9%) diluído a 1/2 (o chamado “soro a 1/2”) contendo 77 mEq de Na e 77 mEq de Cl). Planos I) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes com peso < 25 kg – SF diluído a 1/2 em dextrose a 5% – Volume: correspondente ao défice(por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, será 1000 mL ); – Débito ou “velocidade” de administração: 68 horas (chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da resposta do doente e, eventualmente, modificação da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o défice; planeando para 8 horas, o débito será 125mL/hora; – Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao soluto na proporção, em regra empírica, de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções; Notas importantes: a) Este plano implicando, administração de “grande volume” de soluto em ritmo relativamente rápido não é aplicável em doentes com mais de 25 kg, adolescentes, desidratação com défice/perda de peso superior a 10%, com cetoacidose diabética nem com desidratação hipernatrémica. b) Com este plano, está implícita a estratégia de considerar a contabilização da necessidades de manutenção somente após a correcção do défice (no exemplo atrás referido, somente após as 6-8 horas, corrigido o défice após administração de 1000 mL); c) Na desidratação hiponatrémica poderá haver necessidade de administrar sódio extra (a acrescentar à solução atrás referida (SF diluído a 1/2) em função da natrémia entretanto determinada, aplicando a fórmula: Défice em sódio = (130 - Na sérico) x 0,6 x peso (em kg). Em lactentes com perdas de carácter grave, os défices prováveis, por Kg peso, são os descritos no Quadro 1. II) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes com peso ≥ 25 kg Como particularidade nesta situação, está implícita a estratégia de reposição do défice mais lenta, e de contabilização concomitante, já nesta fase, das necessidades de manutenção. – SF diluído a 1/2 em dextrose a 5% – Volume: correspondente a metade do défice acrescentado das necessidades de manutenção (por exemplo doente de 26 kg e desidratação <> 10%, será 2600 mL + 1620 mL ) (consultar Quadro 3 do capítulo 48); – Débito ou “velocidade” de administração: 68 horas(chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da resposta do doente e , eventualmente, modificação da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o défice; assim, o débito nas primeiras 8 horas será metade de 2600 mL, isto é 1300 mL, acrescentando-se, para as 16 horas seguintes (ou 24 horas menos 8 horas = 16 horas) os restantes 1300 mL aos cálculos da manutenção: (ou seja, 1300 mL + 1620 mL = 2920 mL) o que corresponde a um ritmo ou débito de 182 ml /hora. QUADRO 1 – Défices prováveis / kg de peso em lactentes com quadro de desidratação grave Desidratação Isótónica Hipertónica Hipotónica Vómitos (Estenose do piloro) H2O(mL) 100 – 120 100 – 120 100 – 120 Na (mEq) 8 – 10 2–4 10 – 12 K (mEq) 8 – 10 0–4 8 – 10 Cl (mEq) 5 – 10 (-2) a (-6) 10 – 12 100 – 120 8 – 10 10 – 12 10 – 12 266 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Alguns autores contabilizam o volume calculado para as 24 horas seguintes; no exemplo citado, para o volume calculado o débito seria, então 121,6 mL/hora. – Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao soluto na proporção, em regra empírica de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções; Notas importantes: Quer o plano I , quer o plano II poderão ser aplicados em casos de doentes com desidratação hipotónica ou isotónica em geral, mas não em crianças e lactentes com quadro de desidratação hipertónica. III) Desidratação hipertónica No caso da desidratação hipertónica a reposição do défice de líquidos e electrólitos tem particularidades relacionadas essencialmente com a necessidade de duração superior à referida para a forma iso-hipotónica;por outro lado, a particularidade de manifestação dos sinais subestima muitas vezes a gravidade da situação. Tratando- se duma forma de desidratação em que há predomínio de perda de água em relação ao sódio(Na) com consequentes hipernatrémia e hiperosmolaridade séricas, para a correcção não deverão ser utilizados solutos hipotónicos pelo risco de passagem rápida de água para o espaço intracelular, e de edema celular com implicações graves ao nível do sistema nervoso central (edema cerebral podendo originar, por exemplo, convulsões). Com efeito, neste tipo de desidratação predominantemente intracelular o encéfalo “gera” osmoles idiogénicos para manter o volume celular; assim, a correcção do défice deve ser realizada de modo muito lento. Na prática, e não existindo sinais de choque (cujo tratamento é prioritário e semelhante ao que foi referido noutras formas de desidratação), procede-se do seguinte modo: – Soluto: SF diluído a 1/2 em dextrose a 5% – Débito ou “velocidade” de administração sempre superior a 24 horas, dependendo da natrémia(Na em mEq/L): 145-157 → em 24 horas; 158- 170 → em 48 horas; > 170 mEq/L → superior a 48 horas. (Salienta-se que mais importante do que a com- posição do soluto é a lentidão da correcção do défice). – Volume inicial: correspondente a metade do défice, acrescentado das necessidades de manutenção (por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, com valor de natrémia de 160 mEq/L implicando reposição do défice em 48 horas, será : → 500 mL (metade do défice para as primeiras 24 horas + 1000 mL de soluto de manutenção); → a restante metade do défice nas restantes 24 horas (ou os restantes 500 mL do défice) + 1000 mL de soluto de manutenção (consultar Quadro 3 do capítulo 48); – Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar segundo a regra empírica de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções (diurese > 1ml/kg/hora); Complicações que podem ocorrer no contexto da desidratação hipernatrémica/hipertónica: – hipocalcémia; se fôr sintomática, deve proceder-se à sua correcção administrando gluconato de cálcio por via endovenosa com monitorização cardíaca (ver tratamento da hipocalcémia) sendo que na solução de gluconato de cálcio (Ca) a 10%: 1 mL <> 100 mg de gluconato de cálcio e 9 mg de Ca elemento <> 0,45 mEq de Ca++ ionizado; – acidose metabólica (ver tratamento da acidose); – hiperglicémia (relacionada com défice de secreção de insulina e diminuição da sensibilidade dos receptores celulares à mesma). Ao avaliar a taxa de declínio da natrémia, há que entrar em linha de conta com o efeito da hiperglicémia; ou seja, o valor de Na sérico/natrémia determinado é mais baixo que a “verdadeira natrémia” em cerca de 1,6 mEq/L por cada 100 mg/dL de glicémia acima de 100 mg/dL. Exemplificando: o valor de uma natrémia de 170 mEq/L determinada em situação de glicémia de 600 mg/dL corresponde, de facto, a um valor real de 178 mEq/L de Na sérico. Monitorização Sendo a reidratação um processo dinâmico, chama-se a atenção para a necessidade de vigilância permanente com avaliação dos seguintes parâmetros: – sinais vitais (frequência cardíaca/pulso, frequência respiratória, pressão arterial) CAPÍTULO 50 Reidratação – peso – temperatura corporal – balanço com registo de suprimento e de “saídas” de líquidos (fezes, urina, perdas insensíveis, líquidos de drenagem, perdas para o “terceiro espaço”) – natrémia, osmolalidade sérica, densidade urinária (elevada inicialmente entre 1020 e 1030) – eventualmente: azotémia, creatinina e hematócrito, etc.. Estes procedimentos têm em vista possível reajustamento do débito e do volume em cada 8, 12 horas e 24 horas em função do tipo de resposta do doente. O débito de administração deve ser ajustado de modo que se verifique diminuição da natrémia ao ritmo aproximado de 0,5 mEq/L/hora ou 12 mEq/L/dia (caso específico da desidratação hipertónica hipernatrémica). Em cada 24 horas, no mínimo, deverá proceder-se a nova programação de débito e de volume contabilizando as necessidades de manutenção. Concretizando com várias hipóteses: a) se o doente evidenciar taquicardia persistente mantendo-se os sinais de desidratação, o grau de desidratação poderá ter sido subavaliado inicialmente ou poderá haver perdas superiores às inicialmente previstas.Em tais circunstâncias o débito da administração deverá ser aumentado; b) se o doente melhorar rapidamente e a densidade urinária diminuir progressivamente, a fase da reposição do défice poderá ser encurtada, passando-se para 3ª fase. (ver adiante) c) se a natrémia (Na) diminuir rapidamente, diminuir o débito ou aumentar a concentração de Na no soluto; d) se o Na diminuir muito lentamente (< 12mEq/L/dia ou < 0,5 mEq/L/hora), diminuir a concentração de Na do soluto, ou aumentar o débito do mesmo. Salienta-se que as perdas, entretanto verificadas, deverão ser sempre contabilizadas ao longo do processo de correcção do défice. 3ª Fase: manutenção A abordagem desta fase considerada separadamente, por razões de melhor compreensão, da fase de reposição do défice, é aplicável nas situações de desidratação iso-hipotónica (plano I) 267 pois, de facto já foi feita referência à mesma a propósito das situações de desidratação hipernatrémica e de desidratação em casos de peso igual ou superior a 25 kg de peso. – Débito ou “velocidade” de administração: os cálculos são feitos tendo como base as necessidades em líquidos para 24 horas, contabilizando também, tanto quanto possível, as perdas para o “terceiro espaço”. – Soluto: soluto de manutenção (SF diluído a 1/5) em volume discriminado no Quadro 3 do capítulo 48, acrescentado de KCl na dose de 20 mEq/L desde que haja garantia de diurese mantida. – Duração: em função da situação clínica, iniciando-se, logo que possível em concomitância, a reidratação oral (ver adiante). – Particularidades: se as perdas para o terceiro espaço forem significativas e prolongadas, deverse-á determinar a composição em electrólitos das mesmas sendo necessário proceder à compensação em volume e em composição. Reidratação oral Indicações A reidratação com solutos por via oral está indicada nos casos de desidratação ligeira a moderada por diarreia aguda (desidratação correspondente a perda de menos de 10% do peso); por vezes, se a situação o permitir, poderá ser levada a cabo concomitantemente com a reidratação por via endovenosa, contabilizando com rigor o suprimento dos respectivos solutos. Contraindicações Esta modalidade de reidratação está contraindicada nas seguintes situações: desequilíbrios hidroelectrolíticos importantes, choque, sépsis, íleo paralítico, vómitos incoercíveis, perdas fecais superiores a 10 mL/kg/ hora, disfunção renal, alterações da consciência, idade inferior a 3 meses e falência de reidratação oral prévia. Fundamentação A base fisiológica que legitima a administração de soluções (água e electrólitos) por via oral relaciona-se com a verificação de que a absorção de água e sódio por via intestinal pode ser rendibilizada com a adição de glucose. 268 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA De acordo com estudos realizados demonstrou-se que as soluções de reidratação oral (SRO) podem corrigir com maior segurança a desidratação hipernatrémica do que os solutos por via endovenosa, havendo menor risco de convulsões. Preparados comerciais Existe grande variedade de preparados comerciais de soluções para reidratação oral (sigla ORS em inglês). A composição por litro (/L) é a seguinte: glicose /hidrato de carbono → 20 a 30 gramas; Na → 45 a 50 mEq; Cl → 35 a 80 mEq; k → 20 a 25 mEq; citrato → 30 a 34 mEq; e 200 a 330 mOsm; (ver parte XVI – Gastrenterologia, capítulo 107) Como particularidades há a salientar diferença entre a solução tipo OMS/UNICEF (cuja relação Na/K em mEq/L é 90/20) e a solução tipo ESPGHAN em que a mesma relação é 60/20. O soluto OMS/UNICEF foi inicialmente concebido para o tratamento de situações de cólera em África e países em desenvolvimento; daí o seu teor superior em sódio. No nosso meio (Portugal e países desenvolvidos sem aquele problema) estão mais indicadas as SRO com teor mais baixo em sódio; com efeito, a diarreia fora daquela situação é constituída por líquido hipotónico. Procedimento Na prática: – desidratação ligeira → alternar SRO com alimentação; – desidratação moderada → SRO na dose de 15-25 ml/kg/hora (1 a 2 colheres das de chá de 5 em 5 minutos) durante 4 horas, tentando realimentar por via oral (com leite materno ou fórmula) logo que possível. Em regra considera-se necessário o suprimento de cerca de 10 mL/kg por cada dejecção. Situações especiais Seguidamente são sintetizados aspectos semiológicos e os procedimentos a realizar perante as alterações mais frequentes do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base associadas, por vezes, a quadros clínicos de desidratação. Acidose metabólica na desidratação (hipertónica ou iso-hipotónica) Substituir parcialmente o soro fisiológico (Na Cl 0,9% em que 1 ml=0,154 mEq de Cl e 0,154mEq de Na+) por bicarbonato de sódio a 8,4% em que 1 ml=1 mEq de H– CO3 e 1 mEq de Na+). Aplicar as fórmulas: nº de mEq de H– CO3 a administrar: peso em Kg x Défice de Base x 0,3 (ou 0,5 se se tratar de recém – nascido). Se pH < 7.2: administrar 1/2 da dose calculada em injecção intravenosa (i.v). directa diluída como se referiu atrás e 1/2 em perfusão lenta a juntar à perfusão prescrita. Se pH > 7.2: 1/3 da dose em injecção i.v. directa diluída, e 2/3 da dose na perfusão que está a correr N.B. – Após correcção da acidose, administrar Ca++ (0,5 mEq/Kg/dia a dividir por 3 doses)=1 ml/Kg/dia de gluconato de cálcio a 10% – Nunca juntar no mesmo frasco bicarbonato de sódio com gluconato de cálcio a 10%. – O défice de base de 0 a 5 não necessita de correcção – A acidose metabólica pode ser acompanhada ou não de hiato aniónico alterado. – Na hipótese de hiato aniónico > 11 com clorémia normal há que admitir a possibilidade de acumulação de compostos tóxicos ácidos (por ex. ácidos orgânicos e respectivos metabolitos, ou de lactato e corpos cetónicos). – Na hipótese de hiato aniónico entre 4 e11 associado a pH urinário alcalino (na ausência de ácido láctico aumentado e de hipogliémia, há que admitir a probabilidade de acidose tubular renal. – Na hipótese de acidose metabólica não completamente esclarecida e acompanhada de hiato aniónico > 11, há que admitir a probabilidade de erro inato do metabolismo. Hiponatrémia (Na+ inferior a 130 mEq/l) a) de depleção (protidémia e hematócrito normais ou aumentados); perda de Na+ por: vómitos e/ou diarreia; pelo rim (causa renal – tubulopatia; – ou suprarrenal); ou pela administração de NH4 Cl. Sinais de desidratação. Procedimento: Para elevar a natrémia (Na CAPÍTULO 50 Reidratação QUADRO 2 – Diagnóstico de Síndroma de Secreção Inapropriada de Hormona Antidiurética (SIADH) • Osmolalidade urinária > 100 mOsm/Kg (em geral superior à sérica) • Osmolalidade sérica < 280 mOsm/Kg • Natrémia < 135 mEq/L • Natriúria < 25 mEq/L Ausência de insuficiência renal, suprarrenal, hipotiroidismo, insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica, cirrose, ingestão de diuréticos, desidratação ordem dos 10 mEq): P em Kg x0,6x10=nº de mEq de NaCl a administrar. b) de diluição (protidémia e hematócrito diminuídos); intoxicação pela água ou SIADH (síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética) (Quadro 2). • SIADH: coma, ausência de sinais de desidratação, convulsões ou letargia, ausência de edema); (intoxicação pela água: salivação, secreção lacrimal, vómitos, edema, convulsões). • Procedimento na SIADH: restringir líquidos; administrar sódio, sob a forma de NaCl isotónico (ou hipertónico se houver coma ou convulsões segundo a fórmula e esquema referido antes). • Procedimento na intoxicação aquosa: a) Manitol a 10%:10ml/Kg que pode ser repetido; b) Administrar Na+ segundo a fórmula atrás referida; em caso de convulsões, administrar NaCl a 3%, 1ml/min. até máximo de 12ml ou até que cessem as convulsões. Hipernatrémia sem sinais de desidratação ou intoxicação salina (Na+ superior a 150 mEq/L) Procedimentos: a) Diuréticos (Furosemido 0,51mg/Kg); b) Perfusão i.v. de dextrose a 5%; c) Administração de sais de potássio (K+); d) Eventualmente diálise peritoneal para natrémias superiores a 175 mEq/L. Hiperpotassémia (K+ superior a 6 mEq/L) As etiologias mais frequentes relacionam-se com: insuficiência suprarrenal (hiperplasia SR), suprimento em excesso, hemólise, hipotermia, acidose, etc.). Sinais: apatia, bradicárdia colapso, ondas T pontiagudas (Quadros 3 e 4). O procedimento é o seguinte: 269 • Lutar contra o choque hipovolémico quando presente; • Alcalinização rápida (Preferir HNa CO3 M/2, em que 1 ml=0,5 mEq de bicarbonato), dando 2 a 4 mEq/Kg/em 1 hora; • Dextrose a 30% - (40 a 50 ml em 1/2 hora) + Hidrocortisona (1 mg por cada grama de dextrose) + Insulina (I U. I. Por cada 5 gramas de dextrose); • Aspiração gástrica; • Resinas permutadoras; • Diálise peritoneal. N.B. No caso de estar em causa insuficiência suprarrenal, dar NaCl: 1g/Kg/dia + Hidrocortisona: 10mg/Kg/dia. Hipotassémia (K+ inferior a 3,5 mEq/L; grave se inferior a 2,5 mEq/L) As etiologias mais frequentes são: vómitos e/ou diarreia, tubulopatias, coma diabético, administração excessiva de fluidos endovenosos promovendo diurese excessiva e arrastando K+) (Quadros 3 e 4). • O aspecto clínico mais relevante da hipotassémia iatrogénica é a inoperância duma reidratação aparentemente correcta com persistência do desequilíbrio hidroelectrolítico. • Sinais de alerta: hipotonia, íleo paralítico, dispneia, taquicárdia, poliúria, diminuição da QUADRO 3 – Manifestações clínicas da hiper e hipotassémia Hiperpotassémia Apatia, torpor, obnubilação Formigueiros Pele pálida e fria Bradicárdia e arritmia Colapso periférico com tons cardíacos apagados Paralisia flácida dos membros (raramente) Síncope cardíaca Hipopotassémia Hipotonia muscular ou paralisia Dispneia e cianose Taquicardia Distensão abdominal, náuseas e vómitos Dilatação cardíaca, tensão venosa elevada Síncope cardíaca 270 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Alterações electrocardiográficas da hipo e da hiperpotassémia Hiperpotassémia ( > 6 mEq/L) Onda T pontiaguda Intervalo P-R alargado Ausência de onda P Alargamento do QRS Fibrilhação ventricular terminal Hipopotassémia ( < 3,5 mEq/L) Onda T de baixa voltagem Presença da onda U Depressão de S-T Achatamento da onda T com onda U proeminente Paragem cardíaca terminal amplitude até ao desaparecimento das ondas T, depressão negativa de ST, ondas U. • Procedimento: A correcção deve ser lenta, podendo durar 3 – 4 dias; a finalidade será obter potassémias de segurança (3,5 mEq/L), com vigilância seriada dos sinais do ECG. • Podem ser adoptados dois esquemas práticos: → Administrar K+ (KCl) na dose de 4 – 5 mEq/Kg/dia (ou 0,2 – 0,3mEq/Kg/hora em perfusão i.v. não ultrapassando 50 mEq/litro); abstenção de injecções directas de KCl com seringa. No caso de existir acidose hiperclorémica, optar por outro sal de K, v.g. acetato ou lactato de K; ou →Aplicar a fórmula seguinte para calcular a dose de KCl a administrar: KCl (em mg)=74,6 x (3,5 – potassémia do doente) x volémia Volémia = 80 ml x peso em Kg 1 mEq de K+ = 74,6mg de K N. B. – A hipotassémia impede a manifestação de tetania, inclusivamente com valores baixos de Ca++; o mesmo acontece em relação à acidose. Acidose respiratória O tratamento da acidose respiratória será primordialmente o da anomalia respiratória casual. Alcalose respiratória Não precisa de correcção por ser auto – limitada. Alcalose metabólica (pH > 7,5 e paCO2 entre 3050mmHg) • A substância acidificante mais utilizada é o NH4 Cl (solução a 9% (1/6 M) que contém 167 mEq de Cl– e de NH+4. Cada 1 ml/Kg faz baixar o bicarbonato de 0,5 mEq/L, e cada 2 ml elevam o Cl– plasmático em 1 mEq/L. • Precauções: contraindicação na insuficiência hepática; aumenta as perdas de K+; evitar que o Cl– ultrapasse 85-90 mEq/L. • Como alternativa ao NH4Cl pode empregarse KCl (3-5 mEq/Kg), até se obter urina alcalina (dado que na situação a corrigir existe acidúria paradoxal). Hipocalcémia pós – acidótica (convulsões, colapso, apneia, etc.). A normalização da acidose diminui a fracção ionizada do cálcio, o que determina a chamada “tetania pós – acidótica” • Tratamento de emergência: KCl (200-400 mg/Kg) e gluconato de cálcio a 10%, na dose de (2 ml/Kg) i.v. em 10 minutos; excepcionalmente, 5 ml de gluconato de cálcio a 10% + 5 ml de dextrose a 5% , i.v. directo, ao ritmo de 1 ml/minuto, com vigilância de ECG. • Dose de manutenção: 700 - 800 mg de gluconato de cálcio/kg/dia. • ECG nas hipocalcémias: aRat/RR superior a 0,50 (referências: vértices de R e de T). Aspectos importantes a considerar no tratamento da desidratação – No decurso duma desidratação é frequente verificar-se alteração transitória da função renal; assim, são frequentes os achados de hiperazotémia, albuminúria, glicosúria, etc.. – Se surgir hipo-osmolalidade urinária (traduzida por densidade inferior a 1005) associada a hipernatrémia (Na+ superior a 150 mEq/L), há que admitir poliúria insípida. – Admitir síndromas de perda de sal se natrémia inferior a 130 mEq/L com: • Natriúria superior a 20 mEq/L, pH urinário superior a 6, pH sanguíneo inferior a 7.2 (acidose) → provável uropatia/tubulopatia. • Natriúria inferior a 10 mEq/L, associada a hipotassémia → provável causa supra – renal. CAPÍTULO 50 Reidratação QUADRO 5 – Factores de Conversão Fósforo Magnésio Cálcio Unidade mg/dl mg/dl mEq/L mg/dl mg/dl mEq/L mg/dl Factor 0,32 0,41 0,50 0,82 0,25 0,50 0,50 Unidade mmol/L mmol/L mmol/L mEq/L mmol/L mmol/L mEq/L Nota: Os valores em unidades da coluna da esquerda são convertidos em unidades da coluna da direita multiplicando-os pelo factor de conversão; os valores em unidades da coluna da direita são convertidos em unidades da coluna da esquerda dividindo-os pelo factor de conversão. NB • A perda de sal de causa suprarrenal é mais frequente nos primeiros meses. • A perda de sal de causa renal é mais frequente após os primeiros meses, excepção feita para o chamado pseudo – hipo-aldosteronismo congénito. O Quadro 5 elucida de modo prático sobre a conversão de unidades mg/dl – mEq/L – mmol/L, relativamente ao cálcio, fósforo e magnésio. BIBLIOGRAFIA (capítulos 48 a 50) Berman S. Pediatric Decision Making. St Louis: Mosby, 2003 Burg FD, Polin RA, Ingelfinger JR, Gershon AA. Gellis& Kagan’s Current Pediatric Therapy. Philadelphia: Saunders, 2002 Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea. Current Paediatrics 2003; 13:95-100 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds). Nelson Texbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE (eds). Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics. Edinburg: Mosby Elsevier, 2007 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolphs’s. Pediatrics. New York: McGraw-EHill, 2002 271 PARTE XI Nutrição 274 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 51 NUTRIENTES Ignacio Villa Elizaga Importância do problema Considera-se alimentação adequada aquela que propicia os nutrientes que promovem o crescimento e o desenvolvimento adequados, nomeadamente do sistema nervoso, o que constitui garantia para a saúde e bem-estar da criança, adolescente e futuro adulto. O termo nutriente refere-se ao componente nutritivo do alimento, sendo este último definido como o composto ingerido; o alimento engloba, por sua vez, elementos nutritivos e não nutritivos. São consideradas sete categorias principais de nutrientes: 1. água; 2. energia; 3. proteínas; 4. hidratos de carbono; 5. gorduras; 6. vitaminas; 7. minerais (minerais major e oligoelementos ) O termo nutrição diz respeito ao conjunto de trocas que se verficam entre o organismo vivo e o meio que o rodeia. Com efeito, as crianças são mais vulneráveis aos estados de subnutrição do que os adultos por três razões fundamentais: a) mais baixas reservas de nutrientes, (e tanto mais quanto mais baixos forem o peso corporal e a idade) pelo risco de mais rápido esgotamento; b)maiores necessidades para o crescimento que é mais rápido, sobretudo no primeiro ano de vida (período em que o peso de nascimento triplica e o comprimento aumenta 50%); c) rápido desenvolvimento neuronal durante o último trimestre da gravidez e nos primeiros dois anos de vida pós-natal, sendo de salientar que a complexidade das conexões neuronais é extremamente vulnerável à subnutrição Os princípios da nutrição na actualidade repousam ainda numa certa base de empirismo e de hábitos transmitidos de geração em geração. De facto, é difícil ainda avaliar as possibilidades de adaptação e de compensação do organismo em desenvolvimento (regulada geneticamente) quanto à absorção, metabolismo e excreção de determinados nutrientes face à carência de outros. Por outro lado, as chamadas “curvas ou tabelas “ de crescimento concebidas matematicamente com base nos dados colhidos em grande número de indivíduos de determinada população e região, poderão não se aplicar com rigor noutra população com características e padrão nutricional diversos para avaliação da “normalidade” dos incrementos em peso, altura e outros parâmetros, o que constitui uma limitação. Talvez, num futuro próximo, os progressos da biologia molecular ajudem a compreender melhor a grande variabilidade dos mecanismos homeostáticos do metabolismo que expliquem, nomeadamente, as variações de susceptibilidade e de tolerância a carências e a excessos de nutrientes. Critérios para o cálculo de nutrientes As necessidades em macronutrientes (hidratos de carbono, lípidos, prótidos) e em micronutrientes (minerais e vitaminas) variam de indivíduo para indivíduo em função da idade, velocidade de crescimento, grau de actividade física e de factores genéticos interagindo com factores ambientais. O Food and Nutrition Board, a National Academy of Sciences e o National Research Council, produzindo ao longo dos anos um acervo de dados científicos sobre nutrição, determinaram as necessidades nutricionais adequadas de algumas substâncias susceptíveis de originarem, quando em défice, estados carenciais; de referir que os valores estabelecidos são periodicamente revistos. O mesmo Food and Nutrition Board publicou em 2004 os chamados “ valores de referência a utilizar para o cálculo do regime alimentar” (Dietary Reference Intakes ou DRI) relativos ao cálcio, fósforo, magnésio, vitamina D, flúor, folato e vitaminas do complexo B, restantes nutrientes, água e electrólitos e fibras. No conceito de DRI são abrangidos os seguintes parâmetros: • EAR (Estimated Average Requirement) – “necessidade média ou valor quantitativo estimado” significando o suprimento de determinado nutriente que satisfaz as necessi- CAPÍTULO 51 Nutrientes dades de 50% da população considerada saudável em relação aos critérios utilizados como referência. Dum modo geral são considerados os valores diários durante uma semana ou durante uma etapa concreta da vida. • RDA (Recommended Dietary Allowance) ou “suprimento nutricional recomendado” significando o valor quantitativo de determinado nutriente que satisfaz as necessidades da maioria 97% – 98% da população saudável. A relação quantitativa entre RDA e EAR é estabelecida pela seguinte equação: RDA = EAR + 2 DP(desvios-padrão). • AI (Adequate Intake) ou “suprimento adequado”. Nos casos em que não se dispõe de dados suficientes para calcular o EAR, emprega-se a AI para determinar o consumo médio de nutrientes (por ex., nos recém-nascidos a AI baseia-se no consumo diário de nutrientes de um lactente saudável nascido de termo e alimentado exclusivamente com leite materno); globalmente pode afirmar- se que a AI se baseia no suprimento diário de determinado nutriente em indivíduos saudáveis. De acordo com os peritos do organismo anteriormente referido foi recomendado que se empreguem as AI para todos os nutrientes em crianças com menos de 1 ano, e, para o cálcio, vitamina D e flúor, em todas as etapas da vida. • ULs (Tolerable Upper Limits) ou “limite superior tolerável“ do nutriente que não comporta risco de efeitos adversos em indivíduos saudáveis; ou seja, o risco de efeitos adversos e de toxicidade aumenta com o aumento de consumo do nutriente acima de tal limite. É provável que, com o desenvolvimento de estudos e o conhecimento de mais resultados, os EAR venham a substituir os RDA. • UL (Tolerable Upper Intake Level) ou “suprimento máximo tolerável“ significando o suprimento máximo diário de determinado nutriente que não origina efeitos adversos na quase totalidade de um grupo da população saudável. De acordo com as recomendações dos peritos internacionais em nutrição em idade pediátrica dos organismos atrás referidos assim como doutros (American Academy of Pediatrics/AAP, Food and 275 Agriculture Organization/FAO da Organização Mundial de Saúde), European Society for Pediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition/ESPGHAN) abrangendo estudos populacionais representativos de todas as partes do globo, na prática é recomendado que se utilizem quanto aos suprimentos em nutrientes, os critérios DRI ou RDA. Dado que para algumas substâncias essenciais ainda não se conhecem estes dados, poderá admitir-se que um regime alimentar variado seja a única forma prudente de as fornecer após o período da lactação. O leite humano parece fornecer todos os elementos essenciais durante um período prolongado. Ainda que alguns nutrientes essenciais devam ser incluídos no regime alimentar diário, outros são armazenados pelo organismo, podendo, por consequência ser administrados periodicamente. Necessidades nutricionais e recomendações 1. Água A água (o solvente do nosso organismo) é essencial para a existência, surgindo a morte por carência absoluta em número variável de dias. O conteúdo em água é maior nas crianças mais pequenas em relação às maiores e aos adultos - cerca de 75-80% do peso corporal nos recém-nascidos (RN) contra 55-60% nos adultos. A água corporal total distribui-se pelos seguintes compartimentos: intracelular(IC) e extracelular (EC); o EC, por sua vez, compreende o interstício e o plasma. No adulto as respectivas proporções são as seguintes: IC <> 2/3;EC<> 1/3. No EC: 3/4 <> ao interstício e 1/4 <> ao plasma. Na criança a água corporal está diferentemente distribuída. No recém- nascido o EC <> 45% do peso corporal e o IC<> 35%. Com a idade a proporção do IC vai aumentando e a do EC diminuindo, atingindo-se os valores semelhantes aos do adulto quando é atingido o peso de 15 kg (Ec<> 20-25%; IC<>30-40%. Embora os líquidos administrados constituam o principal suprimento em água, parte desta obtém-se da oxidação dos alimentos (os regimes alimentares mistos fornecem aproximadamente 12 gramas de H2O/100 Kcal) e, em caso de neces- 276 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA sidade, dos próprios tecidos corporais (fonte endógena: cerca de 5-10 ml/kg/dia). A oxidação de 100 gramas de gordura, de hidratos de carbono e de proteínas produz respectivamente 107, 55 e 41 gramas de água As necessidades de água dos seres humanos dependem do consumo de energia (calorias), das perdas globais de líquidos incluindo as perdas insensíveis, e do funcionamento renal, o que pode ser avaliado de modo sumário e fora de situações patológicas, pela densidade urinária. O valor de RDA para a água actualmente não está determinado, esperando- se no futuro que o Food and Nutrition Board defina o DRI. O Quadro 1 resume globalmente as necessidades em água no grupo etário pediátrico. O Quadro 2 resume as necessidades diárias de manutenção em líquidos aplicáveis na idade pediátrica. Recorda-se, a propósito, o que foi referido no capítulo 48 a propósito da terminologia água/hídrico versus fluidos/líquidos, assumindo relevância quando se trata de administração por via IV. O consumo diário de líquidos por parte do RN saudável equivale a 10-15% do peso corporal, em comparação com 2-4% no adulto. De referir que o alimento habitual dos recém-nascidos e crianças mais pequenas (o leite) tem um grande conteúdo em água (cerca de 89%) o qual aumenta para 95% como resultado da oxidação a que atrás nos referimos; a maior parte dos alimentos sólidos do regime alimentar duma criança contém cerca de 60-70% de água e, muitas das verduras e frutas cerca de 90%. A água absorve-se, em grau variável, em todo o trajecto do tubo intestinal. A quantidade de água que existe no compartimento intersticial muda com facilidade para manter o equilíbrio homeostático entre os compartimentos intracelular e vascular. As trocas de água entre estes compartimentos dependem das respectivas concentrações de proteínas e de electrólitos. Em função da velocidade de crescimento, fica “retida” no organismo um percentagem variável do suprimento em líquidos (entre 0.5-3%). Num “lactente de referência do sexo masculino”, a retenção de água varia entre 925 mL/24 horas durante o primeiro ano de vida. O equilíbrio hídrico depende de variáveis tais como o conteúdo de proteínas e minerais no QUADRO 1 – Necessidades de água Idade 3d 10 d 3m 6m 9m 12 m 2a 4a 6a 10 a 14 a 18 a Peso médio(kg) 3,0 3,2 5,4 7,3 8,6 9,5 11,8 16,2 20,0 28,7 45,0 54,0 Água (ml/kg/24 horas) 80-100 125-150 140-160 130-155 125-145 120-135 115-125 100-110 90-100 70-85 50-60 40-50 d= dias; m= meses; a= anos QUADRO 2 – Necessidades de líquidos /Líquidos de manutenção 1- 10 kg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 ml/kg 11-20 kg . . . . . . . .100 ml + 50 ml / cada kg acima de 10 21 kg e mais . . . 1500 ml + 20 ml / cada kg acima de 20 regime alimentar o qual, por sua vez, determina a carga de solutos a ser submetida a excreção renal, as taxas metabólica e respiratória, e a temperatura corporal. A osmolaridade do plasma traduz a osmolaridade do organismo a qual é mantida em valores da ordem de 287mOsm/L para que o volume celular se mantenha constante. O RN consome quantidades de água por unidade de peso corporal muito maiores que o adulto; contudo, fazendo os cálculos por unidade de ingestão calórica, as quantidades necessárias são quase idênticas . Como regra geral pode estabelecer-se que as necessidades são 60 ml/kg no primeiro dia de vida, atingindo-se 125-150 ml/kg/dia no 7º dia. No RN de muito baixo peso (RNBP ou de peso inferior a 2500 gramas) e idade gestacional inferior a 37 semanas em circunstâncias consideradas de estabilidade clínica, em crescimento, e de ambiente de termoneutralidade com uma humidade entre 50-80%, as necessidades oscilam entre 130- 180 ml/kg/dia para um suprimento energético de 130 kcal/kg/dia (ver adiante). CAPÍTULO 51 Nutrientes No período de recém- nascido as perdas fecais são escassas(5-10 ml/kg/dia) e as perdas insensíveis entre 30-60 ml/kg/dia. Por outro lado, mantendo o rim o equilíbrio hidro- electrolítico do organismo, o mesmo promove a excreção renal de água da ordem de 90 ml/kg/dia, variando a concentração osmolar e o volume de urina. A osmolaridade urinária máxima no RN é 600-700 mOsm/L, mais limitada que na criança maior. De referir que as necessidades de água para o crescimento nesta fase da vida são 10 ml/kg/dia, estabelecendo- se a relação de 1,5 ml de H2O por kcal consumida. 2.Energia Em metabolismo, a unidade de calor é a caloria grande ou kilocaloria (1 Cal= 1 Kcal); esta medida emprega-se para nos referirmos ao conteúdo energético dos alimentos. Uma kilocaloria definese como a quantidade de calor necessária para elevar a temperatura de 1 kg de água, de 14.5ºC para 15.5 ºC. A produção de calor por oxidação varia com os distintos alimentos. Ora, medindo-se a quantidade de O2 consumido, ou os produtos finais da oxidação (CO2+H2O), são obtidos valores sobreponíveis aos obtidos por calorimetria directa. O kilojoule é outra medida utilizada com a seguinte correspondência: 1 kilojoule = 4,2 kcalorias. As necessidades energéticas das crianças variam muito com as distintas idades e circunstâncias. Cerca de 50% da energia fornecida pelos nutrientes é destinada a cobrir as necessidades do metabolismo basal. Por cerca de 100 kcal ingeridas são produzidos cerca de 100 ml de água(água metabólica de acordo com o conceito atrás descrito). O crescimento origina um consumo de energia da ordem de 20-30 % da energia disponível. Tal consumo é directamente proporcional à velocidade de crescimento (mais elevado no primeiro ano de vida e, mais tarde, na adolescência) . A actividade física, em regra mais elevada na criança que no adulto, despende cerca de 10 a 25% da energia. No pequeno lactente o choro corresponde a um tipo de actividade física. A acção dinâmica específica (ADE) ou incremento do metabolismo por dispêndio de energia 277 acima dos valores basais originado pela ingestão, digestão e transporte dos nutrientes até à sua conversão final em ATP, corresponde a valores entre 5 a 10% da energia disponível. A ADE é mais elevada para as proteínas do que para as gorduras e mais elevada para estas do que para os hidratos de carbono. As perdas fecais correspondem a cerca de 8% da energia, fundamentalmente como gordura não absorvida. O metabolismo basal mede-se à temperatura ambiente (20ºC) entre 10 e 14 horas após uma refeição, com o indivíduo física e emocionalmente tranquilo. Para cada grau centígrado de temperatura o metabolismo basal aumenta aproximadamente 10%. Nos RN as necessidades basais correspondem aproximadamente a 55 kcal/kg/24 horas, diminuindo progressivamente para 25-30 kcal/kg/24 horas à medida que avança o processo de maturação. A digestão de proteínas pode elevar o metabolismo até 30% acima do nível basal excepto quando se verifica a sua deposição nos tecidos; por outro lado, as gorduras e os hidratos de carbono têm um efeito de “poupança” sobre a ADE das proteínas, produzindo incrementos mais discretos daquela, respectivamente 4% e 6 %. Nos RN a ADE corresponde a cerca de 7-8% do suprimento calórico, e a 5% nos lactentes e crianças maiores. O cálculo da energia necessária para formar tecido corporal (crescimento) obtém-se calculando a diferença entre as calorias ingeridas e as utilizadas para outros fins. Estudos populacionais realizados pela OMS/ FAO e outros peritos estabeleceram a seguinte relação de gasto ou consumo energético para o crescimento: 4,8 kcal – 5,6 kcal /grama de incremento de peso. As necessidades médias para a actividade física são cerca de 15-25 kcal/kg/24 horas com máximos até 50-80 kcal/kg/24 horas durante períodos curtos. Ainda que seja mais rigoroso calcular as necessidades calóricas a partir da superfície corporal do que em relação ao peso e à idade, o critério final para avaliar as necessidades na criança depende do modelo de crescimento, da sensação de bemestar que se verifique, e da saciedade. 278 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Relação de necessidades energéticas em kcal/kg/dia Idade 0-1 m 2-3 m 4-5 m 6-9 m 10-12 m 1-3 a 4-6 a 7-9 a 10-12 a 13-18 a adulto Suprimento energético (Kcal/kg/dia) recomendado (RDI) (*) 80-125 (110-165 no RN pré-termo) 90-116 84-103 84-95 93-101 90-110 80-90 70-80 45-70 40-60 40-50 m= meses; a= anos; RN= recém nascido (*) Em função da actividade (ligeira ou moderada) o coeficiente de variação é +- 20% De acordo com a OMS/FAO e estudos de peritos internacionais as necessidades energéticas em kcal/kg/dia são resumidas no Quadro 3. Globalmente, pode afirmar-se que as necessidades diárias após o primeiro ano de vida diminuem cerca de 10 kcal/kg por cada três anos. Nos períodos de crescimento e desenvolvimento rápidos em torno da puberdade, haverá que incrementar o consumo de calorias. Como regra geral é estabelecido que, por cada 100 kcal, devem ser fornecidos 120 ml de água. O Quadro 4 relaciona estados mórbidos diversos com variação das necessidades calóricas. A distribuição calórica de proteínas, gorduras e hidratos de carbono(percentagem do valor calórico total ou % VCT) no leite humano é semelhante à que se verifica na maioria dos leites industriais para lactentes num regime alimentar considerado equilibrado. Assim, considera-se regime equilibrado aquele em que cerca de 7-15% das calorias derivam das proteínas, 35-55% dos hidratos de carbono, e 3055% das gorduras. Na criança maior, 10-15% das calorias devem proceder das proteínas, 55-60% dos hidratos de carbono e, aproximadamente 30%, das gorduras. Cada grama de proteína ou hidrato de carbono ingerido proporciona 4 kcal. Um grama de ácidos gordos de cadeia curta proporciona 5.3 kcal; um grama de ácidos gordos de cadeia média gera 8.3 QUADRO 4 – Relação entre estados mórbidos diversos e variação das necessidades calóricas Estado mórbido Variação das necessidades calóricas Inanição -20 a + 20% Estado pós-operatório +10 a + 20% Fracturas/politraumatismo + 7 a + 25% Infecção sistémica grave +15 a + 50% Queimaduras do 3º grau com >20% de área da pele afectada +35 a + 100% kcal e 1 grama de ácidos gordos de cadeia longa, 9 kcal. Um suprimento calórico continuado superior ou inferior ao consumo do organismo conduzirá a que a gordura corporal aumente ou diminua. Em geral, um desequilíbrio calórico constante de 500 kcal/dia modifica o peso corporal na proporção de cerca de 450 gramas /semana. De referir que no primeiro ano de vida as curvas de referência baseadas em estudos de lactentes alimentados com leite materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida não se sobrepõem às baseadas em estudos de lactentes alimentados com leite industrial no mesmo período da vida, concluindo-se que as necessidades energéticas no primeiro caso-alimentação com leite materno- são inferiores (menos 10-25 kcal/kg/dia). 3.Proteínas As proteínas, (moléculas que contêm azoto e constituídas por unidades básicas chamadas aminoácidos) correspondem aproximadamente a 20% do peso corporal do adulto. Na idade pediátrica o processo de síntese e de proteólise estão aumentados, sendo que o processo de síntese predomina sobre o de proteólise com consequente acréscimo de proteínas que se traduz em crescimento e em balanço azotado positivo. Um dos mecanismos de regulação do metabolismo proteico depende da insulina que tem papel anabolisante contribuindo para o incremento de peso. No adulto saudável o balanço de azoto é nulo. Foram identificados 24 aminoácidos que são utilizados na síntese das proteínas; destes, 9 são essenciais (isto é, não sintetizados pelo organismo, CAPÍTULO 51 Nutrientes o que obriga ao respectivo suprimento no regime alimentar): treonina, valina, isoleucina, leucina, lisina, triptofana, fenilalanina, metionina e histidina .Para além destes, a arginina, a cistina, a taurina, a glicina e a tirosina são também essenciais para os recém-nascidos pré-termo. Como funções essenciais das proteínas cabe citar o seu papel no incremento ou formação de novos tecidos (massa magra), na função imunitária e no desenvolvimento de capacidades relacionadas com o comportamento. De salientar que não se pode formar tecido novo se todos os aminoácidos essenciais não estiverem presentes no regime alimentar ao mesmo tempo; ou seja, a ausência ou défice de apenas um aminoácido essencial condiciona um balanço nitrogenado negativo. As proteínas desdobram-se durante o processo digestivo em oligopéptidos e aminoácidos. O ácido clorídrico do estômago propicia o pH óptimo para a cisão dos péptidos através da acção da pepsina. A quimiosina transforma a caseína do leite em paracaseína a qual é hidrolisada pela pepsina juntamente com outras proteínas. As diversas proteases têm maior apetência para uniões peptídicas específicas; algumas provocam rupturas de uniões no interior da cadeia peptídica, e outras actuam em zonas de ligações mais terminais . No meio alcalino do intestino, a tripsina, a quimiotripsina e a carboxipeptidase do pâncreas hidrolisam estas proteínas e peptonas em péptidos e em alguns aminoácidos; outras peptidases dos sucos intestinais promovem a digestão até à fase de aminoácidos. Embora quantidades mínimas de certas proteínas se possam absorver “intactas” com é demonstrado através das reacções imunitárias, em condições ditas normais de maturidade do tubo digestivo, ou na ausência de patologia, são os produtos hidrolisados (aminoácidos) e alguns péptidos que se absorvem através da mucosa intestinal com a intervenção de transportadores específicos. Os oligopéptidos, de maiores dimensões, podem absorver-se durante os primeiros meses de vida ou na sequência de episódios de gastrenterite. Os aminoácidos são transportados ao fígado pela circulação portal e, a partir daí, são distribuídos pelos diversos tecidos. Os mesmos reorgani- 279 zam-se em forma de proteínas humanas funcionais (por ex. albumina, hemoglobina, hormonas) sendo que as porções nitrogenadas dos aminoácidos excedentários se convertem em ureia no fígado e se excretam pelo rim. A oxidação do carbono dos aminoácidos é muito semelhante à dos hidratos de carbono e à das gorduras, sendo alguns glucogénicos e outros cetogénicos. As proteínas não se podem armazenar de forma eficaz. Nas situações de carência proteica as proteínas dos músculos são destruídas para servirem de fonte de aminoácidos para utilização em zonas do organismo consideradas mais importantes, como o cérebro, ou para a síntese enzimática. As anomalias do metabolismo das proteínas e dos aminoácidos, que serão abordados noutro capítulo, constituem uma parte importante das entidades patológicas conhecidas vulgarmente por erros inatos do metabolismo. O suprimento nutricional recomendado para as proteínas em diversas idades tendo como base o teor em proteínas no leite humano, é inferior aos anteriormente divulgados pela OMS/FAO, com especial realce para o 1º ano de vida. De acordo com dados da National Academy of Sciences (NAS) foram etabelecidas em 2004 os seguintes valores em gramas/dia: 0-6 meses→ 9,1g/dia (AI) ou 1,5g/kg/dia; 7-12 meses → 11g/dia (RDA); 1-3 anos → 13g/dia (RDA); 4-8 anos → 19g/dia (RDA); 9-13 anos → 34g/dia (RDA); 14-18 anos→ 52g/dia (M) (RDA); → 46g/dia (F) (RDA). Quanto à EAR foram estabelecidos os seguintes valores: 7-12meses → 0,98g/kg/dia; 1-3 anos → 0,86g/kg/dia; 4-8 anos → 0,76g/kg/dia. Admitindo-se um coeficiente de variação de 12%, os valores referentes a RDA são obtidos multiplicando os de EAR por 1,24. A justificação para os valores mais baixos de proteínas actualmente recomendados tem a ver com o facto de ter sido demonstrado que nem todo o azoto não proteico é utilizado na síntese proteica, sendo de referir que o leite materno é muito rico em azoto não proteico. Por outro lado, também se demonstrou que se pode obter idêntica eficiência da utilização das proteínas do regime alimentar com suprimentos mais baixos que os anteriormente recomendados. 280 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA O chamado “valor biológico”(VB) ou “qualidade” das proteínas relaciona- se com o perfil de aminoácidos que as constituem. O mesmo indica a eficácia da sua utilização. Uma proteína de elevado VB deve conter, além dos aminoácidos não essenciais, todos os nove aminoácidos essenciais em proporção aproximada à existente em proteínas de referência (do ovo e do leite humano). Esta característica permite sintetizar, de novo, tecidos corporais com mínimo de resíduos de acordo com os estudos do balanço nitrogenado. Compreende-se, assim, que os suprimentos recomendados para o lactente alimentado com leite industrial (segundo a ESPGHAN: 1,8-2,8 g/ 100 kcal) sejam superiores aos que se verificam no lactente alimentado com leite materno. Nos países desenvolvidos o suprimento em proteínas é abundante, ao contrário dos países com escassos recursos; por conseguinte, da ingestão inadequada de proteínas em qualidade e quantidade poderão surgir diversos quadro clínicos patológicos. 4. Hidratos de carbono (ou glúcidos) Os hidratos de carbono dividem-se em dois grandes grupos: digeríveis e não digeríveis. Os hidratos de carbono digeríveis, para além de fornecerem a massa necessária para o regime alimentar, proporcionam a maior parte da energia necessária para o organismo. Na sua ausência, o organismo utiliza as proteínas e gorduras para obter energia. No entanto, a energia fornecida pelos hidratos de carbono a médio e longo prazo não pode ser substituída por energia obtida apenas através das fontes de gorduras e de proteínas. Na sua maioria de origem vegetal, com excepção da lactose, são armazenados fundamentalmente como glicogénio no fígado e nos músculos; provavelmente os hidratos de carbono não constituem mais do que 1% do peso corporal. Os hidratos de carbono oxidam-se sob a forma de glucose (dextrose), mas consomem-se de diversos modos: monossacáridos (glucose, frutose, galactose), dissacáridos (sacarose, lactose, maltose, isomaltose) e polissacáridos (amidos, dextrinas, glicogénio, gomas, celulose). As pentoses absorvem-se deficientemente. Mediante uma série de reacções enzimáticas e químicas no tubo digestivo, os hidratos de car- bono complexos são desdobrados em estruturas mais simples. As amilases salivar e pancreática desempenham um papel fundamental na decomposição do amido em oligossacáridos (dextrinas) e dissacáridos (fundamentalmente maltose). A amilase intestinal pode estar diminuída durante os primeiros quatro meses de vida. Os dissacáridos absorvem-se intactos através das células intestinais da “bordadura em escova” por acção das dissacaridases das microvilosidades as quais completam a hidrólise até monossacáridos: uma molécula de maltose transforma-se em duas moléculas de glucose; a sacarose, em glucose e frutose; a lactose em glucose e galactose. Os monossacáridos absorvem-se rapidamente; a glucose e a galactose são absorvidas em função de gradientes de concentração, enquanto a absorção da frutose é passiva. Durante a absorção, os radicais “transportadores” de ácido fosfórico unem-se às hexoses na mucosa intestinal para atravessar a membrana celular. Quando a concentração extra-intestinal de açúcar é baixa, é necessário que haja sódio para que continue a absorção. Estes fosfatos de hexoses voltam a separar-se nos seus componentes, permitindo que o açúcar se difunda na circulação sanguínea portal. Parte da glucose pode ser oxidada directamente, como ocorre no cérebro e no coração. A maior parte do açúcar absorvido converte-se em glicogénio, ainda que noutros tecidos também se verifique a glicogénese. Até cerca de 15% do peso do fígado e 3% da massa muscular podem ser constituídos por glicogénio, encontrando-se pequenas quantidades, inferiores àquelas, em todos os órgãos. A glicogenólise, que tem lugar no fígado, produz glicose como principal produto, ao passo que a decomposição do glicogénio nos músculos gera ácido láctico. A oxidação global da glucose tem duas fases: a anaeróbia(glucólise) e a aeróbia(ciclo dos ácidos tricarboxílicos). Na primeira, a glucose decompõe-se em ácido pirúvico; na segunda, o ácido pirúvico é completamente oxidado em CO2 e H2O. De referir que neste processo participam a insulina, e as hormonas hipofisárias e suprarrenais; nas reacções enzimáticas participam igualmente o ácido nicotínico, a tiamina, a riboflavina e o ácido pantoténico. Os hidratos de crbono que não se oxidam nem CAPÍTULO 51 Nutrientes se armazenam como glucose são convertidos em gordura. Os não digeríveis ou fibras alimentares (constituídos por polissacáridos e lenhinas) estão presentes nas paredes celulares de todas as plantas. Podem ser solúveis (por ex. pectinas, gomas, mucilagens, algumas hemiceluloses, farelo de aveia, cevada, legumes, etc.) e insolúveis (cuja principal fonte é constituída pelo invólucro dos grãos de sementes de cereais). Os chamados SCFAs (short chain fatty acids ou ácidos gordos de cadeia curta) são subprodutos da fermentação de hidratos de carbono não digeríveis que, ao nível do cólon estimulam a absorção de fluidos e electrólitos(sobretudo sódio); foi demonstrada uma acção trófica (através de factor de crescimento) ao nível do cólon. As principais anomalias do metabolismo dos hidratos de carbono (abordadas noutros capítulos) são a diabetes mellitus, as doenças por depósito de glicogénio(glicogenoses), a galactosémia, a intolerância à frutose e a intolerância à glucose. As situações clínicas associadas a défices de enzimas que promovem a degradação de açúcares no intestino(lactase, maltase, isomaltase) associamse a diarreia e má absorção, secundárias ao efeito osmótico do açúcar não absorvido, do que resulta fermentação dos hidratos de carbono pelas bactérias intestinais. (parte Gastrenterologia). O Quadro 5 discrimina as DRI para os hidratos de carbono em gramas/dia. 5.Gorduras As gorduras ou seus produtos metabólicos, eficientes reservas de energia, constituem parte integrante das membranas celulares cuja permeabilidade e fluidez depende das primeiras . Tais nutrientes dão sabor aos alimentos e servem de veículo para as vitaminas lipossolúveis como por exemplo a vitamina K. Aproximadamente 98% das gorduras naturais encontram-se na forma de glicéridos (ou seja, conjunto de três ácidos gordos naturais combinados com o glicerol). A parcela restante de 2% é formada pelos ácidos gordos livres, os monoglicéridos, os diglicéridos, o colesterol e outros compostos lipídicos como lecitina, cefalina, esfingomielina e cerebrósidos. As gorduras da natureza contêm ácidos gordos de cadeia linear, saturados e insaturados, com 281 QUADRO 5 – Suprimento de hidratos de carbono (gramas/dia) 0-6 m 7-12 m 1-3 a 4-8 a 9-13 a M F 14-18 a M F 60 (AI) 95 (AI) 130 (RDA) 130 (RDA) 130 (RDA) 130 (RDA) 130 (RDA) 130 (RDA) m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino (National Academy of Sciences, 2004) um comprimento em função do número de átomos de carbono, variando entre 4 e 24. O coeficiente de absorção parece depender do ponto de fusão, do grau de insaturação e da posição dos ácidos gordos na molécula de glicerol; ela é directamente proporcional ao número de duplas ligações (grau de insaturação) e inversamente proporcional ao número de átomos de carbono da sua cadeia. Os triglicéridos ingeridos são parcialmente hidrolisados pela lipase lingual e emulsionados no estômago. No duodeno a lipase pancreática promove a hidrólise dos triglicéridos formando monoglicéridos e ácidos gordos os quais, juntamente com os sais biliares constituem micelas, o que aumenta a solubilidade das gorduras. Os triglicéridos (e os diglicéridos) não cindidos são insolúveis. Como particularidade no recém-nascido de baixo peso refere-se a diminuição da quantidade de bílis e mais baixa taxa de absorção de gorduras. Provavelmente, os ácidos gordos de cadeia longa (ou long chain poly unsaturated fatty acids ou LC-PUFA) e os monoglicéridos (com mais de 10 átomos de carbono), convertidos em micelas, são absorvidos para o interior das células da mucosa intestinal por difusão. Para o transporte através da célula, estes ácidos gordos terão de ser esterificados de novo (ácidos gordos e monoglicéridos, em triglicéridos). Constituem-se, assim, depois, os quilomicrons, composto lipídico com uma parte interna com um invólucro membranoso. A parte interna inclui predominantemente triglicéridos e 282 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA pequenas porções de colesterol livre e esterificado,vitaminas lipossolúveis e outras substâncias lipossolúveis; o invólucro membranoso contém sobretudo fosfolípidos e proteínas designadas apoproteínas. Os quilomicrons sofrem processo de exocitose para o sistema linfático intestinal em direcção à circulação venosa por intermédio do canal torácico. As proteínas de transporte são proteínas de muito baixa densidade (VLDL – “very low density lipoproteins”, baixa densidade (LDL – “low density lipoproteins” e alta densidade (HDL – “high density lipoproteins”, sintetizadas no fígado. Os triglicéridos de cadeia curta e média seguem outro caminho; a lipase pancreática hidrolisa-os rapidamente para ácidos gordos livres os quais são transportados através da célula intestinal. De acentuar que quando a hidrólise no lume intestinal é inadequada por défice de lipase pancreática ou de sais biliares, estas gorduras são absorvidas e hidrolisadas para ácidos gordos livres dentro da célula por acção da lipase da mucosa. Estes ácidos gordos livres não são esterificados nem formam de seguida quilomicrons; outrossim entram directamente nas veias intestinais em direcção ao fígado pela via porta. Esta via alternativa para os triglicéridos de cadeia curta e média é aproveitada na administração de preparados a crianças com graves problemas de absorção. Há a salientar que ao nível do lume intestinal existe uma interacção entre cálcio e gorduras: maiores quantidades de cálcio comprometem a absorção de gorduras e vice- versa, pelo facto de se formarem sabões insolúveis. Constituindo o leite materno um modelo nutricional contendo cerca de 40-55% de lípidos como parcela do VCT, com um coeficiente de absorção de cerca de 90%, no primeiro ano de vida o suprimento recomendado em lípidos deverá contemplar aquela percentagem. De acordo com a National Academy of Sciences 2004 apenas foi determinado o suprimento (AI) de gorduras em gramas/dia até aos 12 meses: 0-6 meses → 31g/dia; 7-12 meses → 30g/dia. Far-se-á uma referência especial aos ácidos gordos essenciais e aos ácidos gordos trans. 5.1 Ácidos gordos essenciais Os ácidos gordos poli-insaturados (sigla interna- cional: PUFA ou poly-unsaturated fatty acids) denominam-se conforme a posição das duplas ligações. O átomo de carbono mais afastado do grupo carboxilo é o carbono omega ou n. Em nutrição infantil assumem grande importância os ácidos ácidos gordos omega ou n6 e omega ou n3 pelo facto de não serem sintetizados pelo organismo humano, obrigando ao seu fornecimento no regime alimentar (ácidos gordos essenciais). O ácido linoleico, o ácido araquidónico e o ácido docosapentanóico pertencem à série omega ou n6. O ácido linolénico, o ácido eicosapentanóico e o ácido docosa-hexanóico pertencem à série omega ou n3. O ácido araquidónico, que tem como precursor o ácido linoleico, é um importante constituinte dos fosfolípidos das membranas celulares e um precursor das prostaglandinas, prostaciclina, tromboxanos e leucotrienos. O ácido docosa-hexanóico é componente dos fosfolípidos das membranas celulares, dos fotorreceptores da retina e da substância cinzenta cerebral. Dum modo geral os ácidos gordos essenciais têm acção importante nos fenómenos de neurotransmissão, sendo necessários para o crescimento, o desenvolvimento cognitivo, a integridade da pele e do cabelo e a regulação do metabolismo do colesterol, diminuindo a adesividade das plaquetas. De acordo com as recomendações da ESPGHAN, para RN de termo não alimentados com leite materno, o suprimento em ácido linoleico deve constituir 4,5- 10,8% do VCT e o de ácido linolénico 0,5% do mesmo VCT, para garantir uma relação ácido linoleico/ácido linolénico média de 10/1 (com limites entre 5/1 e 15/1) É também recomendada a adjunção de LC (long chain) PUFA ou ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa tendo como modelo o leite materno respeitando a relação n-6/n-3 de 2/1 ou, respectivamente, 1%/0,5% do total de ácidos gordos. Nos regimes alimentares em que a % do VCT de ácido linoleico é inferior a 1-2% será necessário fornecer maior número de calorias totais para se obter crescimento comparável aos dos regimes com aquela percentagem superior. De referir que o excesso de ácidos insaturados aumenta a peroxidação, do que poderá resultar destruição das membranas celulares. 283 CAPÍTULO 51 Nutrientes Nos lactentes pequenos em fase de crescimento rápido submetidos a regimes com baixo conteúdo em ácido linoleico verifica-se o aparecimento de sinais cutâneos (intertrigo, secura e descamação na pele). O Quadro 6 discrimina as AI para o ácido linoleico e alfa-linolénico. 5.2 Ácidos gordos trans Os ácidos gordos trans formam-se como resultado da hidrogenação parcial dos óleos vegetais; desta transformação resulta modificação das características físicas (maior consistência). A isomerização trans dos ácidos gordos não saturados confere-lhes características semelhantes aos saturados; daí as suas desvantagens e riscos em termos de maior predisposição para aterogénese. 6. Minerais No recém-nascido o conteúdo mineral corresponde aproximadamente a 3% do peso corporal, aumentando ao longo da infância. Por cada grama de proteína retida armazena-se 0.3 gramas de matéria mineral. No fim da adolescência tal conteúdo corresponde a 4.3% do peso corporal distribuído, sobretudo, pelo esqueleto (cerca de 83%) e pelo músculo (cerca de 10%). O cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio constituem os principais catiões. O cloro, o fósforo e o enxofre constituem os aniões mais importantes. O ferro, o cobalto e o iodo formam importantes complexos orgânicos. Quanto a oligoelementos (por definição elementos cujo conteúdo no organismo constitui menos de 0.01% do peso corporal), destacam-se o zinco, flúor, manganês, cobre, cobalto, cromo (ou crómio), selénio e molibdénio com funções importantes em diversos processos metabólicos; com efeito, os mesmos são componentes de sistemas enzimáticos ou actuam como componentes de metaloenzimas, ou como cofactores de deter- QUADRO 6 – Suprimento de ácidos gordos essenciais (AI) (gramas/dia) Ácido Linoleico 0-6 m 7-12 m 1-3 a 4-8 a 9-13 a M F 14-18 a M F 4,4 4,6 7 10 Ácido Alfa-Linolénico 0,5 0,5 0,7 0,9 12 10 1,2 1 16 11 1,6 1,1 m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino (National Academy of Sciences, 2004) minadas enzimas. (Quadro 7) Nesta alínea referente a minerais será dada ênfase especial ao cálcio, fósforo, magnésio, ferro e flúor discriminando-se por fim, em quadro sinóptico, os principais sinais e sintomas de situações em que se verificam carências ou excessos de minerais. Relativamente ao cloro, sódio e potássio o Quadro 8 resume as RDA estabelecidas em mg/dia no primeiro ano de vida. 6.1 Cálcio A absorção de cálcio, que pode variar de 20 a 70% da quantidade ingerida, relaciona-se fundamentalmente com os níveis de vitamina D e de paratormona, podendo ser facilitada por certos factores como a presença de lactose, lisina, arginina e ácido ascórbico no regime alimentar, e pela acção dos sais biliares. Pelo contrário, a absorção pode diminuir com o suprimento excessivo de fosfato, oxalatos, e fibra, assim como em situações em que existe défice de absorção de gorduras. QUADRO 7 – Doses recomendadas de alguns oligoelementos* Idade Ferro (meses) (mg) 0-6 0,27 (AI) 7-12 10 (RDA) mg= miligrama; mcg= micrograma * Segundo a NAS, 2004 Zinco (mg) 2 (AI) 5 (RDA) Iodo (mcg) 110 (AI) 130 (AI) Selénio (mg) 15 (AI) 20 (AI) Cobre (mcg) 200 (AI) 220 (AI) Manganês (mg) 0,003 (AI) 0,6 (AI) Crómio (mcg) 0,2 (AI) 5,5 (AI) Molibdénio Flúor (mcg) (mg) 2 (AI) 0,01 (AI) 3 (AI) 0,25 (AI) 284 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 8 – Sódio, potássio e cloro (RDA em mg/dia) Idade (0-6 meses) (6-12 meses) Sódio 120 200 Potássio 500 700 Cloro 180 300 O leite materno fornece cerca de 300 mg de cálcio /dia com uma taxa de absorção de 75%; nos lactentes alimentados com leites industriais (fórmulas) tal absorção é inferior :cerca de 20-50%. De acordo com a NAS, 2004 a dose (AI) recomendada de cálcio a ingerir é 210 mg /dia no primeiro semestre e 270 mg/dia no segundo semestre. Entre o 1 ano e 9 anos as doses aumentam respectivamente de 500 mg para 700 mg e de 900 para 1000 mg dos 10 aos 16 anos. Em todas as idades não devem ser ultrapassadas as doses de 2500 mg/dia. 6.2 Fósforo Relativamente ao fósforo, as doses (AI) recomendadas pela NAS, 2004 são: 150 mg/dia dos 0-6 meses e 275 mg/dia dos 5-12 meses. A ESPGHAN (European Society for Pediatric Gastroenterology-Hepatology and Nutrition) recomenda suprimentos de 30 mg/100 kcal(20 mg/100 ml) e um máximo de 50 mg/100 kcal com uma relação Ca/P entre 1.2 e 2. Entre o 1 ano e 16 anos as doses sobem progressivamente para valores entre 300 mg/dia e 850 mg/dia. Os lactentes alimentados com fórmulas de alto conteúdo em fósforo, superior ao do leite materno(15 mg/100 ml), excretam grande parte deste mineral pela urina com consequente aumento da osmolalidade urinária. Por outro lado, um excesso de fósforo pode conduzir a hiperfosfatémia e, secundariamente, a hipocalcémia. 6.3 Magnésio As doses recomendadas de magnésio (AI) pela NAS, 2004 no primeiro ano de vida oscilam entre 30 mg/dia(0-6 meses) e 75 mg/dia (7-12 meses).Até aos 16 anos as doses (RDA) sobem progressivamente até 200 mg/dia. Salienta-se que, relativamente ao cálcio, fós- foro e magnésio, a inexistência até aos 12 meses de dados seguros quanto aos suprimentos RDA conduziu à substituição por suprimento AI. Após os 12 meses de idade apenas existem dados sobre RDA relativamente ao fosfro e magnésio. 6.4 Ferro Embora o leite humano e o leite de vaca contenham um fraco teor em ferro(respectivamente 0.50 mg/litro versus 0.25-0.75 mg/litro) a sua taxa de absorção é cerca de 50% no caso do leite humano, muito superior à que se verifica com o leite de vaca(7-15%). O leite humano pode cobrir as necessidades nas primeiras oito semanas de vida após gravidez de termo. No recém-nascido pré-termo há que ter em conta as reservas deficitárias que se esgotam quando duplica o peso de nascimento. Os lactentes entre os 4-12 meses absorvem, em geral, 0.8 mg/dia. Entre os 0-6 meses a criança necessita aproximadamente de 0,27 mg/dia (AI) (Quadro 7). Entre os 14 e 18 anos as doses recomendadas oscilam entre 10 e 12 mg/ dia. (RDA) 6.5 Flúor As DRI estabelecem a ingestão adequada (AI) baseando-se em quantidades que diminuem a incidência de cárie dentária e o suprimento máximo tolerável (UL) em quantidades que evitem a fluorose. Actualmente aconselha-se a suplementação em flúor nas doses indicadas no Quadro 9 tendo em conta a necessidade de ajustar as doses em função da água de consumo que é bebida na zona onde a criança vive. (ver parte – Estomatologia) 6.6 Zinco, Iodo, Selénio, Cobre, Manganês, Crómio e Molibdénio O Quadro 7 resume as doses recomendadas de ingestão (RDA e AI) destes minerais no primeiro ano de vida tendo como base o conteúdo dos mesmos no leite humano. 6.7 Carência e excesso de minerais O Quadro 10 resume os principais sinais e sintomas de carência e de excesso de minerais 7. Vitaminas As vitaminas são substâncias indispensáveis ao CAPÍTULO 51 Nutrientes 285 QUADRO 9 – Suplementação de flúor (mg/dia) de acordo com a idade e o teor em flúor na água de consumo público na zona onde a criança vive (ppm= partes por milhão) Idade 6 m-3 anos > 3-6 anos > 6-16 anos < 0,3 ppm 0,25 0,50 1,00 0,3-0,6 ppm 0 0,25 0,50 > 0,6 ppm 0 0 0 Obs.: 2,2 mg de fluoreto de sódio contém 1 mg de flúor. crescimento e ao funcionamento dos órgãos, fornecidas, na sua maior parte, em pequena quantidade pela alimentação, que o organismo não é capaz de sintetizar. Com actividades muito diversas, actuam em doses mínimas, participando como cofactores no metabolismo celular, na elaboração de hormonas e de enzimas,quer favorecendo a sua produção,quer entrando directamente na sua composição química. As vitaminas de origem alimentar classificam-se como: vitaminas lipossolúveis (A,D,E,K) e hidrossolúveis (vitaminas do grupo B e vitamina C). As necessidades de vitaminas foram estabelecidas no Codex Alimentarius. O Food and Nutrition Board, através das RDA (Recommended Dietary Allowances) em 1998 modificou as doses de ingestão respeitantes a vitaminas hidrossolúveis e vitamina D. Antes duma abordagem sucinta sobre as vitaminas hidrossolúveis e lipossolúveis é importante referir três noções importantes em Nutrição na idade pediátrica: • o leite materno é deficitário em vitamina D e em vitamina K nos primeiros dias; • a modalidade de fórmula adaptada (tópico a analisar em mais pormenor no capítulo 53) cobre as necessidades se o lactente receber como mínimo 750 ml por dia; • os suplementos vitamínicos são desnecessários a partir do primeiro ano de vida completo no pressuposto de que a alimentação variada cobre todas as necessidades. 7.1 Vitaminas lipossolúveis Vitamina D As principais acções bioquímicas (de tipo hormonal) são: a formação de uma proteína de ligação e de transporte do cálcio nas células epiteliais da mucosa duodenal; absorção do fósforo e a reab- QUADRO 10 – Sintomas e sinais de carência e de excesso de minerais – Alumínio (excesso: alterações do sistema nervoso central) – Boro (deficiência: anomalias de calcificação) – Cálcio (deficiência: tetania, osteomalácia; excesso: obstipação, bloqueio cardíaco) – Cloro (deficiência: alcalose) – Crómio (deficiência: diabetes em animais) – Cobalto (deficiência: carência de vitamina B12 e hipotiroidismo; excesso: cardiomiopatia) – Cobre (deficiência: anemia,osteoporose; excesso:cirrose) – Iodo (deficiência e carência: bócio) – Ferro (deficiência:anemia, alterações do comportamento; excesso: hemossiderose) – Chumbo (excesso: neuropatia) – Magnésio (deficiência:hipocalcémia, hipocaliémia) – Molibdénio (pouco conhecidos os efeitos de excesso ou de de deficiência) – Fósforo (deficiência: raquitismo; excesso: carência em cálcio) – Potássio (deficiência: fraqueza muscular; excesso: bloqueio cardíaco) – Selénio (deficiência: cardiomiopatia; excesso: alterações das unhas e cabelo, odor a alho) – Sódio (deficiência: hipotensão; excesso: edema) – Enxofre (deficiência: hipocrescimento; excesso: desconhecido) – Zinco (deficiência: hipocrescimento, dermatite; excesso: gastrenterite) sorção óssea. Estas acções dependem da paratormona e da ingestão de cálcio. De acordo com a NAS, 2004 foi estabelecida a ingestão recomendada (AI) de 200 UI/dia (5 mcg/dia de colecalciferol)) no pressuposto de que é insuficiente, ou se desconhece, ou não existe exposição à luz solar. O nível máximo foi estabelecido em 1000 UI /dia (25 mcg/dia de colecalciferol). 286 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A maioria das fórmulas contêm 1.5 mcg(60 UI) de vitamina D por 100 kcal (ou 10 mcg/Litro) Vitamina A A vitamina A (retinol,axeroftalmol) é um álcool de cadeia pesada que se encontra na natureza essencialmente sob a forma de ésteres de ácidos gordos; pode apresentar- se sob 16 formas isómeras; destas, o chamado retinol “all trans” é a forma biologicamente mais activa. A vitamina A somente se encontra em produtos de origem animal (óleo de fígado de peixes como pescada, bacalhau, atum, etc.). As pró-vitaminas(ou carotenóides, cujo representante principal é o beta-caroteno) encontram-se, sobretudo, em vegetais (cenouras, espinafres,couves), mas também em órgãos (como rim, fígado, baço). A bílis é indispensável para a sua absorção. A vitamina A desempenha um papel importante: na manutenção da integridade dos epitélios favorecendo a síntese de mucopolissacáridos e a secreção de muco; como indutor enzimático com especial relevância ao nível dos microssomas hepáticos; e na formação da púrpura retiniana ou rodopsina, receptor da luz para a visão de fracas intensidades(visão crepuscular). A dose diária recomendada de vitamina A (que é armazenada no fígado e requerendo uma proteína de ligação para circular )é 60 mcg de equivalentes de retinol (EAR) por 100 kcal (200 UI), sendo de referir que 1 mcg de retinol corresponde a 3.31 UI. Na prática considera-se: dos 0-12 meses → 400500 mcg/dia (AI); entre 1 e 18 anos → 300-900 mcg/dia (RDA). Vitamina K (naftoquinonas) Tem papel fundamental na coagulação do sangue contribuindo para a formação dos factores II, VII, IX, X, e das proteínas C, Z, S. Sintetizada pelas bactérias intestinais, a bílis é indispensável para a sua absorção. Ao contrário doutras vitaminas, as reservas e os níveis séricos de vitamina K dos recém-nascidos de mães bem nutridas são baixos. Nesta conformidade, constitui rotina a administração de vitamina K a todos os recém-nascidos no pós-parto (0.5-1 mg) para prevenção da doença hemorrágica do recém-nascido. Posteriormente aconselham-se doses (AI) de 2 mcg/dia até aos 6 meses e 2.5 mcg/dia até ao 1 ano. A partir desta idade as doses sobem progressivamente entre 30 e 75 mcg/dia até ao final da adolescência e idade adulta. A vitamina K está presente na maioria das fórmulas, não necessitando o lactente de suplemento. De referir que o teor em vitamina K no leite materno é inferior ao das fórmulas infantis. (ver capítulo 52). Vitamina E (tocoferol) É um vitamina antioxidante com papel importante na estabilização das membranas biológicas prevenindo a peroxidação dos ácidos gordos poliinsaturados. A sua absorção depende da acção da bílis e do suco pancreático. Os lactentes de termo requerem aproximadamente 0.7 UI de acetato de alfa-tocoferol (sendo 1 UI = 1 mg) por 100 kcal. As necessidades aumentam com a a administração de grandes quantidades de ácidos gordos poli-insaturados. Entre os 0-12 meses as doses (AI) oscilam entre 4 e 5 mg/dia. Entre o 1 ano e a idade adulta as doses (RDA) sobem proporcionalmente à idade entre 6 e 10 mg/dia. A vitamina está largamente distribuída nos óleos vegetais e nas sementes de cereais. 7.2 Vitaminas hidrossolúveis As necessidades em vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina) são resumidas no Quadro 11. Dum modo geral pode afirmar-se que as carências em vitaminas hidrossolúveis são raras em crianças alimentadas, quer com leite materno, quer com fórmulas. As vitaminas do complexo B são essenciais para o metabolismo das proteínas, gorduras e hidratos de carbono; actuam igualmente nas reacções de oxidação-redução, transaminação, descarboxilação, glicólise e hematopoiese. A vitamina C é absorvida por simples difusão. Quanto às acções bioquímicas, desconhecem-se os mecanismos exactos, sendo de salientar o seu papel no metabolismo da folacina, na biossíntese do colagénio, na absorção e transporte do ferro, e no metabolismo da tirosina. No leite materno existe quantidade de vitamina C necessária para cobrir as necessidades da criança durante o período de aleitamento exclusivo. 287 CAPÍTULO 51 Nutrientes QUADRO 11 – Suprimento diário (RDA) e (AI) de vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina) Idade Tiamina Riboflavina Niacina (meses) (mg) 0-6 (AI) 0,2 > 6-12 (AI) 0,3 (anos) 1-18 (RDA) 0,4-1,1 Vit. B6 Folato Vit. B12 (mg) 0,3 0,4 (mg) 2 4 (mg) 0,1 0,3 (mcg) 65 80 (mcg) 0,4 0,5 0,5-1,3 5-15 0,5-1,3 150-400 0,9-2,4 Ácido Biotina pantoténico (mg) (mcg) 1,7 5 1,9 6 2-5 (AI) Colina (mg) 125 150 8-30 (AI) 200-400 (AI) (NAS, 2004) Tendo em conta que o teor em vitamina C varia com o regime alimentar da mãe, é recomendado o suplemento de 35 mg/dia, durante o primeiro ano de vida e ulteriormente;saliente-se que as doses recomendadas para o adulto são cerca de 70 mg/dia (RDA/AI). Uma chamada de atenção para os riscos da ingestão de doses exageradas de vitamina C (500 mg–1500 mg) nos adultos (eventualmente extrapoláveis para a idade pediátrica) durante período superior a duas semanas: risco de nefrolitíase e de compromisso da absorção de vitamina B12, entre outros. 8. Carência e excesso de vitaminas O Quadro 12 resume os principais sintomas e sinais de carência e de excesso de vitaminas. BIBLIOGRAFIA Barness LA. Pediatric Nutrition Handbook. Illinois: American Academy of Pediatrics,1999 Bowman BA, Russel RM (eds). Present Knowledge in Nutrition. Washington DC: International Life Sciences Institute (ILSI) Press, 2007 Dewey KG, Peerson JM, Brown KH et al . Growth of breast fed infants deviates from current reference data. Pediatrics 1995;96: 495- 503 ESPGHAN Committee on Nutrition. Comment on the compo- QUADRO 12 – Sintomas e sinais de carência ou excesso de vitaminas Vitamina A (carência: pele áspera, xeroftalmia, cegueira, predisposição para infecções; excesso: dores ósseas, pseudo tumor cerebri) Vitamina D (carência: raquitismo, desmineralização óssea; excesso: obstipação, hipercalcémia, calcificações renais, insuficiência renal) Vitamina E (carência: hemólise no recém-nascido prétermo, neuropatia; excesso: interferência com o metabolismo da vitamina K predispondo a hemorragias) Vitamina K (carência: hipoprotrombinémia, hemorragias, hematomas; excesso: hemólise) Tiamina / vitamina B1 (carência : ataxia, beribéri) Riboflavina / vitamina B2 (carência: queilose, seborreia) Niacina / vitamina B3 ou PP (carência: pelagra ; excesso: rubor) Piridoxina / vitamina B6 (carência: convulsões, anemia; excesso: neuropatia) Biotina / vitamina B8 ou H (carência: dermatite) Folato (carência:anemia megaloblástica) Vitamina B12 / cianocobalamina (carência: anemia megaloblástica, acidúria metilmalónica) Vitamina C / ácido ascórbico (carência: escorbuto, gengivite ulcerosa, hemorragia subperióstica, rosário condrocostal, hematúria, etc.; excesso: nefrolitíase, compromisso da absorção da vitamina B12) sition of cow’s milk based follow-up formulas. Acta Paediatr Scand 1990;79: 250-254 FAO/WHO/UNO Expert consultation. Energy and protein requirements .WHO Technical Report Series 724. WHO: Geneva, 1985 Fomon SJ. Nutrition of normal infants. St Louis: Mosby, 1999 Gomes –Pedro J, Silva AC(eds). Nutrição Pediátrica-Princípios Básicos. Lisboa:ACSM/Mead Johnson Nutritionals, 2006 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson, HB Stanton BF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Leathwood P, Horisberger M, James WPT. For a better nutrition in the 21st century. Nestlé Nutrition Workshop Series(vol 27). New York:Raven Press, 1993 Rudolph CD, Rudolph AM(eds) . Rudolph’s Pediatrics. New York : Mc Graw-Hill, 2002 Shelov SP, Hannemann RE, Cook DE et al. Caring your baby 288 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA and young child (birth to age 5). New York :Bantam Books/American Academy of Pediatrics, 2003 Shils ME, Shike M, Ross AC, et al. Modern Nutrition in Health and Disease. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins, 2006. 52 ALIMENTAÇÃO COM LEITE MATERNO João M. Videira Amaral “O leite de mulher tem uma composição ideal: fornece cerca de 180 elementos em equilíbrio perfeito, fundamentais para o crescimento e desenvolvimento harmoniosos nos primeiros seis meses de vida” (Applebaum RM,1975) Importância do problema O aleitamento materno é uma função biológica que tem a mesma idade da própria Humanidade. Até aos finais do século XIX todas as mães amamentavam e a sobrevivência da criança estava na dependência absoluta deste tipo de alimentação natural; e, se a criança não tinha a possibilidade de sugar no peito da mãe ou da “ama”- como no caso da prematuridade extrema- era considerada inviável. Embora haja documentos comprovativos do uso de recipientes para alimentação com leite de outras espécies animais desde a antiguidade (História Egípcia, 2500 anos AC), a alimentação infantil com leite heterólogo teve pouco sucesso até ao fim do séc. XIX pela elevada incidência de infecções gastrintestinais e de perturbações nutricionais que comportava. A partir das duas primeiras décadas do séc. XX, coincidindo com enorme surto de desenvolvimento industrial e de tecnologias que permitiram, de modo progressivo, “imitar” quantitativamente a composição do leite humano a partir de modificações do leite de vaca, começou a verificar-se uma mudança radical no modo tradicional de alimentar a criança nos primeiros meses explicada pelo número crescente de mulheres trabalhadoras fora de casa. No entanto, a partir da década de 70 do séc. passado a situação em Portugal (e no 289 CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno mundo) inverteu-se por circunstâncias diversasdesignadamente pela legislação produzida propiciando maior disponibilidade da mãe por força da licença de parto, por campanhas a favor do aleitamento materno, e pelo papel desempenhado pelos profissionais de saúde chamando a atenção para as vantagens do leite materno, cada vez mais fundamentadas por estudos científicos. No estado actual dos conhecimentos considera-se situação ideal a que permite que o bebé seja amamentado exclusivamente nos primeiros 6 meses de vida; caso tal não seja possível, pelo menos nos primeiros 4 meses. Composição do leite materno Não cabe no âmbito deste livro uma análise pormenorizada da composição do leite humano; no entanto, de modo sucinto, pela observação do Quadro 1 pode concluir-se que existem diferenças qualitativas e qualificativas relativamente ao leite de vaca. Globalmente, o teor em proteínas e em minerais é superior no leite de vaca e o de hidratos de carbono é inferior. Por outro lado, é importante notar que a composição é variável desde o início ao fim da mamada e que existem também diferenças de composição comparando o leite da mãe que teve o parto de termo com a que o teve pré – termo. Com efeito, o leite materno pré-termo tem uma carga energética superior, teor superior em proteínas, sódio, cloro, e teor inferior em lactose relativamente ao leite materno de termo ou “maturo”. Embora tais diferenças que persistem durante o primeiro mês pós-parto sejam consideradas benéficas para todas as crianças nascidas prematuramente, após este período o referido leite humano pré-termo não satisfaz completamente as necessidades dos lactentes pré-termo em crescimento, nomeadamente no que respeita a proteínas, cálcio, fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vitaminas. Daí a necessidade de, em tais circunstâncias, o leite materno ser suplementado com “alimentos de reforço” ou “fortificantes. Para além dos nutrientes mencionados, deve salientar-se a presença doutros componentes como probióticos (sintetizando ácidos gordos ómega 3 com acção na função imunitária), prébióticos(induzindo a proliferação de bífidobactérias e de lactobacilos os quais bloqueiam a QUADRO 1 – Composição em nutrientes por litro Leite Humano Energia (Kcal) 670-740 Proteínas (g) 9 Gorduras (g) 45 Hidratos de carbono (g) 68 Lactose (g) 68 Minerais Cálcio (mg) 340 Fósforo (mg) 140 Sódio (mEq) 7 Potássio (mEq) 13 Cloro (mEq) 11 Ferro (mg) 5 Vitaminas A (UI) 1898 Tiamina (µg) 160 Ribofiavina (µg) 360 Niacina (mg) 1,5 Piridoxina (µg) 100 Ácido fólico (µg) 52 B 12 (µg) 0,3 C (mg) 43 D (UI) 22 E (UI) 2 K (µg) 15 Leite de Vaca 600-880 35 37 49 49 1170 920 22 35 29 5 1025 440 1750 0,9 640 55 4 11 14 0,4 60 Adaptado de Hambraeus L, 1977 adesão de bactérias patogénicas às células do endotélio intestinal), macrófagos, linfócitos, lactoferrina (com acção anti-infecciosa fúngica, vírica e bacteriana, antioxidante e antiproteases), lisozima, imunoglobulinas, factores de crescimento, hormonas, etc.. Muitos destes componentes têm, para além do efeito anti-inflamatório, de bloqueio de toxinas e de agentes microbianos, acção na modulação do desenvolvimento imunológico e na homeostase de tipo metabólico(por exemplo manutenção da euglicémia no lactente amamentado cujo risco de hipoglicémia nos intrevalos e entre refeições é vinte vezes menor do que nos lactentes alimentados com fórmulas). Vantagens O Quadro 2 é suficientemente elucidativo. De facto, não é apenas o aspecto nutricional que deve 290 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ser valorizado mas outros não menos importantes: está provado que a incidência de infecções e de problemas alérgicos, pelo menos enquanto a criança está a ser amamentada é, significativamente menor relativamente àquela alimentada com leite industrial. De salientar que o aleitamento materno constitui uma das quatro estratégias mais importantes da Organização Mundial de Saúde para melhorar a sobrevivência, sobretudo no primeiro ano de vida, com implicações óbvias nos países em desenvolvimento As vantagens do leite materno em relação aos leites industriais são mais difíceis de demonstrar nos países desenvolvidos, por um lado dada a impossibbilidade de levar a cabo estudos aleatorizados e, por outro, dada a existência dos chamados factores de confusão interferindo no significado dos resultados como a classe social, o nível educacional e os hábitos de tabagismo. Outro aspecto relacionado com as vantagens diz respeito ao desenvolvimento psicomotor e sensorial, sobretudo nas crianças com antecedentes de prematuridade tendo em conta o papel crucial dos ácidos gordos PUFA. A alimentação natural, por outro lado, associase a menor incidência futura de doença inflamatória intestinal e de diabetes mellitus, e de cancro da mama na lactante. As hipóteses de redução da incidência de transtornos alérgicos a longo prazo e de síndroma de morte súbita no lactente(SMSL) não se confirmaram em estudos realizados. Período pré-natal O acto de amamentar é um processo activo integrando dois participantes. Para que a alimentação ao peito venha a ter sucesso é fundamental que a mãe tenha sido motivada (e educada desde os bancos de escola) e não coagida. É igualmente de grande utilidade que a mulher neo – lactante obtenha os conselhos e apoio doutras mães com experiência para a resolução das primeiras dificuldades. Idealmente, a decisão de amamentar deverá ser tomada numa fase precoce da gravidez, período de extraordinária sensibilidade, pressupondose um esclarecimento prévio por parte do obstetra e outros profissionais desde a primeira consulta QUADRO 2 – Vantagens do aleitamento materno • Reforço da ligação afectiva mãe – filho (vinculação) • Menor incidência de infecções nomeadamente gastrintestinais (protecção imunitária) • Menor incidência de enterocolite necrosante e de doença inflamatória intestinal • Menor incidência de diabetes mellitus • Desenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental mais adequados • Maior economia • Condições de higiene mais seguras pré-natal e, se possível, antecedendo a gravidez. Idealmente, a decisão não deverá ser deixada para o período pós – parto. Tomada a decisão de amamentar, é fundamental realizar o exame das glândulas mamárias com o objectivo de detectar eventuais anomalias como por exemplo, mamilos invertidos ou retrácteis ou sinais de técnicas cirúrgicas já levadas a cabo anteriormente (como a mamiloplastia que poderá ter comprometido, quer as estruturas ductulares, quer as nervosas) as quais poderão contribuir para o insucesso da lactação. Embora ao pediatra, e médico de família não esteja classicamente cometido este papel, eles poderão de algum modo motivar, o obstetra, no sentido de o referido exame se concretizar, de modo sistematizado. Como deverá, então, ser feita a preparação do mamilo? Existem várias técnicas que poderão ser ensinadas à grávida; as mais práticas incluem: a) rolar os mamilos entre o polegar e indicador algumas vezes durante o dia; b) expor ao ar os mamilos durante alguns minutos; c) expressão diária de algumas gotas de colostro durante o último trimestre. Tais manipulações contribuem para alongar e tornar mais elástico o mamilo, constituindo implicitamente um treino da técnica de expressão manual que poderá ser usada mais tarde. Está desaconselhado o uso de tópicos irritantes como sabão e álcool que contribuem para secar a CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno pele e para o aparecimento de fissuras. A partir do 2º trimestre o sutiã deverá ser mole e confortável. É importante que o profissional de saúde incuta na futura mãe a noção de que o tratamento da mama não tem qualquer relação com a capacidade de amamentar. Caso tenham sido detectados no período pré – natal mamilos invertidos, há um certo número de medidas que poderão ser tomadas. As mais fáceis de executar constituem a chamada “manobra de Hoffman” que consiste em colocar dois dedos diametralmente opostos sobre as margens da aréola exercendo, depois tracção no sentido centrífugo, alternadamente, segundo os diâmetros vertical e horizontal. O objectivo desta manobra, a executar várias vezes por dia, e que poderá ser intensificada no 3º trimestre da gravidez, é desfazer as aderências da base do mamilo que contribuem para a sua umbilicação. Período intraparto O sucesso ou insucesso do aleitamento materno depende dum certo número de factores que estão discriminados no Quadro 3. Os factores que influenciam de modo mais negativo a amamentação são a rigidez de horários e a administração intempestiva de leite para lactentes(leite industrial/fórmula). Nesta fase, mais uma vez o profissional de saúde desempenha papel primordial quanto ao apoio e confiança que pode transmitir à mãe. Dado que os verdadeiros estímulos da secreção láctea são a sucção vigorosa e frequente, e o esvaziamento completo da glândula mamária, assume particular importância a aplicação da norma de rotina, em todas as maternidades de “pôr o RN ao peito, logo na sala de partos”, “ pele com pele”. De facto, essa atitude de a mãe ver e sentir o seu filho desde as primeiras horas estimula não só o vínculo mãe – filho, mas também permite uma ingestão mais precoce do colostro, facilitando a “subida do leite” e a eliminação do mecónio. Técnicas da mamada A posição (de conforto e de descontracção) que a 291 QUADRO 3 – Factores de sucesso e insucesso Factores de insucesso – Separação mãe – filho (pós parto e depois) – Horário rígido – Suplementos de leite industrial (intempestivos) – Biberão de noite – Oferta de leite industrial (amostras) antes da alta – Não esclarecimento prévio da mãe – Não respeito pela opção da mãe; a mãe poderá eventualmente(e raramente) não desejar amamentar; haverá que respeitar tal opção Factores de sucesso – Técnica correcta de amamentação – Transmissão de confiança à mãe – RN ao peito na sala de partos (pele com pele) – Verdadeiros estímulos: sucção vigorosa e frequente/ esvaziamento da glândula mamária – Horário livre mãe deve adoptar durante a mamada é a seguinte: sentada sobre almofada mole e estável, apoiando os pés num pequeno banco a poucos centímetros do chão. O braço que sustem a cabeça da criança deve também assentar sobre uma superfície mole (por exemplo, uma pequena almofada). A cabeça da criança deve ficar no alinhamento da glândula mamária com a face voltada para a mãe. Com a mão livre, a mãe comprime com dois dedos o bordo da aréola procurando tornar o mamilo mais procidente de forma que a criança introduza na boca(bem aberta com o lábio inferior dobrado bem para fora) não só o mamilo mas também a aréola. A posição da boca da criança deve ser tal que a porção superior da aréola deve ficar mais visível que a sua porção inferior. Assim sendo, as fossas nasais ficarão livres do contacto com a pela da mama e a respiração processar-se-á normalmente. Para desencadear o reflexo da sucção a mãe deve passar o mamilo sobre os lábios do bebé procurando não o introduzir bruscamente na boca. Durante a estadia na maternidade a mãe poderá dar de mamar deitada, colocando-se em decúbito lateral; a posição da mãe e bebé dverá ser ajustada de modo que a criança e peito do mesmo lado fiquem em plano superior. 292 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA No fim da mamada (e ainda com o mamilo + aréola dentro da boca da criança) neutralizar de modo progressivo o vácuo bucal criado; contribuindo para que se evite o traumatismo do mamilo por repuxamento brusco e intempestivo do mesmo no fim da mamada. As alterações do mamilo, nomeadamente do mamilo invertido impedindo a penetração deste e da aréola na boca, dificultam a sucção e provocam ingurgitamento dos seios com maior probalidade de fissuras por traumatismo. Esquema de amamentação O Quadro 4 resume os aspectos fundamentais do esquema prático da amamentação. Nunca será de mais repetir: a) que o horário rígido deve ser desencorajado e que a preocupação inicial no pós – parto é, não propiciar calorias, mas estimular a sucção; b) que o RN deve estar sempre junto da mãe Classicamente aconselha-se “dar” em cada mamada os dois peitos, começando de um lado e terminando no outro; na mamada seguinte o peito a ser dado em primeiro lugar será o que foi último na mamada anterior. São desaconselhadas as mamadas prolongadas que contribuem para maceração do mamilo e formação de fissuras. Após a “subida do leite”, está provado, nos bebés de termo, saudáveis e vigorosos, que a sucção a ritmo rápido(de 1 sucção por segundo), em 5 – 7 minutos permite a extracção de leite para as necessidades, por cada mamada. Desaconselha-se a mamada de duração total superior a 20 minutos pela probabilidade crescente à medida que se desenrola a mamada, de o bebé “perder” a força de sucção e passar a deglutir mais ar do que leite, o que contribui para meteorismo. Avaliação do aleitamento O papel do profissional de saúde (médico, enfermeiro ou outro) é fundamental nos primeiros dias após o parto no sentido de manter confiança da mãe, tentando diminuir-lhe a ansiedade e o receio pela eventual insuficiência do leite. Em regra, no 5º dia de vida já haverá uma ideia sobre a evolução do aleitamento tendo sempre em QUADRO 4 – Actuação prática RN com a mãe (alojamento conjunto ou “rooming – in”) – Primeira mamada na sala de partos (se possível na 1ª hora pós-parto) – 2º dia: 2 – 5 minutos de cada lado (alternar) – colostro – 2º dia e seguintes: no máximo: 10 minutos em cada lado (alternar) • Frequência: horário livre; sempre que “chore com fome”; respeitar o “apetite”; em regra o lactente saudável não pré-termo necessita entre 6-8 mamadas/24 horas; quanto mais curtas forem as mamadas, maior a probabilidade de maior número de mamadas. Não é consensual a rotina de acordar o bébé saudável e de termo, de noite para mamar; determinados factores de crescimento no leite materno garantem a estabilização da glicémia. • Limites a respeitar: – intervalo mínimo entre mamadas: 1 hora – duração máxima (total) da mamada: 20 minutos • Precaução – lavagem da aréola e mamilo com água fervida no fim da mamada; secagem antes de tapar a mama. A aplicação do próprio leite materno no mamilo-aréola previne as fissuras, dado o efeito cicatrizante do mesmo (recordar os factores de crescimento anteriormente referidos) – a vigilância da glicémia apenas está indicada nos casos de dificuldades na lactação e/ou suspeita de hipogalactia, baixo peso de nascimento, macrossomia, etc. • Êxito da lactogénese se: estímulo da sucção; esvaziamento mamário completo • Nota importante: O choro (estímulo sonoro) da criança junto da mãe, antecipando a mamada, estimulando o hipotálamo e a hipófise, promove a secreção da ocitocina (contracção do útero e esvaziamento da glândula) e da prolactina (estímulo da secreção láctea). conta o decrescimo fisiológico no peso de nascimento que por vezes, é cerca de 5-7%, por isso, torna-se fundamental que haja uma comunicação com a mãe. Por outro lado, há também que desdramatizar o problema da evolução ponderal. Refira- se que, dum modo geral, a evolução ponderal nos lactentes alimentados ao peito é mais discreta do que nos alimentados com leite industrial(argumento positivo, pois a probabilidade de CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno obesidade nas crianças alimentadas com leite materno é menor). Reitera-se que a mãe deverá ser informada de que, em condições fisiológicas, existe sempre perda de peso inicial, e que se poderá considerar satisfatório se houver recuperação do peso de nascimento pelo 8º-12º dia. Desaconselha-se a pesagem diária pela ansiedade que origina na mãe; em geral e em condições normais será suficiente, nas primeiras semanas a verificação semanal do peso. A chupeta é desaconselhada. Fármacos e aleitamento materno Nos casos em que a mãe lactante está submetida a determinados tratamentos com fármacos, há que atender a que os mesmos podem ser transferidos para o leite, quer por difusão passiva, quer por transporte activo, variando a concentração do medicamento no leite de diversos factores tais como a concentração sanguínea materna e o tempo decorrido entre a administração e a mamada. Na prática, são raras as situações em que se deverá interromper o aleitamento. Nesta perspectiva, os clínicos responsáveis pela assistência à lactante e ao lactente deverão consultar as normas de actuação que consideram essencialmente três tipos de fármacos: 1 – Fármacos que não devem ser administrados à lactante: Atropina, anticoagulantes, antitiroideus, citostáticos, di-hidro-taquiferol, iodetos, narcóticos, substâncias radioactivas, brometos, tetraciclinas, metronidazol, cimetidina. 2 – Fármacos que obrigam a vigilância do lactente no caso de a lactante os tomar, não sendo necessária a suspensão da amamentação: Corticóides, diuréticos, contraceptivos orais, ácido nalidíxico, sulfonamidas, carbonato de lítio, reserpina, difenil-hidantoína, barbitúricos, cumarinas, heparina, tiroxina. 3 – Fármacos ou substâncias sem qualquer efeito sobre o lactente: Insulina, epinefrina, administração ocasional de paracetamol ou ácido acetil-salicílico, uso moderado de álcool, cafeína, chá. 293 Infecção e aleitamento materno Embora o leite materno tenha um papel crucial na profilaxia das infecções, há que referir, no entanto algumas infecções maternas raras que são limitativas da amamentação. Trata-se essencialmente, (para citar as principais) das infecções pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), pelo vírus humano da leucemia de células T (VHLT tipos I e II), de infecções mamárias pelo vírus herpes, da varicela materna, de formas de tuberculose materna evolutiva, e de situações de serologia positiva materna (IgG) para o citomegalovírus (CMV). Casos especiais É importante chamar a atenção para dois pontos: a) a administração de soluto glucosado, designadamente no pós-parto, antes da subida do leite, dum modo geral não deverá ser fomentado. De facto, a técnica de administração de soluto adocicado poderá desmotivar o bebé para receber o colostro que tem sabor “salgado”; b) a mãe deve ser ensinada a dar eventual suplemento se se justificar, à colher, e sempre depois da mamada, pelo facto de o biberão exigir menos esforço, o que poderá também contribuir para a ulterior recusa do peito. c) a mãe deve ser esclarecida que, durante a primeira semana, de adaptação do bebé, as necessidades calóricas e em líquidos são inferiores àquelas a partir do 8º-10º dia. Bibliografia Amaral JMV. Aleitamento materno-aspectos práticos. O Médico 1987; 117: 466-480 American Academy of Pediatrics. Policy statement breastfeeding and the use of human milk. Pediatrics 2005; 115: 496-506 Barness LA. Pediatric Nutrition Handbook. Illinois: American Academy of Pediatrics, 2007 Black LS. Incorporating breastfeeding care into daily newborn rounds and pediatric office practice. Pediatr Clin North Am 2001;48: 299-319 Fomon SJ. Nutritional of Normal Infants.St.Louis: Mosby, 2001 Gomes –Pedro J, Silva AC (eds). Nutrição Pediátrica-Princípios Básicos. Lisboa: ACSM/Mead Johnson Nutritionals, 2006 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 294 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Lawrence RA, Lawrence RM. Breast feeding, a guide for the medical profession. Philadelphia: Elsevier, 2005 Lawrence RM, Lawrence RA. Breast milk infection. Clin Perinatol 2004; 31: 501-528 Rudolph CD, Rudolph AM (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw-Hill, 2002 Shelov SP, Hannemann RE, Cook DE et al. Caring your baby 53 LEITES E FÓRMULAS INFANTIS and young child (birth to age 5). New York: Bantam Books/American Academy of Pediatrics, 2003 Carla Rego e António Guerra Spencer A, Jones L. Understanding breast-feeding: how to offer practical help. Current Paediatrics 2002; 12: 93-97 Wight NE. Management of common breastfeeding issues. Pediatr Clin North Am 2001; 48: 321- 344 Importância do problema Apesar da grande variabilidade entre espécies, os leites proporcionam um adequado crescimento e desenvolvimento do recém-nascido até à aquisição de uma capacidade própria de alimentação e de sobrevivência na ausência da sua mãe. A composição do leite varia de espécie para espécie de mamíferos. Os leites dos mamíferos em geral, e o leite de mulher em particular, contêm todos os nutrientes necessários ao crescimento dos seus recém – nascidos, bem como todos os mediadores de crescimento e de diferenciação celular e ainda múltiplos factores de defesa contra antigénios e agentes infecciosos. O leite de cada espécie veicula igualmente hormonas, enzimas e oligossacáridos. O leite materno, tal como foi referido no capítulo 52, constitui assim, sem qualquer dúvida, o alimento ideal nos primeiros meses de vida, fornecendo nas proporções adequadas todos os nutrientes necessários, nomeadamente proteínas, gorduras, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e água. Reconhece-se, contudo, que muitos dos constituintes nutricionais ou imunológicos do leite materno se encontram ainda por estudar, ou mesmo por descobrir. Quando não é possível o aleitamento materno, dispõe-se hoje de alternativas de outros leites e das chamadas fórmulas, sendo que a composição do leite materno constitui um guia importante para a composição das referidas fórmulas. Os indicadores de referência são o crescimento somático, bem como marcadores biológicos, proteicos e lipídicos entre outros, relativamente a lactentes saudáveis alimentados exclusivamente com leite materno (4 – 6 meses). CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis Neste capítulo procede-se a uma abordagem das fórmulas infantis disponíveis no mercado. Classificalçao dos leites e fórmulas infantis Tendo por base a lei interna do país, e de acordo com as Directivas Comunitárias, são estabelecidas algumas definições consideradas importantes para uma correcta compreensão e prescrição. A fonte proteica deverá estar claramente definida. A classificação de “Leite” ou “Fórmula” depende do facto de a fonte proteica estar respectivamente na dependência exclusiva do leite de vaca ou não. Existem actualmente três grandes grupos de leites: os leites para lactentes, os leites de transição e os leites de continuação. Incluídos nestas categorias dispomos de vários tipos de leites, adequados a diversas situações clínicas. Leites e Fórmulas para lactentes: géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas, destinados a lactentes durante os primeiros 4 a 6 meses de vida e que satisfaçam as necessidades nutricionais deste grupo etário. Leites e Fórmulas de transição: géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas, destinados a crianças entre os 4 a 6 meses, e 12 meses (e eventualmente até aos 3 anos) que constituam o componente líquido principal de um regime progressivamente diversificado deste grupo etário. As fórmulas para lactentes recomendadas desde o nascimento podem também ser satisfatoriamente utilizadas em lactentes até aos 12 meses, desde que sejam enriquecidas com ferro. As fórmulas de transição podem ser utilizadas em crianças dos 12 aos 36 meses, como parte de um regime alimentar diversificado. Todos os leites e fórmulas têm uma composição relativa em macro e micro nutrientes que respeita os valores mínimos e máximos recomendados pela União Europeia (EU) para os diferentes grupos de leites (Legislação CEE 1999 e 2000). Para além da Comissão da Comunidade Europeia, também o Comité de Nutrição da European Society of Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) tem publicadas as recomendações respeitantes à com- 295 posição das fórmulas para lactentes e das fórmulas de transição, quer relativamente aos nutrientes em geral, quer a referente à composição de um nutriente específico. Quer para as fórmulas para lactente, quer para as de transição o valor energético estabelecido oscila entre 60 e 70 Kcal / 100 ml. Preparações à base de proteínas do leite de vaca Proteínas O teor proteico oscila entre 1,8 e 3,0 g / 100kcal, com uma relação caseína/proteínas solúveis inferior a 1 e, portanto, similar à observada no leite maduro de mulher (45/55). Desde há bastante tempo que se tem alertado para o teor excessivo de proteínas nas fórmulas para lactentes. Na realidade, a utilização de leites para lactentes com um baixo teor proteico (1,8 g / 100 Kcal), resulta em indicadores plasmáticos do metabolismo proteico mais próximos dos registados em lactentes alimentados com leite materno, independentemente da relação caseína / lactoproteínas do soro. Importa lembrar que o perfil de aminoácidos da proteína bovina é claramente diferente do da proteína humana. Tais diferenças repercutem-se nos níveis de aminoácidos em lactentes alimentados com leites com predomínio de proteínas do soro (treonina, valina, leucina, isoleucina, metionina) ou de caseína (tirosina, fenilalanina, valina, metionina) com valores superiores aos registados em lactentes alimentados com leite materno. A indústria tem procurado corrigir estes desequilíbrios ajustando a composição dos leites naqueles aminoácidos. Também o aminoacidograma e a relação entre aminoácidos essenciais e aminoácidos totais de lactentes alimentados com leite de baixo teor proteico são similares ao observado nos alimentados com leite materno. No entanto, apesar destas similitudes, registam-se algumas diferenças relativas ao teor plasmático de alguns aminoácidos, quer por excesso (fenilalanina, metionina, isoleucina e citrulina), quer por defeito (triptofano, taurina). Tais diferenças estão também dependentes da relação entre a caseína e as lactoproteínas do soro naquelas fórmulas, bem como do perfil quali- 296 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tativo destas, o que tem levado a indústria a reduzir o teor de β-lactoglobulina e a aumentar o conteúdo em α-lactalbumina, de modo a ultrapassar alguns desequilíbrios no perfil plasmático de aminoácidos, o que permitiu aumentar o teor de triptofano, precursor da serotonina, importante neurotransmissor com papel importante nos sistemas de alternância fome/saciedade, e de sono/estado de vigília. Leites com teores ainda mais reduzidos de proteínas (< 1,8 g / 100Kcal) têm também sido ensaiados, alertando-se, no entanto, para o risco nutricional que tais fórmulas acarretam. Desde há alguns anos que alguns leites têm nucleótidos incorporados nas suas composições. Os nucleótidos representam 0,1 a 0,15 % do conteúdo de nitrogénio do leite materno e, ainda que os estudos não sejam consensuais, para além do seu papel na síntese de DNA e RNA, têm-lhes sido atribuídas algumas funções benéficas, nomeadamente a nível imunológico, promovendo a maturação dos linfócitos T. Outras vantagens descritas dependentes da inclusão de nucleótidos nas fórmulas (aumento da biodisponibilidade do ferro, modificação da flora intestinal, mais favorável metabolismo das lipoproteínas e melhor aproveitamento metabólico dos ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa – AGP-CL, ou LC PUFA na nomenclatura inglesa), ainda não estão amplamente comprovadas. Hidratos de carbono e pré-bióticos Relativamente aos hidratos de carbono, estes leites podem ser compostos exclusivamente por lactose ou por uma associação de vários açúcares. Têm também surgido leites para lactentes e de transição que incluem oligossacáridos (pré-bióticos) na sua composição com provavel efeito benéfico. Concluiu-se recentemente que não há objecções à inclusão até 0,8 g/100 ml, de galactooligossacáridos (GOS – 90%) e fruto-oligossacáridos (FOS – 10%) às fórmulas para lactentes e de transição. Refira-se que o leite materno tem teores elevados de oligossacáridos (2,2 e 1,2 g/dl respectivamente no colostro e no leite maduro). Lípidos Dada a limitada capacidade de síntese de AGP-CL pelo lactente nas primeiras semanas de vida, as diferenças entre o suprimento naqueles ácidos gordos nos alimentados com leite materno relativamente aos alimentados com leite convencional sem AGP-CL, reflectem-se na composição dos lípidos plasmáticos, da membrana do eritrócito, da retina e do cérebro. Estes resultados sugerem a necessidade de suplementação dos leites para lactentes em AGP-CL; de acordo com alguns peritos, os leites para lactentes deverão incluir ácido araquidónico (AA) e ácido docosa-hexanóico (DHA) nas porporções, respectivamente, de pelo menos 0,35 e 0,2 do teor total de ácidos gordos. A inclusão nos leites, de triglicéridos incorporando o ácido palmítico, predominantemente na posição β do glicerol, parece ter efeitos benéficos significativos relativos à absorção de gordura e cálcio em recém-nascidos de termo saudáveis. Minerais Nos leites e fórmulas para lactentes, o teor de sódio e de outros minerais é inferior ao teor existente nos leites e fórmulas de transição. Refira-se ainda que são muito inferiores as necessidades em ferro no primeiro semestre de vida em lactentes nascidos de termo, pelo que é suficiente um baixo suplemento em ferro nos leites para lactentes. Alguns leites têm sido suplementados com selénio, um importante oligoelemento envolvido em sistemas enzimáticos com acção antioxidante. Tal reforço, particularmente importante nos leites para recém-nascidos pré-termo, é feita sob a forma de selenito ou de selenato, com similar taxa de retenção de selénio pelo organismo. Vitaminas Também o beta-caroteno, susceptível de ser metabolizado em vitamina A e com importante acção antioxidante, tem sido incluído nalguns leites. Este e outros carotenóides existem no leite materno; os seus níveis plasmáticos decrescem rapidamente após o parto em recém-nascidos alimentados com leites não suplementados. Probióticos Recentemente surgiram no mercado leites para lactentes com a adição de probióticos (micro organismos vivos que melhoram o equilíbrio da flora intestinal). CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis Trata-se de espécies bacterianas particulares não patogénicas, produtoras de ácido láctico, com grande afinidade para a membrana apical do epitélio intestinal e com alguns efeitos benéficos para a saúde. Entre estes destacam-se efeitos a nível imunofisiológico intestinal com repercussão favorável nalgumas patologias infecciosas e alérgicas, bem como a nível da biodisponibilidade de minerais, e ainda, a nível sistémico, sobre o metabolismo lipídico, pressão arterial e patologia neoplásica. (capítulo 54). Fórmulas à base de proteínas de soja De acordo com estudos de peritos em nutrição não é aconselhada a sua utilização na prevenção de patologia alérgica. Relativamente à sua composição, e no que respeita aos glúcidos, estas fórmulas são isentas de lactose e incluem uma mistura de açúcares, preferencialmente polímeros de glicose. De forma a melhorar o seu valor nutricional, estas fórmulas são enriquecidas em metionina e L-carnitina, devendo esta última estar presente em valor superior a 7,5mmol/100kcal. A composição relativamente aos restantes nutrientes segue as mesmas directivas definidas para os leites para lactentes. Aponte-se que o teor de fitato das fórmulas de soja, ou a sua relação molar com o zinco, interfere com a absorção deste oligoelemento, sendo, por isso, desejável a remoção total de fitato destas fórmulas. A suplementação das fórmulas de soja com selénio proporciona concentrações plasmáticas e eritrocitárias no lactente mais adequadas que as ocorridas com fórmulas não suplementadas. Existe no mercado uma fórmula hidrolisada à base de proteína de soja que contém, para além daquela fonte de proteína vegetal, uma fonte de proteína animal, o colagénio de porco. Trata-se na realidade de hidrolisados de soja e colagénio. Estudos realizados registaram diferenças quanto à eficácia nutricional de diferentes fórmulas hidrolisadas de proteínas do leite de vaca e de soja: valores superiores de aminoácidos não essenciais, como a glicina e a hidroxiprolina ao 1 mês de vida, em lactentes alimentados com hidrolisado de soja. Mais estudos serão, pois, necessários para chegar a conclusões definitivas relativas à segurança nutricional destas fórmulas. 297 Leites de transição Diferem do leite de vaca essencialmente no conteúdo proteico e em ferro (20 vezes superior), gordura, hidratos de carbono, outros minerais e vitaminas. Contêm, de uma forma geral, um teor mais elevado de proteínas, cálcio e calorias que as fórmulas e leites para lactentes. Sublinhe-se todavia que, de acordo com o Scientific Committec on food - SCF, foi reduzido o teor proteico mínimo destas fórmulas para 1,8 g/ 100 kcal, valor idêntico ao anteriormente já estabelecido para os leites para lactentes. A sua riqueza em ferro e ácidos gordos essenciais justifica, por si só, a sua utilização, pelo menos, até ao final do primeiro ano de vida. Têm, no entanto, o inconveniente de conter ainda um elevado teor proteico condicionando uma sobrecarga metabólica. A relação caseína/lactoproteínas do soro é superior a um, e próxima da do leite de vaca (80/20). O seu maior teor em caseína, ao condicionar um esvaziamento gástrico mais lento, permite uma maior saciedade. Não é exagero realçar a total inadequação da utilização do leite de vaca inteiro nesta idade, prática ainda frequente entre nós e noutros países europeus. Na realidade, o suprimento proteico médio de lactentes alimentados com leite de vaca é 20 a 100% superior à de lactentes alimentados com leites para lactentes ou com leites de transição, e é 2 a 3 vezes superior ao definido como “nível de segurança da ingestão proteica”. Por outro lado, a utilização do leite de vaca na alimentação do lactente é um factor de risco importante de anemia por carência de ferro, situação ainda frequente mesmo nos países mais industrializados. Por seu turno, os leites para lactentes, como oportunamente referido, podem ser utilizados até aos 12 meses, desde que sejam adequadamente enriquecidos em ferro. Alguns leites de transição, são enriquecidos com probióticos; outros há que são também suplementados em selénio, em β-caroteno e em nucleótidos. Leites “de crescimento” ou de continuação Os chamados leites de “crescimento” ou de continuação, qualitativamente sobreponíveis aos leites de transição, são destinados a crianças na faixa 298 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA etária dos 1 aos 3 anos. Estes leites oferecem relativamente ao leite de vaca claras vantagens nutricionais, dado o seu menor teor proteico e um maior valor relativamente a alguns oligoelementos (ferro e zinco), ácidos gordos essenciais e algumas vitaminas, nomeadamente vitamina D. Outros leites Leites acidificados O aparecimento da flora no tubo digestivo do recém-nascido depende essencialmente das bactérias procedentes da mãe e do meio ambiente. No lactente alimentado com leite materno, após um período inicial de predominio de colibacilos, as bifidobactérias passam a predominar, contrariamente ao que ocorre em lactentes alimentados com leite/fórmula, em que a flora é mais heterogénea. Mais do que a composição da preparação, parece ser o pH e o poder tampão do leite/ fórmula e das fezes que determinam a composição da coproflora, sendo o escasso poder tampão do leite materno o responsável pela criação de um meio intestinal ácido favorável ao crescimento de bifidobactétrias, e desfavorável aos germes potencialmente patogénicos. Sendo a sua composição muito parecida com a do leite para lactentes, tais leites são caracterizados pelo facto de serem enriquecidos em bífidus, e de na sua composição entrarem fermentos lácticos, factores que favorecem a presença de bifidobacterias na flora intestinal do lactente. Por outro lado, esta acidificação tem a vantagem de acelerar a digestão das proteínas, aumentar a acção da pepsina, favorecer a absorção do cálcio e, transformando a lactose restante em ácido láctico, criar condições para o desenvolvimento de uma flora com bifidobactérias predominantes. Embora se trate de leites com baixo teor de lactose e com fermentos lácteos, não estão, no entanto, especificamente indicados no decurso das diarreias. Leites parcialmente hidrolisados Estudos prospectivos estimam em 2-3% a incidência de alergia às proteínas do leite de vaca durante a infância; contudo, a mesma pode ocorrer, mesmo em lactentes amamentados exclusivamente com leite materno, com uma incidência, menor (cerca de 0,5%). Os leites parcialmente hidrolisados, correntemente designados de hipo-alergénicos (HA), são leites em que as proteínas, embora hidrolisadas, contêm ainda fragmentos de dimensão suficiente para induzir reacção alérgica em crianças sensibilizadas. As proteínas são parcialmente hidrolisadas pela acção combinada da hidrólise enzimática e do tratamento térmico a altas temperaturas, permitindo a degradação dos péptidos até um peso molecular de 5.000 Daltons. A sua composição relativamente aos restantes nutrientes é muito semelhante à do leite com proteínas não modificadas. Estes leites não são, de facto, verdadeiramente hipo-alergénicos já que não garantem ausência de reacções em, pelo menos, em 90 % dos lactentes ou crianças que os tomam, com comprovada alergia às proteínas do leite de vaca. Salienta-se que a Directiva 96/4/EC de 16 de Fevereiro de 1996 exige dados objectivos e cientificamente comprovados da redução do risco de alergia às proteínas do leite, para que seja utilizada a terminologia de fórmulas lácteas hipoalergénicas (ou hipo-antigénicas). Não sendo possível o aleitamento materno, segundo as recomendações da European Society for Paediatric Allergology and Clinical Immunology (ESPACI) e a European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN), para a prevenção das reacções adversas às proteínas do leite de vaca em lactentes com risco hereditário documentado de atopia (progenitor ou irmão) é recomendada a alimentação com uma fórmula de mais reduzida alergenicidade do que aquela que é conferida pelos leites HA (parcialmente hidrolisados). De facto, alguns estudos evidenciaram a eficácia dos leites parcialmente hidrolisados na prevenção da doença atópica e alergia alimentar; de referir, no entanto, que a eficácia da prevenção da doença atópica em lactentes com história familiar positiva parece depender não apenas do grau de hidrólise, como também do tipo das proteínas hidrolisadas. Dietas baseadas em proteínas não modificadas do leite de outras espécies (ex. cabra e ovelha), não devem ser utilizados no tratamento da alergia às proteínas do leite de vaca. De acordo com estudos realizados, em termos ideais, as fórmulas lácteas hidrolisadas devem CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis conter péptidos tão curtos quanto possível para diminuir a alergenicidade das proteínas, e tão longos quanto possível para melhorar o seu valor nutricional (consultar parte Imunoalergologia). Leites extensamente hidrolisados Trata-se de alimentos desprovidos de proteínas alergizantes, pelo que as proteínas do leite de vaca são extensamente hidrolisadas por tecnologia complexa (a maior parte do nitrogénio encontrase na forma de aminoácidos e péptidos inferiores a 1500 Daltons). Assim, é reduzida marcadamente a alergenicidade, embora não totalmente eliminada, dado que existem certos antigénios de pesos moleculares <3 000 D que são resistentes às técnicas aplicadas. As principais indicações destes leites já foram definidas na alínea anterior. “Dieta” semi-elementar Em lactentes com alergia às proteínas do leite de vaca ou com reacções adversas a outras proteínas alimentares e sindromas de má-absorsão, deve utilizar-se uma fórmula extensamente hidrolisada (ou mistura de aminoácidos), sem lactose e com triglicérideos de cadeia média; é este o conceito de “dieta” semi-elementar. Excepcionalmente certas crianças podem apresentar alergia a estes hidrolisados, ou mesmo intolerâncias a múltiplas proteínas da dieta, preconizando-se nestes casos uma fórmula contendo aminoácidos livres. Leites anti-regurgitação O tratamento médico do refluxo inclui entre outras medidas a utilização de fórmulas lácteas industrialmente espessadas. A composição destes leites aproxima-se globalmente da dos leites para lactente ou de transição, residindo a diferença na sua composição glucídica. O objectivo é atribuir-lhe a capacidade de espessamento, o que é conseguido com a adição de amido de milho, ou amido de batata ou farinha de semente de alfarroba. A farinha de alfarroba (polímeros de glúcidos não metabolizáveis), acalórica, é resistente à hidrólise digestiva, podendo ocasionalmente provocar sintomatologia dispéptica, tal como diarreia, cólicas e flatulência. Os amidos de milho, de arroz ou de batata, relativamente fluidos em pH neutro, tornam-se 299 extremamente viscosos em pH ácido a 37ºC (proporcionado pelo meio gástrico), sendo bem tolerados. O teor mais elevado destes leites em hidratos de carbono, e menor em gordura, acelera o esvaziamento gástrico, o que também contribui para a diminuição dos episódios de refluxo. Para além da eficácia anti-refluxo importa também que estes leites sejam seguros do ponto de vista nutricional. Tem sido discutida a interferência dos diferentes espessantes utilizados pelas fórmulas anti-refluxo com a biodisponibilidade dos principais macro e microminerais. A biodisponibilidade do cálcio, ferro e zinco parece superior nas fórmulas espessadas com hidratos de carbono digeríveis comparativamente às espessadas com hidratos de carbono não digeríveis. Regista-se também uma diminuição mais evidente da absorção de minerais por fibras solúveis nos leites com predomínio de caseína relativamente às lactoproteínas do soro. Alguns destes leites são suplementados em selénio, em β-caroteno e em nucleótidos. Leites para recém-nascidos pré-termo (PT) ou de baixo peso (BP), com ou sem restrição de crescimento intra-uterino (RCIU) O recém-nascido (RN) pré-termo PT é caracterizado por imaturidade das suas funções vitais e dos sistemas reguladores (enzimáticos, excretores, etc.) o que o torna muito mais sensível a situações de carência ou de sobrecarga. O perfil de crescimento é claramente diferente do registado no recém-nascido de termo, verificando-se um crescimento de recuperação particularmente evidente nos primeiros 2-3 meses de vida. Na ausência de leite materno, os leites para recém-nascidos pré-termo ou recém-nascidos de baixo peso deveriam garantir um crescimento semelhante ao ocorrido in útero. Trata-se duma questão polémica. O teor proteico dos referidos leites é mais elevado do que o observado nos leites para lactentes (cerca de 3,0 g/100 Kcal), ocupando as proteínas solúveis um lugar maioritário de forma a ser obtido o melhor coeficiente de utilização digestiva possível. O leite de mãe de RN pré-termo, embora adap- 300 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tado às necessidades destes recém-nascidos, dado ser mais rico em proteínas e minerais que o leite de mãe de recém-nascido de termo, necessita todavia de ser suplementado. Têm sido utilizados leites para recém-nascidos pré-termo (RNPT) com proteína parcialmente hidrolisada ou extensamente hidrolisada. Embora não dispondo de resultados de estudos prospectivos suficientemente prolongados, os resultados de algumas investigações têm apontado no sentido de não se registarem diferenças relativamente ao crescimento, marcadores do metabolismo proteico e perfil plasmático de aminoácidos entre RNPT alimentados com fórmula hidrolisada, com fórmula convencional para PT e com leite materno suplementado ou enriquecido. Todavia estes resultados não são totalmente consensuais. Nos RNPT e nos com RCIU as reservas de ácido araquidónico (AA) e de ácido docosa-hexanóico (DHA) são muito reduzidas. Acresce ainda o facto de aqueles recém-nascidos não terem capacidade enzimática para a “elongação” e dessaturação dos ácidos linoleico e alfa-linolénico naqueles ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa (AA e DHA). De acordo com as recomendações de um grupo de peritos, as fórmulas para RNPT devem incluir, pelo menos, 0,35 % de DHA e 0,4 % de AA relativamente ao teor total de ácidos gordos. A suplementação dos leites para RNPT com aqueles ácidos, na proporção da existente no leite materno, resulta num perfil plasmático e na incorporação daqueles ácidos nos fosfolípidos da membrana celular, semelhante ao registado com lactentes alimentados com leite materno. A adição de AGP-CL aos leites aumenta o risco potencial de agressão oxidante não apenas aos restantes componentes do leite como também aos próprios lactentes com ele alimentados. Sendo a vitamina E o principal antioxidante biológico, torna-se vital a existência de um teor adequado daquela vitamina nas fórmulas lácteas. Aquele valor é, assim, definido tendo por base o teor de ácidos gordos poli-insaturados dos leites. O respeito por este pressuposto poderá justificar a ausência de efeitos adversos relativamente à biodisponibilidade dos aminoácidos de leites enriquecidos com AGP-CL. De igual modo, um teor equilibrado em AA e DHA e uma adequada protecção antioxidante, não interfere com o crescimento nem tem outros efeitos adversos. Cerca de 20% do seu teor lipídico deverá ser suprido sob a forma de triglicéridos de cadeia média (TCM) que são rapidamente metabolizados e preferencialmente utilizados como fonte energética. Tendo em conta a limitada actividade lactásica nos RNPT, parte da lactose destes leites é substituída por polímeros de glicose (5 a 10 moléculas de glicose) que são clivados por acção da maltase ou glucoamilase, esta última com uma elevada actividade já pelas 28 semanas de gestação. O conteúdo em minerais está aumentado, nomeadamente em sódio, fósforo e cálcio, permitindo assim uma maior retenção cálcica e uma melhor absorção das gorduras. Tem sido advogado o uso de fórmulas especiais para lactentes com antecedentes de baixo peso de nascimento e destinados ao período que se segue à alta hospitalar: as chamadas PDF ou “Post-Discharge Formula”. São fórmulas com uma densidade proteica mais elevada e com um maior teor em macrominerais, nomeadamente em cálcio. Embora em alguns estudos se tenha registado um efeito benéfico no crescimento, particularmente nos primeiros meses de vida, os estudos não são consensuais no tocante, quer ao crescimento estaturo-ponderal, quer à composição corporal nos primeiros 18 meses de vida. De igual modo não se observaram diferenças relativamente a nível comportamental e de desenvolvimento psicomotor registados também até aos 18 meses em lactentes com fórmulas PDF relativamente a fórmulas convencionais. A análise dos resultados conhecidos permitiu concluir que os dados até à data são limitados e não ligitimam a recomendação de fórmulas com elevado teor proteicoenergético relativamente às fórmulas convencionais no momento da alta em RNBP (Ver capítulo 45). Leites sem lactose A lactose é um dissacárido formado por glicose e galactose, necessitando de ser enzimaticamente degradado nos seus açúcares simples para ser absorvido. A dissacaridase, lactase existente nas microvilosidades dos enterócitos maduros das vi- CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis losidades intestinais, pode ser deficitária por imaturidade, ou por destruição dos enterócitos maduros no decurso de uma gastrenterite aguda. Leites sem lactose, constituídos a partir do leite de vaca, apresentam apenas uma modificação da fracção glucídica, em que a lactose é substituída por glicose ou por dextrinomaltose. Estão indicados prioritariamente em situações de défice primário de lactase, e em situações de diarreia aguda. Salienta-se uma menor osmolaridade quando comparados com os leites para lactentes e de transição, sendo qualitativamente adequados às necessidades do lactente, e eficazes e seguros em termos nutricionais. Alguns são suplementados com nucleótidos e com β-carotenos. Aspectos práticos relacionados com a alimentação com leite não materno 301 Aggett P, Bresson JL, Hernell O, Koletzko B, Lafeber H, Michaelson KF, Micheli JL, Ormisson A, de Sousa JS, Weaver L. Comment on the vitamin E content in infant formulas, follow-on formulas, and formulas for low birth weight infants. ESPGHAN Committee on Nutrition European Society of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1998; 26: 351-352 Agostoni C, Axelsson I, Goulet O, Koletzko B, Michaelsen KF, Puntis JW, Rigo J, Shamir R, Szajewska H, Turk D. ESPGHAN Committee on Nutrition. Prebiotic oligossacharides in dietetic products for infants: a commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 39: 465-73 Aggett PJ, Haschke F, Heine W, Hernell O, Launiala K, Rey J, Rubino A, Schoch G, Senterre J, Tormo R. Comment on the composition of soy protein based infant and follow-up formulas. ESPGAN Committee on Nutrition. Acta Paediatr Scand 1990; 79: 1001-1005 O numero de refeições diárias desde o nascimento até os 12 meses varia entre 6-8 ou mais (de início) até somente 3 ou 4 quando o bebé completa 1 ano. O intervalo entre refeições varia de bebé para bebé (3-5 horas, média 4 horas). Nos primeiros 2 meses de vida as refeições são tomadas ao longo das 24 horas; ulteriormente, à medida que o volume por refeição aumenta, a criança, adaptando-se aos hábitos da família, manifesta tendência para dormir mais horas seguidas de noite, período em que somente se alimenta se acordar. No que respeita à quantidade de leite por biberões, sendo prescrito o volume de água em função das necessidades e procedendo à mistura do “leite” em pó com a água (concentração padrão de uma medida rasa para 30ml de água ou ~15%), em geral não se ultrapassa 210-240 ml/biberão. Após o início da alimentação deversificada os cálculos em volume total/ 24 horas contemplam a ingestão de leite acrescida da ingestão de alimentos semi-sólidos American Academy of Pediatrics. Committe on Nutrition. Iron BIBLIOGRAFIA ESPGHAN Committee on Nutrition. Guidelines on infant fortification of infants formulas. Pediatrics 1999; 104: 119123 American Academy of Pediatrics. Committe on Nutrition. Hypoallergenic infants formulas. Pediatrics 2000; 106: 346369 American Academy of Pediatrics. Dietary recommendations for children and adolescents: a guide for practitioners. Pediatrics 2006; 117: 544-559 Commission of the European Communities. 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Health and Consumer Protection Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; Directorate-General. Scientific Committee on Food. 34: 496-498 SCF/CS/NUTIF/65 Final. 18 May 2003 302 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA European Commission Scientific Committee for Food. Opinion on certain additives to foods for infants and young children in good health and in foodsd for special medical purposes for unfants and young children: locust bean gum. Document XXIV/1270/97 1997: Annex II: E410 Guidelines (NAS PJ). Evaluation and treatment of gastroesophageal reflux in infants and children: recommendations of the North American Society for Pediatric Gastroenterology and Nutrition. J Pediatr Gastroenterol 54 PROBIÓTICOS, PRÉ-BIÓTICOS E SIMBIÓTICOS Nutr 2001; 32: S1-S31 Host A, Koletzko B, Dreborg S, Muraro A, Wahn U, Aggett P, Aires Cleofas da Silva Bresson J-L, Hernell O, Lafeber H, Michaelsen KF, Micheli J-L, Rigo J, Weaver L, Heymans H, Strobel S, Vandenplas Y. Dietary products used in infants for treatment and prevention of food allergy. Joint statment of the European Society Importância do problema for Paediatrics Allergology and Clinical Immunology (ESPACI) Committee on hypoallergenic formulas and the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hapatology and Nutrition (ESPGHAN) Committee on Nutrition. Arch Dis Child 1999; 81: 80-84 Osborn DA, Sinn J. Formula for prevention de Allergy and Food Intolerance in Infants. Cochrane Database Syst Rev 2004; (3): CD003741 Rego C, Ribeiro L, Guerra A. Leites e Fórmulas infantis: uma visão actualizada da realidade em Portugal. Acta Pediatr Port, 2002;33:279-281 A microflora intestinal, o alvo principal destes produtos que fazem parte do leite materno e de algumas fórmulas, é constituida por microrganismos cujo habitat é o lume e a mucosa intestinal do homem e de outros mamíferos. O chamado complexo probiótico é formado por mais de 400 espécies bacterianas, na maioria comensais, algumas com potencialidades patogénicas, e muitas com benefício para o organismo do hospedeiro. Estas últimas encontram-se sobretudo no cólon em que 98% da microflora é formada por 30-40 espécies, com predomínio de bactérias anaeróbias; parte importante das mesmas tem influência no estado de saúde do homem. Bactérias consideradas benéficas, por exemplo os lactobacilos e as bifidobactérias, produtoras de ácido láctico, fazem parte de probióticos. Outros produtos chamados pre-bióticos são ingredientes alimentares não digeriveis que estimulam selectivamente o crescimento e a actividade das espécies bacterianas benéficas. Os produtos chamados simbióticos são uma combinação dos probióticos e dos pré-bióticos; o uso de microrganismos vivos em combinação com os seu substratos específicos tem efeito sinérgico para a saúde através da alimentação. A estes produtos dá-se genericamente o nome de alimentos funcionais. Recorda-se, a propósito, que a colonização do intestino do recém-nascido pelas bactérias começa na altura do parto; e a flora intestinal materna é a única fonte natural de bactérias benéficas para o intestino. O desenvolvimento da microflora intes- CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos tinal dos lactentes alimentados com fórmulas padrão é diferente da dos lactentes amamentados, particularmente, no que diz respeito a progressão das bifidobactérias que nestes últimos se tornam os microrganismos dominantes. A este propósito cabe referir alguns factos históricos sobre alimentos funcionais. O iogurte e os leites fermentados foram os primeiros produtos considerados alimentos funcionais. Reza a história que o iogurte mais antigo era egípcio (3500 AC). Hipócrates descreveu as propriedades benéficas do iogurte. Só muito mais tarde na Bulgária e na Turquia se vulgarizou o seu consumo. Uma das bactérias usadas na sua fermentação recebeu o nome científico de Lactobacillus bulgaricus, e foi da tradição oral destes povos que nos chegou o nome de “iogurte” que “contribuiu” para a enorme longevidade dos seus habitantes. Em 1919, Isaac Carasso, fundador da Danone, começou a produzir industrialmente o iogurte que nessa época, por ser considerado um medicamento, era vendido nas farmácias. Posteriormente, por conter bactérias cujo principal alvo era a microflora intestinal com efeitos benéficos para a saúde do hospedeiro, passou a ser considerado um alimento funcional, salientando-se o estudo científico de Metchinikoff no Instituto Pasteur de Paris. Hoje em dia a área dos Alimentos Funcionais constitui uma área promissora das Ciências da Nutrição. Probióticos A designação de probióticos é conhecida desde 1965 (Lilley & Stilwell), mas foi Fuller que em 1989, definiu probióticos como alimentos suplementados com microrganismos que produzem efeitos benéficos no hospedeiro através da melhoria do balanço microbiano da sua microflora intestinal. Os probióticos, pelo seu interesse, constituem um motivo de investigação actual em varias áreas de medicina, em veterenária e na industria alimentar. Por isso, em 1999 foi elaborado pela Comunidade Europeia um documento de consenso que define probiótico como um alimento que incorpora microrganismos vivos (lactobacilos, 303 bifidobactérias) o qual, consumido em quantidades suficientes, produz efeitos benéficos para a saúde e para o bem-estar, para além dos efeitos nutricionais. Alguns produtos considerados como probióticos são constituídos por lisados bacterianos ou produtos inactivados pelo calor que, quando ingeridos, também exercem efeitos benéficos para a saúde do hospedeiro pela capacidade de inibir a adesividade de bactérias patogénicas às células da mucosa intestinal, melhorando o equilíbrio microbiano intestinal do hospedeiro. Os microganismos que fazem parte dos probióticos mais utilizados são: • Bactérias vivas produtoras de ácido láctico – Lactobacillus (bulgaricus, acidophilus, casei, GG rhamnosus, plantarium), componentes importantes da microflora intestinal e dominantes no intestino delgado. – Bifidobacterium (lactis, longum, bifidus), que são dominantes no cólon, e também componentes importantes da microflora intestinal. Predominam no intestino dos recém-nascidos e dos lactentes alimentados com leite materno. As bifidobactérias são germes anaeróbios e utilizam uma via específica para metabolizar a lactose da alimentação produzindo acido láctico, (como outros probióticos), mas também acido acético com maior efeito bacteriostático. – Streptoccocus (thermophilus, lactis, salibarius) que têm uma forte actividade lactásica e que pela sua resistência à hidrólise, chegam em grandes quantidades ao intestino. • Leveduras, células vivas – Saccharomyces (boulardii, cerevisiae), resistente aos antibióticos. Um preparado probiótico pode conter uma ou mais estirpes de microrganismos. Os probióticos mais utilizados na alimentação humana são estirpes de bactérias produtoras de ácido láctico como os Lactobacillus e as Bifidobacteria que preenchem as condições efectivas de probiótico. O Saccharomyces boulardii é outro probiótico também utilizado com frequência. O principal objectivo da utilização dos probióticos é o de aumentar o número e a actividade dos microrganismos intestinais com propriedades úteis ao hospedeiro. Assim, as condições a que deve obedecer um probiótico são: 304 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA a - resistência à acidez gástrica, à bílis e às enzimas pancreáticas; b - boa adesividade às células da mucosa intestinal; c - boa capacidade de colonização; d - tolerância imunológica com as bactérias autóctones; e - ausência de translocação; f - modulação do trânsito intestinal ajudando a evitar obstipação; g - melhor digestibilidade dos nutrientes aumentando o seu valor nutricional; h - comprovados efeitos benéficos para a saúde. Os mecanismos de acção dos probióticos não estão totalmente esclarecidos, o que implica ulterior investigação básica e clínica, actualmente em desenvolvimento. Os possíveis mecanismos ao nível intestinal e sistémico são: a - actividade antimicrobiana contra as bactérias patogénicas: pela inibição do crescimento bacteriano competindo com o consumo de nutrientes; pela síntese de peptidos e outras substâncias bactericidas; pelo impedimento da sua adesividade às células da mucosa intestinal, pela inactivação de toxinas (E. coli, V cholorae, C difficille). b - aumento da secreção de mucina com diminuição da permeabilidade intestinal ; daí o efeito barreira contra as bactérias patogénicas (E.coli). c - acidificação do pH intestinal pela produção de ácidos gordos de cadeia curta e consequente menor pH fecal (fezes mais ácidas). d - Inibição da actividade enzimática bacteriana no cólon e aumento da actividade de algumas enzimas intestinais (lactase, maltase e sacarase); também melhor absorção de cálcio e ferro evitando a sua utilização pelas bactérias patogénicas. e - Imunomodulação do sistema imunitário intestinal com (estímulo da fagocitose contra os agentes patogénicos) e efeito antialérgico aos alimentos. f - Melhoria da circulação entero-hepática e da desagregação dos ácidos biliares o que reduz os níveis sanguíneos de amónia em doentes com hepatopatia. Os probióticos têm efeitos na prevenção e tratamento de várias situações patológicas: Intolerância à lactose e a outros dissacáridos Será provavelmente uma das utilizações mais antigas dos probióticos, pois desde há muito se sabe que o iogurte é muito melhor tolerado que o leite pelos indivíduos intolerantes à lactose. Esta melhor tolerância tem sido atribuída à redução do conteúdo em lactose no iogurte devido à fermentação pelas bactérias produtoras de ácido láctico, à actividade lactásica das próprias bactérias, e também à menor velocidade de esvaziamento gástrico do iogurte em relação ao leite. Tal como sucede com a intolerância à lactose, a administração de um probiótico como o Saccharomyces boulardii melhora a sintomatologia em indivíduos com défice em sacarase-isomaltase. Diarreia aguda infecciosa O maior número de estudos com probióticos tem incidido, quer na prevenção, quer no tratamento da diarreia aguda infecciosa. Em ensaios preventivos verificou-se nas crianças que ingeriam leite enriquecido com a estirpe de Bifidobacterium lactis, uma diminuição significativa da incidência de diarreia bem como de fezes duras, e de dermatite de fraldas. Nos ensaios terapêuticos o conjunto dos resultados aponta para diferenças significativas a favor dos grupos com probióticos no que respeita a intensidade e duração da diarreia, ao número de dias de internamento e aos dias em que os vírus são eliminados pelas fezes, particularmente no caso da diarreia por rotavírus. Entre as possíveis explicações encontram-se as propriedades imunológicas conferidas pelas estirpes probióticas, a redução de produtos de putrefacção e o equilibrio ecológico da flora intestinal. Tendo em conta que a diarreia é uma causa importante de mortalidade nos paises em desenvolvimento, sobretudo em crianças com má-nutrição e, nos países desenvolvidos, causa de evicção escolar e de hospitalização, os probióticos, pela sua eficácia preventiva e terapêutica, são uteis em saúde pública. Em doses muito elevadas, a diarreia provocada pelo VIH parece beneficiar sua utilização. Diarreia associada a antibióticos Vários estudos têm comprovado a eficácia dos probióticos na prevenção e no tratamento da diar- CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos reia associada a antibioticoterapia. Os mais utilizados têm sido as Bifidobacteria, os Lactobacillus e o Saccharomyces boulardii. Diarreia do viajante A diarreia do viajante é a doença mais comum durante a visita às regiões tropicais. O efeito preventivo dos probióticos em tal contexto não está suficientemente demonstrado e os estudos são contraditórios. No entanto, alguns ensaios clínicos referem uma redução de incidência da diarreia, variando consoante as regiões visitadas e as doses utilizadas. Síndroma do cólon irritável Está referida a diminuição de dor abdominal e da diarreia nesta patologia frequente nas consultas de gastrenterologia. Doença inflamatória crónica do intestino e outras situações gastrenterológicas Parece bastante promissor o uso de probióticos, especialmente de Saccharomyces boulardii e do Lactobacillus casei, na doença de Crohn, na colite ulcerosa e na inflamação crónica da bolsa ileal, pela influencia benéfica na microflora intestinal. Têm sido referidos resultados animadores com a utilização de probióticos na síndroma do intestino curto e em casos de alergia alimentar, provavelmente pela diminuição da permeabilidade intestinal e da imunomodulação. Está referida a eficácia dos probióticos (L. casei e S. boulardii) no tratamento e a profilaxia de recidivas da colite pseudomembranosa induzida pelo Clostridium difficile. Dislipidémias e hipertensão arterial Uma das propriedades das bifidobactérias é a sua influencia no metabolismo lipídico. Alguns estudos clínicos apresentam como resultado de utilização dos probióticos reduções significativas dos níveis do colesterol total pela diminuição do colesterolLDL, enquanto os níveis de colesterol-HDL aumentam ligeiramente. O efeito hipocolesterolemiante das bifidobactérias resulta da diminuição da absorção e do transporte do colesterol alimentar para o fígado (via quilomicrones) e, por outro lado, pela desconjugação dos sais biliares com menor absorção do colesterol pelo intestino. A niacina formada pelas bifidobactérias reduz o fluxo de ácidos gordos livres que, ao diminuir a biossíntese da 305 lipoproteína VLDL, contribui para a redução dos níveis plasmáticos dos triglicéridos. Além da acção sobre o colesterol, as bifidobactérias produzem um conjunto de tripéptidos que foram identificados como efectivos na redução da angiotensina e, consequentemente, na hipertensão arterial. Estes efeitos benéficos de combate aos factores de risco das doenças cardiovasculares levam a fomentar a inclusão de alimentos funcionais com probióticos no regime preventivo. Outras situações clínicas Embora com resultados ainda mal definidos, os probióticos estão a ser utilizados na candidíase mucocutânea, na fibrose quística, nas infecções urogenitais e nas vaginites, tendo em conta a sua acção imunostimulante, inibição da actividade enzimática bacteriana e recolonização do tracto vaginal com lactobacilos. Quanto à tolerância, uma extensa revisão de ensaios com probióticos contendo Lactobacillus, Bifidobacterium, Streptococcus thermophilus, Saccharomyces boulardii não evidencia quaisquer efeitos indesejáveis. Não estão também referidos quaisquer efeitos adversos em lactentes alimentados com fórmulas incorporando probióticos. Centenas de anos de experiência com o uso de productos lácteos fermentados e do iogurte atestam a sua inocuidade. A administração controlada de probióticos pode ser muito útil para reduzir o potencial patogénico da microflora intestinal. Assim os probióticos pelos seus efeitos na prevenção dos factores de risco e no tratamento de algumas situações patológicas, representam um contributo promissor para a Saúde pela Nutrição. Pré-bióticos Os pré-bióticos são fibras solúveis ou glúcidos complexos não digeríveis e não metabolizados no intestino delgado funcionando como substâncias de escolha para o desenvolvimento de um certo número de bactérias endógenas benéficas do intestino, sobretudo do cólon, particularmente das bifidobactérias e dos lactobacilos. Estimulando o crescimento e a actividade das bactérias benéficas da microflora intestinal, os pré-bióticos podem contribuir para melhorar a saúde do hospedeiro. 306 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Os pré-bióticos mais utilizados nas fórmulas resultam do estudo intensivo dos oligossacáridos do leite materno em lactentes com a flora intestinal em que predominam bifidobactérias e lactobacilos; tal levou ao desenvolvimento de uma mistura de fibras solúveis e não digeríveis no intestino delgado com oligossacáridos neutros: • Galacto-oligossacáridos (oligo-galactose) – GOS – de baixo peso molecular • Fruto-oligossacáridos (oligo-frutose) – FOS – de elevado peso molecular Estes oligossacáridos têm efeitos comparáveis a alguns oligossacáridos do leite humano que estimulam o desenvolvimento da microflora intestinal bifidogénica. Os glicoconjugados com proteína têm algumas propriedades semelhantes. (Figura 1) O leite materno é muito rico oligossacáridos complexos que são o seu componente maioritário depois da lactose e dos lípidos, e em quantidades similares às das proteínas. Ao contrário, o leite de vaca contém uma quantidade inferior de oligossacáridos complexos, e os seus isómeros são diferentes do leite materno. Os oligossacáridos do leite materno, estimulando o desenvolvimento de bifidobactérias e lactobacilos, modificam as condições do meio intestinal, sobretudo no que diz respeito a colonização pelas bactérias patogénicas e a permeabilidade da mucosa intestinal, o que diminui o risco de infecções e de atopias. Estudos duplamente cegos, aleatórios e multi- Cadeias qlicosídicas, principalmente β (1-4) e β (1-6) de galactose ligadas, com terminal glucose -2 a 7 monómeros Cadeias qlicosídicas β -1, 2 de frutose ligadas com/sem terminal de glucose – 5 a 60 monómeros FIG. 1 Estrutura química de oligossacáridos pré-bióticos. cêntricos (Rigo e col., Schmelze e col., Knoll e col., Moro e col.) permitiram, a partir de 2000, demonstrar na mistura GOS/FOS as seguintes propriedades: a) efeito bifidogénico rápido e estável com aumento significativo no número de bifidobactérias na flora fecal e diminuição de bactérias putrefactivas; efeito selectivo das bactérias benéficas estimulando o seu crescimento e o desenvolvimento na microflora intestinal; b) eficácia nutricional avaliada por antropometria: crescimento similar ao dos lactentes amamentados, mesmo nos recém-nascidos pré-termo; c) consistência das fezes idêntica à dos lactentes alimentados com leite materno; d) resistência à hidrólise na saliva e no tracto gastrintestinal e hidrólise somente no intestino distal, o que dá origem ao substrato ideal para o desenvolvimento das bifidobactérias dificultando o crescimento da flora patogénica; e) bloqueio da adesividade das bactérias exógenas aos enterocitos e participação nos sistemas de defesa contra as infecções; f) regulação da motilidade intestinal, melhoria de absorção de alguns minerais (Ca, Mg) e diminuição de enzimas redutoras; g) oligossacáridos como fonte de monossacáridos como a fucose e o ácido siálico, utilizados na síntese de glicoproteínas e de glicolípidos cerebrais; h) boa tolerância, sem efeitos adversos, particularmente no respeitante ao balanço azotado. Estes estudos permitiram, nalguns centros de investigação em nutrição infantil, o desenvolvimento de uma mistura destas fíbras GOS/FOS como pré-bióticos para enriquecer as fórmulas de continuação para lactentes com 0,8gr/dl de oligossacáridos (90% de GOS+10% de FOS). A Comissão Científica dos Alimentos da Comissão Europeia aceitou em Dezembro de 2001 a utilização de GOS/FOS como ingredientes nas fórmulas de continuação, numa concentração até 0,8gr/100ml do produto final. A eficácia pré-biótica está relacionada com a maior ou menor capacidade de estimular o crescimento de estirpes benéficas para a microflora intestinal, sobretudo do cólon, em detrimento de outras potencialmente patogénicas. O leite materno contém uma complexa mistu- CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos ra de mais de 100 oligossacáridos que, além de outras funções, servem como substratos para o desenvolvimento de uma microflora intestinal benéfica pelo alto conteúdo em bifidobactérias. Quanto à tolerância dos pré-bióticos existem diversos estudos que demonstram a inocuidade de oligossacáridos GOS/FOS em doses recomendadas e o normal crescimento e desenvolvimento de lactentes alimentados com fórmulas com este tipo de suplemento funcional. Simbióticos A combinação de probióticos e de pré-bióticos origina o que se designa por simbióticos. Assim, as fórmulas de continuação com simbióticos contêm: – Um inóculo de bactérias produtoras de ácido láctico e leveduras que chegam ao intestino delgado e ao cólon onde desenvolvem uma interacção benéfica com a microflora intestinal – é o probiótico. – Um substrato não digerível nem metabolizável de oligossacáridos neutros que serve de nutriente para certos microrganismos benéficos da microflora intestinal, sobretudo para as bifidobactérias e para os lactobacilos, promovendo o crescimento dos mesmos – é o pré-biótico. Desta combinação resulta uma fórmula com simbiótico. O simbiótico fornece, assim, microrganismos benéficos para uma microflora intestinal mais saudável e, simultaneamente, os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento e actividade. Neste momento, gera-se a dúvida sobre o que será mais importante: a) se reforçar a microflora intestinal benéfica, introduzindo através da fórmula os microrganismos benéficos como as bifidobactérias, os lactobacilos e as leveduras; b) se fornecer oligossacáridos naturais que, servindo de nutrientes, estimulam o desenvolvimento daqueles microrganismos benéficos da microflora intestinal; c) se combinar o probiótico e o pré-biótico para obter um simbiótico com efeito sinérgico e consequente aumento da eficácia das bifidobactérias e dos lactobacilos. Os conhecimentos relativos ao mecanismo de acção dos probióticos e dos pré-bióticos, embora 307 bastante avançados, são ainda restritos. São necessários mais estudos com rigor científico para determinar a sua verdadeira eficácia e segurança. Em suma, a possibilidade de aumentar a eficácia dos probióticos pela sua associação aos prebióticos parece vantajosa, mas deve ser mais averiguada. A suplementação das fórmulas com os mesmos tem sido proposta como meio de reconstituição da microflora intestinal e, assim, recriar o estado ecológico protector do intestino tanto quanto possivel próximo do dos bebés alimentados ao peito. BIBLIOGRAFIA Agostoni C, Axelsson I, Draegger C. ESPGHAN Committee on Nutrition. Prebiotic Bacteria in dietetic products for infants ESPGHAN Committee on Nutrition. JPGN 2004; 38: 365373 Boehm G, Jellinek J, Knol J, et al. Prebiotic and Immune Responses. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 39 (Suppl 3) Boehm G, Stahl B, Jellinek J, et al. Prebiotic Carbohydrates in human milk and formulas Acta Paediatrica 2005; 94 (suppl 449): 18-21 Collins MD, Gibson GR. Probiotcs, prebiotics and symbiotics. Am J Clin Nutr 1999; 69 (SUPPL): 1052S-1057S Diplock AT, Agget PJ, Ashwell M, Bornet F, Ferrum EB, Roberfroid MB. 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Para essas doenças contribuem de modo determinante factores ambientais relacionados fortemente com a alimentação na primeira infância. O adequado estado de nutrição (e de saúde) está, assim, muito dependente de factores relacionados com hábitos alimentares, sendo desejável um correcto plano de alimentação do lactente desde o seu nascimento. São desde há muito conhecidas as vantagens imediatas do leite materno, nomeadamente a protecção conferida por numerosos factores antiinfecciosos. Estudos epidemiológicos recentes têm também registado efeitos benéficos a longo prazo, relativamente à massa corporal, com uma menor prevalência de excesso de peso/obesidade nos alimentados com leite materno, e à pressão arterial, com valores inferiores nos amamentados. É unanimemente reconhecida pelos peritos em nutrição e amplamente recomendada pela OMS, a alimentação com leite materno de modo exclusivo nos primeiros 6 meses de vida. Reitera-se que a alimentação do lactente deve idealmente iniciar-se com o leite materno logo desde os primeiros minutos de vida e durante, pelo menos, o decurso do primeiro ano de vida. Quando não é possível o aleitamento materno, é recomendável a utilização de uma fórmula láctea para lactentes ou de uma fórmula de transição para a maioria dos lactentes, as quais foram abordadas no capítulo 53. Em situações particulares, como os casos de alergia às proteínas do leite de CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida vaca ou de refluxo gastro-esofágico, estão indicadas fórmulas especiais com uma composição adequada para tais situações. A diversificação alimentar A partir do 6º mês de vida, não sendo possível suprir de modo adequado todas as necessidades em macro e micronutrientes com o leite materno como alimentação exclusiva, torna-se necessário iniciar um plano alimentar com introdução progressiva de novos alimentos (começar com pequenas porções). O suprimento energético fornecido pelo leite materno é também claramente insuficiente para a maioria dos lactentes a partir daquela idade. Torna-se ainda importante o fornecimento de oligoelementos a partir de outras fontes alimentares, apontando-se como exemplo mais relevante o ferro. De salientar, no entanto, que o aleitamento materno a par de alimentação diversificada, pode continuar até aos 12 meses. Entre os 6 meses e 12 meses, a par da alimentação diversificada, a alimentação com leite não deve ultrapassar 700 ml/dia nem ser inferior a 500 ml. É o período da chamada diversificação alimentar – conotado com a noção de alimentação não láctea exclusiva – incluindo alimentos não líquidos com características diferentes das do adulto correspondendo a uma programação que, não sendo rígida, deve, no entanto, nortear-se por alguns princípios*. Esses princípios têm basicamente a ver com: a) Necessidade de suprir o lactente de modo adequado em todos os nutrientes, sem risco, quer de certas carências que neste período crítico do crescimento e desenvolvimento conduziriam a alterações irreversíveis a nível físico em diferentes domínios comportamentais, psicomotores, sensoriais e cognitivos, quer de excessos nomeadamente energético e proteico, predispondo a situações de excesso de peso e de obesidade. b) Necessidade de respeitar limitações morfológicas e maturativas próprias dos primeiros meses de vida nomeadamente do tracto digestivo. São exemplos: * Como sinónimos de diversificação alimentar são frequentemente empregues outros termos como: desmame, complementar, suplementar, de transição, weaning, “beikost”, “à-côtés”, solid foods, etc.. 309 – Capacidade gástrica: o volume gástrico vai aumentando progressivamente, desde cerca de 20 ml nas primeiras semanas de vida, até cerca de 250 ml no final do primeiro ano. – Maturação enzimática: nos primeiros meses algumas enzimas importantes para a clivagem de macronutrientes não atingem ainda níveis suficientes. Tal ocorre com a amilase (ainda que a glucoamilase intestinal possa, em parte, participar na digestão do amido ou de moléculas intermédias) e com a tripsina pancreáticas. Também a concentração de sais biliares está diminuída nas primeiras semanas de vida. – Protecção imunológica: nos primeiros meses de vida o sistema imunológico intestinal não está suficientemente desenvolvido, o que permite uma maior permeabilidade à passagem de macromoléculas proteicas com aumento do risco de sensibilização e ocorrência ulterior de alergias alimentares. A diminuição da proteólise intestinal e a deficiência transitória da produção de IgA secretora são factores de maior risco de sensibilização alérgica. c) Desenvolvimento psicomotor e neurocomportamental: a aquisição progressiva de determinadas competências no primeiro ano de vida permite que a criança se vá adaptando aos alimentos semi-sólidos e sólidos introduzidos na boca; pelos 4 a 6 meses – desaparecido o reflexo de extrusão que “expulsa os alimentos não líquidos da boca”, a mobilidade ântero-posterior da língua permite empurrar aqueles para a faringe, assim como a deglutição; entre 6 e 10 meses – surgem movimentos rítmicos do maxilar inferior com tendência para abrir e fechar a boca em aproximação ou em fuga ao alimento; surgindo movimentos de “mastigação” e o controlo manual e ocular, torna-se possível beber líquidos pelo copo; entre os 10 e 12 meses – a capacidade de agarrar os alimentos (em pinça e com a mão) levando-os à boca permite que, a pouco e pouco vá comendo cada vez com “mais autonomia”. d) Maturação progressiva da função renal que condiciona também a alimentação do lactente: – são exemplos de imaturidade renal a incapacidade de manuseamento de sobrecargas de sódio e de concentração renal nas primeiras semanas de vida; desta particularidade decorrem riscos de ocorrência de desidratação hipernatrémica 310 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA com a utilização de alimentos de elevada osmolaridade. e) Necessidade de conhecimento pormenorizado da história familiar de determinadas patologias que poderão condicionar a opção por determinados alimentos, quer quanto à idade indicada para a sua introdução, quer quanto à quantidade recomendada. É o caso da comprovação de patologia alérgica familiar, particularmente nos progenitores e irmãos, que levam a medidas preventivas defendidas pelos principais peritos em nutrição da ESPGHAN e da American Academy of Pediatrics (AAP) os quais recomendam: – Leite materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida. – Fórmula láctea de reduzida alergenicidade na impossibilidade de aleitamento materno. – Início da diversificação alimentar após os primeiros 5/6 meses de vida. – Introdução mais tardia de alguns alimentos nomeadamente o ovo (2 anos) e o peixe (3 anos) Outro exemplo em que a história familiar pode levantar algumas dúvidas relativamente à selecção dos alimentos a introduzir é a que se reporta à existência de dislipidémia familiar, ou simplesmente ao risco aterosclerótico que o consumo de alguns alimentos acarreta, particularmente as fontes alimentares de gordura animal. Relativamente a este grupo de patologia importa referir que não está recomendada qualquer manipulação dietética específica, já que os riscos de dietas restritivas são claramente superiores aos eventuais efeitos benéficos relativamente à expressão fenotípica da dislipidemia ou ao risco de desenvolvimento da aterosclerose, particularmente a médio e longo prazo. De acordo com os peritos de nutrição essa manipulação deverá ocorrer somente a partir dos 24 a 36 meses idade, idade a partir da qual se deve proceder ao rastreio das referidas patologias. Assim, durante aquele período não deve haver restrições à ingestão de gordura, já que os ácidos gordos e o colesterol são vitais para o desenvolvimento do sistema nervoso central e para o crescimento em geral. A idade de início Deve, como acima já se sugeriu, ser iniciada a partir dos 5/6 meses de vida de acordo com as recomendações das OMS. Não há qualquer benefício nutricional em ser iniciada antes dos 5 meses de vida sendo vários os riscos do seu início precoce: – Interferência com a lactação materna: a. diminuição progressiva da produção de leite materno. b. redução da biodisponibilidade da maioria dos macro e micronutrientes do leite materno. – Fornecimento de alimentos com aumento da osmolaridade. Os alimentos sólidos têm, no geral, um teor mais elevado em sódio, de que poderá resultar um maior risco de ocorrência de hipernatrémia. – Maior risco de alergia alimentar pelos motivos já acima referidos. – Suprimento energético excessivo com risco de condicionar excesso de peso ou mesmo obesidade, logo desde o primeiro ano de vida. – Suprimento proteico excessivo que para além da sobrecarga renal, parece ser também um factor que favorece a ocorrência de obesidade. – Suprimento de componentes desnecessários ou mesmo prejudiciais em período ainda muito vulnerável: a. Sacarose, criando desde muito cedo uma maior apetência pelos doces, para além do potencial risco cariogénico. b. Nitratos, com o risco de condicionar o aparecimento de metemoglobinémia c. Fitatos, com interferência na absorção de micronutrientes nomeadamente de oligoelementos, sobretudo ferro, cobre e zinco. d. Aditivos e contaminantes presentes numa grande variedade de alimentos utilizados na alimentação do lactente. A ordem de introdução de novos alimentos Não existe base científica para a recomendação no sentido de se respeitar uma determinada ordem sequencial de introdução de novos alimentos. Há aspectos que terão naturalmente que ser tidos em conta, sobretudo os relacionados com hábitos regionais ou com características sócio-económicas e culturais das famílias. Importa lembrar que os alimentos, de início fornecidos exclusivamente na forma líquida (re- CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida gime lácteo exclusivo nos primeiros 4/6 meses), devem evoluir na textura, que deverá progressivamente passar da cremosa à grumosa e à pastosa, antes dos alimentos fornecidos na forma sólida a partir do 2º ano de vida. Esta evolução é fundamental para uma correcta aprendizagem da mastigação, competência que se verifica progressivamente no lactente a partir dos 7/8 meses de vida. Não estimular o lactente à transição progressiva da textura dos alimentos no decurso do segundo semestre de vida pode levar a grandes dificuldades quanto à aceitação de alimentação sólida e à integração na alimentação familiar no segundo ano de vida. Esta evolução gradual, permitindo que a criança, habituada a deglutir líquidos, retenha por mais tempo na boca os alimentos mais consistentes, submetendo-os, por isso mais tempo à acção da saliva, amolecendo-os, constitui um passo fundamental da educação alimentar no que respeita à aprendizagem da mastigação – aprender a mastigar bem e devagar constitui uma atitude fundamental com benefícios para toda a vida. Os alimentos a introduzir Cereais Os cereais enriquecidos em ferro devem ser dados ao lactente até aos 18 – 24 meses, tendo em conta que a ferropenia é também muito prevalente no segundo ano de vida. Os cereais são fornecidos sob a forma de farinhas, lácteas ou não, constituídas por um ou vários cereais sem ou com glúten, sendo recomendada a utilização de farinhas isentas de glúten nos primeiros seis meses de vida. Constituem uma fonte energética indispensável numa fase em que se verifica uma actividade motora progressiva a qual despende energia. Fornecem amido, vitaminas, minerais, e ácidos gordos essenciais. Estas farinhas são tratadas por hidrólise térmica e enzimática de modo a facilitar a absorção dos seus nutrientes. Frutos São fonte importante de vitaminas e de fibras. Devem privilegiar-se as frutas frescas e maduras evitando as potencialmente alergénicas ou as libertadoras de histamina como os morangos, o kiwi e o pêssego. Não devem adicionar-se na sua pre- 311 paração outros alimentos como o mel ou o açúcar. Aliás não será de esquecer a regra fundamental (respeitando situações especiais): sacarose (e sal) não devem ser acrescentados ao regime alimentar no primeiro ano de vida. Não parece haver nenhuma vantagem em iniciar o fornecimento de fruta sob a forma de sumos relativamente à fruta completa. Os 4 principais açúcares nos sumos são a sacarose, a glucose, a frutose e o sorbitol com diferentes percentagens de absorção e em proporções variáveis de fruto para fruto. A concentração global de hidratos de carbono nos sumos varia de 11 a 16 g/100 ml (0,44 a 0,64 Kcal/ml). Importa lembrar que não devem nunca ser utilizadas bebidas artificiais de fruta actualmente disponíveis no mercado em múltiplas composições. Poderá, em resumo, dizer-se que os sumos não têm qualquer interesse nutricional no primeiro semestre de vida e não oferecem qualquer vantagem relativamente à fruta completa a partir do segundo semestre podendo mesmo, se fornecidos em excesso, condicionar à ocorrência de distúrbios da nutrição. Legumes e produtos hortícolas Fornecem particularmente vitaminas, minerais e fibras que facilitam a formação do bolo fecal exercendo uma acção favorável sobre o peristaltismo intestinal. São inicialmente dados sob a forma de caldos e, posteriormente, sob a forma de purés. Carnes e peixes A melhor fonte de ferro a partir do segundo semestre de vida é a carne. O ferro apresenta-se na forma de ferro hémico com uma biodisponibilidade muito superior à do ferro não-hémico fornecido pelos cereais, legumes e produtos hortícolas. A presença de carne ou de peixe numa refeição favorece a absorção do ferro não-hémico. O teor de gordura fornecido por estes alimentos de origem animal é qualitativamente variável de alimento para alimento. As carnes de ruminantes são mais ricas em ácidos gordos saturados e em ácidos gordos trans. Os peixes são fonte de eleição de ácidos gordos poli-insaturados da série w3, particularmente de ácido eicosapentanóico. A sua utilização deverá ser retardada em situações bem ponderadas nas crianças com antecedentes familiares do- 312 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Leite de crescimento Peixe © Iogurte Puré de legumes com peixe (a) Papa de fruta 0 1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Leite materno exclusivo Leite materno Fórmula láctea Fórmula láctea 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 meses 11 12 meses Farinha de cereais Caldo de legumes com carne (a) (a) Carne total ou peixe - 30 - 35 g/dia (b) Até 2-3 gemas/semana (c) Sem história familiar de atopia Gema de ovo (b) Arroz, massa, leguminosas (d) FIG. 1 Exemplo de diversificação alimentar no primeiro ano de vida. cumentados (progenitor ou irmão) de patologia atópica como se referiu. É suficiente o fornecimento de 30 a 35 gramas de carne ou peixe por dia, começando-se com 10-15 gramas/dia aos 6 meses. Ovos Fornecem todos os aminoácidos essenciais. A gordura encontra-se na sua quase totalidade na gema, onde se encontram também as vitaminas lipossolúveis, estando as hidrossolúveis maioritariamente presentes na clara. A clara do ovo desencadeia com muito mais probabilidade reacções alérgicas do que a gema, pelo que deve ser iniciada mais tardiamente, ou seja a partir do primeiro ano de vida (ou após os dois anos em situações com antecedentes familiares de patologia alérgica). Os ovos devem ser dados cozidos, alternando com carne ou peixe. Iogurtes Embora se trate um alimento obtido do leite de vaca sem modificação qualitativa, é bem tolerado pela diminuição do conteúdo em lactose e pela hidrólise parcial das suas proteínas; tem, tal como o leite completo, um teor elevado em ácidos gordos saturados. Recomenda-se a sua utilização a partir dos 10 meses. Estão actualmente disponíveis no mercado iogurtes com uma composição qualitativa mais adequada ao lactente pelo que a sua utilização poderá iniciar-se um pouco mais precocemente. Leguminosas frescas e secas Têm um teor muito mais elevado em proteínas do que os produtos hortícolas e são também fonte importante de oligoelementos, vitaminas e fibras. Podem ser oferecidos na alimentação a partir dos 10 meses, mas em pequenas quantidades para evitar flatulência e favorecer a digestão. Leite de vaca em natureza O leite de vaca em natureza não deverá ser utilizado no primeiro ano de vida. Com efeito, o leite de vaca não fornece os nutrientes de modo adequado às necessidades da criança nesta faixa CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida etária: é elevado o seu teor em ácidos gordos saturados e é muito reduzido o conteúdo em ácidos gordos essenciais. No 2º ano de vida é ainda prevalente a ferropenia como se referiu, tendo o leite de vaca um teor de ferro que, além de baixo, é muito pouco biodisponível. Exemplifica-se na Figura 1, um plano de diversificação alimentar no decurso do primeiro ano de vida. (consultar capítulo 53). Aspectos práticos São enumeradas a seguir algumas regras práticas em relação com a alimentação diversificada. 1 – Não deve forçar-se o lactente à ingestão da totalidade do volume da refeição oferecida. É importante que o lactente controle a ingestão alimentar em função da sua saciedade que pode variar ao longo do dia e dos dias. Regimes hiperproteicos e hiperenergéticos são a principal causa de excesso de peso e de obesidade logo desde o primeiro ano de vida. 2 – Não deve adicionar-se açúcar aos alimentos (leite, iogurte, etc.) que, para além de criar a apetência pelo doce, tem ainda um indesejável efeito cariogénico. Também o mel, qualquer que seja a forma de apresentação, não traz qualquer vantagem nutricional podendo mesmo haver alguns riscos, pelo que não deve ser dado, pelo menos no primeiro ano de vida. 3 – Proscrita deve ser também a adição de edulcorantes como o aspartame. Com efeito, o aspartame inclui metanol (10%) para além do ácido aspártico (40%) e fenilalanina (50%). A sua adição pode provocar efeitos indesejáveis alguns dos quais de difícil identificação no lactente. 4 – Nunca é de mais repetir: não é necessária nem desejável a adição de sal aos alimentos; o respectivo teor de sal intrínseco é suficiente para suprir as necessidades diárias em sódio. 5 – A partir do início da alimentação diversificada, os alimentos não líquidos devem ser dados à colher. Trata-se duma regra básica da educação alimentar. Para além dos aspectos estritamente nutricionais, há que atender à estimulação progressiva com a aquisição de experiências sensoriais (tácteis, térmicas, gustativas, etc.). 6 – Por outro lado, para que a digestão dos alimentos sólidos dados (inicialmente farinha de 313 cereais e depois legumes) se realize eficazmente é indispensável que os mesmos tenham um contacto relativamente prolongado com a saliva e maior permanência na boca. Inversamente, a maior rapidez com que os alimentos passam pela boca quando administrados por biberão, impede a sua mistura homogénea com a saliva, comprometendo, por isso, a digestão. 7 – Refira-se que é possível verificar um comportamento de sensibilidade ao sódio desde a primeira infância o que aumenta o risco de valores elevados de pressão arterial logo desde os primeiros anos de vida. 8 – Sublinhe-se a este respeito que os alimentos enlatados podem conter grandes quantidades de açúcar e de sal, para além de outros conservantes, devendo, por isso, estar proscritos na alimentação do lactente. O suprimento em fibras não deve ser preocupação durante o primeiro ano de vida. 9 – Apenas a partir dos 2 anos de vida se recomenda um suprimento mínimo de fibra equivalente à idade mais 5 gramas/dia. Sugeremse como limites de segurança para a criança, os valores de 5 a 10 gramas/dia. 10 – Uma oferta variada de alimentos é outra atitude que contribui para o estabelecimento de bons hábitos alimentares em etapas posteriores da vida; de notar que a monotonia do regime favorece a anorexia. 11 – Uma referência importante relativamente à consistência dos alimentos sólidos (legumes, carne e peixe, etc.) e às sensações tácteis e gustativas que os mesmos despertam. Tais alimentos devem ser dados de forma progressivamente menos fraccionada e mais consistente; desaconselha-se, por isso, a utilização por tempo muito prolongado de máquinas trituradoras que transformam os alimentos sólidos em semi-líquidos ou cremosos muito fluidos; passagem progressiva da trituradora eléctrica para o clássico “passe-vite” manual. 12 – Não deverá igualmente ser esquecida a componente social dos actos alimentares e das refeições; idealmente a criança deverá (deveria, na medida do possível) ter as suas refeições convivendo com a família. Fontes alimentares Especifica-se, a seguir, a composição de algumas TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Relativamente a estes alimentos salienta-se a composição em ferro (respectivamente em mg/100 gramas e em mg/ 1 ovo)) das seguintes variedades: Cereais (composição por 100 g) Ferro (mg) Proteínas (g) Glúcidos (g) Arroz Trigo Soja Milho 7,3 12,6 36,8 8,3 85,8 68,5 23,5 75,3 Em regra o valor calórico por 100 gramas é cerca de 400 kcal. A sua constituição é sobretudo à base de glúcidos, polissacáridos, amido e pequenas quantidades de proteínas vegetais, ácidos gordos essenciais, minerais e vitaminas do complexo B. Cereais manipulados (composição por 100 g) Proteínas (g) Energia (kCal) Cálcio (mg) Massa Pão branco Pão de mistura 8,7 358 7 6,3 246 110 6,5 278 100 Frutos (composição por 100 g) Vitamina C (mg) Fibra (g) Maçã 14 1,6 Pera Banana Laranja 6 11 54 2,2 1,1 1,2 Ferro (mg) Frango 0,7 Coelho 1,7 Vaca Porco 1 ovo 1 0,8 1,9 Pescada Linguado 1,0 0,6 A carne e o peixe contêm cerca de 15-20% de proteínas/100 gramas e, entre 5-10% de gordura/100 gramas. Um ovo de 60 gramas fornece cerca de 80 kcal e a mesma quantidade de proteínas que 10 gramas de carne ou peixe. Leguminosas (composição por 100 g) Quanto a estes alimentos (fornecendo cerca de 816 gramas de proteínas/100 gramas) salienta-se a composição em ferro, cálcio, magnésio, fósforo e fibra das seguintes variedades: Ervilha Feijão Lentilha Grão Ferro (mg) 1,5 6 3,5 1,2 Cálcio (mg) 19 89 22 0,4 Magnésio (mg) 29 150 34 – Fósforo (mg) 130 360 130 – Fibra (g) 4,5 10 3,8 2,5 Produtos lácteos (composição por 100 g) Iogurte Legumes/hortaliças (composição por 100 g) Em geral as hortaliças e verduras (cenoura, batata, abóbora, alface) têm um baixo valor calórico –cerca de 40 a 80 kcal/100 gramas, sendo fonte importante de minerais, oligoelementos, vitaminas, alto conteúdo em celulose e variável de fibras. Proteínas (g) Glúcidos (g) Lípidos (g) Cálcio (mg) Leite inteiro 30 4,6 3,0 126 3,2 4,3 3,2 125 Leite (fórmula padrão): 500 ml ◊ Leite materno: 500 ml ◊ 30 0,2 14 850 335 Kcal 335 - 370 Kcal Leite de vaca em natureza: ◊ Carne, peixe e ovo (composição por 100 g) Queijo Leites (valor energético) Ⲙ As papas de frutas de preparação caseira têm um valor calórico aproximado de 120 kcal/100 gramas; salienta-se que o valor calórico dos preparados comerciais (boiões) é cerca de 220 kcal/100 ml. Ⲙ fontes alimentares utilizadas na composição da alimentação diversificada. Ⲙ 314 300 - 438 Kcal Seguidamente são referidos exemplos práticos CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida de regimes alimentares aplicáveis a crianças saudáveis até ao 1 ano de idade. Plano de refeições • 1.º Trimestre Refeições de leite: – Materno (n.º variável) ou – Fórmula: 6 biberões • 2.º e 3.º Trimestre Refeições de leite: – Materno (n.º variável) ou – Fórmula: 3 biberões Alimentos sólidos: – Farinha / cereais: 1 (após 4 meses) – Refeição diversificada (caldo de legumes): 1 (após 5 meses) – Introduzir fruta a partir dos 6 meses • 4.º Trimestre Refeições de leite: – Fórmula: 1 biberão Alimentos sólidos: – Farinha de cereais: 1 – Refeição diversificada com sobremesa de fruta: 2 315 Nota: Tratando-se de alimentação com fórmula/leite, o nº de biberões pode variar (± 1) em função do volume de leite distribuído pelo número de biberões/dia. O Quadro 1 exemplifica um esquema alimentar diário para criança de 6-7 meses. Nesta refeição tipo os legumes podem ser cozidos no vapor empregando um utensílio apropriado ou um simples passador de rede que se coloca numa caçarola com água fervente. No passador , que não deve mergulhar na água, colocam-se os legumes que devem ser cozidos tapados. Depois de cozidos, os legumes passam-se na trituradora manual ou eléctrica. A refeição designada por “◊ Fruta” poderá ser dada duas vezes por dia, a seguir a cada uma das sopas, em função do apetite e características da criança. Neste esquema a que corresponde o valor calórico total (VCT) de 696 kcal/dia para o peso ~ 7.700 gramas <> 93 kcal/kg/dia, as percentagens de VC estão assim distribuídas: Glúcidos ~64%; Proteínas ~11%; Lípidos~ 25%. As quantidades dos ingredientes destas refeições são pesadas somente quando se realizam os primeiros cozinhados.A prática e a utilização QUADRO 1 – Exemplo de esquema alimentar diário para criança de 6 –7 meses ◊ Fórmula/Leite de transição a 15% (2 x 200 ml) ◊ Farinha não láctea (*) pó de farinha: 40 g leite de transição: 2 medidas Água: 200 ml ◊ Caldo de legumes(2x 200 ml) (“) Cenoura: 50 g Cebola: 50 g Batata: 120 g Hortaliça: 30 g Carne ou peixe: 10 g (#) Azeite cru (no fim da cozedura) (1 colher das de sobremesa) ◊ Fruta: 60 g Total: Proteínas (g) Gorduras (g) Hidratos de Carbono (g) 8,9 12,2 31,8 3,6 2,0 1,6 2,7 0,6 2,1 41,0 35,6 5,4 6,9 0,3 0,5 3,0 1,0 2,1 – 5,0 0,1 – 0,3 0,6 4,0 29,7 3,2 1,9 24,0 0,6 – – 0,4 19,6 – 19,6 8,0 110,2 (*) A partir dos 10 meses a refeição de cereais poderá ser substituída por 1 iogurte natural adicionado de 4 bolachas, sem açúcar; g= gramas; (“) A designação de caldo ou puré de legumes relaciona-se com a consistência da refeição diversificada em função do volume de água utilizado; (# Carne: depois dos 6-7 meses, peixe depois dos 7-8 meses com incremento progressivo até 30-35 gramas/dia – fase de 2 refeições diversificadas com carne ou peixe, por dia) 316 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de referências várias, como colheres,chávenas, etc., dispensam depois tais pesagens. on Nutrition. Nondigestible carbohydrates in the diets of infants and young children: a commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. Pediatr Gastroenterol Como exemplo de refeição diversificada inclindo leguminosas secas (grão ou feijão ou ervilha ou lentilha) mais consistente que o caldo ou sopa de legumes (tipo puré) a introduzir cerca dos 10 meses para substituir uma das duas sopas de legumes mencionadas no esquema anterior, são descritas duas variedades de puré de leguminosas secas: Nutr 2003; 36: 329-37 American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition. Hypoallergenic Infant Formulas. Pediatrics 2000; 106: 346-9 American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition. The Use and Misuse of Fruit Juice in Pediatrics. Pediatrics 2001; 107: 1210-1213 de Onis M, Garza C, Victora CG, Onyango AW, Frongillo EA, Martines J. The WHO Multicentre Growth Reference Study: planning, study design, and methodology. Food Nutr Bull 1 – Puré de lentilhas – gema de ovo –1 – massa/estrelinha- 15 gramas – lentilhas-35 gramas – cebola-30 gramas – tomate-40 gramas – azeite (no fim da confecção) - 5 gramas – água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc. 2004; 25: S15-26 Department of Health Report on Health and Social Subjects No. 45. Weaning and The Weaning Diet. Report of the Working Group on the Weaning Diet of the Committee on Medical Aspects of Food Policy. HMSO, London, 1994 ESPGAN Committee on Nutrition. European Society of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. Committee report: childhood diet and prevention of coronary heart disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1994; 19: 261-269 ESPGAN Committee on Nutrition. Pediatr Gastroenterol Nutr A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é: 1cc./ 1 kcal. Tratando-se duma refeição mais consistente, prevê-se que se ofereça água por copo à criança, alternando com as colheres que vão sendo dadas. 2003; 36: 329-377 Gomes- Pedro J, Silva AC (eds). Nutrição Pediátrica. Lisboa: ACSM / Mead Johnson Nutritionals, 2006 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 2 – Puré de feijão (com carne ou peixe) – carne –25 gramas; ou peixe-30 gramas – massa /estrelinha- 20 gramas – feijão -35 gramas – cebola-30 gramas – azeite (no fim da confecção) - 5 gramas – água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc. Kramer MS, Kakuma R. Optimal duration of exclusive breastfeeding. Cochrane Database Syst Rev 2002; (1): CD003517. Rego C, Ribeiro L, Guerra A. Fórmulas lácteas infantis: uma visão actualizada da realidade em Portugal. Acta Pediatr Port 2002; 33: 257-274 Rudolph DC, Rudolph AM (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw-Hill, 2002 Sabido F. Alimentação do Lactente. Lisboa: Edição do autor, A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é: 1cc./ 1 kcal. Como pormenor da confecção dos “purés de leguminosas secas”, estas deverão ser postas de molho de água desde a véspera para uma correcta lavagem; depois desta operação as lentilhas levam-se ao lume com os restantes ingredientes e com nova água. 1997 Teixeira Santos N. Alimentação Diversificada in Ballabriga A TH (ed). X Workshop Nestlé Infant Nutrition (Monografia) Lausanne: Nestlé, 1997 Wharton B. Patterns of Complementary feeding (Weaning) in Countries of the European Union: Topics for research. Pediatrics 2000: 106 (supll): 1273-1274 Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958 BIBLIOGRAFIA Aggett PJ, Agostoni C, Axelsson I, Edwards CA, Goulet O, Hernell O, Koletzko B, Lafeber HN, Micheli JL, Michaelsen KF, Rigo J, Szajewska H, Weaver LT; ESPGHAN Committee CAPÍTULO 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência 56 ALIMENTAÇÃO APÓS O PRIMEIRO ANO DE VIDA INCLUINDO AS IDADES PRÉ-ESCOLAR, ESCOLAR E ADOLESCÊNCIA Ignacio Villa Elizaga Importância do problema Uma vez completado o primeiro ano de vida a velocidade de crescimento diminui. Por isso, é natural que as necessidades nutricionais da criança se reduzam o que se traduz em grande variabilidade no apetite no dia a dia. Este facto preocupando os pais menos esclarecidos com a falsa “falta de apetite” duma criança que mantém a sua actividade normal e aparentando perfeita saúde, obrigará o médico assistente e o profissional de saúde a um exercício contínuo da tarefa de educação para a saúde, desmistificando certos receios infundados. Princípios gerais São definidos alguns princípios a seguir para uma alimentação saudável, com especial incidência para o período após os 1-2 anos de vida em que a criança passa progressivamente a estar integrada no regime familiar: 1. Suprimento de gorduras não ultrapassando 35% do valor calórico total (VCT) com um teor de gorduras saturadas inferior a 10% do VCT, suprimento de colesterol não excedendo 300 mg/dia ácidos gordos poli-insaturados (7-8% do VCT), e ácidos gordos mono-insaturados (12-13% do VCT). Utilização de óleos vegetais em vez de gor- 317 dura de origem animal (privilegiando, designadamente o azeite “em natureza, cru, não aquecido” e nunca óleo de palma nem óleo de coco). As crianças com menos de 2 anos são, como foi dito excluídas, destas recomendações específicas dado que as gorduras constituem uma fonte importante de energia para o regime alimentar. 2. Consumo diário de frutas e verduras, aumentando-o progressivamente; a partir dos 2 anos o consumo de fibras. 3. Consumo de lácteos ou derivados: 500 a 750 ml diários, em função da idade. Refira- se que depois do primeiro ano de vida o leite de vaca inteiro dá um contributo importante ao regime alimentar da maioria das crianças. 4. Fomentar o consumo de carne magra branca (por ex. frango sem pele), peixe, evitando a ingestão de enchidos. 5. Incrementar a ingestão de alimentos ricos em hidratos de carbono complexos e com resíduos como arroz, cereais, farinha de milho, reduzindo, por outro lado, o consumo de açúcares refinados(máximo de sacarose: 20-30 gramas, em função da idade). 6. Consumo de sal mínimo (3-5 gramas/dia) e, caso possível, eliminá-lo do regime alimentar. 7. Promover um regime variado ao longo do dia incluindo alimentos de todos os grupos e um máximo de três ovos por semana. 8. Às refeições utilizar água em detrimento de sumos não naturais. 9. Realizar quatro ou cinco refeições diárias incluindo uma a meio da manhã e uma a meio da tarde (intercalares), se possível à base de fruta 10. Evitar comer entre as refeições. 11. Estimular que a criança coma por si só, habituando- a a normas de higiene. 12. Estimular a actividade física, (designadamente evitando o sedentarismo, tipificado, por exemplo pelo número excessivo de horas à frente da televisão ou do computador a jogar e a comer snacks ou sumos hipercalóricos). 13. Estabelecer um equilíbrio entre o suprimento alimentar e o consumo energético para garantir um peso saudável. 14. Suprimir o consumo de bebidas de cola, com edulcorantes, de guloseimas ou de bolos de pastelaria em geral confeccionados à base de gorduras saturadas, evitando quer a estratégia de uti- 318 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA lizar tais produtos como recompensa ou entretenimento, quer a sua proibição absoluta, em favor de uma diminuição escalonada sob pena de fracasso tendo em conta o fácil acesso e o “poder” da publicidade. Promoção de um bom pequeno almoço 1. O dia deve ser iniciado com um pequeno almoço garantindo um suporte nutricional adequado em quantidade e qualidade. As principais vantagens são, por um lado, melhorar o rendimento físico e intelectual com repercussão positiva no trabalho escolar e, por outro, diminuir a probabilidade de consumo de “snacks” prevenindo a obesidade. 2. É de realçar que a omissão do pequeno almoço interfere nos processos cognitivo e de aprendizagem, sobretudo nas crianças consideradas de risco nutricional. 3. Esta refeição deve conter hidratos de carbono complexos em detrimento dos alimentos ricos em gorduras. Aconselha- se a tríade de grupos de alimentos composta respectivamente por lácteos (leite, iogurte), cereais ou pão, e frutas frescas com o objectivo de se alcançar, com tal suprimento, 20-25% do VCT diário. 4. É igualmente desejável que tal refeição não seja rápida, dedicando-lhe entre 15-20 minutos e seja realizada em ambiente calmo, com a criança sentada à mesa com a família. 5. Torna-se evidente que todas as acções de educação alimentar dirigidas à criança serão mais eficazes se igualmente forem praticadas pelos restantes membros do agregado familiar. A merenda Nesta refeição intercalar a meio da tarde são desaconselhadas igualmente bebidas derivadas da cola, sumos não naturais ou “snacks”. Haverá que evitar os alimentos hipercalóricos e com ácidos gordos saturados(certas margarinas, pastelaria industrial e enchidos, etc.) procurando que se realize a uma hora que não produza saciedade para garantir a não interferência com a refeição seguinte (o jantar). Exemplo de ementa (criança de 1-2 anos) Discrimina-se, a seguir, um exemplo de regime alimentar a realizar num dia para uma criança de 1-2 anos concretizando, na prática, alguns dos princípios gerais anteriormente mencionados. Pequeno almoço – 1 prato com leite gordo /leite de continuação (80-100 c.c.+cereais (± 100 gramas) ou 1 ovo cozido – 1 copo de sumo de fruta (100-120 c.c.) ou banana média ou 2-3 morangos grandes (ou outra fruta). Refeição intercalar (a meio da manhã ) – Fatia de pão torrado ou 1 papo-seco (de preferência de pão escuro) com queijo fresco (5 gramas) ou manteiga de girassol sem sal (5 gramas) ou – 1 sumo de fruta natural (100-120 c.c.). Almoço – 1 prato de sopa de legumes (100-120 c.c.); – 1 prato à base de arroz ou massa ou batata ~ 200 gramas, incluindo legumes verdes, reforçado com: peixe; ou carne (40-50 gramas/refeição); ou ovo cozido, este último até 3 vezes/semana – 1/2 a 1 peça de fruta ralada (natural ou cozida) sem açúcar. Merenda (a meio da tarde) – 1/2 a 1 papo-seco com queijo freco ou manteiga de girassol sem sal ou com fiambre magro e 1 copo de leite idem ou 1 iogurte natural com 1 peça de fruta ou 1 chávena de leite idem com 45 colheres de cereais e 1 peça de fruta. Jantar – Semelhante ao almoço, variando os ingredientes e o tipo de sopa. A partir da idade dos 6 anos é desejável que a criança, com o apoio da família, receba ensinamentos tomando como exemplo chamada “Pirâmide dos alimentos”(Figura 1). Com esta simbologia é apresentada uma pirâmide com diversas faces, com “escadas” da base para o vértice cada uma com a sua cor, sendo que cada cor representa determinado tipo de nutriente: – cor de laranja → cereais – cor verde → vegetais – cor de tijolo → frutos CAPÍTULO 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência 319 GORDURA, ÓLEOS E DOCES Alimentos altamente calóricos; Podem levar à obesidade, doença cardiovascular e outras patologias Use moderadamente CARNE, PEIXE, OVOS, LEG. SECAS E FRUTOS SECOS LEITE, IOGURTE E QUEIJO Importante fonte de proteínas e minerais 2 - 3 porções Importante fonte de proteínas e minerais 2 - 3 porções VEGETAIS FRUTAS Alimentos reguladores Fonte de vitaminas, minerais e fibras 3 - 5 porções Alimentos reguladores Fonte de vitaminas, minerais e fibras 2 - 4 porções PÃO, ARROZ, CEREAIS E MASSAS ALIMENTÍCIAS Ricos em hidratos de carbono complexos importante fonte de energia 6 - 11 porções FIG. 1 Pirâmide alimentar. – cor azul → leite e derivados – cor roxa → carne e leguminosas secas – cor amarela → gorduras A imagem “Pirâmide” pretende significar que não existe um só guia alimentar para todos os indivíduos; efectivamente as necessidades em nutrientes variam conforme a idade, sexo, peso, altura e tipo de actividade física. Cada indivíduo pode, assim, aceder à sua pirâmide através do sítio “my pyramid.gov”. Este programa permite planear um esquema alimentar adaptado a cada caso/pessoa no que respeita aos nutrientes atrás discriminados. Tendo em consideração a realidade actual da “fast-food” e os períodos em que a criança e jovem estão fora de casa, a ingestão de alimentos do referido tipo não deverá verificar-se mais de 2 vezes/semana. Alimentação na adolescência Na adolescência (~11 -18 anos) as necessidades nutricionais têm em consideração as características especiais de crescimento rápido e o tipo de actividade física desenvolvida . De acordo com o Food Nutrition Board-National Research Council dos Estados Unidos, as RDA (Recommended Dietary Allowances) apontam para os seguintes valores: 11-14 anos (peso médio: 45 kg) – proteínas: 45g–46 g – kcal: 2200-2700 320 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA (sexo F - sexo M) 15-18 anos (peso médio: 55-65 kg) – proteínas: 46-56 g – kcal: 2100-2800 (sexo F - sexo M) Rudolph DC, Rudolph AM (eds). Rudolph’s Pediatrics New York: Mc Graw-Hill, 2002 Sabido F. Alimentação do Lactente Lisboa: Edição do autor, 1997 Wharton B. Patterns of Complementary feeding (Weaning) in Countries of the European Union: Topics for research. Pediatrics 2000: 106 (supll): 1273-1274 O suprimento de hidratos de carbono deverá corresponder a 50% do valor calórico total(VCT); deduzindo-se o suprimento energético em proteínas atrás referido (globalmente entre 45-56 g/dia), atribui-se às gorduras a restante percentagem do VCT. Ao longo do dia a ingestão deverá ser dividida por cinco refeições com a seguinte repartição do VCT: Pequeno almoço- 20 % Refeição intercalar da manhã-10% Almoço-30% Merenda ou refeição intercalar da tarde-10% Jantar-30%. Poderá realizar-se eventualmente uma sexta refeição à noite(ceia constando de leite e 1-2 bolachas sem açúcar), devendo a percentagem do VCT atribuída ao jantar ser distribuída por este e pela ceia. BIBLIOGRAFIA American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition. The Use and Misuse of Fruit Juice in Pediatrics. Pediatrics 2001; 107: 1210-1213 de Onis M, Garza C, Victora CG, Onyango AW, Frongillo EA, Martines J. The WHO Multicentre Growth Reference Study: planning, study design, and methodology. Food Nutr Bull 2004; 25: S15-26 Department of Health Report on Health and Social Subjects No. 45. Weaning and The Weaning Diet. Report of the Working Group on the Weaning Diet of the Committee on Medical Aspects of Food Policy. HMSO, London, 1994 ESPGAN Committee on Nutrition. European Society of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. Committee report: childhood diet and prevention of coronary heart disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1994; 19: 261-269 ESPGAN Committee on Nutrition. Pediatr Gastroenterol Nutr 2003; 36: 329-337 Gomes- Pedro J, Silva AC. (eds) Nutrição Pediátrica. Lisboa: ACSM / Mead Johnson Nutritionals, 2006 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Saunders Elsevier, 2007 Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958 CAPÍTULO 57 Obesidade 57 OBESIDADE Carla Rego Importância do problema Em Março de 1997 a obesidade foi definida como uma doença crónica pelo Consenso Internacional para a Obesidade realizado em Washington DC. Considerada um dramático problema de saúde pública – a epidemia do século XXI - e uma das doenças mais difíceis e frustrantes de tratar, a obesidade é hoje encarada como uma síndroma complexa, multifactorial crónica, conducente a alterações físicas, psíquicas e sociais graves, com a sua génese na idade pediátrica. De ressaltar dois factos importantes: uma comprovada associação de maior risco de obesidade no adulto quando esta ocorre em idade pediátrica (aproximadamente 50-75% dos adultos obesos apresentaram obesidade durante aquele período); e os elevados custos que a situação só por si acarreta, acrescida dos elevados e irreversíveis custos pessoais e sociais inerentes às suas complicações que, cada vez mais, surgem em idades cada vez mais precoces. É, pois, inquestionável a responsabilidade de quem lida com crianças na educação, na saúde e na modulação de comportamentos. Definição Por definição simples, obesidade é um excesso de gordura corporal total. Em idade pediátrica a distinção entre excesso de peso e obesidade é ainda uma questão em debate devido às características dinâmicas do processo de crescimento e maturação. Esta dificuldade é acrescida por outras duas razões: a inexistência de um método simples, de baixo custo, confiável e reprodutível, de quantificação da gordura corporal total, e a inexistência de 321 padrões de referência para valores de massa gorda durante o crescimento que permitam identificar indivíduos consideradas de risco, moderado ou elevado, de patologia cardiovascular ou metabólica na infância e adolescência. O índice de massa corporal (IMC = peso/ estatura2) foi recentemente recomendado pela OMS como um método simples e barato para o rastreio da obesidade, nomeadamente da obesidade pediátrica, devido à sua forte correlação com a magnitude da adiposidade, quer em crianças/ adolescentes, quer em adultos. O valor do IMC em idade pediátrica deve ser considerado em curvas de percentis e em função do sexo e da idade, tendo como base tabelas de referência (Capítulo 19). Valores de IMC superiores ou iguais ao percentil 85 e inferiores ao 95 definem uma situação de excesso de peso / risco de obesidade, enquanto valores superiores ou iguais ao percentil 95 definem uma situação de obesidade. Segundo as recomendações da International Obesity Task Force (IOTF) – Childhood Obesity Group, deverão ser adoptados as tabelas de Cole por duas razões: para se comparar taxas de prevalência entre diferentes países; e para relacionar os valores do percentil de IMC 85 e 95 respectivamente com os valores 25 e 29,9 do adulto possibilitando extrapolar, já na idade pediátrica, os riscos futuros da obesidade na idade adulta. Recorde-se, a propósito, os critérios utilizados para a definição de excesso de peso e de obesidade com base no IMC, no adulto: – Execesso de peso: 25 - 29,9 – Obesidade: ≥ 30 Aspectos epidemiológicos A obesidade atingiu proporções epidémicas em todo o mundo registando-se, sobretudo nas últimas duas décadas, um aumento transversal da sua prevalência a nível mundial. Actualmente prevê-se que cerca de 250 milhões de pessoas, o que equivale aproximadamente a 7% da população mundial, apresente obesidade. Pela primeira vez na história do Homem, a sua prevalência excedeu a da desnutrição, tendo adquirido o estatuto da patologia do foro nutricional mais frequente, não só em países tecnologicamente desenvolvidos como em países em 322 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA desenvolvimento. Um dos exemplos mais extremos reporta-se aos Estados Unidos onde, entre a avaliação de 1976-1980 (National Health and Nutrition Examination Survey IV) e a recentemente efectuada entre 1999-2002, a prevalência de excesso de peso duplicou em crianças (6-11 anos) e triplicou nos adolescentes (12-17 anos). No que respeita à obesidade, cerca de 14-15% dos adolescentes de 15 anos nos EUA são obesos, registandose uma predisposição particularmente elevada entre os afro-americanos, hispânicos e índios Pima. De acordo com estudos efectuados em vários países europeus verificou-se maior prevalência de excesso de peso nos países de ocidente e sul, atingindo valores entre 20-40% nos países que rodeiam a bacia do Mediterrâneo, enquanto os do norte apresentam taxas na ordem dos 10-20%. Em Portugal existem actualmente os registos de dois estudos transversais que apontam para valores de prevalência de excesso de peso e obesidade em crianças (7 – 10 anos) respectivamente de 20,3% e 11,3 %, e em adolescentes de 11 - 15 anos valores de 12,9% e 3,6% respectivamente. Mais preocupantes são os valores encontrados nos Açores onde, em 2002, a prevalência de excesso de peso e de obesidade no arquipélago atingiu 15% e 12% respectivamente. Regista-se uma forte estabilidade (ou tendência para se manter a situação) entre a ocorrência de obesidade na infância e na idade adulta. Sendo conhecida a elevada comorbilidade associada à obesidade na idade adulta, é de referir que o aumento da prevalência mundial de obesidade na idade pediátrica tem sido também acompanhado de um aumento das complicações médicas a ela associadas. Para além dos elevados custos que acarreta esta doença crónica, ela cursa com elevada mortalidade em todas as idades. As estratégias de prevenção, a detecção e intervenção precoces e a avaliação das tendências de prevalência na população mundial são imprescindíveis para a redução do compromisso da saúde das gerações futuras. Etiopatogénese Genes e sistema neuroendócrino A evolução filogenética da espécie humana mostra-nos que o Homem sempre esteve sujeito a situações de estresse, funcionando a maior capacidade de acumular energia sob a forma de gordura como factor de selecção natural. Esta capacidade genética em acumular energia e o actual estilo de vida – elevados índices de sedentarismo e acesso fácil a ingestão de alimentos de elevada carga calórica – contribuem, em associação e potenciando-se, para o aumento do peso e para a obesidade. Em indivíduos mais susceptíveis, na dependência da sua predisposição genética, o actual estilo de vida condicionará um balanço energético positivo responsável pela acumulação gradual de massa gorda e consequente ocorrência de obesidade, dita primária ou nutricional, a mais prevalente em idade pediátrica (95-97% dos casos). O mapa genético da obesidade humana continua a desenvolver-se, estando identificados na mais recente actualização cerca de 430 genes, marcadores e regiões cromossómicas associadas ou ligadas a fenótipos da obesidade humana. Todos os cromossomas, excepto o Y, apresentam loci implicados no fenótipo da obesidade, registandose uma especificidade de alguns genes para a ocorrência particular de obesidade visceral. Assim, é altamente provável que a obesidade humana tenha características de hereditariedade poligénica, com uma susceptibilidade na dependência de factores genéticos complexos. Para além da reconhecida importância de vários genes determinantes do aumento de prevalência da obesidade humana, existem situações na dependência de alterações monogénicas. A leptina foi a primeira substância a que corresponde gene específico reconhecida como um importante regulador do peso na espécie humana. Actualmente várias síndromas de obesidade monogénica estão descritas e identificadas, e a maioria envolve a via reguladora leptinamelanocortina. O início precoce de uma obesidade com características de gravidade é uma característica comum na obesidade monogénica, e entre os novos genes em estudo, estão já identificados o gene da leptina, do receptor pro-opiomelanocortina da leptina (POMC), da pró-hormona convertase 1 e do receptor 3 e 4 da melanocortina. As mutações do receptor 4 da melanocortina (MC4R) são a mais frequente causa de obesidade humana monogénica conhecida, ocorrendo em cerca de 4% dos casos de obesidade pediátrica grave. CAPÍTULO 57 Obesidade No que respeita aos mecanisos endógenos da regulação do peso cabe salientar as seguintes noções: 1) O controlo da ingestão alimentar (apetite e saciedade) verifica-se através dum mecanismo neuroendócrino de retorno com ponto de partida no tecido adiposo e tracto gastrintestinal (hormonas) e dirigido ao SNC (nucleus arcuato); 2) As hormonas gastrintestinais tais como a colecistoquinina (CCK), o péptido 1 semelhante ao glucagom e o péptido PYY promovem saciedade, enquanto a grelina estimula o apetite; 3) O tecido adiposo liberta leptina e adiponectina; 4) As hormonas actuam ao nível do nucleus arcuato onde existem centros receptores relacionados, quer com a estimulação, quer com a inibição do apetite. Com a intervenção de neuropéptidos actuando como mediadores da grelina ao nível do nucleus arcuato (NA), verificam-se os seguintes mecanismos: a grelina tem efeito positivo na área da estimulação do apetite do referido NA, enquanto o PYY e a leptina têm efeito negativo; a CCK e a leptina têm efeito positivo na área de inibição do apetite do NA; isto é, a leptina actua, de modo diverso nas referidas 2 áreas do NA. De modo muito sucinto pode afirmar-se que os defeitos genéticos relacionados com as hormonas, receptores e ou mediadores implicados neste complexo sistema de regulação neuroendócrina podem conduzir a alterações do apetite e a obesidade. Ambiente e factores biológicos Conforme foi referido, aparentemente os genes desempenham um papel permissivo e interagem com os factores ambientais no sentido da ocorrência de obesidade. Para além da importância moduladora do ambiente in utero, por exemplo, quer em relação com hiperglicémia, quer com má nutrição fetal, assume-se que a chamada influência programada na dependência do ambiente é determinante nos primeiros tempos de vida; isto é, deixa marcas para o futuro, o que corresponde à noção de “Programming”. Assim, a alimentação neonatal e nos primeiros anos de vida parece desempenhar um papel importante no risco de ocorrência de obesidade. A duração do aleitamento materno e o teor de ingesta proteica são, entre outros, alguns dos factores apontados por alguns autores como, 323 respectivamente protegendo de, ou favorecendo obesidade. Com efeito, lactentes alimentados com fórmulas lácteas têm um suprimento energético e proteico superior ao registado em lactentes alimentados exclusivamente com leite materno. De igual modo os níveis circulantes de IGF-I são também superiores nos alimentados com fórmulas lácteas, provavelmente na dependência da maior ingestão de proteínas. É possível que outros factores biológicos fornecidos pelo leite tenham também um papel importante na produção de IGF-1. Verifica-se, por outro lado, que a relação insulina/glicose é significativamente superior nos lactentes alimentados com fórmulas lácteas relativamente aos alimentados com leite materno. É possível que a maior secreção de insulina esteja associada a um maior suprimento alimentar em aminoácidos de cadeia ramificada (leucina, isoleucina e valina) que ocorre nos lactentes com uma maior ingestão proteica. Também a acção anabolizante da insulina poderá ser um factor condicionante do perfil de crescimento e de um maior risco de obesidade nos lactentes com níveis plasmáticos mais elevados de insulina, tendo em conta a sua acção promotora da diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos. Actualmente coloca-se a questão do impacte do nível sócio-económico, da raça e do sexo na predisposição para a ocorrência de obesidade. Estudos populacionais revelam que um nível sócio-económico e cultural baixo, minorias raciais e étnicas, e o sexo feminino apresentam maior risco de desenvolvimento de obesidade. No que respeita ao papel da actividade física e hábitos alimentares, estudos usando sensores de movimento revelam que crianças que gastam menos tempo em actividade física de intensidade moderada a vigorosa têm maior risco de se tornarem obesas na infância ou adolescência. A televisão e os jogos de consola contribuiram para maior sedentarismo, para além de induzirem o concomitante consumo de alimentos e favorecerem escolhas alimentares impróprias; regista-se uma correlação positiva entre o número de horas em frente da televisão (por vezes ultrapassando 20 horas por semana) e o valor do peso, especialmente em adolescentes. A alteração dos hábitos alimentares na depen- 324 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dência da oferta publicitária conduz a uma inversão da pirâmide alimentar, traduzindo-se numa elevada ingesta de açúcar e gordura em alimentos com elevada densidade nutricional. Omitir o pequeno-almoço, ingerir grandes porções sobretudo ao jantar, consumir regular e excessivamente bebidas doces e carbonatadas, pouco leite ou derivados, poucos vegetais e frutos, bem como abuso de fast-food, são algumas das modificações dos hábitos alimentares registadas nas últimas décadas. Admite-se que existam aparentemente períodos de maior vulnerabilidade à influência do ambiente na expressão fenotípica de uma predisposição individual para a ocorrência de obesidade. Como foi referido, o período pré-natal tem uma importância moduladora precoce, não apenas do risco de ocorrência de obesidade, mas de patologia degenerativa e neoplásica do adulto. Ao longo do processo de crescimento regista-se uma correspondência relativamente baixa entre a ocorrência de obesidade na infância precoce e a obesidade no adulto; por outro lado, adolescentes obesos apresentam elevado risco de se manterem adultos obesos. Relativamente à noção de “tendência de manutenção do problema” (termos sinónimos; estabilidade ou “tracking”) (neste caso da obesidade) em períodos ou idades diferentes – designadamente, criança → adolescente → adulto cabe referir que o IMC é o indicador de adiposidade com maior sensibilidade, comparativamente às pregas cutâneas e à razão perímetro da cinta/ perímetro da anca. O ponto mínimo atingido pelo IMC, por volta dos 6 anos de idade, é denominado ressalto adipocitário. Em regra, a idade em que se regista o ressalto adipocitário (inicio da subida do IMC a partir do seu valor mínimo) é preditiva do IMC do adulto, tendo vários autores demonstrado que a sua precocidade constituirá um elevado risco de desenvolvimento de obesidade na adolescência e idade adulta. Genericamente, poderá dizer-se que a capacidade de previsão da obesidade do adulto com base na adiposidade na infância é apenas moderada. Obesidade secundária Muito embora com uma menor contribuição percentual (3-5%), a obesidade pediátrica poderá ser secundária a alterações endócrinas, alterações neurológicas na dependência de lesões do sistema nervoso central e de determinado tipo de terapêutica farmacológica, entre outras. No âmbito da patologia endócrina há a referir as deficiências de hormona do crescimento (GH), de hormona tiroideia e o hipercortisolismo; tais situações têm de comum o facto de se associarem a uma combinação de baixo gasto energético e reduzida velocidade de crescimento, resultando numa deposição de adiposidade predominantemente central numa criança com baixa estatura. Lesões cerebrais graves, tumores cerebrais e/ou irradiação craniana são também situações frequentemente associadas à ocorrência de obesidade. Embora se desconheçam os mecanismos responsáveis, admite-se que uma redução da actividade física na dependência da redução da actividade do sistema nervoso simpático, aliada a alterações dos neuropéptidos hipotalâmicos e a um aumento da actividade da desidrogenase do 11-␤ hidroxiesteróide, poderão estar implicados. Finalmente algumas drogas podem predispor ao aumento, de gordura corporal, nomeadamente: glucocorticóides usados prolongadamente, valproato, alguns antipsicóticos e risperidona entre outras. Diagnóstico Para o diagnóstico é necessário, antes de mais, distinguir entre uma situação de obesidade primária ou idiopática e as restantes e mais raras situações de obesidade secundária. Uma anamnese rigorosa inquirindo, designadamente, sobre antecedentes de obesidade familiar, o exame físico cuidado e exames laboratoriais a ponderar em função das hipóteses formuladas, orientarão para o diagnóstico. Na prática poderá dizer-se que uma criança ou adolescente com uma estatura igual ou superior à média para o sexo e idade, com antecedentes familiares de obesidade em um ou ambos os progenitores, com um desenvolvimento intelectual adequado e com um exame físico sem particularidades sugestivas de uma situação sindrómica apresentará, muito provavelmente, uma situação de obesidade primária. No que respeita à anamnese haverá que inquirir sobre a história nutricional (tempo de aleitamento materno, idade de diversificação alimentar, CAPÍTULO 57 Obesidade quantificação da ingesta actual em termos energéticos totais e de distribuição dos diferentes grupos de nutrientes), actividade física, índice de sedentarismo e existência de indicadores sugestivos de síndroma de apneia obstrutiva do sono tais como roncopatia, sonolência diurna ou mau rendimento escolar, entre outros. O exame físico deverá incluir de uma forma geral, a observação do hábito externo no sentido de detectar situações de suspeita de obesidade secundária, tendo ainda em atenção a existência de alterações cutâneas sugestivas de síndroma metabólica (estrias, acantose), de alterações ortopédicas e do estádio pubertário. Finalmente, a avaliação do estado nutricional deverá incluir, para além da medição do peso e estatura, o cálculo do IMC, a medição do perímetro da cinta e da anca e ainda, se possível, a composição corporal por impedância bioeléctrica. Na impossibilidade da realização de impedância bioeléctrica, a utilização do valor da prega cutânea tricipital associado ao do IMC aumenta a sensibilidade da determinação da percentagem de massa gorda; exige, no entanto, experiência do observador e apresenta uma baixa reprodutibilidade. O perímetro da cinta ou a relação perímetro da cinta/perímetro da anca têm uma forte correlação com a deposição intrabdominal de gordura e são preditivos de risco cardiovascular e de complicações metabólicas, não apenas no adulto mas também na criança e adolescente. Embora não existam muitos dados de referência que permitam a sua correcta interpretação em populações pediátricas, devem constar da avaliação da criança e adolescente obeso. Ainda, no que respeita à avaliação da gordura corporal total, existem métodos mais específicos e confiáveis mas cujo custo, dificuldade de realização na clínica diária (hidrodensitometria; DEXA, RMN) e elevada radiação envolvida (tomografia computadorizada) lhes retiram a justificação para uso corrente, tornando-os indicados apenas em casos de excepção. No que respeita aos exames laboratoriais, o perfil lipídico, as funções hepática, renal, tiroideia e adrenal, bem como a glicémia e insulinémia em jejum devem constar de uma abordagem inicial. Os doseamentos da glicose e insulina aos 30 minutos no período pós-prandial (ou em contexto de 325 prova de tolerância oral à glicose) estão indicados em situações de obesidade grave, de suspeita de alterações do metabolismo da glicose (acantose) ou ainda em crianças/adolescentes com mais de 10 anos de idade. Tal facto prende-se com a não recomendação do uso de fármacos antes desta idade, o que reduziria a intervenção de tipo comportamental, independentemente da existência ou não de comorbilidade. Comorbilidade A obesidade é uma síndroma crónica, multissistémica, reconhecida como um grave problema médico e de saúde pública. Em idade pediátrica não é clara a associação entre a magnitude do IMC e a comorbilidade observada. No entanto, vários estudos têm recentemente demonstrado um risco crescente de ocorrência de patologia cardiovascular e de alterações do metabolismo da glicose se os valores de IMC forem superiores ao percentil 85. Considerando as complicações associadas à obesidade em idade pediátrica, a alterações psicossociais são provavelmente as mais precoces. Uma redução da auto-estima e uma crescente insatisfação com a imagem corporal levam frequentemente ao insucesso escolar, ao ostracismo e à depressão que, em casos extremos, são mesmo acompanhados de tentativa de suicídio. Na última década a diabetes mellitus tipo 2 (DM2) em idade pediátrica (anteriormente associada apenas ao adulto) tem registado, na Europa, América e Japão, um aumento da sua prevalência com uma trajectória paralela à do aumento da prevalência da obesidade. Actualmente é responsável por mais de 1/5 de novos diagnósticos de diabetes em adolescentes. Embora não seja recomendado o rastreio universal, a Academia Americana de Pediatria e a Associação Americana de Diabetes recomendam que todos os adolescentes com excesso de peso e que tenham, pelo menos, 2 outros factores de risco, sejam avaliados aos 10 anos, no início da puberdade e periodicamente cada 2 anos; entende-se por factores de risco haver antecedentes de DM2 em pais ou avós, pertencer a certos grupos rácicos/étnicos (afroamericano, hispânico, japonês) ou ainda apresentar sinais associados a insulino-resistência tais 326 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA como hipertensão, dislipidemia, acantose nigricans* ou síndroma do ovário policístico. Outra complicação frequentemente observada, já em idade pediátrica, é a doença cardíaca e a hipertensão arterial. A obesidade produz uma série de alterações estruturais cardíacas bem como alterações hemodinâmicas; com efeito, é actualmente considerada a principal causa de hipertensão em idade pediátrica, registando-se uma forte correlação positiva em crianças e adolescentes entre a pressão arterial sistólica e IMC, gordura subcutânea avaliada por pregas e relação cinta/anca. Factores genéticos, metabólicos e hormonais tais como resistência à insulina, a elevação dos níveis séricos de aldosterona, a sensibilidade ao sal e alterações dos níveis de leptina poderão também estar relacionados com a hipertensão da obesidade. Um perfil lipídico desfavorável, caracterizado por valores elevados de colesterol total, triglicéridos e apolipoproteína B, e valores baixos de colesterol-HDL, é frequentemente observado, já em idade pediátrica, na dependência da obesidade. Pelo que foi referido, conclui-se que é frequente a ocorrência de síndroma metabólica, sobretudo na adolescência, registando-se, por sua vez, uma associação entre marcadores cutâneos tais como acantose e estrias e síndroma metabólica (dislipidémia e DM2). Não menos frequentes são: os problemas ortopédicos (doença de Blount, necrose da cabeça do fémur, pé plano, espondiloslistese entre outros), os problemas respiratórios (síndroma de apneia obstrutiva do sono), a doença hepática não-alcoólica (variando em termos de apresentação num espectro que vai desde a esteatose hepática não progressiva e a esteato-hepatite com progressão para a fibrose e cirrose), a litíase vesicular, e as alterações neurológicas (pseudo-tumor cerebral na dependência de hipertensão intracraniana) entre outras. Tratamento O único tratamento eficaz é, sem dúvida, a intervenção preventiva; quanto mais precoce for esta, * Acantose é o espessamento da camada de Malpighi da epiderme, que se observa também em afecções como por ex. as verrugas. maior a taxa de sucesso. Entretanto, pelas características particulares inerentes ao processo de crescimento, todas as estratégias deverão ser individualizadas, obedecendo ao objectivo primordial de restabelecer o equilíbrio entre a energia ingerida e a energia despendida. Um parâmetro confiável de seguimento das repercussões da intervenção é o valor absoluto do IMC, ou mais sensível ainda, o valor do z-score** do IMC. A estabilização do peso em crianças / adolescentes em crescimento é traduzida por uma redução do valor absoluto do IMC e do valor do z-score do IMC. A redução destes valores deve ser fortemente encorajada, dado traduzir um aumento estatural significativamente superior ao ponderal. Os objectivos a longo prazo do tratamento da obesidade pediátrica deverão incluir a redução do z-score do IMC para um valor inferior a 2 e prevenir ou reverter a comorbilidade associada. Como foi referido, as crianças e adolescentes obesos apresentam elevado risco de complicações metabólicas, cardiovasculares e psicoafectivas. A questão que se coloca é: quando e quem tratar. Estudos recentemente publicados mostram que existe um aumento exponencial do risco de ocorrência de alterações do metabolismo da glicose, de hipertensão, de dislipidémia, se os valores de IMC forem superiores ao percentil 85. Assim, um aconselhamento alimentar e de incremento da actividade física (diária e organizada) deverá ser preconizado e regularmente vigiado a partir do momento em que de diagnostique uma situação de excesso de peso (percentil de IMC ≥85 e <95). Os programas de redução de peso baseados na intervenção familiar são aqueles que evidenciam maior sucesso a curto prazo, sendo a mudança de atitude dos pais e famílias mantida a médio e longo prazo o factor mais determinante do resultado. Uma restrição calórica moderada, baseada numa mudança de comportamento familiar, não apresenta riscos e é geralmente eficaz. Regimes altamente restritivos em calorias, incluindo as dietas hiperproteica ou de muito baixo valor calórico conduzem a perdas ponderais mais acentu** O z-score (ZS) de uma variável é calculado através da razão entre: o respectivo valor determinado no indivíduo (VI), subtraído do valor de referência (VR), e o desvio padrão (DP) da população de referência. Fórmula: ZS=[(VI-VR)/DP]. CAPÍTULO 57 Obesidade adas mas não devem ser efectuadas em ambulatório pois comportam riscos não desprezáveis. Regimes desequilibrados podem conduzir a situações deficitárias em vitaminas e minerais, bem como a um compromisso do crescimento estatural e da maturação biológica. No que respeita ao exercício físico, os seus efeitos são mediados, pelo menos parcialmente, pela redução nas reservas de gordura total e visceral e pelo aumento da massa magra; este último é responsável por um aumento do gasto energético em repouso tendo em conta que a capacidade individual de tolerância ao exercício diminui na proporção directa do aumento de IMC. O tratamento farmacológico deverá ser encarado como um complemento da intervenção comportamental – dieta e exercício físico - em casos seleccionados. São considerados 3 grandes grupos de fármacos utilizados na terapêutica da obesidade: os estimulantes do gasto energético, os inibidores do apetite e os que limitam a absorção e / ou modulam a produção e /ou acção da insulina. Do primeiro grupo, para além de um ensaio recente com a associação de cafeína e efedrina efectuado num grupo de adolescentes, pode dizer-se que de momento nenhum dos restantes fármacos (hormonas tiroideias, dinitrofenol, anfetaminas, fenfluramina, etc.) tem indicação ou aprovação para este uso, apresentando efeitos colaterais que proscrevem a sua utilização. Dos agentes inibidores do apetite, apenas a sibutramina está aprovada para utilização em adolescentes obesos com mais de 16 anos. Vários estudos comprovam o seu efeito na redução ponderal durante os primeiros 6 meses de terapêutica; este efeito perde magnitude com a continuação do tratamento, não devendo a sua utilização continuada exceder 2 anos. A referida sibutramina é um inibidor não selectivo da recaptação da serotonina, norepinefrina e da dopamina; por isso há que referir a ocorrência de efeitos colaterais (hipertensão, taquicardia, insónia, ansiedade, cefaleias, depressão) que obrigam à redução da dose e mesmo à sua suspensão. No grupo dos fármacos que limitam a absorção de nutrientes, de referir o orlistat, único aprovado pela FDA para utilização em adolescentes com idade superior a 12 anos. Actuando como inibidor da lipase pancreática, aumenta a 327 perda fecal nomeadamente em triglicéridos; por vezes é mal tolerado, e conduz à redução dos níveis de vitaminas A, D e E, mesmo em situações de suplementação vitamínica. Finalmente, a metformina reduz o apetite e a reserva adiposa do organismo resultando numa redução do peso corporal. É geralmente bem tolerada, estando aprovada pela FDA para o tratamento, não da obesidade ou da insulinorresistência, mas da DM2. De referir que o seu uso regular conduz a situações deficitárias em vitaminas B1 e B6, devido a um aumento da respectiva excreção urinária. Por fim, uma referência a outra modalidade de tratamento – o cirúrgico em situações de falência da terapêutica comportamental e na situação de obesidades mórbidas com complicações associadas. São escassos os estudos prospectivos sobre este tópico salientando-se que a opção por tal modalidade deverá ser pontual e particularmente analisada. O balão intra-gástrico como atitude menos invasiva e reversível, ou a banda gástrica, são duas opções a considerar. BIBLIOGRAFIA American Academy of Pediatrics Committee on Nutrition. Prevention of pediatric overweight and obesity. Pediatrics 2003; 112: 424-430 Barker DJ. In utero programming of chronic disease. Clin Sci Colch 1998; 95: 115-128 Burniat W, Cole T, Lissau I, Poskit EME (eds). Child and Adolescent Obesity. Causes and Consequences; Prevention and Management. 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Arch Pediatr Adolesc Med 2004; 158: 27-33 Lobstein T, Frelut ML. Prevalence of overweight among children in Europe. Obes Rev 2003; 4: 195-200 Miech RA, Kumanyika SK, Sttettler N, et al. Trends in the association of poverty with overweight among US adolescents, 1971-2004. JAMA 2006; 295: 2385-2393 Ogden CL, Flegal KM, Carrol MD, Johnson CL. Prevalence and trends in overweight among US children and adolescents, 58 SÍNDROMAS DE MÁ – NUTRIÇÃO ENERGÉTICO – PROTEICA 1999-2000. JAMA 2002; 288: 1728 -1732 Padez C, Fernandes T, Marques V, Moreira P, Mourão I. Ignacio Villa Elizaga Portuguese prevalence study of obesity in childhood: the role of sócio-demografic factors. Symposium on Childhood Obesity, Loughborough, UK, December 2003 Perusse L, Rankinent T, Zuberi A, et al. The human obesity Importância do problema gene map-the 2004 update. Obesity Res 2005, 13: 381-481 Rego C, Guerra A, Silva D, Sinde S, Fontoura M, Aguiar A. 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Nalgumas regiões do globo, em relação com défice de condições de higiene, culturais e económicas, pode atingir cerca de 25-35% da população em idade pediátrica (dados de 2000). Nos países industrializados podem surgir em nichos de população desprotegida e marginalizada como resultado de negligência, pobreza e ileteracia. Os factores relacionados com a doença crónica, (doenças metabólicas, malformativas, respiratórias, do foro digestivo, etc.) surgindo em todas as latitudes, independentemente do grau de desenvolvimento, tornam-se mais prevalentes nos países industrializados. Situações mais raras de má – nutrição são a anorexia nervosa e a síndroma diencefálica associada a tumor do hipotálamo. Avaliação do estado nutricional Para a avaliação do estado de nutrição, podem ser utilizados critérios clínicos e laboratoriais: • Inquérito nutricional – com o objectivo do esclarecimento sobre os nutrientes supridos durante vários dias, permitindo calcular, com a maior aproximação possível, na base do peso CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica dos alimentos ingeridos, a percentagem do VCT de proteínas, gorduras e hidratos de carbono. • Antropometria – Os parâmetros que devem ser determinados são: peso, altura, perímetro braquial e prega tricipital. Na prática, os índices mais largamente utilizados para avaliar o grau de má- nutrição são os de Waterlow e de Gomez, respectivamente. De acordo com Waterlow são considerados dois índices: 1) peso para a altura (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 90 um estado de mánutrição aguda, ou seja, compromisso mais significativo do peso; 2) altura para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 95 um estado de mánutrição crónica, ou seja, compromisso mais significativo da altura. De acordo com Gomez, é considerada apenas a relação: 1) peso para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 75, quer má – nutrição crónica, quer má- – nutrição aguda, traduzindo compromisso do peso e da altura (Quadro 1). Adoptando estes dois critérios para os cálculos, os valores do percentil 50 do peso para a idade e da altura para a idade são considerados no denominador, enquanto o peso actual e a altura actual no numerador. Tais avaliações devem ser seriadas valorizando um conjunto de determinações e não uma apenas isoladamente, sendo de referir que: nas situações agudas, para além do défice em nutrientes, assumem relevância as alterações hidro-electrolíti- cas; nas situações crónicas assumem relevância os défices de mais que um nutriente. • Composição corporal – A massa corporal integra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reserva de gordura; 2) massa magra que compreende a água total, reserva de proteínas viscerais e musculares, e de minerais. As reservas de gordura subcutânea podem ser avaliadas medindo a espessura das prega cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avaliada através da determinação da prega tricipital em conjunto com o perímetro braquial. A medição da espessura da prega cutânea é difícil de determinar em crianças pequenas. • Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar são: albumina plasmática; excreção urinária de creatinina proporcional à massa muscular, préalbumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao retinol, e concentração plasmática de determinadas vitaminas e de determinados minerais (em circunstâncias especiais, conforme a história clínica, constituem elementos adjuvantes para o diagnóstico). A imunodeficiência é comum nas situações de má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com o estado de imunidade celular (provas cutâneas com antigénios como por exemplo a prova da tuberculina) evidenciam anergia. • Exames biofísicos – Em determinados centros especializadose ligados à investigação é utilizada a densitometria para avaliação massa gorda, e a bioimpedância para a avaliação da massa magra. Classificação A carência de suprimento calórico e proteico engloba um largo espectro de situações clínicas em QUADRO 1 – Graus de Má – Nutrição Grau 0 grau 1º grau (ligeira) 2º grau (moderada) 3º grau (grave) Peso/Altura (% da mediana) >90 81-90 70-80 <70 329 Altura/Idade (% da mediana) >95 90-95 85-89 <85 Peso/Idade (% da mediana) – 75-85 64-74 <64 330 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cujos extremos se situam dois quadros clínicos bem definidos: o marasmo (com designações sinónimas de atrépsia ou inanição, resultante de carência calórica e de nutrientes global, com carência proteica proporcional), e o kwashiorkor (com designação sinónima de má-nutrição proteica, correspondente às situações com carência apenas de proteínas de elevado valor biológico, sem redução do valor calórico total). Entre uma e outra situação existem vários tipos intermédios, difíceis de caracterizar, que alguns especialistas classificam de marasmo-kwashiorkor. Etiopatogénese Na sua origem podem ser invocados um conjunto de factores com influência recíproca encerrando um ciclo vicioso. Em primeiro lugar a ignorância e a pobreza desempenham um papel decisivo; estão em causa os recursos precários em nutrientes e as deficientes condições de higiene, de saneamento básico e de evicção de insectos vectores. Como consequência, existe maior frequência e maior gravidade de infecções e infestações parasitárias no grupo populacional em tais condições, contribuindo para estabelecimento da má- nutrição, ou para o seu agravamento. Por sua vez, a má- nutrição propicia o desenvolvimento de infecções. Os mecanismos determinantes dos quadros paradigmáticos são, no entanto, diversos. No caso do marasmo a situação mais típica é a da criança que nos primeiros meses de vida é precocemente desmamada, continuando a alimentação com leite industrial (ou leite de vaca em natureza na situações mais precárias), em quantidade insuficiente ou excessivamente diluído. Por vezes,nalgumas sociedades, este quadro de má- nutrição é já bem patente ao nascer traduzindo má-nutrição fetal ou restrição do crescimento intra- uterino como resultado de condições nutricionais deficientes da grávida. No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogénico, na sua forma típica, é o seguinte: criança alimentada ao peito para além dos 12 meses (em situações extremas a criança ainda está a ser amamentada quando surge nova gravidez da mãe). Uma vez desmamada, o regime alimentar, como foi referido, tende a ser constituído por suprimen- to elevado em hidratos de carbono, sobretudo de farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal como nos restantes membros da família. Assim, a criança recebe número suficiente da calorias diariamente, mas não de proteínas. Manifestações clínicas • Marasmo – Sob o ponto de vista clínico, a característica mais marcante diz respeito à deficiente progressão ponderal, seguindo-se estabilização e ulterior diminuição. O critério peso é, pois, fundamental para definir a situação em que a criança se encontra, reportando-nos a uma tabela de percentis. Na alínea antropometria referida atrás, foram definidos os critérios de Waterlow e de Gomez; nesta perspectiva, o Quadro 1 dá-nos uma ideia integrada da classificação dos graus de mánutrição englobando os dois critérios. Para além da perda de peso, observa-se diminuição do panículo adiposo subcutâneo (correspondente à utilização das reservas energéticas, fundamentais para a subsistência), o que pode ser avaliado através da manobra do pregueamento da pele entre dois dedos do observador. Com efeito, a pele e os tecidos moles periféricos duma criança em situação de nutrição normal evidenciam uma textura e elasticidade especiais chamada turgescência ou turgor. A perda do turgor resultante da diminuição do panículo adiposo origina o “sinal da prega”, mantida após se aliviar o pregueamento. Este sinal também ocorre na desidratação aguda, mantendo-se a prega neste último caso por mais tempo. Tratando-se duma situação crónica, o desaparecimento do panículo adiposo segue uma ordem topográfica bem determinada: primeiramente desaparece no abdómen, depois no tórax e ombros, mais tarde braços, coxas e nádegas (“nádegas em bolsa de tabaco”ou seja, exibindo sulcos ou pregueamento transversal da pele da nádegas e face interna das coxas) e, finalmente, na face com desaparecimento do panículo adiposo da bochecha ou “bola de Bichat” dando lugar à chamada “fácies senil ou de Voltaire”, com rugas, olhos vivos e abertos. O desaparecimento da “bola de Bichat” é típico da má- nutrição do 3º grau (Figuras 1 e 2). CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica FIG. 1 Quadro clínico de marasmo (NIHDE). FIG. 2 Quadro de marasmo: nádegas em “bolsa de tabaco”. (NIHDE) 331 A avaliação da altura oferece, em geral, menos interesse que o peso; com efeito, a estabilização de tal parâmetro somente se verifica em situações de má-nutrição grave, sendo evidente sobretudo após os 6 meses. A cor da pele é tipicamente acinzentada, parecendo fria ao contacto. Tal aspecto resulta, em parte, da anemia que frequentemente existe, e da hipoperfusão tecidual. As mucosas nem sempre estão pálidas. Os cabelos são finos e escassos, sem brilho. Não existe edema. É muito frequente a observação de dermatites variadas e de intertrigo que poderão ser a consequência de deficiência nos cuidados gerais prestados. O tono muscular pode estar alterado; na maior parte das vezes existe hipotonia a qual explica outro sinal característico: distensão abdominal que pode ser muito pronunciada estando em relação, quer com a hipotonia da musculatura da parede abdominal, quer com a hipotonia da musculatura lisa das ansas intestinais e o défice de potássio. Por vezes o abdómen pode estar deprimido. Os mecanismos de adaptação metabólica do organismo conduzem a hipotermia, bradicárdia, hipotensão arterial e hipoglicémia De referir igualmente a perturbação do psiquismo; embora estes doentes estejam despertos e interactivos com o ambiente que os rodeia quando estimulados, manifestam tristeza e apatia, com um choro monótono. Existe tendência para infecções as quais, por sua vez, se repercutem negativamente sobre a mánutrição. Efectivamente, a infecção limita o apetite produzindo frequentemente vómitos e diarreia o que compromete a absorção de nutrientes; por outro lado, o processo infeccioso produz hipercatabolismo. A imunidade humoral está pouco comprometida (pode haver elevação das imunoglobulinas séricas como resposta a infecções repetidas) enquanto a imunidade timodependente está seriamente afectada. Considerando os diversos tipos de infecções, cabe uma referência especial às infecções respiratórias (pneumonias) pela sua potencial gravidade. Na sua forma de manifestação mais típica, trata-se de formas graves de pneumonia de localização paravertebral, favorecidas pelo decúbito prolongado em relação com a precariedade dos 332 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cuidados; não existindo, em geral, febre nem tosse, são muitas vezes subdiagnosticadas. A má- nutrição pode comprometer o desenvolvimento do sistema nervoso central, o que tem consequências a longo prazo. A este respeito é importante ter em conta que o cérebro é um órgão com um crescimento muito rápido nos últimos meses da vida intra-uterina necessitando, por consequência, de um elevado suprimento de nutrientes durante esse período. As consequências são diversas: atraso (por vezes regressão) do desenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental; perímetro cefálico de menores dimensões; desenvolvimento intelectual inferior ao da população geral. O resultado final depende também do défice de estimulação destas crianças as quais vivem em ambiente social e cultural muito precário. Ao nível do aparelho digestivo há que salientar a diminuição da actividade da lactase. Estudos de biópsias jejunais demonstraram anomalias histológicas consideradas de menor relevância (altura diminuída do epitélio e invasão da lamina própria por linfócitos e eosinófilos) e outras, funcionais, traduzidas sobretudo por diminuição da actividade lactásica. Este último achado tem implicações na prática clínica obrigando à utilização de produtos isentos de lactose na recuperação nutricional. • Kwashiorkor – Sendo o regime alimentar hipoproteico complementado por suprimento em hidratos de carbono, conduzindo a relativo cumprimento das necessidades energéticas totais, as manifestações clínicas, pelo menos numa fase inicial, poderão passar despercebidas. O edema por hipoproteinémia(diminuição da pressão oncótica do plasma) que, entretanto, surge, constitui a característica predominante deste tipo de má- nutrição. O aspecto geral da criança é o de uma criança com edema generalizado, sobressaindo as bochechas tumefactas pelo referido edema o qual se localiza também noutras áreas ( pálpebras, membros superiores e inferiores). O peso pode ser adequado para a idade ou até superior ao valor médio, por motivo do edema . Quanto ao psiquismo, as crianças revelam um aspecto deprimido e de tristeza. A musculatura participa no quadro clínico: a hipotonia impede, muitas vezes, que a criança ande ou permaneça sentada. Como resultado da consequente perturbação funcional do hepatócito surge degenerescência gorda, hepatomegália e, em situações mais graves, cirrose hepática. Tal como no marasmo, surge perturbação funcional do enterocito com especial incidência no jejuno, a qual conduz a diminuição das dissacaridases e diarreia. Poderão surgir igualmente infecções e infestações intestinais. A anorexia é habitual. As alterações dermatológicas são muito típicas, sendo frequentes áreas de hipopigmentação alternando com áreas de hiperpigmentação (discromia) nem sempre revertidas com a intervenção nutricional. Poderão evidenciar- se igualmente queilite e estomatite. Ao nível dos cabelos as alterações tróficas são muito típicas e notórias na raça negra; a despigmentação produz uma cor avermelhada dos cabelos, aspecto que originou o nome de kwashiorkor que significa, na linguagem duma tribo do Gana “criança com cabelos vermelhos”. Em certos casos, através do cabelo, pode reconhecer- se o momento em que se iniciou o processo de má- nutrição, pois a parte distal, mais antiga, aparece com a cor normal enquanto a parte proximal exibe a cor alterada; os cabelos aparecem assim divididos em duas partes com cores diversas, relativamente bem delimitadas que, quando bem esticados aparentam “as cores duma bandeira”. Daí o nome de “sinal da bandeira”. Para além das perturbações do psiquismo, poderão ser notados tremores (cuja etiopatogenia é incerta), anemia de causa multifactorial, e défice imunológico, com compromisso mais significativo da imunidade celular e da relacionada com os linfócitos T. No que respeita à repercussão sobre o sistema endócrino, de salientar a possibilidade de hipofunção tiroideia e de défice dos níveis de somatomedina C sem alteração da hormona de crescimento (Figura 3). Tratamento • Marasmo – A intervenção terapêutica eficaz nas situações de marasmo, com resultados mantidos, não constitui tarefa fácil uma vez que a mesma tem a ver com a mudança das circunstân- CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica 333 • Kwashiorkor – O tratamento do kwashiorkor é essencialmente de ordem dietética: regime com elevado suprimento em proteínas de elevado valor biológico, e normocalórico. Não obstante, há que contar com algumas dificuldades surgidas na fase de recuperação relacionadas com intolerância ao leite, infestações intestinais, infecções recorrentes, etc.. A anorexia obriga, por vezes, à necessidade de utilização de sonda gástrica. Devem ser dados alimentos à base de hidrolisados de proteínas do leite de vaca, glucose como hidrato de carbono e ácidos gordos de cadeia média como lípidos. Estão também indicados suplementos vitamínicos e ferro. Actualmente advoga-se a utilização de agentes antioxidantes. Prognóstico FIG. 3 Criança com Kwashiorkor (NIHDE). cias predisponentes do meio em que a criança vive e que ultrapassam a componente exclusivamente biomédica e nutricional. Sob o ponto de vista de intervenção nutricional, o regime deve proporcionar proteínas de elevado valor biológico e em quantidade não inferior a 2 gramas/kg/dia, sendo as proteínas do leite de vaca adequadas a este respeito; no entanto, tendo em conta a possível intolerância à lactose pelas razões atrás apontadas, poderá surgir diarreia. Na prática estão indicados produtos lácteos em que a lactose tenha sido substituída por glucose ou dextrina- maltose ,sendo de referir que o amido é bem tolerado. O referido regime deve ser hipercalórico com um suprimento energético de cerca de 150 kcal/kg/dia e incluindo suplementos vitamínicos e de oligoelementos (nomeadamente cobre e zinco).Havendo sideropenia torna-se obrigatório adicionar ferro ao regime (1-2 mg/kg/dia). O prognóstico, quer do marasmo, quer do kwashiorkor, é reservado tendo em conta, designadamente o risco de infecções conduzindo a elevada mortalidade (mais elevada nos casos de kwashiorkor) nos países do continente africano, mais pobre; no caso do kwashiorkor há que salientar a elevada probabilidade de desenvolvimento de cirrose hepática. BIBLIOGRAFIA Baqui AH, Ahmed T. Diarrhoea and Malnutrition in Children. BMJ 2006; 332: 378 Berkley J, Mwangi I, Griffiths K, et al. Assessment of Severe Malnutrition Among Hospitalized Children in Rural Kenya. JAMA 2005; 294: 591-597 Fomon SJ. Nutrition of normal infants. St Louis: Mosby, 1999 Fuchs GJ. Antioxidants for Children with Kwashiorkor. BMJ 2005; 330: 1095-1096 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics . Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. London: Mosby Elsevier, 2007 Shelov SP, Hannemann RE, Cook DE et al. Caring your baby and young child (birth to age 5). New York :Bantam Books/American Academy of Pediatrics, 2005 WHO. Management of Severe Malnutrition – A Manual for Physicians and Other Senior Health Care Workers. Geneva: Who Wdition, 1999 334 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 59 CARÊNCIAS VITAMÍNICAS João M. Videira Amaral 1. RAQUITISMO POR CARÊNCIA DE VITAMINA D Importância do problema As síndromas acompanhadas de raquitismo por carência de vitamina D (raquitismo carencial comum-RCC), com elevada prevalência há mais de três décadas, em época anterior ao desenvolvimento dos cuidados primários no nosso país, têm ressurgido na actualidade nos países desenvolvidos, particularmente em lactentes de pele escura, exclusivamente amamentados por períodos prolongados sem suplementos vitamínicos. Trata-se duma situação clínica clássica da pediatria com um modelo de fisiopatologia comparticipado pelo metabolismo da vitamina D e balanço do cálcio e do fósforo, que ajuda a compreender outras formas de raquitismo não carencial abordados na parte Nefro-Urologia; optou-se, por isso, pela abordagem mais pormenorizada do RCC cuja profilaxia é de fácil realização. Definição As síndromas raquíticas(ou raquitismo em geral) são situações clínicas caracterizadas por falência do ritmo normal de mineralização da matriz óssea devida a inadequadas concentrações de iões cálcio e de fosfato mono-hidrogeniónico nos líquidos do organismo em crescimento, com consequente acumulação de osteóide não mineralizado. O desequilíbrio fosfo-cálcico tem repercussões multissistémicas: sistema ósseo (de modo especial ao nível da zona metafisária de crescimento activo), muscular, pulmonar, etc.. Se tal perturbação surgir num organismo após se completar o crescimento linear (idade adulta), a síndroma denominar-se-á osteomalácia (com sintomatologia mais discreta). O RCC constitui o exemplo paradigmático de carência extrema de vitamina D a qual se estabelece de modo progressivo antes de os sinais clínicos se tornarem evidentes, sendo de realçar, no entanto, que o diagnóstico é essencialmente clínico. Fisiopatologia Embora a vitamina D activa se encontre pouco difundida na natureza, os seus precursores ou pró-vitaminas (esteróis) derivados do colesterol, encontram-se largamente distribuídos, quer nas plantas, quer nos animais. A provitamina D das plantas (ergosterol) é susceptível de ser transformada em vitamina D2 ou ergocalciferol. A provitamina D animal (7-de-hidro-colesterol), produzida na mucosa intestinal, dirige-se, depois, para a camada malpighiana da pela onde adquire actividade vitamínica (vitamina D3 ou cole-calciferol) quando exposta aos raios ultravioletas (290-320 mm). Se o ergocalciferol ou o cole-calciferol forem veiculados pelos alimentos, a sua absorção é rápida, verificando-se sobretudo ao nível do duodeno-jejuno e por via linfática. (Figura 1). A seguir à conversão fotoquímica na pele ou à absorção intestinal, a vitamina D2 ou a vitamina D3 são transportadas em direcção ao fígado com o auxílio duma globulina alfa-2; no fígado sofrem uma 25-hidroxilação ou transformação nos respectivos derivados 25-hidroxilados por intermédio da 25-hidroxilase, enzima do sistema microssómico (família das oxidases do citocrómo P450). A actividade da 25-hidroxilase específica é regulada por um mecanismo de retroacção representado pela taxa sérica dos compostos 25-hidroxilados e do cálcio. Os compostos 25-hidroxilados circulam também ligados a uma globulina alfa-2, sendo a sua semivida de 19,6 dias (a semivida do ergo ou colecalciferol é apenas de 12 a 25 horas). A acção dos compostos 25-hidroxilados (25-HC) consiste essencialmente no transporte de cálcio ao nível do intestino, na mobilização do cálcio ósseo e na reabsorção tubular proximal de sódio e fosfato. 335 CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas (Pró-Vitamina) 7-De-hidrocolesterol Colesterol Radiação U-V Colecalciferol Pele Fígado Mucosa intestinal Calciferol U_V Aumento do transporte de cálcio e fosfato (intestino) 25-OHção Ergosterol (Pró-Vitamina) 1,25-HC Mobilização do cálcio ósseo (cooperação da PTH) Aumento da reabsorção tubular de fosfato, de sódio e cálcio (Rim) 1-OHção Rim Unidades de Vitamina D: – 1 mg = 40.000 U.I. – 1 U.I. = 0,025 gama 25-HC Metabolitos polares inactivos FIG. 1 O ciclo da vitamina D. Ao nível do rim gera-se, depois, a forma metabolicamente activa, o 1-25 hidroxicolecalciferol (ou 1-25 hidroxi-ergocalciferol) (1-25-HC) a partir do 25-HC que sofre nova hidroxilação em posição 1, com o concurso duma enzima que faz parte dum sistema mitocondrial das células tubulares: a 1-25-hidroxilase. A actividade de 1-25 hidroxilase é regulada, quer pela carência do organismo em vitamina D, quer pela taxa de cálcio circulante, directamente ou por intermédio da paratormona e calcitonina; depende, ainda, da fosforémia e do teor em fosfatos do tecido renal. Em caso de normocalcémia ou hipercalcémia, poderá originar-se um composto hidroxilado em 24-25 que não tem qualquer função específica, pois tende a degradar-se. A acção dos compostos di-hidroxilados (1-25 HC) traduz-se no transporte de cálcio e fósforo ao nível do intestino (quantitativamente a sua acção quanto a este aspecto é cerca de 1 vez e meia superior aos compostos 25-HC) e na mobilização do cálcio ósseo (acção cerca de 100 vezes superior à dos 25 HC). Quanto à reabsorção tubular de sódio, fosfato e cálcio, o seu efeito pode considerar-se, ao contrário, mínimo em relação aos 25-HC. Quer a vitamina D3, quer os seus derivados 25hidroxilados, são susceptíveis de se armazenarem ou constituirem em depósitos ao nível dos tecidos adiposos e muscular. Existe, no entanto, uma diferença de comportamento entre os dois: enquanto a vitamina D3 é mais lipossolúvel e se concentra rapidamente no tecido adiposo e por muito tempo - cerca de 80% do seu depósito inicial pode ser encontrado ao cabo de 3 meses – os 25 HC são armazenados em menor quantidade pela sua menor lipossolubilidade, constituindo as formas circulantes por excelência (Figura 1). A vitamina D não actua directamente sobre as células intestinais ou ósseas; com efeito os seus metabolitos hidroxilados induzem a síntese duma proteína necessária ao transporte activo do cálcio (a CaBP-Calcium-Binding-Protein) e à ligação a receptores. Outros aspectos do seu mecanismo de acção dizem respeito a: • síntese duma fosfatase alcalina (adenosinotrifosfatase ou ATP-ase) ao nível das células da «bordadura em escova», cálcio-dependente. • regulação do funcionamento dum sistema 336 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de transporte activo, segundo o qual existe captação pela mucosa e migração intracelular de cálcio segundo um gradiente electropotencial. • regulação da difusibilidade do cálcio em relação com alterações moleculares ao nível da célula mucosa intestinal – aumento da proporção de fosfolípidos, alteração da composição de ácidos gordos e ésteres do colesterol. Considerando, então, a produção endógena da vitamina D, a sua acção biomolecular traduzida pela síntese proteica e o mecanismo regulador do seu metabolismo de tipo retroacção, poderá concluir-se que o termo «vitamina» é incorrecto e obsoleto; efectivamente deveria chamar-se «hormona» tanto mais que o calciferol é um membro da família das hormonas esteróides. Classificação dos raquitismos Se nos reportarmos ao ciclo da vitamina D será relativamente fácil deduzir uma classificação etiopatogénica das síndromas raquíticas. Assim, podemos estabelecer dois grandes grupos: (Quadro 1). 1. Grupo que decorre da interferência num ou vários «passos» do ciclo metabólico da vitamina D por parte de determinados factores ou circunstâncias, o que condicionará uma diminuição da concentração do metabolito activo (1-25HC); o perfil bioquímico mais característico deste grupo é constituído essencialmente pela hipocalcémia – tendo em conta o défice de absorção do cálcio no intestino – e por hiperparatiroidismo secundário. 2. Grupo em que não existe qualquer perturbação do ciclo da vitamina D, o que condiciona uma taxa normal do metabolito activo 1-25 HC; a anomalia reside, sim, ao nível das células «alvo» representadas fundamentalmente pela célula tubular renal; neste grupo a característica bioquímica mais importante é a hipofosfatemia, tendo em conta o défice de reabsorção tubular de fosfato. Não existe inicialmente, nem hipocalcémia nem hiperparatiroidismo secundário (Quadro 1). As situações que integram o subgrupo A correspondem ao chamado raquitismo carencial comum, vitamino-sensível ou vitaminoprivo; com efeito, é o que surge com maior frequência, é evitável com profilaxia correcta (200-400 UI de vitamina D por QUADRO 1 – Classificação dos raquitismos 1. Deficiência do metabolismo activo da vitamina D A • Falta de exposição ao sol, pigmentação cutânea, roupa, filtros solares, poluição atmosférica • Carência de suprimento alimentar B • Má absorção de vitamina D • Doença hepato-biliar • Terapêutica anticonvulsante • Doença renal • Dependência de vitamina D (anomalia de 1-OHase) (Raquitismo vitamina D – dependente) 2. Anomalia da «célula - alvo» C • Sindroma de Fanconi • Cistinose • Tirosinose • Outras causas • Acidose tubular renal • Hipofosfatémia genética primária • Hipofosfatémia com «tumores não endócrinos» dia) e é curável com doses usuais de vitamina D. As situações que integram os subgrupos B e C correspondem aos chamados raquitismos vitamino-resistentes, raros em relação aos raquitismos carenciais comuns. Surgem com profilaxia correcta e não são curáveis com doses terapêuticas usuais de vitamina D; efectivamente, as doses requeridas para a sua cura são consideradas tóxicas para o indivíduo normal, verificando-se recaída após interrupção do tratamento. No sentido lato, o subgrupo B pode considerar-se «carencial não comum» na medida em que, efectivamente, existe uma «carência» de metabolito activo 1-25HC no organismo, embora não relacionável com défice de suprimento alimentar nem com défice de exposição ao sol. Manifestações clínicas, radiológicas e laboratoriais As manifestações do RCC podem assim ser sistematizadas: a) Sinais clínicos ósseos Os sinais clínicos característicos decorrem de CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas alterações ósseas indolores, simétricos, localizando- se na zona de crescimento activo com evolução (em geral com início desde os primeiros meses, progredindo no primeiro ano de vida no sentido crânio-caudal): cranio-tabes (consistência mole do crânio evidente sobretudo ao nível da região parieto- occipital dando a sensação de palpação de bola de ping-pongue – após compressão, o osso volta à posição inicial), atraso de encerramento das suturas cranianas cujos bordos são moles, deformações diversas do crânio relacionadas com a diminuição de consistência da calote craniana susceptível de deformação postural, atraso da erupção dentária, tumefacção esferóide ao nível das articulações condrocostais por hipertrofia das respectivas cartilagens (por acumulação de osteóide) cujo conjunto ao longo do tórax aparenta um rosário (é o chamado rosário costal); deformação do tórax, em sino, com alargamento da base e evidência do chamado sulco de Harrison; alargamento das epífises dos ossos longos especialmente notória ao nível dos punhos (chamados “de boneca”) e regiões tíbio- társicas; deformações dos membros inferiores (tíbias em “parêntesis”, genu varum, etc.); ao nível da coluna pode verificar-se cifose com formação de saliência lombar típica nas formas exuberantes – saliência ou gibosidade do raquis, donde o nome de raquitismo). De referir a relação que existe entre a velocidade de crescimento e o aparecimento do quadro clínico; ou seja, a probabilidade de aparecimento do quadro clínico é tanto maior quanto maior a velocidade de crescimento (Figuras 2, 3 e 4). b) Sinais clínicos músculo- ligamentosos Salienta-se a hiperlaxidão dos ligamentos e a hipotonia muscular as quais condicionam o atraso do desenvolvimento motor(início do sentar-se e da marcha), designadamente. c) Sinais radiológicos As lesões ósseas com tradução radiológica têm, sobretudo, uma localização metafisária: a metáfise dos osssos longos está alargada, côncava, “em taça”, com aspecto franjado e limite irregular; as diáfises evidenciam diminuição da densidade óssea com trabeculação nítida e aspecto de duplo contorno, por vezes sinais de fracturas e de calos FIG. 2 337 FIG. 3 Criança com raquitismo: Raquitismo: cifose dorso deformação torácica (NIHDE). lombar e deformação da coluna com gibosidade. (NIHDE) FIG. 4 Raquitismo “Punho de boneca”/alargamento dos punhos (NIHDE). de fracturas; espaço epífise- metáfise alargado podendo haver atraso de aparecimento dos núcleos de osssificação; ao nível do tórax, em complemento dos sinais clínicos já referidos, torna- se evidente o alargamento das articulações condrocostais em “raquete”; pode haver sinais de infecção parenquimatosa (pneumonia, bronquite) 338 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA face à susceptibilidade para as infecções, enquadrando a situação classicamente conhecida por “pulmão raquítico”. Os primeiros sinais aparecem em geral entre os 4 e 6 meses; no caso de não tratamento, a forma exuberante é notória por volta do final do 1º ano de vida e durante o 2º ano (Figuras 5 e 6). c) Sinais laboratoriais Os valores séricos do cálcio, fósforo e fosfatase alcalina podem variar em função da fisiopatologio, já exposta: fase precoce com hipocalcémia e fósforo normal; fase intermédia com normocalcémia e fósforo diminuído; fase avançada com cálcio e fósforo baixo. A fosfatase alcalina está em geral aumentada. Valorizando o produto cálcio x fósforo séricos em mg/dl para o diagnóstico, classicamente considera- se: 30 (raquitismo certo); 30-40 (raquitismo possível); 40 (raquitismo impossível ou em via de cura). Sendo possível o doseamento dos metabolitos da vitamina, considera-se que o valor do metabolito mono – hidroxilado (25-HC) ou 25-hidroxivitamina D < 25 nmol/L (10 ng/ml) corresponde a carência de vitamina D. Relacionando os sinais clínicos com os laboratoriais e radiológicos, chama- se a atenção para uma forma clínica (fase precoce) de carência de vitamina D ocorrendo habitualmente no lactente, sobretudo antes dos 6 meses com o seguinte quadro: sintomas de hipocalcémia- cálcio ionizado inferior a 3-4 mg/dl ou total inferior a 7-7.5 mg/dl (irritabilidade neuromuscular incluindo convulsões, tetania, espasmo carpo pedal, laringospasmo) com ou sem evidência radiológica de raquitismo. É a chamada “tetania” do lactente por carência de vitamina D, hoje rara no nosso país. A hipocalcémia susceptível de originar tetania (não manifesta ou latente) pode ser identificada através da pesquisa dos clássicos sinais de Chvostek,Trousseau e de Erb. Tratando-se duma síndroma com repercussão sistémica, é habitual ser acompanhada de anemia, habitualmente hipocrómica, traduzindo carência concomitante em ferro. No entanto, poderá igualmente surgir anemia megaloblástica por carência de vitamina B12 ou ácido fólico e anemia pluricarencial. Uma forma clássica, hoje rara, é a anemia de Von-Jaksch-Luzet ou anemia pseudo leucémica cursando com hiperleucocitose e hepatoesplenomegalia, relacionável com eritropoiese compensadora ectópica. Diagnóstico diferencial FIG. 5 FIG. 6 Sinal radiológico de raquitismo: metáfise do rádio e cúbito ao nível de punho, alargamento em taça (NIHDE). Sinal radiológico de raquitismo: esboço de aparecimento da linha de calcificação preparatória ao nível das metáfises alargadas (rádio e cúbito) como resposta do tratamento (maior densidade óssea relativamente à figura 5). (NIHDE). A anamnese é fundamental para a destrinça com outras situações acompanhadas de alterações esqueléticas. O craniotabes não é patognomónico do raquitismo, podendo surgir nalgumas displasias ósseas. As deformações do tórax poderão enquadrarse em situações acompanhadas de anomalias congénitas. O rosário costal pode surgir igualmente no escorbuto (défice de vitamina C), hoje praticamente uma raridade, sendo acompanhado doutras carências; no entanto, nesta última situação o rosário costal resulta de luxação condrocostal e os sinais radiológicos esqueléticos são diferentes: é típica a hemorragia subperióstica, e as alterações esqueléticas são acompanhadas de dor. Podem também surgir hematúria e hemorragias petequiais. CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas Prevenção O RCC é susceptível de prevenção através da exposição à luz solar (fracção leve da radiação ultravioleta B) ou da administração de vitamina D. Tendo em conta os riscos de cancro da pele relacionados com a exposição ao sol (estando provado que, em termos de risco, a idade em que a exposição solar directa se inicia é mais importante do que a exposição solar total ao longo da vida), a Academia Americana de Pediatria, recomenda, no entanto, que os lactentes, sobretudo abaixo dos 6 meses, sejam resguardados da luz solar directa e usem roupa protectora e filtros solares. Nas referidas recomendações ressalva-se, entretanto, que se torna difícil determinar o que se entende por exposição solar adequada. Classicamente recomendava –se o suplemento de vitamina D na dose de 400 UI por dia; actualmente a referida dose foi corrigida para 200 UI por dia, a qual garante a manutenção do nível sérico de 25-hidroxi-vitamina D > 25 nmol/ L (10 ng/ml) compatível com ausência de carência de vitamina D, de acordo com o que atrás foi referido. Dum modo geral as fórmulas para lactentes contêm cerca de 400 UI/Litro, sendo de salientar que a concentração da vitamina D no leite humano é muito mais baixa, embora mais biodisponível ( cerca de 25 UI /Litro) . Assim, a referida dose preventiva de 200 UI /dia está indicada nas seguintes situações: 1. lactentes alimentados com leite materno 2. lactentes alimentados com fórmula suplementada com vitamina D, ingerindo menos de 500 ml/dia 3. crianças ou adolescentes não expostos regularmente ao sol, ingerindo menos de 500 ml de leite suplementado com vitamina D ,ou não tomando suplemento multivitamínico diário que contenha, no mínimo, 200 UI /dia. Tratamento Para o tratamento do RCC estão indicadas doses de diárias de 50-150 mcg (2000- 6000 UI) de vitamina D3 ou de 0.5-2 mcg de 1,25- di-hidroxi-colecalciferol; com cerca de 2-4 semanas de tratamento produz-se uma melhoria dos sinais radiológi- 339 cos traduzida pelo aparecimento da chamada “linha de calcificação preparatória” ao nível das metáfises (Figura 6). Uma vez verificada a resposta inicial, a dose diária deve ser reduzida para 10 mcg (400 UI). O doseamento sérico do metabolito monohidroxilado (25-hidroxi-cole-calciferol) poderá servir de orientação para avaliação do resultado terapêutico. Como alternativa, poderá optar- se por outro esquema de administração de vitamina D: 15000 mcg (600000 UI) em dose única sem administração subsequente durante vários meses. Se não ocorrer resposta ao tratamento a curto prazo, tratar-se-á provavelmente, não de um RCC, mas de uma forma resistente ou dependente da vitamina D. A correcção da hipocalcémia sintomática obriga a terapêutica de substituição emergente com gluconato de cálcio, a qual é abordada na Parte Fluidos e Electrólitos (Capítulo 50). Recorda-se que em situações de carência de cálcio, a calcémia pode ser normal ou baixa e que a hipocalcémia sintomática é pouco comum. Nos casos de carência de cálcio está indicado o suplemento de 350 a 1000 mg/dia de cálcio-elemento. Em situações específicas e graves acompanhadas de deformações esqueléticas sequelares, poderá haver necessidade de intervenção ortopédica. 2. CARÊNCIA DE VITAMINA A Importância do problema Faz-se uma breve referência a este estado carencial (raro em crianças saudáveis com regime alimentar equilibrado) mas com elevada prevalência nos países em desenvolvimento, sobretudo da África, constituindo um grave problema de saúde pública. Poderá surgir igualmente como resultado de síndromas de má- absorção e em situações com deficiência de ingestão em lípidos. As consequências de tal carência, que surgem insidiosamente, verificam-se sobretudo ao nível do sistema ocular: essencialmente, xerose da conjuntiva e da córnea com ulterior opacificação desta; dificuldade de adaptação à escuridão e 340 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cegueira nocturna. A pele é seca e descamativa. O tratamento consiste na administração diária de doses entre 1500 e 3000 mcg de vitamina A por via oral com vigilância da evolução clínica tentando evitar a toxicidade. Na xeroftalmia são utilizadas doses maiores. Vários organismos internacionais e várias equipas de profissionais de saúde colaboram em campanhas nos países mais afectados . BIBLIOGRAFIA 60 REGIMES VEGETARIANOS E ERROS ALIMENTARES João M. Videira Amaral Benn CS, Martins C, Rodrigues A, et al. Randomized study of effect of different doses of Vitamina A on Childhood morbidity and mortality. BMJ 2005; 331: 1428-1430 Bishop N. Don’t forget vitamin A. Arch Dis Child 2006; 91: 549- Regimes vegetarianos 550 Bouillon R. The many faces of rickets. NEJM 1998; 338: 681- 682 Gartner LM et al. Americam Academy of Pediatrics/Section on Breast Feeding and Committee on Nutrition . Pediatrics 2003; 111: 908- 910 Gropper SS, Smith JL, Groft JL (eds). Advanced Nutrition and Human Metabolism. Belmont, CA: Thomson Wadsworth, 2005 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics . Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kreiter SR, Schwartz RP, Kirknan HN Jr, Charlton PA, et al. Nutritional rickets in African american breast-fed infants. J Pediatr 2000; 137: 153- 157 Ladhani S, Srinivasan L, Buchanan C, Allgrove J. Presentation of vitamin D deficiency. Arch Dis Child 2004; 89: 781-784 Mughal Z . Rickets in childhood . Semin Musculosk Radiol 2002; 6: 183-190 Pedersen P, Michaelsen KF, Molgaard C. Children referred to hospitals in Copenhagen during a 10-year period. Acta Paediatr 2003; 92: 87-90 Rajakumar K, Thomas SB. Reemerging nutritional rickets. 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Os promotores de tais práticas nutricionais advogam as seguintes vantagens tendo como base a defesa de princípios ecológicos e de luta antipoluição do ambiente: regimes ricos em amido e desprovidos de açúcar e sais refinados; maior riqueza em produtos contendo fibra; menor teor em gordura e maior riqueza em poli-insaturados;menor incidência de coronariopatia aterosclerótica, cancro, obesidade, hipertensão e colelitíase. Os regimes vegetarianos podem ser classificados em três categorias principais: vegetarianos parciais, vegetarianos tradicionais e os chamados vegetarianos novos ou atípicos. Nos regimes vegetarianos parciais ou semivegetarianos são excluídos alguns alimentos de origem animal, designadamente carnes vermelhas, permitindo ingestão de peixe e de carne de aves (pesco e polo-vegetarianos). Nos regimes vegetarianos tradicionais (também chamados lacto- ou lacto-ovo-vegetarianos) são consumidos produtos lácteos e/ou ovos, estando proibidos a carne e o peixe. No grupo tradicional está incluído o subgrupo designado por “vegan” ou vegetariano puro que exclui qualquer produto de CAPÍTULO 60 Regimes vegetarianos e erros alimentares origem animal; os seus seguidores praticam determinada filosofia para além das práticas estritamente alimentares: não usam peles, lãs ou sedas nem comem mel. No entanto, as mães vegan em geral, amamentam, estando descritos, casos de raquitismo e de anemia megaloblástica nos respectivos lactentes. Os regimes vegetarianos atípicos (que admitem determinadas “propriedades metafísicas” de determinados produtos) incluem a chamada prática macrobiótica com diferentes tipos de regimes, desde o uso exclusivo de cereais, até à permissão de alguns produtos animais. De acordo com as regras gerais atrás explanadas, o regime vegetariano exclusivo não é adequado em idade pediátrica, tratando-se dum período da vida caracterizado pelo crescimento e desenvolvimento. Por exemplo, no que se refere às proteínas de origem vegetal, as mesmas são de valor biológico inferior ao das proteínas animais pelo teor mais baixo em um ou mais aminoácidos essenciais. Na perspectiva do dever ético de humanização e de respeito pelas diferenças culturais dos povos, o clínico e o profissional de saúde em geral, responsáveis pela vigilância de saúde da criança ou adolescente (tendo especial atenção aos sintomas e sinais de determinadas carências) deverão esclarecer os pais sobre eventuais riscos e esclarecer-se sobre o tipo de regime, mais ou menos restritivo que os pais desejam para a criança. Determinadas deficiências em nutrientes poderão ter de ser corrigidas fazendo misturas de diferentes vegetais. A inclusão de leite e ovos afigura-se fundamental para compensar eventuais carências em proteínas, ferro, cálcio e vitamina B12. Poderá igualmente estar indicada a suplementação em ácido fólico. No âmbito dos problemas de ordem nutricional que traduzem défice ou excesso de nutrientes foram abordadas já as seguintes situações clínicas: síndromas de má nutrição energéticoproteica, raquitismo carencial comum por défice de vitamina D, carência de vitamina A e obesidade. A anemia por carência de ferro (ferripriva) será abordada na parte Hematologia. Erros alimentares mais frequentes Enunciam-se alguns erros a evitar, os quais tradu- 341 zem o não cumprimento de regras fundamentais da alimentação saudável em qualquer idade: alimentação suficiente, completa, harmónica e adequada. Estes erros a evitar têm particular relevância no primeiro ano de vida, período fundamental de aprendizagem, quer de boas, quer de más práticas; são salientados os seguintes: • Não atender a que o apetite da criança varia de refeição para refeição. Para além do que foi referido a propósito da alimentação com leite materno, a criança não deverá ser forçada a terminar o biberão • A noite “é para dormir”; mas, se a criança acordar “com fome”, a mamada ou biberão não deverão ser recusados • Dar leite de vaca em natureza antes do 1 ano de idade • Administrar sal ou açúcar antes do 1 ano • Administrar mel • Introduzir novos alimentos diversificados com intervalo inferior a 1 semana entre cada um • Forçar a criança a terminar a sopa de legumes “de que não gosta” logo nos primeiros dias, sem tentar que se adapte • Administrar farinha de cereais e sopa de legumes por biberão • Substituir a sobremesa de fruta por doces ou compotas • Substituir uma refeição com alimentos integrando proteínas, por fruta • Continuar a dar alimentos em puré, muito desfeitos e não granulosos, para além dos 9 meses • Não verificar o suprimento em ferro nem providenciar a sua eventual suplementação no regime alimentar da criança que duplicou o peso de nascimento, data em que as reservas de ferro se esgotam • Idem nos casos em que a criança tenha sido submetida a regime eventualmente desequilibrado e essencialmente farináceo-lácteo • ”Premiar” a criança com doces, chocolates ou guloseimas em geral, na hipótese de a refeição ter sido cumprida • Dar refrigerantes em vez de água quando a criança tem sede, ou à refeição • Dar leite (ou produtos lácteos como iogurte, 342 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA queijo, etc.) em quantidades excessivas (mais de 1 litro por dia) ou menos de 400 ml/dia • Abusar de fritos • Não dar fruta e produtos hortícolas ao almoço e jantar. BIBLIOGRAFIA Americam Academy of Pediatrics. Dietary recommendations for children and adolescents: A guide for practitioners. Pediatrics 2006; 117: 544-559 Americam Academy of Pediatrics Policy Statement. The use 61 ALTERAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR and misure of fruiut juice in pediatrics. Pediatrics 2001; 107: 1210-1213 João M. Videira Amaral Barness LA. Pediatric Nutrition Handbook. Illinois: American Academy of Pediatrics,1999 Fonseca N. Erros correntes na alimentação da criança. Lisboa: Edição Nutribem,1992 Sistematização Greer Fr, Krebs NF. Committee on nutrition (AAP). Optimizing bone health and calcium intake of infants, children and adolescents. Pediatrics 2006; 117: 578-585 Sabido F. Alimentação do lactente. Lisboa: Edição do autor, 1997 Shelov SP, Hannemann RE, Cook DE et al. Caring your baby and young child (birth to age 5). New York :Bantam Books/American Academy of Pediatrics, 2003 www.mypyramid.gov – (acesso em Junho de 2008) A alimentação constitui um domínio privilegiado de expressão psicopatológica: a mesma comporta uma dimensão social e representa a primeira grande função fisiológica que marca a génese e o desenvolvimento da vida afectiva. As alterações do comportamento alimentar (não específicas de determinada entidade nosológica) podem ser sistematizadas do seguinte modo: Quantitativas – por defeito: anorexia nervosa restritiva, inicialmente por recusa alimentar (sitiofobia), e depois por perda de apetite (anorexia); – por excesso: hiperfagia paroxística, ou seja, bulimia(ou hiperorexia ou poliorexia); – hiperfagia regular e compulsão alimentar conduzindo a excesso de suprimento energético e a obesidade. Qualitativas – incidindo sobre a sede e a ingestão de bebidas (potomania); – incidindo sobre substâncias não nutritivas (pica, geofagia, coprofagia dos deficientes profundos); – incidindo sobre substâncias tóxicas(alcoolismo, toxicomania); – incidindo sobre a escolha de alimentos(vegetarianismo). Neste capítulo procede-se à descrição da anorexia nervosa (AN) e da bulimia nervosa (BN). CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar 1. ANOREXIA NERVOSA Definição e aspectos epidemiológicos De acordo com os critérios da DSM-IV, a síndroma anorexia nervosa(AN) é uma perturbação do comportamento alimentar caracterizada por: – recusa em manter o peso corporal ideal ou acima do peso mínimo para a idade e estatura; – medo de a pessoa ganhar peso ou de se tornar obesa, mesmo tendo peso inferior ao ideal (perturbação na apreciação do peso e da forma corporal); de tal resulta perda progressiva e desejada de peso. – apreciação distorcida do peso e da imagem corporal; – amenorreia em pessoas do sexo feminino pós-menarca considerando-se, como condição, a ausência de, pelo menos, três ciclos menstruais consecutivos. São considerados dois subtipos: – restritivo (abstenção voluntária de alimentos ou restrição do suprimento energético). – compulsivo/purgativo(ingestão excessiva de alimentos seguida auto-administração de laxantes, diuréticos, enemas, ou de provocação de vómitos). Estima-se, segundo dados da literatura científica, maior frequência entre adolescentes,em especial com idades compreendidas entre 13 e 18 anos. Diversos estudos em populações com idade média de 15 anos, apontam para taxas (entre 0,1 e 4,1%) sendo que mais de 90% dos casos ocorrem no sexo feminino. Etiopatogénese De acordo com especialistas em psicopatologia, a designação de anorexia não é correcta; na verdade, o processo mórbido diz respeito, sim, a luta contra a fome. No estado actual dos conhecimentos admite-se a comparticipação associada de factores socioculturais, familiares, psicológicos(por ex. défice de auto-estima), genéticos, etc.. Alguns casos estão associados a situações de disfunção familiar e a certos estereótipos de ideal de beleza e feminilidade associados a corpo magro. Estudos recentes apontam para a hipótese de certos genes determinarem maior predisposição quanto a comportamento. 343 Anteriormente julgava-se que este tipo ocorria apenas em famílias de robusto poder económico nas culturas ocidentais; no entanto, estudos recentes têm identificado incidência semelhante em populações de cultura dita oriental e de fracos recursos económicos. Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial O início do quadro clínico da AN passa frequentemente despercebido em fase inicial. Existe, em geral, uma atitude psicológica estereotipada : não reconhecimento sistemático dos sintomas, interesse por questões relacionadas com alimentos e regimes alimentares, esconder alimentos em diversos locais, dividir alimentos em pequenas porções, preparar alimentos para outras pessoas sem os saborear, não ter refeições na presença doutros, observar o que os outros comem, etc.. Existem sempre dificuldades relacionais importantes, relações sociais pobres e vida sexual nula. Podem associar-se outros elementos: tomas excessivas de laxantes e vómito provocado (o sinal de Russel ou cicatriz no dorso da mão por introdução frequente desta na boca indicia tal). Outras manifestações incluem: irritabilidade, hiperactividade, alterações do humor, intolerância ao frio e acrocianose, diminuição da líbido, etc.. A recusa alimentar com as consequências inerentes de emagrecimento, em determinado contexto clínico, conduzem à necessidade de diagnóstico diferencial com outras situações tais como: SIDA, doença neoplásica, síndroma da artéria mesentérica superior, síndroma depressiva, esquizofrenia, etc.. Evolução, complicações e exames complementares A duração da síndroma pode durar anos, sendo que a regressão espontânea não é habitual; conclui-se, pois, que o prognóstico é reservado considerando o risco vital. O regresso da menstruação é frequentemente considerado como uma verdadeira cura, salientando-se que apenas um em cada três doentes se cura definitivamente com a inserção social. As principais complicações da AN implicam a realização de determinados exames comple- 344 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA mentares (para apreciar a repercussão biológica do estado de desnutrição e eliminar eventual causa orgânica), a planear caso a caso (Quadro 1). Tratamento As medidas gerais do tratamento da AN(actuação multidisciplinar com o apoio fundamental da equipa de pedopsiquiatria) devem implicar uma relação com a pessoa doente, humanizada, muito personalizada e compreensiva, mas firme; os objectivos fundamentais são a recuperação do peso adequado e a educação para a saúde sobre nutrição com a colaboração da família como forma de motivação para o tratamento, evicção das recaídas e tratamento da comorbilidade. Para a prossecução destes objectivos são adoptadas resumidamente as seguintes estratégias: Intervenção nutricional Os incrementos de peso para se atingir o peso adequado devem processar-se por etapas, tornando- se necessário o internamento no período inicial. Em regime de internamento são programados incrementos da ordem de 800-1200 gramas/semana e, ulteriormente, em regime ambulatório, entre 250500 gramas/semana. Na fase inicial o suprimento energético acompanhado de suplementos vitamínicos deve ser da ordem de 30-40 kcal/kg/dia, progredindo até cerca de 70-100 kcal/kg/dia. Intervenção psicoterapêutica Este tipo de intervenção abrange a chamada terapia cognitivo-comportamental (técnicas de alteração de comportamentos inadequados,reeducação alimentar,etc.), psicoterapia individual ou de grupo, e orientação e/ou terapia familiar. Intervenção psicofarmacológica Este tipo de intervenção não colhe o consenso de todos os especialistas. Em situações seleccionadas (e apenas após a fase de recuperação do peso) pode utilizar-se fármacos inibidores de recaptação selectiva da serotonina com efeito nas perturbações do humor e ansiedade. QUADRO 1 – Anorexia nervosa Alterações da homeostase térmica Hipotermia Alterações cardiovasculares Hipotensão, bradicárdia, diminuição da tolerância ao esforço, edema periférico Alterações do SNC Atrofia cerebral Alterações renais Insuficiência pré-renal Alterações hematológicas Anemia Alterações gastrintestinais Atraso do esvaziamento gástrico, dilatação gástrica, défice de lipase e lactase intestinais Alterações endócrinas Défice hormonal (hormona luteinizante, estrogénio, progesterona, estimulante folicular, tiroxina, tri-iodotironina, etc) Excesso hormonal (tri-iodo-tironina reversa, cortisol, GH, etc.) Diabetes insípida Alterações metabólicas e hidroelectrolíticas Hipoglicémia, hipercolesterolémia, aumento do teor de enzimas hepáticas, desidratação, hipocaliémia, etc.. 2. BULIMIA NERVOSA Definição e aspectos epidemiológicos De acordo com os critérios da DSM-IV, a bulimia nervosa (BN) é uma perturbação do comportamento alimentar definida por: episódios recorrentes de ingestão alimentar compulsiva caracterizados por: – ingestão de grande quantidade de alimentos num período curto de tempo (até 2 horas), superior ao que a maioria das pessoas consideradas normais comeria; – sensação de incapacidade para controlar a quantidade e qualidade dos alimentos; – comportamento de compensação no sentido de prevenir o incremento de peso: indução de vómito, abuso de laxantes, diuréticos, enemas, jejum ou exercício físico excessivo; – ocorrência de ingestão alimentar compulsiva e de comportamentos de compensação com a frequência de, pelo menos, 2 vezes por semana e durante, pelo menos, 3 meses; – preocupação excessiva com o peso e a imagem corporal; CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar São considerados dois subtipos: – purgativo (vómitos ou abuso de laxantes, diuréticos e enemas); – não purgativo (jejum ou exercício físico excessivo pressupondo a não utilização de vómitos, de abuso de laxantes, diuréticos e ou de enemas). Etiopatogénese A etiopatogénese da bulimia está relacionada com conflitos familiares, antecedentes de perturbações da relação precoce mãe-RN e lactente, de abuso sexual na infância, síndroma depressiva, alterações no relacionamento com figuras parentais, sentimentos de culpa exagerados, dificuldade na aceitação da frustração e ansiedade, etc.. Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial No que respeita ao estado nutricional, as manifestações de BN não são tão exuberantes como na AN; com efeito, os doentes com BN têm em mais de 80% dos casos peso normal. Raramente existe obesidade, salientando-se que os episódios bulímicos nos obesos são pouco frequentes. Como manifestações mais típicas citam-se: perturbações gastrintestinais, como vómitos, dores abdominais associadas frequentemente a gastrite e esofagite, alterações da motilidade esofágica e gástrica, dilatação gástrica aguda, síndroma do cólon irritável, alterações dentárias (erosão do esmalte pela acção do suco gástrico), risco aumentado de pancreatite, etc.. O perfil comportamental típico da pessoa com BN é: mulher extrovertida, com carácter histérico, vida sexual activa e muitas vezes dependende de drogas e/ou álcool. O diagnóstico diferencial da BN faz-se com a NA de tipo compulsivo/purgativo, síndroma depressiva atípica e perturbações da personalidade. A propósito e como nota de síntese importa reter a seguinte noção: certos bulímicos são antigos anorécticos e cerca de metade dos anorécticos são bulímicos. Complicações As principais complicações da BN, nem sempre fáceis de distinguir das próprias manifestações, 345 (implicando, por vezes, a realização de determinados exames complementares para apreciar a repercussão sobre o estado geral e eliminar eventual causa orgânica), são sistematizadas no (Quadro 2). Tratamento e evolução As medidas gerais do tratamento da BN que pode ser efectivado em regime ambulatório (actuação multidisciplinar com o apoio fundamental da equipa de pedopsiquiatria) devem implicar uma relação personalizada médico-doente, humanizada e compreensiva, mas firme; os objectivos fundamentais são a alteração do padrão alimentar compulsivo e manobras purgativas, promover a educação para a saúde sobre nutrição com a colaboração da família como forma de motivação para o tratamento, corrigir ideias pré-concebidas e atitudes disfuncionais, prevenção das recaídas e tratamento da comorbilidade. Para a prossecução destes objectivos são adoptadas resumidamente as seguintes estratégias: Intervenção nutricional Este tipo de intervenção consiste fundamentalmente na promoção de regime alimentar equilibrado e saudável com vista à manutenção de peso adequado. Intervenção psicoterapêutica Este tipo de intervenção abrange a chamada terapia cognitivo-comportamental (técnicas de alteração de comportamentos inadequados, reeducação alimentar reduzindo,designadamente os regimes restritivos, automonitorização da ingestão alimentar, pesagem regular etc.), psicoterapia individual ou de grupo, orientação e terapia familiar. Intervenção psicofarmacológica Este tipo de intervenção pode englobar, nomeadamente, a utilização de fármacos inibidores de QUADRO 2 – Complicações da bulimia nervosa Alterações gastrintestinais Dilatação e perfuração gástricas, hérnia do hiato esofágico,perfuração esofágica, pneumomediastino. Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas Desidratação, hiponatrémia, hipoclorémia, hipomagnesiémia,alcalose metabólica,etc.. 346 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA recaptação selectiva da serotonina com efeito nas perturbações do humor e ansiedade, e de fármacos antidepressivos tricíclicos. A evolução das perturbações, bem como a resposta ao tratamento, são muito variáveis(desde muito boas a muito más). BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. DSM-IV.(edição em português). Lisboa: Climepsi Editores, 1996 Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2006 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics.Philadelphia: Saunders, 2007 Lask B, Bryant-Waught R. Anorexia Nervosa and Related Eating Disorders. London: Psychology Press, 2000 Quevauvilliers J, Perlemuter L. Dicionário Ilustrado de Medicina(edição em português). Lisboa: Climepsi Editores, 2003 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill, 2002 PARTE XII Imunoalergologia 348 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 62 DOENÇAS ALÉGICAS NA CRIANÇA – EPIDEMIOLOGIA E PREVENÇÃO J. Rosado Pinto Importância do problema As doenças alérgicas correspondem a um tipo de patologia que, pela sua frequência e importância, estão na primeira linha no grupo etário pediátrico. Cerca de 35% da população europeia apresenta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as populações dos países industrializados. É importante referir o efeito das reacções alérgicas no comportamento emocional e social dos doentes e suas famílias. Nomenclatura Actualmente existe uma nomenclatura internacionalmente aceite e publicada pela European Academy of Allergology and Clinical Immunology recentemente actualizado pela World Allergy Organization que permite definir com rigor o significado dos termos e patologias mais frequentemente ligados à alergia. Discrimina-se seguidamente significado de alguns termos relacionados com esta problemática; algumas situações são definidas com mais pormenor nos capítulos seguintes. Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade iniciada por mecanismos imunológicos a qual pode ser mediada por anticorpos ou células, sendo na grande maioria dos casos o anticorpo responsável pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE. Os indíviduos afectados podem ser referidos como sofrendo de uma alergia mediada por IgE. Alergénios – São antigénios que causam alergia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e IgG são proteínas. Atopia – É uma tendência pessoal ou familiar frequente na infância e na adolescência para se ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a uma exposição a alergénios. Como consequência, nestes individuos podem desenvolver-se sintomas característicos de asma, rinoconjuntivite e eczema. Os termos "atopia" e "atópico" devem ser reservados para descrever uma predisposição genética para sensibilização a alergénios comuns durante uma exposição ambiental sendo que, na maioria dos individuos, não se produz uma resposta prolongada mediada por IgE. Hipersensibilidade – Corresponde a um conjunto de sinais ou sintomas objectivamente reprodutíveis e desencadeados pela exposição a um estímulo definido tolerado pelos indivíduos ditos normais ou saudáveis. Hipersensibilidade não alérgica – É o termo preferido para descrever hipersensibilidade na qual não é possível demonstrar a presença de mecanismos imunológicos. Asma (definição do Grupo GINA - Global Initiative for Asthma) – É uma doença inflamatória crónica das vias aéreas na qual intervêm muitas células particularmente mastócitos, eosinófilos e células T. Nos indivíduos susceptíveis esta inflamação provoca episódios recorrentes de pieira, dispneia, retracção torácica e tosse, os quais podem ser parcial ou totalmente reversíveis, espontaneamente ou por tratamento. A asma alérgica é mediada por mecanismos imunológicos, particularmente IgE, ao contrário da asma não alérgica. Rinoconjuntivite – Situação em que há sintomas de reacção de hipersensibilidade mediada imunologicamente com tradução clínica nas fossas nasais e conjuntiva, na maioria das vezes mediada por IgE. Dermatite – É o termo geralmente utilizado para uma inflamação local na pele. Actualmente é utilizado o termo síndroma eczema/dermatite atópica (SEDA) englobando um conjunto de diferentes doenças da pele com características comuns. Como na asma, o eczema de indivíduos com constituição atópica deve chamar-se eczema atópico. CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção A realidade nacional O estudo da prevalência das doenças alérgicas de crianças em Portugal e no mundo está actualmente bem caracterizado através do projecto ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) que foi executado ao longo de 10 anos envolvendo mais de um milhão de jovens em mais de 60 países entre 1993 e 2003. Ele teve por objectivo desenvolver a investigação epidemiológica sobre asma, rinite, conjuntivite e eczema atópico através da padronização a nível de definições dos casos e da metodologia utilizada com base em questionários, podendo comparar diferentes países e centros de cada país. Composto por 3 fases, foi concebido de forma a poder comparar populações quanto à prevalência desta doença em todo o mundo. Um dos objectivos mais importantes foi examinar as tendências temporais de prevalência da asma, rinoconjuntivite alérgica e eczema atópico ao longo de 8 anos (centros que cumpriram as fases I e III). Em Portugal o estudo envolveu na fase I (entre 1993/95) 5036 jovens de 6-7 anos provenientes de 207 escolas, e em 11.427 jovens de 13-14 anos, oriundos de 84 escolas. Na fase III (2002) o grupo de 6-7 anos envolveu 9081 jovens tendo participado 408 escolas. O grupo de 13-14 anos era oriundo das mesmas regiões e envolveu 12.905 jovens de 142 escolas. Ao centrarmos a análise comparativa dos resultados globais nas mesmas regiões da população inquirida que já teve pieira (sintomas sibilância recorrente), asma (diagnóstico médico), rinite (sintomas) ou eczema (diagnóstico médico/sintomas) verificamos no grupo de 6-7 anos: 1995 2002 Valor-p Pieira 28,2% 28,1% 0.936 Asma 11% 9,4% 0.008 Rinite 23,8% 29,1% <0.001 Eczema 11,2% 14,1% <0.001 Quando comparamos populações de 6-7 anos inquiridas que tiveram pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, foram obtidos os seguintes resultados: 349 1995 2002 Pieira 12,9% 12,9% Valor-p 0.983 Rinite 19,9% 24% <0.001 Eczema 13,9% 15,6% 0.013 Em relação ao grupo de 13-14 anos foram obtidos os seguintes resultados: 1995 2002 Valor-p Pieira 18,2% 21,8% <0.001 Asma 11,8% 14,7% <0.001 Rinite 30,2% 37,1% <0.001 Eczema 11,7% 12,7% <0.014 Na comparação das populações inquiridas de 13-14 anos que declararam ter tido pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, os resultados foram: 1995 2002 Valor-p Pieira 9,2% 11,8% <0.001 Rinite 21,2% 26,5% <0.001 7,6% 8,7% 0.002 Eczema Da análise dos valores nacionais mais significativos sobre o estudo do inquérito ambiental e estilo de vida realizado em 2002 salientamos, comparando os grupos de 6-7 e 13-14 anos (Quadro 1): A análise dos resultados obtidos revela um aumento global da prevalência das doenças alérgicas do grupo 13-14 anos no país, o que se atribui provavelmente a uma mudança de hábitos que leva muitos jovens a preferir cada vez mais uma actividade localizada dentro de casa (computador e televisão) e a um aumento da utilização de comida rápida/hamburgers com consequente maior susceptibilidade para as doenças alérgicas, respiratórias e de expressão cutânea. Ao contrário, no grupo dos 6-7 anos, o facto de não haver ao longo dos anos um aumento da prevalência de asmáticos pode atribuir-se a um melhor conhecimento, pelos familiares (responsáveis pelos inquéritos neste grupo etário) e pelos profissionais de saúde, acerca dos problemas relacionados com as doenças alérgicas em geral, e do modo de fazer a sua prevenção, particularmente nas crianças de risco. 350 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida a) Alimentação nos últimos 12 meses carne: três ou mais vezes por semana peixe: três ou mais vezes por semana fruta: três ou mais vezes por semana vegetais: três ou mais vezes por semana cereais (incluindo pão): três ou mais vezes por semana arroz: três ou mais vezes por semana manteiga: três ou mais vezes por semana leite: três ou mais vezes por semana ovos: três ou mais vezes por semana “fast-food”, hamburgers três ou mais vezes por semana uma vez por semana aleitamento materno b) Actividade física – 3 vezes por semana ou mais c) Horas de televisão - 3 ou mais horas/dia d) Antibióticos no primeiro ano de vida e) Nível de escolaridade da mãe da criança: básico secundário universitário f) Gato em casa no primeiro ano de vida Gato em casa nos últimos 12 meses g) Cão em casa no primeiro ano de vida Cão em casa nos últimos 12 meses h) Mãe fumadora no primeiro ano de vida Percentagem de não fumadores no agregado familiar Prevenção O aumento de prevalência das doenças alérgicas e o facto de se tratar de doenças de elevada morbilidade, sobretudo na idade pediátrica, levou a uma progressiva preocupação sócio-sanitária e económica com este problema. A utilização de normas profilácticas genéricas, sobretudo na alergia respiratória, levou a que uma maior informação fosse difundida entre as populações, sobretudo no que se refere à exposição aos agentes em meio habitacional. Como observámos anteriormente, a tendência em Portugal acompanhando os países industrializados, para uma cada vez maior exposição alergénica e desenvolvimento de uma sensibilidade alérgica dentro de casa, é fruto de uma progressivo estado de vida sedentário da criança que 6-7 anos 13-14 anos 65,8% 44,8% 82,3% 52% 84,8% 58,2% 55,2% 86,9% 18,5% 3,2% 18,6% 78,5% 9,3% 17,3% 54,9% 49% 39,3% 66,5% 37,7% 71,0% 48,1% 37,2% 75,1% 17,9% 8,5% 40,5% 27% 34% 19,3% 9,3% 15% 22% 29,6% 15,6% 36,7% 22,5% 31,3% 39% 32% 21,9% 25,2% 49,3% 34,3% cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente da televisão e do computador. Por outro lado, a cada vez mais precoce frequência de infantários por crianças mais pequenas, localizados em habitações que não estão, na maioria das situações, devidamente preparadas para receber tantas crianças, leva a preocupações acrescidas, devendo incidir-se atenção especial sobre as condições em que se encontram as salas onde permanecem aquelas. É, no entanto, no quarto de dormir onde o jovem passa cerca de um terço da sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se mais as nossas preocupações. Os 3 níveis de prevenção: primária – que promove a prevenção de atopia; secundária – que promove a prevenção das sensibilizações já existentes e que são consequência da aptidão genética e da exposição a alergénios; e a terciária que não é 351 CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção mais que a prevenção das consequências clínicas motivadas pelas manifestações alérgicas, devem ser tratados em conjunto. De um modo geral as medidas ambientais exequíveis nos referidos níveis de prevenção passam por uma boa identificação dos alergénios em causa. A sensibilização na criança ocorre geralmente nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para os alergénios alimentares é detectável em cerca de 10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios inalantes aparecem geralmente a partir dos 3 anos, passando a sensibilização a ser particularmente evidente aos ácaros do pó da casa, animais domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e a asma alérgica passam a ter uma expressão clínica muito mais significativa que as alergias de expressão cutânea. BIBLIOGRAFIA Cookson W. The immunogenetics of asthma and eczema. Nature immunol Rev 2004; 4: 978-988 European Allergy White Book. Bruxelas: UCB Institute of Allergy, 1997 Global Initiative for Asthma. New York: National Institute of Health, 2002 The International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISAAC) Steering Committee, Worldwide variations in the prevalence of asthma symptoms. Eur Resp J. 1998; 12: 315335 Johansson SG, Brebeu T, Dahl R, et al. Revised nomenclature for allergy for global use: Report of the Nomenclature Review Committee of the World Allergy Organization. JACI 2004; 113: 832-836 Johansson SG, Hourihene J, Bousquet J, et al. A revised nomenclature for allergy - An EAACI pontion statement from the EAACI nomenclature task force. Allergy 2001; 56: 813-824 Kulif M, Bergmann R, Klettke U, et al. Natural course of sensitization to food and inhalant allergene during the first 6 years of life. J Allergy Clin Immunol 1999; 103: 173 Lopes da Mata P. Prevenção e ambiente: o que resulta a vários níveis, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 319-336 Nunes C, Ladeira S, Rosado Pinto J. Definição epidemiológica e classificação da asma na criança, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 35-55 Lopes da Mata P. - Prevenção e ambiente: o que resulta a vários níveis, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 319-336 Costa Trindade J A Marcha Alérgica, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 31-34 352 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 63 ASPECTOS DO DIAGNÓSTICO DA DOENÇA ALÉRGICA Ângela Gaspar Anamnese O diagnóstico da doença alérgica baseia-se essencialmente na história clínica. A anamnese é fundamental e deve esclarecer: a idade de início dos sintomas e circunstâncias do seu aparecimento; a presença de factores desencadeantes, como esforço físico, exposição a alergénios (pó, pólens, esporos de fungos, pêlos de animais, látex, etc.) ou ingestão de alimentos ou fármacos; a frequência, duração e gravidade dos sintomas, incluindo recursos ao serviço de urgência e internamentos; as terapêuticas efectuadas, sua eficácia e eventuais reacções adversas; a variabilidade circadiana e sazonal dos sintomas; o impacte sobre o estilo de vida, incluindo tolerância ao exercício, períodos de interrupção do sono, perturbação de afectos familiares e sociais, e grau de absentismo escolar. Os antecedentes pessoais da criança, nomeadamente a coexistência de outras doenças alérgicas e os antecedentes familiares de alergia apoiam o diagnóstico de doença alérgica. Pela anamnese deverá também inquirir-se sobre o contexto ambiental em que a criança se movimenta, particularmente em termos de exposição alergénica, tabagismo passivo e exposição a outros poluentes em ambiente doméstico ou fora de casa. A sensibilização precoce na criança, por via digestiva ou inalatória, desencadeia o início da chamada marcha alérgica. Segundo este conceito clássico, como foi referido antes, a expressão clínica da atopia varia durante a vida, iniciando-se na primeira infância sob a forma de alergia alimentar e dermatite atópica, com evolução ulterior, variável segundo a experiência de vários autores, para alergia respiratória, rinite e asma. Algumas particularidades clínicas das doenças alérgicas mais prevalentes na criança serão em seguida sucintamente referidas, como complemento do que foi referido a propósito da “Nomendatura das doenças”. Asma: Asma é uma situação clínica caracterizada por episódios recorrentes de tosse, pieira e dificuldade respiratória, parcial ou completamente reversíveis espontaneamente ou após terapêutica com broncodilatador; queixas induzidas pelo exercício físico e tosse crónica, podem ocorrer isoladamente. Apoiam o diagnóstico, a periodicidade dos sintomas, a sintomatologia nocturna, o agravamento com esforço físico, ar frio e exposição a alergénios, a resposta favorável à terapêutica broncodilatadora e a história familiar de asma parental e pessoal de rinite e dermatite atópica. Rinite alérgica: os sintomas incluem rinorreia serosa, prurido nasal, espirros paroxísticos e obstrução nasal (como aspecto característico na ausência de processos infecciosos). A coexistência de sintomas oculares alérgicos (prurido ocular, lacrimejo) apoia fortemente este diagnóstico. A variabilidade sazonal, bem como a relação com a exposição alergénica com agravamento no ambiente fora de casa é característica das polinoses. Dermatite atópica ou síndroma eczema/dermatite atópica (SEDA): completando o conceito atrás explanado, esta situação surge, habitualmente, após os 3 meses de vida e caracteriza-se pelo prurido cutâneo intenso, que tipicamente se agrava após o banho, com a sudação e durante a noite, e pela distribuição e morfologia típica das lesões cutâneas, com evolução crónico-recidivante. Alergia alimentar: trata-se da associação entre a ingestão alimentar e o aparecimento dos sintomas; a forma de manifestação clínica mais frequente é mucocutânea, com urticária e angioedema; no entanto, os sintomas podem variar desde síndroma de alergia oral a reacção anafiláctica grave. O número de alimentos implicados é habitualmente limitado, exceptuando situações em que ocorrem fenómenos de reactividade cruzada. Existem classicamente três grandes síndromas de reactividade cruzada entre determinados alergénios inalados e alimentares, que é importante conhecer, pela potencial gravidade de algumas das CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica reacções adversas alimentares: síndroma ácarosmariscos, síndrome látex-frutos e síndroma pólens-frutos. Nestas circunstâncias as reacções tendem a não ser graves, sendo a alergia oral a forma típica de apresentação clínica. Exame físico O carácter intermitente da doença alérgica, de um modo geral, determina que na maioria das situações o exame físico da criança seja normal. Alguns sinais característicos que podem ser detectados ao realizar o exame físico são em seguida descritos. Asma: durante uma exacerbação pode verificar-se taquipneia, utilização dos músculos acessórios da respiração, hiperinsuflação torácica, prolongamento do tempo expiratório e sibilos na auscultação pulmonar; situações mais graves podem cursar com cianose, diminuição generalizada do murmúrio vesicular e alterações do estado de consciência. Dermatite atópica: é frequente verificar-se xerose cutânea e localização das lesões eritematosas/exsudativas/descamativas na face, flexuras e superfícies de extensão, por vezes com liquenificação; podem também observar-se queratose pilar, reforço das pregas palmares, queilite, dermatose plantar e pitiríase alba. Rinite alérgica: fácies característica da criança com obstrução nasal crónica, com respiração oral com boca entreaberta, existência de prega atópica nasal e olheiras; a observação das fossas nasais permite-nos visualizar habitualmente, para além da rinorreia aquosa, hipertrofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores. Conjuntivite alérgica: são aspectos característica a hiperémia e a quemose (edema) conjuntivais, secreção serosa e frequentemente edema palpebral, habitualmente bilateral; a observação da conjuntiva tarsal pode evidenciar a presença de papilas. Urticária: a lesão característica maculo-papular, pruriginosa, consiste numa área de eritema circunscrito, discretamente elevado, de centro claro, que desaparece à dígito-pressão e regride em menos de 24 horas, sem lesão residual; as lesões têm carácter recorrente e migratório. Anafilaxia: forma de manifestação clínica mais grave da patologia alérgica, potencialmente fatal; 353 caracteriza-se habitualmente pela presença de sinais mucocutâneos (urticária, angioedema), associados a um ou mais dos seguintes sinais: respiratórios-broncospasmo e dificuldade respiratória por edema da glote; cardiovascularestaquicardia, hipotensão arterial, alterações do ritmo cardíaco, perda de consciência e choque; digestivos-vómitos, diarreia e dores abdominais. No entanto, o colapso cardiovascular pode ocorrer de imediato, sem associação a sinais mucocutâneos, respiratórios ou digestivos. Exames complementares de diagnóstico in vivo Testes cutâneos Os testes cutâneos por picada ou “prick” constituem o método diagnóstico de eleição no estudo da sensibilização alergénica, inclusive em idade pediátrica, pela facilidade de execução, rapidez de obtenção de resultados, segurança, baixo custo e elevada sensibilidade. No entanto, contrastando com a facilidade de execução, estes testes podem ser influenciados por diversos factores, pelo que é imprescindível que a sua interpretação seja efectuada por especialista e sejam realizados com uma metodologia correcta, obedecendo a normas padronizadas. A utilização dos testes cutâneos por picada permite a identificação, se existente, do alergénio sensibilizante. A introdução do alergénio nas camadas superficiais da pele leva ao aparecimento de uma reacção imediata, dependente da desgranulação dos mastócitos e envolvendo também factores neurogénicos, com libertação de histamina e outros mediadores originando uma resposta de pápula e eritema; esta resposta visível é máxima aos 15 minutos, regredindo habitualmente aos 30 minutos. Os testes cutâneos podem ser influenciados por uma série de variáveis, que podem determinar os resultados e condicionar a precisão dos mesmos, tais como: factores técnicos, factores biológicos e factores externos não alérgicos. Os factores técnicos estão relacionados com a preparação do alergénio (potência, qualidade, composição e estabilidade) e com a metodologia do teste. Os factores externos não alérgicos incluem fármacos, como anti-histamínicos, e con- 354 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dições patológicas intercorrentes, como neoplasias, infecções, exacerbação de eczema, que podem inibir a reactividade cutânea. Os factores biológicos incluem a idade do indivíduo, o factor racial e a variação sazonal relacionada com a exposição alergénica. A selecção dos extractos alergénicos a utilizar deve estar de acordo com a história clínica e a frequência de sensibilizações alergénicas na população. Na nossa população os alergénios mais importantes em crianças com sibilância recorrente são os ácaros do pó (Dermatophagoides pteronysinus e Dermatophagoides farinae), mesmo no grupo etário abaixo dos 3 anos de idade. Outros aeroalergénios comuns poderão estar implicados, nomeadamente pólens de gramíneas, parietária, outras herbáceas e árvores localmente relevantes, de animais, particularmente gato, cão, baratas, e de fungos (Arpergillus, Cladosporium e Alternaria). Podem ainda ser incluídos outros testes segundo a localização geográfica ou em presença de dados particulares fornecidos pela história clínica. Habitualmente, através da utilização de um número limitado de aeroalergénios comuns é possível confirmar ou excluir a presença de atopia. A evidência de sensibilização alergénica foi identificada em vários estudos prospectivos como factor de risco de persistência da sintomatologia respiratória, isto é, de asma activa em idade escolar, com elevado valor preditivo positivo, com valor diagnóstico e prognóstico da asma na criança. Assim, o factor etário não deve ser um factor limitante para a execução dos testes cutâneos na criança, devendo, pelo contrário, ser considerada como rotina na investigação de atopia. Os testes cutâneos por picada negativos permitem excluir a presença de atopia e, deste modo, evitar a utilização de medidas de evicção de alergénios não apropriadas. Apesar de identificarem a sensibilização a determinado alergénio, os referidos testes cutâneos não permitem avaliar a sua relevância clínica se valorizados independentemente da história clínica. A presença de testes cutâneos positivos em pacientes assintomáticos pode ser factor de risco de início de sintomatologia alérgica, mas não identificam, por si só, doença. Ou seja, os conceitos de sensibilização alergénica ou atopia e doença alérgica são distintos e independentes. No entanto, na presença de clínica sugestiva, a relação entre os testes cutâneos por picada positivos e as provas de provocação específicas é altamente significativa. Na alergia alimentar os testes cutâneos devem ser realizados com os alergénios alimentares identificados como suspeitos pela história clínica. Os alergénios alimentares mais frequentemente implicados também variam com a população estudada. Na nossa população, em idade pediátrica, o leite e o ovo são os mais importantes, seguidos do peixe, trigo e amendoim. Os referidos testes apresentam um excelente valor preditivo negativo, mas baixo valor preditivo positivo, pelo que, exceptuando os casos em que haja uma íntima associação entre a ingestão do alimento e o aparecimento das queixas ou uma reacção anafiláctica grave, a positividade dos mesmos apenas serve para seleccionar os alimentos com os quais deverão ser efectuadas provas de provocação. A utilização de testes cutâneos com o alimento na forma natural pode ser necessária nalgumas situações, particularmente na suspeita de alergia a frutos frescos, legumes e mariscos, quando persistir a suspeita clínica, e o extracto comercial não estiver disponível ou for negativo. Os testes cutâneos intradérmicos são mais invasivos, e menos específicos; o risco de ocorrência de reacções adversas graves em cerca de 2% dos casos, contraindica a sua utilização por rotina. A sua utilização deve, pois, ser reservada a situações para avaliação de alergia medicamentosa, como na suspeita de alergia à penicilina, e alergia a veneno de himenópteros, nomeadamente abelha e vespa. Estes testes apresentam um elevado valor preditivo negativo, ou seja quando negativos permitem excluir a presença de sensibilidade IgEmediada, na grande maioria dos doentes. Caso não seja possível a realização dos testes cutâneos, esteja limitada a sua interpretação por existência de dermografismo, de diminuição da reactividade cutânea, ou seja necessário o esclarecimento de casos discordantes ou duvidosos, deverá ser efectuada a determinação sérica de IgE específicas. No entanto, salienta-se, a menor sensibilidade diagnóstica e o custo mais elevado dos testes in vitro (Quadro 1). Provas de provocação 1. Provas de provocação brônquica: no período intercrítico a avaliação respiratória da criança CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 355 QUADRO 1 – Testes cutâneos por picada e testes séricos de IgE específica: vantagens Testes cutâneos (in vivo) Económicos Resultados imediatos Valor educacional Maior sensibilidade Testes séricos de IgE específica (in vitro) Independentes da interferência de fármacos que inibem a reactividade cutânea Não influenciados por dermografismo ou doenças cutâneas Totalmente seguros Maior especificidade Nota: Teste sinónimo de Prova asmática apresenta-se frequentemente dentro de parâmetros de normalidade funcional e, muitas vezes, para confirmar o diagnóstico de asma, há que se recorrer a provas de broncomotricidade as quais podem ser broncodilatadoras ou broncoconstritoras. A prova de broncodilatação é habitualmente efectuada no decurso do estudo da função respiratória, por espirometria ou pletismografia corporal. Nesta prova avalia-se o grau de reversibilidade, 15 minutos após inalação de um β -agonista de curta acção. Considera-se a prova positiva quando há um aumento do VEMS (volume expiratório máximo no primeiro segundo) de ≥ 12% ou ≥ 200ml em relação ao valor basal. A existência de uma prova positiva permite efectuar o diagnóstico de asma. Em indivíduos com sintomatologia atípica, quando os parâmetros funcionais são normais, para demonstrar a existência de hiperreactividade brônquica, recorre-se a provas boncoconstritoras. A prova de esforço é particularmente importante, pela sua fácil exequibilidade e por apresentar uma elevada especificidade para o diagnóstico de asma, nomeadamente na criança, permitindo, se positiva, (ou seja quando ocorre uma redução do VEMS ≥ 10% após a realização do esforço normalizado) confirmar o diagnóstico. A prova da metacolina apresenta uma baixa especificidade, sendo positiva em várias situações que apresentam hiperreactividade brônquica tais como fibrose quística, bronquiectasias, insuficiência cardíaca e infecções víricas. Salienta-se, no entanto, o seu elevado valor preditivo negativo. Esta prova considera-se positiva quando ocorre uma redução do VEMS ≥20%. Outras provas de provocação avaliam a hiperreactividade brônquica a estímulos como a água destilada, soluções hiperosmolares como o manitol e hiperventilação de ar seco e frio. A prova de provocação brônquica 2 com alergénio não é habitualmente utilizada, excepto em estudos de investigação; só deve ser efectuada em circunstâncias especiais e sempre em ambiente hospitalar, pois desencadeia uma resposta imunológica imediata e tardia, com riscos acrescidos. 2. Provas de provocação oral: são administradas por via oral doses crescentes do alergénio suspeito com intervalos regulares, até ao aparecimento de reacção, ou até ser atingida uma dose cumulativa correspondente à quantidade ingerida habitualmente numa refeição, ou à dose terapêutica diária, consoante se trate de prova de provocação alimentar ou medicamentosa. Na criança habitualmente são realizadas segundo um protocolo aberto; no entanto, em determinadas situações, nomeadamente se as queixas referidas forem subjectivas, poderá justificar-se a utilização de protocolo com ocultação. Estas provas são utilizadas para confirmação ou exclusão do diagnóstico de alergia alimentar e medicamentosa. Estes procedimentos só devem ser realizados em ambiente hospitalar, geralmente em regime de hospital-de-dia, tendo disponíveis os meios terapêuticos necessários para a eventualidade de reacção sistémica, com a supervisão de especialistas experientes nesta área. Na abordagem da alergia alimentar em idade pediátrica, habitualmente transitória, as provas de provocação, para além da finalidade diagnóstica, são imprescindíveis para determinar o momento em que se obtém a tolerância ao alimento; neste caso, a calendario das provas deve ser feito tendo em conta o quadro clínico apresentado, o conhecimento existente sobre a história natural da sensibilização ao alimento implicado, e a evolução dos níveis de IgE específica sérica. 3. Provas de provocação por contacto: consistem na provocação por contacto com o alergénio suspeito. Salienta-se a prova de provocação com 356 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA material contendo látex, habitualmente luva de látex ou balão, que pode ser necessária em determinadas situações em que haja suspeita de alergia ao látex, nomeadamente quando se torna necessário confirmar a existência de sintomas em doentes sensibilizados ao mesmo. Outras provas de provocação específicas, nomeadamente nasais e conjuntivais, podem ser efectuadas com o alergénio suspeito, mas habitualmente a sua utilização é limitada a estudos de investigação. Exames complementares de diagnóstico in vitro IgE total O doseamento da IgE total sérica é um teste de baixas especificidade e sensibilidade no diagnóstico da doença alérgica. Para a generalidade dos autores, e de acordo com estudos efectuados em pares de gémeos, a síntese de IgE total terá um determinismo essencialmente genético; a síntese de IgE específica será fundamentalmente influenciada pela exposição ambiental. Apesar de intimamente relacionada com a doença alérgica, a determinação da IgE total sérica tem um interesse relativo quando avaliada isoladamente, podendo estar elevada por várias razões, nomeadamente nas parasitoses, na aspergilose pulmonar, na síndroma hiper-IgE e associada ao tabagismo. A concentração de IgE total, relacionada com a idade, aumenta progressivamente até aos 5 anos, mantém-se sem grandes alterações até aos 15 anos, para estabilizar cerca dos 20 anos. É um teste de baixo custo e rápido. No entanto, o facto de uma determinação de IgE total evidenciar valores normais não significa que não haja aumento de alguma IgE específica nem que seja excluída doença alérgica. Alguns estudos prospectivos têm documentado para este teste, um maior valor prognóstico do que diagnóstico, nomeadamente na criança asmática. Valores superiores à média +2 desvios-padrão indiciam probalidade de 95% de atopia. Para o doseamento de IgE total no sangue utilizam-se métodos radio-imunológicos (PRIST e RAST) e imuno-enzimáticos (ELISA). Os níveis de IgE no cordão umbilical foram propostos e utilizados como factor preditivo da ocorrência de doença alérgica. Este entusiasmo inicial não foi, no entanto, apoiado por estudos mais recentes, revelando-se um método pouco sensível; por outro lado não permite também prever o tipo de doença alérgica. IgE específica A identificação do alergénio suspeito, para além de poder ser efectuada pelos testes cutâneos, pode também ser efectuada por métodos in vitro, que permitem determinar as concentrações de IgE específica para um determinado alergénio. O primeiro método desenvolvido para o doseamento de IgE específica foi o RAST (Radio Allergo Sorbent Test®). Desde então, os métodos têm-se desenvolvido progressivamente de modo a obter-se testes cada vez mais sensíveis e específicos. Actualmente, estão disponíveis dois métodos de determinação de IgE específica, igualmente eficazes: UniCAP® da Pharmacia Diagnostics (fase sólida) e Immulite“2000 da Diagnostic Products Corporation (alergénios líquidos). A calibração do método é muito importante e deve ser uniforme, de modo a poder comparar-se os resultados (Quadro 2). A IgE específica não é um bom método de rastreio, sendo os respectivos custos muito elevados. O doseamento de IgE específicas séricas deveria estar reservado para uma avaliação mais diferenciada, tendo em conta a história clínica e o resultado dos testes cutâneos. Esta determinação é extremamente importante em determinadas situações (Quadro 3), nomeadamente: na monitorização de imunoterapia específica; na alergia alimentar, para controlo do correcto cumprimento da dieta e para avaliar o grau de tolerância, diminuindo o risco de provas de provocação positivas; e na suspeita de alergia a venenos de himenópteros e penicilina, alergénios com risco acrescido na realização dos testes cutâneos (intradérmicos). Os alergénios também se têm desenvolvido quer em variedade, quer em qualidade, de modo a garantir a inexistência de perdas de constituintes essenciais durante o processo de fabrico, sendo um bom exemplo desta evolução os alergénios recombinantes. A pesquisa de IgE específica pelo método Imunoblot permite saber qual ou quais são os epítopos contra os quais essas IgE são dirigidas. Habitualmente mais usado em investigação, é importante na caracterização do perfil de sensibi- CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 357 QUADRO 2 – Resultados quantitativos e qualitativos de IgE específica Resultados quantitativos (kUA/l) < 0.35 0.35 a 0.70 0.71 a 3.50 3.51 a 17.50 17.51 a 50.0 50.01 a 100.0 > 100 Resultados semi-quantitativos (classes) 0 1 2 3 4 5 6 Resultados qualitativos Ausente ou indetectável Baixo Moderado Alto Muito alto Muito alto Muito alto QUADRO 3 – Testes séricos de IgE específica (in vitro) Dermografismo ou doenças cutâneas, com limitação na interpretação dos testes cutâneos Testes cutâneos duvidosos ou negativos com forte suspeita clínica Alergénios com risco da realização de testes cutâneos (intradérmicos) Avaliação de resultados da evicção alergénica / Controlo do grau de evicção do alergénio Avaliação do grau de tolerância / Decisão de realização de provas de provocação Monitorização da imunoterapia específica lização alergénica, com implicações na selecção da terapêutica específica e no estudo da reactividade cruzada, neste caso com utilização de técnicas de inibição. Painéis de alergénios múltiplos São testes de rastreio, constituidos por uma mistura de vários alergénios definida pelo fabricante. Existem painéis para os alergénios inaláveis, AlaTOP® e Phadiatop®, e inúmeros painéis para alergénios alimentares, dos quais os mais utilizados na criança por possuirem leite e clara do ovo são o Fx5® e o correspondente FP5® (Quadro 4). Tendo em conta os valores de sensibilidade, especificidade e valor preditivo negativo, consideramos estes testes bons métodos de rastreio, podendo ser utilizados em consultas não especializadas. Os mesmos proporcionam uma informação global, qualitativa, em termos de resultado positivo/negativo. Marcadores de inflamação O estudo dos mediadores e da sua determinação como marcadores de inflamação constitui um dos campos florescentes da investigação imunoalergológica. A introdução de novas tecnologias permitiu o desenvolvimento de métodos para avaliação da libertação de mediadores produzidos pelas células intervenientes na inflamação alérgica, incluindo: ECP (proteína catiónica dos eosinófilos); triptase; FAST (teste de activação de basófilos por citometria de fluxo); CAST (teste celular de estimulação antigénica); formas solúveis de moléculas de adesão como ICAM-1 e VCAM-1; citocinas de perfil Th2 como IL-4 e IL-13. A sua utilização é habitualmente restrita a estudos de investigação, sendo potenciais instrumentos para o diagnóstico, monitorização e prognóstico das doenças alérgicas. Pela sua importância em termos clínicos, salienta-se a determinação da triptase sérica. A triptase QUADRO 4 – Painéis de alergénios múltiplos Alergénios Inaláveis AlaTOP® 1 ácaros, pólens de gramíneas, ervas e árvores, fungos, epitélios Phadiatop® 2 de gato, cão e cavalo FP5® 1 Alergénios Alimentares leite, clara de ovo, bacalhau, trigo, amendoim e soja Fx5® 2 1 Diagnostic Products Corporation; 2Pharmacia Diagnostics 358 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tem valor diagnóstico de anafilaxia, pelo que o seu doseamento terá importância no serviço de urgência, durante a reanimação ou mesmo no estudo de casos fatais. A sua utilização poderá ainda ter interesse na monitorização de provas de provocação. diferencial das causas de obstrução nasal fixa; e por estudo imagiológico, nomeadamente tomografia computadorizada das fossas nasais e seios perinasais nas formas de rinossinusite de difícil tratamento médico. Exames complementares em situações específicas Dermatite atópica Os exames complementares de diagnóstico incluem a realização de testes cutâneos, e se necessário doseamento de IgE específicas, nomeadamente para aeroalergénios, particularmente ácaros do pó, e alergénios alimentares. Nalgumas situações poderá associar-se a realização de provas de sensibilidade epicutâneas (testes empregando adesivo ou patch). Nas formas mais graves de eczema, poderá ter interesse a pesquisa de IgE específicas para agentes infecciosos, bacterianos (Staphylococcus aureus) e fúngicos (Pityrosporum ovale e Candida albicans). Nos casos em que a suspeita de alergia alimentar é pertinente, deve proceder-se a dietas de exclusão e a provas de provocação oral para excluir ou confirmar o diagnóstico. Asma Os exames complementares de diagnóstico incluem a realização de testes cutâneos, para identificação dos alergénios implicados, e provas funcionais respiratórias, para quantificar as repercussões funcionais ao nível das vias aéreas. A espirometria, incluindo a realizada em idade préescolar, avalia a existência e grau de obstrução brônquica, bem como a sua reversibilidade após inalação de broncodilatador; deve ser o exame de primeira linha. A pletismografia corporal, mais independente da colaboração do doente, permite a determinação da resistência das vias aéreas e dos volumes pulmonares, avaliando o grau de insuflação pulmonar. O ideal na avaliação do doente asmático será a realização regular destes exames. Caso não seja possível, e apesar das limitações conhecidas, poderá efectuar-se a determinação seriada do débito máximo instantâneo (DEMI) pela utilização do debitómetro (Peak Flow Meter). O estudo funcional respiratório permite confirmar o diagnóstico clínico, efectuar o diagnóstico diferencial em casos de dúvida, e determinar a gravidade actual da doença. A confirmação do diagnóstico pode ser feita pela existência de uma prova de broncodilatação positiva, variação diurna do DEMI ≥20% ou uma prova de broncoconstrição positiva; na criança, a prova de broncoconstrição com maior especificidade para o diagnóstico de asma é a prova de esforço. Alergia alimentar A confirmação do diagnóstico clínico, empregando para além da realização dos testes cutâneos, e se necessário pesquisa de IgE específica sérica, é efectuada em regra por prova de provocação oral. BIBLIOGRAFIA Bernstein IL, Storms WW. Practice parameters for allergy diagnostic testing. Joint Task Force on Practice Parameters for the Diagnosis and Treatment of Asthma. The American Academy of Allergy, Asthma and Immunology and the American College of Allergy, Asthma and Immunology. Ann Allergy Asthma Immunol 1995;75:543-625 Cockcroft D. Provocation tests. In: Manual of asthma management. O’ Byrne PM, Thomson NC (eds). Philadelphia: Saunders, 2001: 91-99 Gaspar A, Pires G. Alergia ao látex: sensibilização sem clínica e Rinite alérgica A realização de exames complementares de diagnóstico é habitualmente limitada aos testes cutâneos, e se necessário, à pesquisa de IgE específica sérica; permitem confirmar o diagnóstico de rinite alérgica, atópica, identificando os alergénios implicados. Em situações mais complicadas, como critério de exclusão, a avaliação poderá ser complementada por endoscopia nasal, no diagnóstico reactividade cruzada – que implicações? Rev Port Imunoalergol 2002;10:159-162 Hamilton RG. Laboratory tests for allergic and immunodeficiency diseases. In: Allergy, Principles & Practice. Adkinson NF, Yunginger JH, Busse WW, Brchner BS, Holgate ST, Simons FER (eds). St. Louis: Mosby, 2003:611-630 Hamilton RG, Adkinson NF Jr. In vitro assays for the diagnosis of IgE mediated disorders. J Allergy Clin Immunol 2004; 114: 213-225 CAPÍTULO 64 Asma Lopes I, Fernandes JG, Loureiro V, et al. Diagnóstico de asma na criança e os exames complementares. In: A criança asmática no mundo da alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003: 119-228 Morais de Almeida M, Gaspar A, Pires G, et al. Sibilância recorrente na infância. Estudo prospectivo. Rev Port Imunoalergol 1998;6:105-117 359 64 ASMA Morais de Almeida M, Gaspar A, Romeira A, et al. Factores de risco para asma activa em idade escolar: estudo prospecti- Mário Morais de Almeida vo com oito anos de duração. Rev Port Imunoalergol 2004;12:20-40 Morais de Almeida M, Prates S, Pargana E, et al. Alergia alimentar em crianças numa Consulta de Imunoalergologia. Importância do problema Rev Port Imunoalergol 1999; 7: 167-171 Santa Marta C, Pereira C. Síndrome de eczema / dermatite atópica. In: A criança asmática no mundo da alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M, (eds). Lisboa: Euromédice, 2003:421-31 A asma, doença que foi definida em capítulos anteriores, afecta muitas crianças e adultos em todo o mundo; constitui um importante problema de Saúde Pública, quer pela sua prevalência a aumentar nos últimos anos, quer pelos custos sociais e económicos que acarreta. O impacte da doença na qualidade de vida das crianças afectadas é considerável, devido a todas as restrições físicas, emocionais e sociais que muitas vezes lhe estão inerentes. Importa, assim, reduzir ao mínimo tal impacte nas actividades quotidianas. Os custos directos relacionados com o tratamento farmacológico da asma correspodem apenas a uma pequena percentagem dos custos globais da doença, estes muito mais afectados pelos episódios de crise, pelos internamentos, pelo absentismo escolar e laboral, ou pela própria mortalidade relacionada. Etiopatogénese Trata-se de uma doença inflamatória crónica complexa, envolvendo múltiplas células (linfócitos, mastócitos, eosinófilos, etc.) e mediadores celulares; as alterações inflamatórias presentes conduzem ao edema, à hipersecreção de muco, ao aumento da contractilidade das vias aéreas, à obstrução brônquica e à hiperreactividade das vias aéreas, manifestadas pelos sintomas característicos e bem conhecidos (tosse, dispneia, pieira, opressão torácica). As consequências a longo prazo podem levar à obstrução fixa das vias aéreas e/ou a fenómenos de remodelação, correspondente à cicatrização sequelar do processo inflamatório. 360 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A asma, doença multifactorial, depende da interacção entre factores genéticos e ambientais, iniciando-se as manifestações clínicas na idade pediátrica num número muito considerável de indivíduos. O aumento recente na prevalência das doenças alérgicas em geral, e particularmente da asma brônquica na criança, não poderá ser explicado apenas por factores genéticos; reforça-se assim o papel do ambiente, nas suas componentes do interior e do exterior dos edifícios (Figura 1). Por outro lado, diferentes prevalências em populações submetidas a condições ambientais semelhantes, realçam a importância dos factores genéticos. História natural e factores de risco A história natural da asma em idade pediátrica é também uma preocupação significativa, quer para a família das crianças atingidas, quer para os próprios clínicos que as seguem: Passará a doença com a idade? Agravar-se-á? Melhorará? Qual será o efeito do tratamento? Poderão existir alterações irreversíveis da função respiratória em idades precoces? Estas questões frequentemente formuladas, ficam habitualmente por responder, até porque impera uma atitude demasiadamente negligente da abordagem da doença asmática neste grupo etário, associando-a quase invariavelmente a um bom prognóstico clínico; os aspectos funcionais, incluindo a sua avaliação, não são habitualmente considerados. No entanto, a revisão de estudos prospectivos demonstra que os sintomas tendem a persistir durante a vida, particularmente quando está subjacente uma inflamação alérgica das vias aéreas, apesar de serem previsíveis períodos assintomáticos de duração variável. Acresce que a mortalidade por esta doença, nas últimas duas décadas, não evidenciou qualquer declínio, atingindo particularmente adolescentes e adultos jovens. A existência de uma inflamação na criança asmática desde a idade pré-escolar leva a ponderar a hipótese da existência de remodelação das vias aéreas, transversal a todo o espectro de gravidade, constituindo argumentos a favor do desenvolvimento de sequelas respiratórias e indicando a terapêutica anti-inflamatória precoce; efectivamente tem sido demonstrado que, mesmo em lactentes asmáticos não tratados, as funções respiratórias degradam-se, confirmando que a inflamação crónica é prejudicial ainda antes da idade escolar. Como condicionantes do aumento de prevalência da asma brônquica, particularmente em idade pediátrica, estão actualmente bem documentados os efeitos de alguns alergénios, dos poluentes (ex.tabagismo) e das infecções, bem como dos factores genéticos, sociais e socioeconómicos. Entre os factores de risco que têm sido identificados para a expressão da doença asmática na cri- AMBIENTE AMBIENTE AMBIENTE Transmissão Genética AMBIENTE AMBIENTE AMBIENTE Asma brônquica AMBIENTE Hiperreactividade brônquica AMBIENTE IgE total IgE específica AMBIENTE AMBIENTE FIG. 1 A transmissão genética da propensão para asma, hiperreactividade brônquica e atopia ocorre de modo independente; chama-se a atenção para a influência ambiental marcada. CAPÍTULO 64 Asma ança, alguns serão dificilmente susceptíveis de prevenção, nomeadamente os genéticos, contrastando com os ambientais, passíveis de intervenção (exposição alergénica, tabagismo e outros poluentes, regime alimentar), de cuja modulação podem ser esperados ganhos significativos, nomeadamente em termos de gravidade. A assistência a crianças com doença grave, particularmente se sujeitas a internamento, deverá ser cuidadosamente planeada. Actualmente no Hospital de Dona Estefânia são internadas por ano, apenas cerca de 10% daquelas que eram hospitalizadas por asma há 15 anos, traduzindo a existência de: 1. um protocolo amplamente divulgado para o tratamento das agudizações; 2. a referência sistemática dos casos mais preocupantes para consulta especializada e, finalmente, 3. a instituição de terapêutica anti-inflamatória, incluindo as medidas de controlo ambiental precocemente, após avaliação clínica e formulação diagnóstica. Asma induzida pelo exercício A asma induzida pelo exercício (AIE) define-se como o aumento transitório da resistência das vias aéreas resultante da broncoconstrição que ocorre após esforço físico inerente a prática desportiva, mas também facilmente desencadeável após situações fisiológicas como rir. Os sintomas de AIE, semelhantes aos de outras formas da doença, podem incluir tosse, pieira, dispneia, opressão torácica ou cansaço que surgem durante e principalmente após cessar o exercício; estes sintomas são de curta duração e acompanham-se de hiperinsuflação e hipoxémia arterial. A broncoconstrição máxima ocorre geralmente 3 a 10 minutos após o esforço físico, sendo habitual uma recuperação espontânea num intervalo de 30 a 60 minutos. A prevalência de AIE é variável, podendo ocorrer nalgumas séries em cerca de 80% dos doentes asmáticos; mais prevalente em idade pediátrica, é frequentemente causa de queixas e de frustração pelas dificuldades na integração das actividades de grupo. A gravidade da resposta broncoconstritora ao exercício depende de vários factores, tais como da intensidade do exercício, das condições climáticas e da reactividade basal das vias aéreas. A magnitude da resposta dependerá do grau de controlo da 361 doença, do uso prévio de medicação anti-asmática e do intervalo de tempo que decorreu desde um episódio anterior de broncoconstrição induzida pelo exercício, conceito conhecido como período refractário. Em cerca de 50% dos asmáticos a resposta broncoconstritora ao exercício é atenuada se este for repetido dentro de 30 minutos. A gravidade da AIE pode também ser indirectamente influenciada pela exposição a alguns factores, tais como alergénios, poluentes e infecções víricas. As actividades desportivas consideradas como mais asmogénicas englobam os desportos que exigem altos níveis de ventilação, como a corrida de fundo, o ciclismo, o futebol, o basquetebol, o raguebi, e modalidades praticadas em ambiente frio e seco como vários desportos de Inverno, particularmente o esqui, o hóquei e a patinagem no gelo. Relativamente à patogénese, os mecanismos pelos quais a AIE ocorre, continuam ainda por esclarecer. Actualmente, a desidratação da mucosa brônquica, consequência da hiperventilação que ocorre durante o exercício, constitui a explicação etiopatogénica mais aceite. O mecanismo pelo qual esta perda de água pela mucosa desencadeia a broncoconstrição, resulta provavelmente de uma conjugação de dois mecanismos anteriormente propostos como distintos: o estímulo térmico e o estímulo osmótico (Figura 2). O objectivo primordial do tratamento é prevenir, ou pelo menos atenuar, a resposta broncoconstritora ao exercício de modo que não constitua restrição à escolha de uma actividade física ou limitação ao nível de desempenho. Para tal, importa, em primeiro lugar, conseguir o melhor controlo possível da asma. Medidas não farmacológicas como mudar as condições do ar inalado quando a actividade ocorre em espaços fechados, evitar fazer exercício em ambientes frios e secos, limitar a exposição a poluentes, têm-se revelado benéficas. Critérios de gravidade e classificação Na classificação da gravidade, são consideradas as propostas do Global Initiative for Asthma (GINA) e do III International Pediatric Consensus Statement on the Management of Childhood Asthma. Segundo o grupo GINA, a classificação de gravidade estende-se por “degraus” de 1 a 4: 362 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Exercício físico Hiperventilação Estímulo térmico Estímulo osmótico Hiperémia / Edema Desgranulação de mastócitos Libertação de neuropéptidos Libertação de mediadores (histamina, prostaglandinas, leucotrienos) Broncoconstrição FIG. 2 Mecanismos etiopatogénicos na AIE. primeiro degrau, ou asma intermitente, é o que corresponde ao indivíduo que apresenta sintomas em menos que uma ocasião por semana (ou sintomas nocturnos < 2 vezes/mês) e cuja função pulmonar apresenta valores superiores a 80% do valor teórico previsto; o segundo degrau corresponde à asma persistente ligeira, em que existem sintomas diurnos mais do que uma vez por semana, mas menos do que uma vez por dia (ou sintomas nocturnos > 2 vezes/mês), encontrandose a função respiratória igualmente com valores superiores a 80% do previsto; o terceiro degrau, ou asma persistente moderada, descreve-se quando os sintomas são diários, afectando a actividade diária (ou sintomas nocturnos > 1 vez/semana), ou estando a função respiratória entre 60 e 80% do valor teórico previsto; finalmente, no quarto degrau, asma persistente grave, os sintomas são contínuos e a actividade física muito limitada (os sintomas nocturnos são também muito frequentes), encontrando-se a função respiratória com valores inferiores a 60% do previsto. É de referir que a existência de, pelo menos, um critério de gravidade (sintomas diurnos, nocturnos ou provas funcionais respiratórias) coloca o doente nesse patamar de gravidade. No caso de existirem crises graves, mesmo que pouco frequentes, deverá ser a criança classificada como tendo asma persistente moderada. Na classificação do III Consenso Pediátrico, quanto à morbilidade a longo prazo da asma infantil, considera-se: asma episódica infrequente – episódios agudos menos do que 1 vez/mês, com um mínimo de “pieira” após exercício prolongado, sem sintomas interepisódios e com função respiratória normal entre eles; asma episódica frequente – episódios agudos mais frequentes (mais que 1 vez/mês e menos do que 1 vez/semana), com pieira após exercício moderado mas que pode ser prevenida por β2-agonistas e com função respiratória normal (ou próximo do normal) entre os episódios agudos; asma persistente – episódios agudos frequentes (> 1 vez/semana), requerendo entre eles a utilização de β2agonistas mais do que 3 vezes/semana (devido a sintomas nocturnos ou opressão torácica matinal) e com pieira após exercício ligeiro; a função respiratória está geralmente alterada, mesmo intercrises. Quanto à classificação dos episódios agudos de asma, considera-se: asma ligeira – tosse e pieira audível, mas sem diminuição da actividade física, sem aumento da frequência respiratória, sem cianose, permitindo pronunciar frases de relativa extensão e não interferindo na actividade escolar; função respiratória acima de 75% do esperado; melhorando espontaneamente ou com doses habituais de β 2-agonistas; asma moderada – evidenciando o uso dos músculos acessórios, aumento da frequência respiratória, restrição da marcha, e apenas permitindo pronunciar 3 a 5 palavras seguidas; interferindo na frequência escolar; necessitando de maiores doses de β 2-agonistas e, com frequência, também de corticóides orais; asma grave – cianose manifesta, dificuldade respiratória marcada (por vezes já sem pieira audível) só permitindo pronunciar 1 a 3 palavras; incapacidade na marcha, com resposta débil aos β2-agonistas; necessitando de monitorização das saturações em oxigénio, oxigenoterapia, e de cuidados hospitalares. CAPÍTULO 64 Asma Nalguns centros determina-se a taxa de NO expirado (FENO), marcador da inflamação na asma, o que poderá contribuir não só para o diagnóstico, mas igualmente como meio de controlar a medicações instituídas. A Figura 3 mostra uma radiografia do tórax (póstero-anterior e perfil) uma criança de 8 anos com uma crise de asma: Sinais hiperinsuflação pulmonar (enfisema), horizontalização das costelas, abaixamento do diafragma e de acentuação do retículo peribrônquico. Prevenção e tratamento No âmbito da actuação preventiva e terapêutica, importa realçar pontos fundamentais a inquirir e valorizar na relação entre sintomas e diagnóstico, especialmente na criança em idade pré-escolar: 1. Episódios recorrentes de pieira? 2. Tosse irritativa nocturna? 3. Tosse ou pieira após exercício? 4. Tosse, pieira, opressão torácica após exposição a aeroalergénios? 5. Infecções das vias superiores “que descem aos brônquios”? 6. Resultado da resposta ao tratamento? Em relação aos factores de exacerbação importa abordá-los pela sua frequência: alergénios e FIG. 3 Padrão radiográfico do tórax (PA) de asma com enfisema (NIHDE). 363 infecções respiratórias víricas; exercício; alterações climáticas; poluentes; alimentos, aditivos e fármacos. Importa ainda salientar em relação ao início e persistência de sintomas, que na maioria dos casos a sibilância recorrente nos primeiros anos de vida é transitória, com bom prognóstico; no entanto, a maioria dos casos de asma grave começa nos primeiros anos de vida. Para o controlo da maioria das situações clínicas de asma, importa dominar aspectos relacionados com evicção alergénica e farmacoterapia, englobados num programa educativo e de promoção de saúde que será complexo e condicionado à gravidade da doença. 1. Controlo ambiental – evicção alergénica Se o controlo ambiental para alergénios do exterior dos edifícios se revela muito difícil (ex. pólens), já algumas medidas visando o interior da residência podem revelar-se essenciais. • Ácaros domésticos – A sensibilização relaciona-se com os níveis e com a duração da exposição. A redução da concentração de alergénios influencia positivamente a evolução clínica. – Medidas: Métodos de barreira ou oclusivos – capas de colchão e das almofadas, idealmente aplicadas em colchões novos ou recentes (impede a colonização); existem capas permeáveis e impermeáveis ao ar e ao vapor de água; provavelmente constitui a medida isolada mais eficaz (essencial). Lavagem da roupa da cama, idealmente a mais de 55ºC; existem também capas para edredão, no caso de não ser possível a sua lavagem (essencial). Remover peluches da cama / lavagem regular (semanal a mensal), a 60ºC, dos que permanecerem (essencial). Remover mobiliário acolchoado e alcatifas, particularmente se antigas, preferindo pavimentos de madeira, sintéticos ou aplicação de alcatifas laváveis. Evitar livros no quarto (desejável). Aspiração semanal com dispositivo apropriado (aspirador com filtro de alta eficiência – high-efficiency particulate air - HEPA). Limpar o pó com pano húmido (desejável). Redução da humidade relativa – desumidificadores e aumento da ventilação (desejável). 364 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Acaricidas – pouco relevantes em locais muito infestados, sendo considerado discutível o seu interesse clínico. Indicados no pavimento se não for possível retirar alcatifas (desejável). • Animais domésticos ou de companhia – A exposição mantida associa-se a maior gravidade e, a exposição aguda, relaciona-se com agudizações. – Medidas: Não ter animais de companhia ou retirá-los da residência (eficácia comprovada); de referir que o contacto também pode ocorrer noutras habitações ou mesmo no ambiente escolar. O benefício pode não ser imediato (níveis de alergénio podem reduzir-se progressivamente até periodo de 6 meses), mas será tanto mais rápido se associado a outras medidas (aspiração). Nos casos clínicos de sensibilização ao gato, nenhuma outra medida, se o animal estiver presente, poderá influenciar significativamente a exposição alergénica. Se o animal permanecer: Lavagem do(s) animal(is), permitindo reduzir transitoriamente (uma semana) os níveis de alergénios. Filtragem do ar (filtros HEPA ou ionizadores colocados no quarto de dormir). Aspiração regular (aspirador com filtro HEPA). Aplicação de capas no colchão e na almofada. Remoção de reservatórios de alergénios (alcatifas, carpetes, estofos). Limitar a circulação dos animais nos quartos de dormir; porta do quarto sempre fechada. • Baratas – Factor de risco de gravidade clínica, incluindo agudizações. Muito difícil a erradicação, particularmente em ambientes urbanos. – Medidas: Inspecção e identificação dos insectos, permitindo prever locais principais de infestação. Localização e erradicação de fontes de alimentos e de água. Insecticidas, permitindo reduzir a população de baratas (exterminação) embora se mantenham os alergénios. Limpeza da casa, não deixando restos de comida acessíveis, aspiração profunda e lavagem após aplicação das medidas anteriores. Há que ter cuidado com as condutas de lixo. • Fungos – A contaminação é habitualmente efectuada do exterior através das janelas (ex. Alternaria), embora alguns fungos possam ser predominantemente encontrados dentro dos edifícios. – Medidas: Remover ou lavar materiais contaminados – tapetes, mobiliário, papel de parede. Aplicação de fungicidas. Prevenção da contaminação do exterior – fechar janelas; recurso a ar condicionado (caro). Controle da humidade relativa através da utilização de desumidificadores, aumento da ventilação (atenção às cozinhas e salas de banho). Uso de filtros de alta eficiência – filtração do ar e aspiração (HEPA). Secar bem as roupas antes de serem guardadas. Evitar plantas nos quartos de dormir. 2. Tratamento farmacológico Nesta alínea procede-se à descrição dos principais fármacos utilizados no tratamento da asma e dos diversos esquemas de tratamento de acordo com os quadros clínicos (como se combinam os fármacos em função do contexto clínico e em situações específicas. • Fármacos – β2 -agonistas: Os β2 – agonistas são os broncodilatadores mais potentes, actuando por estimulação dos receptores β-adrenérgicos. O Quadro 1 descreve os efeitos dos β2 -agonistas em diferentes órgãos e sistemas. Na pratica clínica são utilizados fundamentalmente dois tipos destes agonistas: 1) de curta acção, como o salbutamol (albuterol), QUADRO 1 – Efeitos principais dos β2-agonistas em diferentes órgãos/sistemas Tecido Vias aéreas Resposta Relaxamento músculo liso – broncodilatação Aumento dos movimentos ciliares Aumento da secreção de muco Inibição da desgranulação mastocitária Coração Aumento da frequência cardíaca Vasos Vasodilatação Aumento da permeabilidade vascular Efeitos metabólicos Gluconeogénese Hipocaliémia Aumento da produção de lactato CAPÍTULO 64 Asma 365 QUADRO 2 – β2-agonistas • Broncodilatadores mais potentes, de primeira escolha no serviço de urgência • Via inalatória é a mais eficaz • Início de acção quase imediato • Efeitos secundários mínimos Medicamento Salbutamol (sol. respiratória) 1 ml = 0,5 mg Dose 0,03ml/kg/dose (0,15 mg/kg) + SF (mínimo de 0,3 ml e máximo de 1 ml) Frequência 20/20 min Observações 0,3 mg/kg/hora, até 30mg/hora Nebulização contínua Monitorização dos efeitos secundários Limitação da dose pela monitorização dos efeitos secundários Salbutamol 50 µg/kg/dose (máx. 10 puffs = 1.000 µg) (+ câmara expansora) intervalo de 30 a 60 segundos pMDI: 100 µg/puff entre cada puff 20/20 min Procaterol (sol. respiratória) 1 ml = 100 µg 2/2 horas Procaterol (+ câmara expansora) pMDI = 10 µg/puffs < 20 kg: 0,3 ml > 20 kg: 0,5 ml Na criança não existem estudos < 12 anos: 1 puffs >12 anos: 2 puffs 2/2 horas controlados dose/resposta Puff ◊ insuflação sob pressão ou pressurização procateral, terbutalina, fenoterol, etc.. Têm um início de acção rápida, em poucos minutos, atingindo o maximo de actividade cerca de 6090 minutos após administração por via inalatória. Os seus efeitos duram cerca de 4-6 horas, sendo o mais relevante o relaxamento do músculo liso; são o tratamento de primeira linha nas crises de asma/agudizações (Quadro 2) 2) de acção prolongada, como formoterol e o salmeterol com efeito broncodilatador que dura cerca de 12 horas, aprovados para crianças acima dos 4-5 anos. O formoterol tem um ínicio de acção mais rápido (1-3 minutos após inalação) do que o salmeterol (cerca de 10-20 minutos). Ao cabo de 30 minutos a sua acção é comparável à do salbutamol ( de curta acção). Estes farmacos não devem ser usados em monoterapia; como regra, estão indicados em associações a corticóides quando a corticoterapia inalada em dose equivalente a 800μg por dia de dipropionato de beclometasona não é suficiente para reverter os sintomas. Em crianças com idade superior a 6 anos a dose recomendada de formoterol é 4,5μg e a de salmeterol – 50μg (ver adiante) – Corticóides: Os corticóides, inalados ou sistémicos, são complemento essencial para o controlo do proces- QUADRO 3 – Equivalência de doses de corticóides inalados em idade pediátrica Fármaco Beclometasona Budesonido Fluticasona Doses baixas 100 – 400 µg 100 – 200 µg 100 – 200 µg Doses moderadas 400 – 800 µg 200 – 400 µg 200 – 500 µg Doses elevadas > 800 µg > 400 µg > 500 µg 366 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Corticosteróides • Anti-inflamatórios com papel reconhecido no controlo dos processos fisiopatológicos da asma (↓ morbilidade e mortalidade) • Melhoria da resposta aos agonistas β2 (actuação a nível dos receptores) • Via de administração sistémica • Início de acção em 2 a 8 horas • Efeitos secundários (raros durante cursos terapêuticos curtos até 3 dias) Medicamento Metilprednisolona Prednisolona Dose 1 a 1,5 mg/kg/dose 2 a 2,5 mg/kg/dose so inflamatório subjacente às agudizações. O Quadro 3 discrimina os corticódes inalados mais empregues e respectivas doses. No Quadro 4 são referidas as doses de metilprednisolona e prednisolona por via sistémica (tratamento de curta duração). – Anticolinérgicos: O brometo de ipratrópico, derivado sintético da atropina, é o anticolinérgico actualmente mais empregue como broncodilatador. Comparativamente ao salbutamol, o brometo de ipratrópico tem um início de acção mais lento, com efeito máximo cerca de 60 minutos após inalação, durando a sua acção 4 a 8 horas. O Quadro 5 descreve a posologia (aerossol e nebulização). Os anticolinérgicos têm a sua indicação em associação aos β2-agonistas nas agudizações moderadas a graves, ou em alternativa aos últimos se existir intolerância a estes fármacos. – Xantinas: As teofilinas são cada vez menos utilizadas, pois a um efeito broncodilatador menos potente, associa-se a probabilidade de ocorrência de efeitos secundários numa percentagem considerável de Frequência Até 4/4 horas Até 4/4 horas Observações Máximo 48 mg/dose EV ou oral Máximo 60 mg/dose EV ou oral casos; a sua indicação fica reservada para quando existe insucesso no tratamento com agonistas β2. Trata-se de fármacos rapidamente absorvidos por via oral, rectal ou parentérica, atingindo níveis séricos máximos cerca de 2 horas após a administração. A dose recomendada para crianças com mais de 6 meses é 10mg/kg/dia até dose máxima inicial de 300 mg/dia; a dose pode ser aumentada de 3-3 dias até 16 mg/kg/dia (600mg/dia). A “janela” terapêutica é estreita (5-15μg/ml); obtém-se broncodilatação a partir de concentração sérica de 5μg/ml. – Antagonistas dos receptores dos lencotrienos: Para além do seu efeito broncodilatador, aditivo ao dos β-agonistas, estes fármacos têm ainda acção anti-inflamatória. Em Portugal estão comercializados: a) Montelucaste para crianças com idade superior a 2 anos (4mg/dia entre 2 e 5 anos, e 5mg/dia para >5 anos) em dose unicas diária, oral; b) Zafirlucaste para > 12 anos em 2 doses diárias de 20mg por via oral. – Cromonas: A utilização de cromonas (por ex. cromoglica- QUADRO 5 – Brometo de ipratrópio: posologia Via Neonatal Aerossol Nebulização Igual a < 1 ano Idade 1 mês – 2 anos 2 – 12 anos até 120 microgramas < 1 ano: 125µg > 1 ano: 250µg < 5 anos: 250µg > 5 anos: 500µg 12 – 18 anos 500µg Frequência (nº tomas/dia) 4-6 Dose/nebulização (pode ser repetida entre cada 2/2 ou 6/6horas) CAPÍTULO 64 Asma to de sódio) por via inalatória na terapêutica da asma tem sido baseada essencialmente no seu efeito (broncoprotector) por inibição da desgranulação mastocitária. Podem ser alternativa à corticoterapia nalguns casos de asma persistente ligeira. É habitualmente administrada por pMDI em 2 inalações sucessivas (5mg cada) 4 vezes/dia, cerca de 30 minutos antes do exercício físico ou da exposição ao alergénio. Existe também na forma de pó seco. – Omalizumab: Nalguns centros, nos doentes com formas ligeiras a moderadas, e idade superior a 12 anos, começou a utilizar-se um anticorpo monocolonal que, ligando-se às IgE, previne a ligação destas aos respectivos receptores, o que terá interesse nas respostas alérgicas medidas por IgE (por ex. por certos aeroalergénios) com fraca resposta aos corticóides orais ou inalados. • Esquemas de tratamento A Figura 4 descreve o esquema de tratamento da asma na agudização. No Quadro 6 apresenta-se a terapêutica recomendada pelo grupo GINA (Global Initiative Crise ligeira Crise moderada Crise grave β2 agonistas de curta acção Corticóides IN vs sistémicos + Corticóides sistémicos… Anticolinérgicos Teofilinas FIG. 4 Asma e tratamento na agudização: enquadramento dos fármacos. O esquema de actuação baseia-se fundamentalmente na utilização de β2-agonistas inalados e corticóides sistémicos para as situações com insuficiente controlo. Os anticolinérgicos em associação com os beta2-agonistas devem ser reservados para as situações de maior gravidade. As teofilinas em perfusão raramente estão indicadas (IN = inalado). 367 for Asthma) para o tratamento da asma em idade pediátrica. Na abordagem da asma persistente ligeira, que se controla com monoterapia, está largamente demonstrado que o grupo farmacológico mais benéfico no controlo clínico e funcional da doença corresponde aos corticosteróides inalados, sendo recomendados como tratamento de primeira linha (equivalência de doses representada no Quadro 3). A utilização de antileucotrienos orais pode também ser considerada como opção inicial em monoterapia, embora seja de esperar uma percentagem inferior de sucesso terapêutico. Quando os sintomas não se controlam com doses baixas a medianas de corticóides inalados, tende-se actualmente para uma utilização combinada de fármacos, permitindo um melhor controlo da doença, com a utilização de doses inferiores de cada um deles; isto é, obtém-se uma elevada eficácia sem correr o risco de efeitos adversos significativos. Os diferentes agentes vão actuar a diferentes níveis, complementando a sua acção. Em função da gravidade do quadro clínico, poderá proceder-se a associação dos seguintes fármacos: – Corticosteróides e agonistas β2-miméticos: Na presença de β2-agonistas, há activação e translocação do receptor citosólico dos glicocorticóides e aumento do efeito dos corticóides na apoptose dos eosinófilos. Por outro lado, os corticóides aumentam a síntese dos receptores β2. Estas acções complementares, entre outras, explicam o melhor resultado obtido quando se utilizam ambos os fármacos. Vários estudos demonstram que a adição de um β2-agonista de longa acção ao corticóide permite reduzir a dose deste último, mantendo-se a doença controlada. Mais recentemente esta combinação de fármacos num só dispositivo, veio permitir atingir um melhor controlo do asmático, aumentando a adesão ao tratamento, e melhorando a qualidade de vida; demonstrou também que com as combinações de fármacos disponíveis actualmente, num só dispositivo, se consegue um início de acção mais rápida, sendo esta também superior após várias semanas de tratamento, particularmente em termos de ganhos de função respiratória. 368 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 6 – Fármacos recomendados de acordo com a gravidade escalonada da asma Gravidade Degrau 1: Intermitente Medicação diária controladora Nenhuma Outras opções • Nenhuma Degrau 2: Persistente ligeira Corticóide inalado, doses baixas • Teofilina de libertação lenta ou Degrau 3: Persistente moderada Corticóide inalado, doses moderadas • Corticóide inalado, doses moderadas e teofilina de libertação lenta, ou • Corticóide inalado, doses moderadas e agonista-β2 inalado de acção prolongada ou • Corticóide inalado, doses elevadas ou • Corticóide inalado, doses moderadas e antileucotrieno • Omalizumab (>12 anos) Degrau 4: Persistente grave Corticóide inalado, doses elevadas e, se necessário, um ou mais dos seguintes: – Teofilina de libertação lenta – Antileucotrieno (por ex.montelucaste) – β2 -agonista inalado de acção prolongada – Corticóide oral Em todos os degraus: • Medicação de alívio: β2 -agonista inalado de acção rápida quando necessário, nunca mais de 3-4 vezes por dia. • Uma vez atingido o controle e mantido por pelo menos 3 meses, deve ser tentada uma redução gradual da terapêutica, procurando-se assim identificar a terapêutica mínima para controlar os sintomas do doente. * As crianças com asma intermitente, mas com crises graves, devem ter tratamento de controle como está indicado para os casos de asma persistente moderada. Está provado que as associações num só dispositivo conseguem ganhos superiores, quer na precocidade do controlo sintomático e funcional, quer no controlo a longo prazo da doença asmática, assumindo-se como uma excelente opção de tratamento na asma moderada a grave, com uma boa relação custo-benefício, melhorando a adesão ao tratamento. No mercado nacional há duas associações de corticóides inalados e de broncodilatadores β2agonistas de acção, prolongada em inaladores de pó seco, em duas dosagens (4.5 ou 9μg de formoterol e 80, 160 ou 320μg de budesonido), ou em três combinações de doses de salmeterol e de fluticasona (50μg de salmeterol e 100, 250 ou 500μg de fluticasona), permitindo a adaptação da prescrição à gravidade das queixas do doente, var- iável em termos da dosagem contida no inalador ou do número de inalações efectuadas. Existem igualmente disponíveis mais três dosagens de salmeterol e de fluticasona em inalador pressurizado (pMDI), permitindo o seu uso associado a câmaras de expansão, em crianças nas quais não é possível uma adequada colaboração com os inaladores de pó seco, isto é, em idade pré-escolar (pMDI de 25/50, 25/125 e 25/250μg de salmeterol/fluticasona). – Corticosteróides e antagonistas dos leucotrienos: Os antagonistas dos leucotrienos são fármacos que, como foi referido antes, podem inibir a síntese dos leucotrienos ou impedir a sua ligação aos receptores. Actuam, tal como os corticóides, no processo inflamatório, embora a um nível dife- CAPÍTULO 64 Asma rente, o que leva a que a associação destes dois fármacos seja apelativa. Vários estudos confirmam o benefício da associação de corticosteróides a antagonistas dos receptores dos leucotrienos, permitindo o uso de doses baixas de corticóides, particularmente na asma moderada. – Corticosteróides e agonistas β2-miméticos versus corticosteróides e antagonistas dos leucotrienos: Quando a terapêutica com corticóides inalados em doses baixas a moderadas não é suficiente para se atingir o controlo da doença, a associação com leucotrienos ou com agonistas β2 adrenérgicos de acção prolongada é uma opção eficaz. No entanto, levanta-se a questão de qual será a combinação que produz melhores resultados. Em conclusão, no tratamento da asma brônquica persistente, quando não se obtém o controlo com a monoterapia, nomeadamente com o recurso a corticóides inalados, é preferível usar a combinação de doses baixas de corticosteróide inalado e β2-agonistas de acção prolongada do que usar doses elevadas de corticosteróide inalado. Intermitente Ligeira persistente Moderada persistente Grave persistente β2 agonistas de curta acção SOS Corticóides inalados β2 agonistas de acção prolongada Antileucotrienos / Cromonas / Teofilinas 369 É útil a combinação de antagonista dos leucotrienos e corticosteróide inalado com vista à redução da dose deste último, necessária para o controlo clínico da asma. Entre as combinações corticosteróide inalado e β2-agonista de acção prolongada versus antagonista dos leucotrienos e corticosteróide inalado, a primeira é mais eficaz e de menor custo. A combinação dos broncodilatadores mais efectivos com os anti-inflamatórios de primeira escolha na maioria dos asmáticos (corticóides inalados), resulta claramente numa formulação eficaz em todo o espectro da asma persistente moderada a grave, e ainda nas formas ligeiras. De salientar que o tratamento das agudizações asmáticas moderadas a graves pressupõe o uso de outras abordagens terapêuticas, quer em ambulatório, quer no âmbito dos serviços de urgência. 3. Terapêutica inalatória Constitui actualmente o pilar fundamental no tratamento de várias doenças respiratórias, sendo consensual a escolha da via inalatória como preferencial para administração de fármacos no tratamento da asma. Comparada com a via sistémica, tem uma acção mais rápida, utilizando doses menores. Consegue-se efeitos terapêuticos muito significativos com escassos efeitos secundários. No entanto, em idade pediátrica o reduzido calibre da via aérea, os fluxos inspiratórios baixos, a respiração nasal, os volumes correntes pequenos, as frequências respiratórias elevadas e a colaboração, por vezes deficiente, entre muitos outros factores, limitam frequentemente o sucesso da terapêutica inalatória. Durante uma agudização de sintomas, para além da idade, pode também estar comprometida a utilização de inaladores que fazem depender a FIG. 5 Asma e controlo a longo prazo: enquadramento dos fármacos. Os broncodilatadores de curta acção estão indicados em todos os degraus de gravidade para o tratamento das agudizações. Os corticóides inalados são o grupo mais eficaz para o controlo da maioria das crianças asmáticas. Na asma moderada a grave a adição de outros grupos de fármacos permite o controlo clínico e funcional sem efeitos secundários significativos. Os fármacos antileucotrienos podem ser uma alternativa em monoterapia na asma ligeira, tendo de ser associados a outros fármacos para o controlo da asma moderada e grave. Para melhor compreensão do texto são referidas as seguintes definições: Aerossol – é um sistema de partículas sólidas ou líquidas que podem permanecer dispersas num gás. Relativamente aos métodos de produção de aerossóis fundamentalmente existem 4 tipos: os nebulizadores, os pMDI, os pMDI+ câmaras expansoras e os DPI. Inalação – é o movimento de entrada do ar ambiente, através das vias respiratórias para os pulmões durante a respiração. Nebulização – é um método de produção de aerossóis que permite transformar um medicamento líquido (solução ou suspensão) numa suspensão de pequenas partículas líquidas no ar, permitindo que estas cheguem aos pulmões. Câmara expansora – é um dispositivo que se associa aos inaladores pressurizados de dose fixa (pressurized metered – dose inhaler pMDI), de forma e volume variado, com válvulas unidireccionais, funcionando como reservatório, de modo a permitir ultrapassar a necessidade técnica da coordenação mão-pulmão. 370 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA disponibilidade das partículas do débito inspiratório. Assim, para rendibilizar a extrema rapidez de actuação e a eficácia desta via de administração, particularmente durante a crise, é importante que se respeitem algumas condicionantes relacionadas, quer com a idade da criança, quer com os dispositivos disponíveis. – Idade da criança - nos primeiros dois anos de vida, a terapêutica broncodilatadora ou antiinflamatória indicada por via inalatória na agudização, terá de ser efectuada através de nebulizador (pneumático ou ultrassónico) ou com aerossol de dose calibrada (Pressurized Metered Dose Inhalers – pMDI) associado a câmara de expansão, sempre com o uso de máscara. A partir do terceiro ano de vida, logo que a colaboração o permita, deverá a inalação ser efectuada com o uso de peça bucal, pois a inalação do fármaco através das cavidades nasais, (ou apenas o facto de haver respiração nasal com a utilização de máscara), pode reduzir a dose que chega ao pulmão para menos de metade. Se fôr possível a colaboração com a peça bucal, há que preferir o uso de câmaras de expansão (quer nos serviços, quer a nível das urgências e enfermarias). A partir dos 6 a 8 anos, por vezes antes, é já possível a utilização dos inaladores de pó seco, uni ou multidose (Dry Power Inhaler – DPI), para o tratamento dos sintomas. No entanto, em crianças que estão familiarizadas com câmaras de expansão, pode manter-se esta técnica de administração durante toda a idade escolar, particularmente no domicílio. Nos serviços de urgência hospitalares, com estas crianças deve efectuar-se terapêutica com inaladores do tipo pMDI associados a câmaras de expansão. – Tipos de dispositivos para aerossolização – Como foi referido, os aerossóis utilizados na terapêutica da asma são produzidos por três tipos básicos de instrumentos de inalação, nomeadamente os nebulizadores, os pMDIs e os DPIs. Os nebulizadores são aparelhos geradores de aerossóis a partir de soluções ou suspensões aquosas. Difíceis de transportar, são muitas vezes úteis quando os outros dispositivos são inapropriados, podendo transformar em aerossol, virtualmente, qualquer substância líquida. Podem ser alimentados por ar comprimido, ou ultrassónicos; neles deve considerar-se que a dose colocada no dispositivo, aparentemente elevada (carga do nebulizador) sofre perdas a vários níveis, nomeadamente: a dose que permanece no nebulizador (“volume morto”- geralmente cerca de 0.5 ml); perdas através do terminal do tubo; impacte de partículas a nível interno; e as perdas durante a expiração. Nestes aparelhos a geração de partículas não depende dos fluxos inspiratórios. Para os pMDI a energia é dada pelo próprio dispositivo, enquanto para os DPIs esta energia tem de ser fornecida pelo doente através de um fluxo inspiratório que retira o pó do dispositivo, tornando problemática a sua utilização em episódios sintomáticos, mesmo em crianças que com eles é realizada a sua terapêutica de controlo. Na terapêutica da crise de asma nos serviços de urgência devem ser usados, sobretudo, os nebulizadores pneumáticos, mais baratos e permitindo o uso de um adaptador bucal ou máscara. O nebulizador pneumático pode ser, ou não, reutilizado. Os dispositivos ultrassónicos podem produzir partículas menores, são silenciosos e actualmente bastante portáteis, mas não trazem benefício clínico adicional; existe mesmo um risco acrescido de infecções nosocomiais. Para nebulização de broncodilatadores podem ser utilizados indistintamente aparelhos pneumáticos ou ultrassónicos (soluções); para a nebulização de corticóides (fluticasona ou budesonido) os únicos aparelhos a utilizar são os pneumáticos (suspensões). Este factor poderá ser muito importante no caso de se recomendar a compra de um aparelho gerador de aerossóis. O tempo ideal para uma nebulização será de 8 a 10 minutos (factor que condiciona o volume a nebulizar, colocado no dispositivo; por isso não podem existir “receitas” universais, por exemplo, do volume de soro fisiológico a adicionar). A frequência das nebulizações poderá ser de 20/20 ou de 30/30 minutos. A associação do inalador pressurizado com uma câmara de expansão, constitui um meio de eleição para a administração de terapêutica quer na crise, quer como terapêutica de controlo, em idade pré-escolar. Aumenta a deposição no pulmão, diminui a deposição na boca e vias aéreas superiores à custa de uma maior deposição na câmara, sendo uma alternativa portátil à utiliza- CAPÍTULO 64 Asma ção dos nebulizadores. A respiração pode ser feita em volume corrente, durante cerca de 20 a 30 segundos, após cada pressurização (puff). Nas crises e, em ambulatório, os DPIs são habitualmente indicados nas crianças que já os utilizam quotidianamente (> 6 a 8 anos). Os mesmos não devem ser utilizados nos serviços de saúde como dispositivos locais usados no tratamento de crise por levantarem também problemas na reutilização (perigo de contaminação). A principal vantagem em relação aos pMDI consiste no facto de não ser necessária a coordenação mão-pulmão, tornando a técnica mais fácil (embora o uso de pMDI isolados nunca deva ser recomendado em idade pediátrica; no futuro a existência de dispositivos accionados pela manobra inspiratória, do tipo autohaler, poderá modificar esta conduta). Exigem uma inspiração forçada para uma boa deposição pulmonar, com um fluxo inspiratório relativamente alto (débito inspiratório superior a 30L/min) o que não é possível em crianças pequenas. São igualmente portáteis e discretos, não contendo propelentes (contêm apenas lactose) e permitindo um melhor controlo da quantidade do medicamento gasto e do restante. Os dispositivos multidose são os mais utilizados por serem mais práticos. Menos usados, os sistemas unidose apresentam o medicamento em forma de pó, contido numa cápsula, que é perfurada ou partida antes da inalação. As principais vantagens em relação aos sistemas multidose são um melhor controlo da dose, a verificação de que esta foi de facto retirada da cápsula, e a possibilidade de repetir a inalação até desaparecimento total do pó. No entanto são menos práticos, e preferidos por uma minoria de doentes. A adesão à terapêutica é também um problema central, sendo necessário proceder à correcta administração do fármaco prescrito. Esta tarefa é dificultada quando estamos perante crianças difíceis, que choram durante a administração da terapêutica. É fundamental que os profissionais de saúde, os pais e as crianças compreendam a necessidade de utilizarem o fármaco prescrito e que aceitem o uso do dispositivo seleccionado para o efeito. As acções de formação devem ser iniciadas nos profissionais, terminando na própria criança, sempre que o grupo etário o permita. 371 Em ambulatório ou no serviço de urgência deverá ser efectuado o ensino da utilização dos diversos tipos de inaladores e reavaliada a técnica regularmente. A escolha do método de inalação constitui uma etapa fundamental do tratamento das doenças respiratórias da criança; o ensino e avaliação da adequação só são possíveis com a colaboração de técnicos treinados e experientes. Em síntese, para o tratamento das crises de asma no serviço de urgência é prática tradicional o recurso aos nebulizadores, de preferência pneumáticos, o que frequentemente não acontece em Portugal. O seu uso estendeu-se ao tratamento domiciliário, inclusive comparticipado pelo Serviço Nacional Saúde. Numerosos estudos têm vindo a demonstrar que as combinações pMDI / câmara expansora são preferíveis, sendo mais eficazes, mais portáteis e menos dispendiosos. Deve ser incrementado o uso de câmara expansora nos serviços de urgência, na maioria das crianças com crise de asma, pelo menos como opção aos nebulizadores. Nalguns lactentes e crianças em idade pré-escolar, a nebulização com máscara pode ser mais bem aceite, particularmente em situações mais graves, em que criança se encontra exausta, por vezes febril, não sendo de esperar então grande colaboração com a técnica requerida para uma câmara expansora. 4. Actuação na AIE Vários fármacos têm sido preconizados no controlo da AIE. Na maioria dos doentes com função respiratória basal normal a AIE pode ser prevenida pela administração prévia ao exercício de um agonista β2-adrenérgico por via inalatória, eficaz em reduzir a AIE em 90% dos doentes, podendo também ser usado como medicação em SOS para tratar a broncoconstrição desencadeada pelo esforço. Esta abordagem exige uma atempada previsão das horas de maior esforço, sabendo-se que em idade pediátrica o exercício constitui um acontecimento imprevisível, pelo que se torna mais difícil de controlar a AIE na criança. Os broncodilatadores β2-adrenérgicos de acção prolongada como o salmeterol e o formoterol têm, então, indicação óbvia uma vez que exercem o seu efeito protector de forma mais prolongada, até 8 a 12 horas; 372 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA constituem uma boa opção nas crianças em idade escolar ou nos desportos de longa duração. A associação destes fármacos com corticosteróides inalados é obrigatória. A recente disponibilidade em Portugal de terapêuticas combinadas (fluticasona com salmeterol e budesonido com formoterol) veio simplificar a terapêutica permitindo uma maior adesão. As cromonas por via inalatória como o cromoglicato de sódio são uma alternativa ao uso dos broncodilatadores. Estes fármacos têm um início rápido de acção, sendo eficazes na prevenção em cerca de 50% dos doentes. O seu mecanismo de acção baseia-se na inibição da desgranulação dos mastócitos. São referidos como pontos positivos o não desenvolvimento de tolerância e a inexistência de efeitos adversos; no entanto, o seu efeito protector não parece estender-se para além de 2 a 4 horas, sendo eficazes unicamente como tratamento profiláctico. Os leucotrienos são potentes mediadores de broncoconstrição libertados por várias células inflamatórias incluindo mastócitos e eosinófilos, tendo os seus níveis sido encontrados elevados após broncoconstrição induzida pelo exercício. Os antagonistas dos receptores dos leucotrienos (ex. montelucaste) oferecem, para além da comodidade posológica, protecção efectiva de sintomas induzidos pelo exercício ao longo das 24 horas, não parecendo este efeito decair com a sua toma regular. Dada a elevada incidência de AIE em atletas de competição, e consequente necessidade de uso de medicação anti-asmática, o Comité Olímpico Internacional (COI) aceita o uso de agonistas β2-adrenérgicos, de acção curta e prolongada, cromonas e corticosteróides por via inalatória; os antagonistas dos receptores dos leucotrienos não constam da lista de medicamentos proibidos pelo COI. No entanto, para que a medicação anti-asmática prescrita não seja considerada dopante, obriga à comprovação com uma notificação escrita, em impresso próprio fornecido pelo Conselho Nacional Antidopagem (CNAD), acompanhada de relatório médico, que inclui resultados de provas funcionais respiratórias, comprovando o diagnóstico de asma. BIBLIOGRAFIA Bisgaard H, Szefler S, et al. Long acting β2 agonists and pediatric asthma. Lancet 2006; 367: 286-288 Comité de Asma de la SEICAP. Guia para el manejo del niño asmático. Allergol Immunopathol 200; 28: 162 Global Initiative for Asthma. Global strategy for asthma management and prevention. WHO/NNHLBI Workshop Report, 2008: Kliegman KM, Behrman RE, Jenson TB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lau S, Matricardi PM. Worms, asthma and the hygiene hypothesis. Lancet 2006; 367: 1556-1558 Rosado Pinto J, Almeida MM (eds). A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Lisboa: Euromédice, 2003 Smith AD, Cowan JO, Brassett KP, etal. Use of exhaled nitric oxide measurements to guide treatment in chronic asthma. NEJM 2005; 352: 2163-5173 Struck RC, Bloomberg GR. Omalizumab for asthma. NEJM 2006; 354: 2689-2695 Warner JO, et al. Third International Pediatric Consensus Statement on the Management of Childhood Asthma. Pediatr Pulmonol 1998; 25: 1-17 www.ginasthma.com CAPÍTULO 65 Rinite alérgica 65 RINITE ALÉRGICA Graça Pires Definição e importância do problema A rinite alérgica é uma doença inflamatória crónica da mucosa nasal, resultante de uma reacção de hipersensibilidade imunologicamente mediada, em que se verifica rinorreia serosa, obstrução e prurido nasais, e crises esternutatórias; por vezes é acompanhada de irritação conjutival. A prevalência da rinite alérgica tem vindo a aumentar progressivamente nos últimos anos, a par do aumento da prevalência das outras patologias alérgicas. Estima-se que actualmente a rinite alérgica tenha uma prevalência global de 10 a 30% na população europeia, iniciando-se frequentemente as queixas nas primeiras décadas de vida. A avaliação do estudo epidemiológico ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) demonstrou que 24% das crianças com 6-7 anos e 27% dos adolescentes (13/14 anos) referiam queixas compatíveis com o diagnóstico de rinite alérgica nos últimos doze meses. Trata-se, no entanto, de uma doença frequentemente não diagnosticada e não tratada, com importantes repercussões na qualidade de vida e no desempenho escolar. Classificação A classificação da rinite mais aceite actualmente baseia-se nas características temporais da doença e nas repercussões na qualidade de vida do doente. Assim, a rinite é classificada em intermitente ou persistente, quanto à duração da doença; e em ligeira ou moderada a grave, quanto à intensidade dos sintomas e repercussão sobre a qualidade de vida e actividades diárias (Quadro 1). 373 QUADRO 1 – Classificação da Rinite Alérgica 1. Intermitente Sintomas < 4 dias por semana ou < 4 semanas 2. Persistente Sintomas > 4 dias por semana e > 4 semanas 3. Ligeira Sono normal e: – actividades diárias, desportivas e de tempos livres normais – actividadades laborais e escolares normais – sem sintomas perturbadores 4. Moderada-grave Uma ou mais situações: – sono anormal – repercussão nas actividades diárias, desportivas e tempos livres – problemas na escola Manifestações clínicas e diagnóstico A história clínica é essencial para o diagnóstico preciso de rinite alérgica e avaliação da sua gravidade. Os sintomas incluem obstrução nasal, rinorreia, prurido nasal e crises esternutatórias, podendo cada doente apresentar predomínio de um ou mais sintomas. Podem surgir sintomas associados, nomeadamente roncopatia e/ou distúrbios do sono, cansaço e mau rendimento escolar, corrimento nasal posterior, tosse crónica e perda de olfacto. O perfil temporal, a relevância dos sintomas e a resposta à terapêutica deverão ser avaliados. É também importante investigar eventuais factores desencadeantes e avaliar o contexto ambiental da criança, incluindo exposição alergénica e tabagismo passivo. A existência de outras manifestações da doença alérgica, nomeadamente asma, conjuntivite, eczema e antecedentes familiares de alergia apoiam o diagnóstico de rinite alérgica. O exame objectivo pode auxiliar no diagnóstico de rinite alérgica. Pode observar-se fácies característica, com obstrução nasal e respiração oral com a boca entreaberta, existência de prega atópica nasal e olheiras. Em situações de maior cronicidade poderá mesmo haver anomalias do desenvolvimento facial com má oclusão dentária. A observação das fossas nasais com uma fonte de luz incidindo sobre o vestíbulo nasal permite 374 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA observar rinorreia, habitualmente aquosa, hipertrofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores e desvios do septo nasal. Os testes cutâneos por picada, úteis a partir dos primeiros anos de vida, são largamente utilizados para confirmar o diagnóstico de rinite alérgica-IgE mediada, permitindo identificar os alergénios implicados. Em caso de discordância entre a história clínica e os testes cutâneos, deverá efectuar-se doseamento de IgE específica. A radiografia dos seios perinasais não está indicada no diagnóstico de rinite alérgica. A radiografia do cavum, de perfil, é muito utilizada para demonstrar a existência de hipertrofia das adenóides. As adenóides, um factor mecânico que agrava a obstrução nasal provocada pela rinite alérgica, também contribuem para o aparecimento de quadros prolongados ou recorrentes de rinossinusite infecciosa. A tomografia axial computadorizada (TAC) é um exame radiológico importante para avaliar complicações ou patologias associadas, em determinados casos. Doenças associadas A rinite alérgica ocorre muito frequentemente associada à asma brônquica, embora a natureza desta ligação não esteja totalmente esclarecida. Discute-se actualmente as relações entre a patologia alérgica das vias aéreas superiores e inferiores, partilhando aspectos relacionados com a inflamação numa mucosa respiratória contígua. A rinite foi já identificada como factor de risco de asma em adultos. Num estudo prospectivo nacional, com a duração de oito anos, onde foram incluídas crianças com hiperreactividade brônquica em idade pré-escolar, a rinite foi identificada como o principal factor de risco independente para a persistência dos sintomas, mesmo nas crianças que não eram atópicas na data da inclusão. Existirá, então, uma forte relação entre rinite e asma, ficando por esclarecer se a asma corresponde a uma fase na progressão natural de uma doença das vias aéreas, considerada como uma unidade. Outras doenças alérgicas estão frequentemente presentes, devendo ser investigadas e tratadas, nomeadamente conjuntivite alérgica e eczema. A inflamação crónica subjacente à rinite alérgica estende-se à mucosa de revestimento dos seios perinasais predispondo à ocorrência de quadros de rinossinusite. O bloqueio funcional dos ostiae dos seios perinasais inicia as alterações fisiopatológicas que levam ao aparecimento de rinossinusite. Alguns factores mecânicos podem também contribuir para quadros prolongados ou recorrentes de rinossinusite, dos quais o mais frequente, na criança dos dois aos sete anos, é a hipertrofia das “vegetações” em associação com desvio do septo nasal e hipertrofia dos cornetos. Importa, no entanto, referir que a maioria dos quadros agudos de rinossinusite na criança são causados por infecções víricas, com possibilidade de sobreinfecção bacteriana. Tratamento A rinite alérgica é uma doença que, quando não tratada, pode provocar alterações do ritmo do sono, sonolência diurna e dificuldades de concentração e de aprendizagem, impondo várias restrições nos aspectos físico, psíquico e social da vida dos doentes. O tratamento da rinite alérgica permite um melhor controlo da asma brônquica e diminui a frequência de episódios de rinossinusite e otite média. O primeiro passo no tratamento da rinite alérgica consiste na evicção alergénica, devendo ser recomendada desde os primeiros sintomas da doença. As medidas de evicção deverão incidir sobre os ácaros do pó, animais domésticos, baratas, fungos e poluentes. É fundamental a evicção de tabagismo passivo, importante factor de risco do aparecimento e gravidade da doença alérgica. Habitualmente o controlo ambiental não é suficiente e existe necessidade de instituir terapêutica médica. O tipo de fármacos a utilizar depende da gravidade da doença e também dos sintomas mais importantes em cada doente. Os anti-histamínicos são considerados, por alguns autores, os fármacos de primeira linha no tratamento da rinite alérgica. Actuam como antagonistas dos receptores H1 reduzindo o prurido nasal, os espirros e a rinorreia, sendo, no entanto, pouco eficazes na redução da obstrução nasal. Os anti-histamínicos de 1ª geração não devem ser CAPÍTULO 65 Rinite alérgica utilizados pelos seus efeitos secundários, podendo diminuir as capacidades intelectuais das crianças em idade escolar. Os anti-histamínicos de 2ª geração atravessam pouco a barreira hematoencefálica pelo que são bem tolerados, provocando menos sonolência e efeitos acessórios. São habitualmente administrados por via oral, apenas uma vez ao dia, aliviando os sintomas nasais, mas também oculares e cutâneos, caso existam outras doenças alérgicas. Os anti-histamínicos tópicos, aplicados no nariz e nos olhos, têm um rápido início de acção e são habitualmente bem tolerados. Necessitam, no entanto, de ser aplicados duas vezes ao dia para manter a eficácia. Os corticosteróides têm um papel central no tratamento da rinite alérgica, actuando pelo seu potente efeito anti-inflamatório. São usados geralmente sob a forma tópica, mas nas situações graves podem ser usados por via sistémica, por períodos de 3 a 5 dias. As formas depot de administração sistémica não devem ser utilizadas. Os corticosteróides tópicos reduzem a obstrução nasal, a rinorreia, os espirros e o prurido nasal, sendo mais eficazes do que os anti-histamínicos no controle da obstrução nasal. As doses são variáveis de acordo com a idade, a gravidade da patologia e o corticosteróide seleccionado. Com uma posologia correcta são habitualmente fármacos seguros, nomeadamente no que respeita ao crescimento da criança, mesmo em terapêuticas prolongadas. Um aspecto importante é o seu início de acção lento, podendo recorrer-se aos descongestionantes nasais, nos primeiros dias de tratamento, para se obter um efeito mais rápido sobre a obstrução nasal. As cromonas são seguras, mas apresentam menor eficácia que os anti-histamínicos e os corticosteróides nasais. Pela frequência de administração diária (três a quatro vezes) colocam problemas de adesão à terapêutica. Os antagonistas dos leucotrienos inibem a acção dos leucotrienos C4 e D4 que são importantes mediadores da inflamação. Podem ser usados isoladamente ou em conjunto com os anti-histamínicos potenciando a sua acção. A imunoterapia específica no tratamento da rinite alérgica é eficaz quando aplicada a doentes seleccionados. Alguns autores sugerem que poderá alterar o curso da doença alérgica pre- 375 venindo o aparecimento de asma em doentes com rinoconjuntivite alérgica. Deve ser sempre indicada e monitorizada por imunoalergologistas. De acordo com a actual classificação da rinite alérgica, a abordagem terapêutica desta doença baseia-se na sua periodicidade e gravidade. Nas formas ligeiras de rinite intermitente pode usar-se os anti-histamínicos orais ou nasais ou os descongestionantes nasais, estes últimos durante um curto período de tempo. Nas formas moderadas/graves usam-se os anti-histamínicos isoladamente ou associados a corticosteróides nasais e, eventualmente, um curto período de vasoconstritores. Nas fases agudas pode ser necessário recorrer a corticosteróides orais. O doente deverá ser reavaliado após 2 a 4 semanas e a terapêutica reajustada. Na rinite persistente existe habitualmente inflamação permanente da mucosa, pelo que a terapêutica medicamentosa deverá ser mantida por períodos prolongados. Nas formas ligeiras podem ser utilizados anti-histamínicos ou corticosteróides nasais. Uma possível abordagem é a utilização de anti-histamínicos por um período de 2 a 4 semanas e, se não ocorrer melhoria, deverá proceder-se ao início de corticosteróides nasais. Nas formas moderadas/graves os corticosteróides nasais são a terapêutica de primeira linha. Quando necessário, deve efectuar-se terapêutica com corticosteróides orais ou descongestionantes por um curto período de tempo. Associam-se anti-histamínicos se estiverem presentes prurido nasal, crises esternutatórias e rinorreia importantes. Os doentes devem ser reavaliados regularmente, mantendo a mínima terapêutica necessária para controlar os sintomas. BIBLIOGRAFIA Borish L. The role of leukotrienes in upper and lower airway inflammation and the implications for treatment. Ann Allergy Clin Immunol 2002;88:16-22 Bousquet J, van Cauwenberge J, Khaltaev N - ARIA Workshop Group, World Health Organization. Allergic rhinitis and its impact on asthma. J Allergy Clin Immunol 2001;108:S147333 Calado V, Monteiro L. 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Clinical Immunology and Allergy in Medicine 2003;64:437-441 Plaut M, Valentine MD. Allergic Rhinitis. NEJM 2005; 353: Importância do problema e sistematização 1934-1944 Van Cauwenberge P, et al. Consensus statement on the treatment of allergic rhinitis. Allergy 2000;55:116-34 Durante a observação de uma criança com patologia cutânea, e provável etiologia alérgica devem de imediato ser avaliadas, não só as características das lesões e sua distribuição, mas também a presença de prurido. Considerando a etiologia alérgica é necessário avaliar a sua gravidade, tendo em conta, não só cada episódio, mas também a probabilidade da sua recorrência e o risco de eventuais reacções graves. Entre as situações consideradas do foro alérgico com expresão cutânea há que distinguir as que comportam ou não um risco subsequente de desenvolvimento de outras doenças alérgicas, nomeadamente respiratórias. No âmbito das situações de alergia de expressão cutânea, são descritas as entidades clínicas dermatite atópica, urticária e prurigo-estrófulo. Relativamente à primeira, neste capítulo foca-se essencialmente a fisiopatologia, abordando-se os restantes aspectos na parte referente à Dermatologia Pediátrica (Capítulo 95). 1. Síndroma de eczema / dermatite atópica Definição e fisiopatologia A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crónica da pele, muito pruriginosa, que com frequência ocorre em associação com problemas respiratórios, para a patogenia dos quais contribuem mecanismos imunológicos de hipersensibilidade imediata e retardada; esta heterogeneidade de respostas tem levado à substituição do CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea termo dermatite atópica por um mais abrangente: síndroma eczema / dermatite atópica (SEDA), podendo ainda dividir-se em não alérgica e alérgica; esta última, por sua vez, pode estar ou não associada à presença de IgE específica (atópica ou não atópica). Na SEDA existe uma resposta inflamatória, traduzida por um infiltrado linfo-histiocitário circundando os vasos da derme superficial, mesmo ao nível da pele sem lesões. Na fase aguda o infiltrado linfocitário acentuase e associa-se a fenómenos de espongiose ao nível da epiderme, a qual, se muito intensa, condicionará a ruptura das ligações entre queratinocitos com a consequente formação de vesículas. Os linfócitos associados aos processos crónicos de inflamação cutânea são portadores de um antigénio à sua superfície (antigénio do linfócito cutâneo), o qual, funcionando como receptor, se ligará ao contra receptor (E-selectina) existente no endotélio vascular. Na fase crónica, ao nível da epiderme o infiltrado de células T e a espongiose são substituídos por hiperplasia e hiperqueratose, com concomitante aumento do número de células de Langherans com IgE à superfície. Também na derme o infiltrado linfocitário tem uma expressão mais reduzida, relativamente aos macrófagos, mastócitos e eosinófilos. Para cada uma das fases descritas é possível encontrar um padrão característico de citocinas envolvidas, existindo uma mudança no perfil, inicialmente do fenótipo Th2 (fase aguda), para o fenótipo Th1 (fase crónica), justificando o mecanismo retardado existente na maioria dos doentes com DA. Para além dos factores genéticos, das alterações constitucionais da pele e dos distúrbios imunes, muitos factores exógenos, específicos e inespecíficos, contribuem para a exacerbação da doença. A tradução clínica é relativamente monótona, sendo o prurido o sintoma sem o qual não se pode estabelecer o diagnóstico de eczema. Na fase aguda estão presentes o eritema intenso e, por vezes, observam-se vesículas; na fase subsequente, ou subaguda, apresenta-se essencialmente uma secura intensa, ou xerose, com descamação; na fase crónica, para além do prurido associado a lesões em diferentes estádios, aparece outro tipo de 377 lesões resultantes da inflamação persistente e do prurido, como as escoriações e a liquenificação. Os diferentes tipos de lesões de eczema podem coexistir nas distintas fases evolutivas. A evolução característica ocorre com ciclos de exacerbação, por vezes associados a outras formas de doença alérgica (asma e/ou rinite alérgica que podem ocorrer em cerca de 50% destas crianças). A alteração da barreira cutânea por agentes químicos como solventes, desinfectantes ou soluções alcalinas permitem a persistência de lesões e a penetração de macromoléculas. 2. Urticária e angioedema Definição e fisiopatologia Para se considerar o diagnóstico de urticária é condição fundamental que estejam presentes, em conjunto, pápulas eritematosas, pruriginosas, que branqueiam com a digitopressão e que geralmente desaparecem (cada lesão) em menos de 24 horas sem deixar lesão residual. As pápulas de urticária têm um aspecto típico: são redondas ou ovais, de dimensões variáveis, com superfície plana, da cor da pele ou rosa-pálido. O contorno é bem delimitado, por vezes com prolongamentos – os “pseudópodos”. Isoladas ou em grupos, tendem a confluir. Nas formas mais exuberantes existe contorno policíclico em “mapa geográfico”, eritematoso com centro pálido (em anel) (Figuras 1 e 2). O angioedema corresponde a uma situação de edema subcutâneo ou submucoso de instalação súbita e com carácter transitório, envolvendo áreas bem circunscritas tais como língua, lábios, laringe, mãos, pés e outros. A urticária é uma patologia comum, estimando-se que possa afectar cerca de 15% da população em qualquer idade. O angioedema aparece associado à urticária em cerca de 50% dos casos, especialmente nas formas crónicas. Ocorre isoladamente em cerca de 10% dos doentes. Na urticária o mastócito é a célula efectora major. A sua desgranulação (causada por mecanismos imunológicos e não imunológicos) origina a libertação de vários mediadores (histamina, prostaglandinas, leucotrienos, factor activador das plaquetas), dos quais a histamina é o me- 378 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA No angioedema, as alterações que se verificam são as mesmas mas atingem camadas mais profundas: derme profunda e hipoderme; como estão atingidas as camadas mais profundas com menor número de mastócitos e de terminações nervosas, as lesões têm pouco ou nenhum prurido associado, sendo referida, por vezes, dor ou sensação de queimadura. A bradicinina, péptido vasoactivo, desempenha um papel fundamental na fisiopatologia do angioedema. Episódios repetidos de angioedema poderão ocorrer, na ausência de urticária, relacionados com défices do inibidor da esterase de C1 do sistema do complemento, estando descritas formas hereditárias e adquiridas relacionadas com défices quantitativos e funcionais. Classificação Sob o ponto de vista clínico, tendo em conta a duração das lesões, a urticária classifica-se em aguda (duração inferior a seis semanas) e crónica (duração superior a seis semanas).A forma crónica pode ser contínua ou intermitente. A classificação da urticária/angioedema assenta em critérios clínicos; a associação a entidades nosológicas diferenciadas reflecte a diversidade de mecanismos subjacentes a esta síndroma (Quadro 1). De acordo com a nomenclatura clássica, tendo em consideração a etiopatogénese, o angioedema (hereditário ou adquirido) é considerado uma forma de urticária crónica. As formas crónicas da síndroma urticária/ angioedema estão mais frequentemente associadas a patogénese por agentes físicos, reumática, endócrina, neoplásica e idiopática. FIG. 1 e 2 Urticária: Pápulas isoladas e confluentes. (NIHDE) diador mais importante. A acção desta condiciona o aparecimento da resposta inflamatória tripla, com vasodilatação (eritema), aumento da permeabilidade vascular (edema) e reflexo axonal (aumento da extensão da reacção), ao nível da derme superficial, para além do prurido provocado por estimulação das terminações nervosas. Manifestações e formas clínicas. Urticária aguda A urticária aguda na criança é habitualmente autolimitada e benigna, com duração de apenas alguns dias. As formas agudas, particularmente nos primeiros anos de vida, são mais frequentes do que as formas crónicas, sendo factores etiológicos mais comuns as infecções, a ingestão de alimentos e a administração de medicamentos; de referir que a etiologia é identificada ou suspeitada em 40 a 90% dos casos. CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea QUADRO 1 – Urticária / Angioedema Classificação etiopatogénica Infecções Alimentos Fármacos Agentes biológicos Defeitos genéticos (ex. angioedema hereditário) Autoimune Vasculite urticariana e linfocitária com normalidade do complemento Agentes físicos Frio Pressão Vibratória Colinérgica Solar Aquagénica Exercício Associada a outras doenças Reumáticas Conectivopatias Neoplasias Tiroideia Outras Idiopática 1. Infecções Os quadros de urticária aguda na criança são, na sua grande maioria, de causa infecciosa vírica. É de referir que, com estes agentes, as lesões podem persistir por mais de 24 horas; por vezes, acompanham-se de lesão residual, traduzindo a existência concomitante de um processo de vasculite associada a imunocomplexos com antigénios de origem vírica (ex. vírus de Epstein-Barr, adenovírus, vírus influenzae, vírus sincicial respiratório, citomegalovírus, vírus herpes-varicela-zoster, parvovírus, enterovírus, rotavírus). Também infecções bacterianas (estreptocócicas) e parasitárias podem originar tais manifestações cutâneas. As infecções parasitárias poderão ser causa de urticária em zonas endémicas, particularmente em crianças com eosinofilia e IgE elevada; a ocor- 379 rência de urticária aguda e crónica foi relacionada com infestações por Toxocara canis e Giardia lamblia. A etiologia da urticária aguda é por vezes difícil de estabelecer no decurso de uma doença infecciosa tratada com antibióticos, antipiréticos e/ou anti-inflamatórios. Por vezes a criança passa a ser considerada como alérgica ou intolerante a determinada medicação, quando a causa de urticária é, de facto, infecciosa. Realça-se a pertinência do encaminhamento destes casos a consultas de Imunoalergologia. Estes quadros, frequentes, não constituem factor preditivo de outra patologia imunoalérgica. 2. Alimentos Os sintomas podem surgir na sequência de contacto directo do alimento com a pele (alergénios lipofílicos); o leite, os peixes e os mariscos podem conduzir a este quadro. A síndroma de alergia oral é uma forma particular de urticária de contacto provocada por alimentos; é caracterizada por prurido e edema da mucosa oral, língua, lábios e orofaringe. Surge principalmente nos doentes com alergia a pólens, após a ingestão de certos frutos ou vegetais, por um mecanismo de reactividade cruzada IgE mediada. Esta síndroma afecta predominantemente adolescentes. As lesões de urticária podem também surgir na sequência de ingestão de alimentos. O leite, o ovo, o peixe, o amendoim, a soja e o trigo são os alimentos mais frequentemente em causa e o mecanismo implicado é mediado por IgE. Trata-se, em regra, de quadros de fácil identificação, surgindo as lesões entre 30 a 60 minutos após a ingestão do alimento; a evicção deverá levar à sua resolução num período de 24 horas. De referir que o morango, o chocolate, os citrinos, o tomate, a carne de porco e outros alimentos podem provocar lesões cutâneas que surgem, habitualmente, 6 a 24 horas após a ingestão e podem permanecer dias a semanas, contrastando com as reacções IgE - mediadas. Correspondem à chamada urticária papular ou prurigo estrófulo (maioritariamente relacionada com picadas de insectos); são provocadas por um mecanismo não IgE mediado em que há libertação directa de histamina pelos mastócitos. (ver adiante) 3. Fármacos Qualquer fármaco pode desencadear um quadro 380 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de urticária ou angioedema, embora os antibióticos beta-lactâmicos e os anti-inflamatórios não esteróides tenham um papel primordial (estes últimos raramente envolvidos nos grupos etários pediátricos). A reacção surge habitualmente durante os primeiros dez dias da administração do medicamento. As reacções adversas a fármacos, imunologicamente mediadas, têm uma incidência baixa (menos de 10%). Apesar disso, a incidência de exantema após utilização de fármaco na criança, nomeadamente antibióticos, é uma situação comum; contudo, nestes casos o antibiótico administrado é muitas vezes incorrectamente responsabilizado, visto que na maioria das situações os sintomas são causados pela infecção concomitante. Se o fármaco for essencial à terapêutica do doente, o diagnóstico definitivo poderá exigir a realização de um teste de provocação por especialista experiente, em ambiente hospitalar e com disponibilidade de meios de reanimação. A indução de tolerância é reservada para os casos em que a administração do fármaco é imprescindível e não existe alternativa (ex. penicilina). 4. Agentes biológicos: veneno de himenópteros (vespa e abelha) e outros insectos A picada ou mordedura com inoculação de vários agentes biológicos pode induzir uma reacção de urticária aguda que, embora na maioria das vezes seja local, pode ser acompanhada de manifestações sistémicas (de urticária generalizada a anafilaxia) em cerca de 5% dos casos. Urticária crónica Por definição, a urticária crónica caracteriza-se pela ocorrência de lesões diárias ou quase diárias, com ou sem angioedema acompanhante, durante um período superior a 6 semanas. Na criança a urticária crónica ocorre raramente. A vasculite urticariana linfocitária normocomplementémica e a urticária decorrente de patologia autoimune são situações excepcionais. As urticárias físicas, subgrupo das urticárias crónicas (10 a 20%), são desencadeadas em indivíduos susceptíveis pela exposição a alguns estímulos ambientais como sejam o calor, o frio, a exposição solar, a água, o exercício, a pressão e a vibração. Com raras excepções, as lesões de urticária e/ou angioedema desenvolvem-se nas áreas da pele expostas, poucos minutos após a aplicação do estímulo físico, ainda que possam ocorrer de forma generalizada a toda a área corporal ou com manifestações sistémicas associadas; verifica-se em regra remissão espontânea, em poucas horas, embora existam formas mais duradouras. As formas retardadas (adquiridas ou familiares) frequentemente constituem problemas de diagnóstico, uma vez que não existe uma associação causal imediata. As urticárias desencadeadas pelo calor, essencialmente a urticária colinérgica, representam 2 a 7% das urticárias físicas e a urticária ao frio 3 a 5%, sendo esta a forma que mais frequentemente se encontra na prática clínica. As formas mais raras, com uma incidência inferior a 1%, correspondem às urticárias de pressão, solar, vibratória e aquagénica. Sintomas extracutâneos podem ocorrer nalgumas destas urticárias (ao frio, colinérgica, de pressão e solar), condicionando ocasionalmente formas clínicas graves, potencialmente fatais; daí a importância de um correcto diagnóstico destas entidades. Nota: A urticária acompanha-se em geral de alteração da reactividade cutânea-vascular frente a estímulos traumáticos superficiais denominada dermografismo (ocorrendo em 2 a 5% da população geral). Pesquisa-se executando um traço na superfície da pele com estilete de ponta romba, resultando linha eritematosa persistindo cerca de 10-15 minutos. Diagnóstico O diagnóstico de urticária é clínico, baseando-se fundamentalmente nas características das lesões, evolução e na observação; a realização de biópsias cutâneas está reservada a algumas formas crónicas da doença. Uma vez confirmado o diagnóstico de urticária ou angioedema, é fundamental uma correcta caracterização das lesões quanto à localização e distribuição, dimensões, frequência, intensidade e factores condicionantes. Uma análise meticulosa deverá avaliar não apenas as características das lesões, mas também os antecedentes pessoais da criança, o seu ambiente doméstico e os hábitos, nomeadamente alimentares e medicamentosos. As formas agudas, mais frequentes na infân- CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea cia, são habitualmente autolimitadas, raramente necessitando de uma avaliação diagnóstica aprofundada e respondendo adequadamente à terapêutica sintomática. As formas crónicas, embora menos frequentes, exigem habitualmente, pelo carácter recorrente das lesões, uma investigação adicional (detecção de sensibilização alergénica; patologia infecciosa e autoimune ou neoplásica). Esta abordagem orientará também a escolha de um esquema farmacológico mais adequado à etiologia da urticária ou angioedema em questão. A análise dos dados colhidos na história clínica orientarão a investigação diagnótica ulterior que se pretende esclarecedora mas, também, economicamente viável. Assim, proceder-se-á a uma selecção criteriosa dos exames subsidiários mais indicados a cada situação particular. Exames para avaliação do estado geral da criança poderão ser úteis numa primeira abordagem: hemograma, determinação de parâmetros bioquímicos, determinação de imunoglobulinas séricas e fracções do complemento, proteína C reactiva, velocidade de sedimentação, exame parasitológico de fezes, etc.. As síndromas de causa física são habitualmente identificadas pela história clínica que permite reconhecer o estímulo desencadeante. A realização de testes específicos conduzirá ao diagnóstico definitivo. O estudo alergológico, quando indicado, inicia-se habitualmente pela realização de testes cutâneos de alergia por picada aos aeroalergénios e/ou alergénios alimentares a que o doente está exposto de acordo com metodologia padronizada. De salientar que a urticária crónica pode surgir como primeira manifestação de uma doença sistémica (ex: lupus eritematoso sistémico, tiroidite autoimmune, doença do soro); outros estudos imunológicos poderão então estar indicados como a pesquisa de anticorpos antinucleares, imunocomplexos circulantes ou anticorpos antitiroideus. Tratamento Para além de cuidados gerais, incluindo os de assegurar uma adequada hidratação cutânea, a conduta terapêutica perante um quadro de urticária aguda passa, em primeiro lugar, pela eventual identificação e evicção do agente causal. 381 Os anti-histamínicos por via oral são os fármacos de eleição no tratamento farmacológico desta situação (a via tópica está proscrita pelo risco de sensibilização fotoalérgica e efeitos extrapiramidais), estando vários anti-histamínicos disponíveis, desde a hidroxizina à cetirizina, loratadina, mizolastina, fexofenadina ou ebastina, aos mais recentes: levocetirizina e desloratadina. O tratamento deve durar, em média, 5 a 10 dias; no plano terapêutico, a monoterapia com anti-histamínicos constitui o esquema farmacológico, particularmente nas formas agudas, em função da gravidade e da resposta clínica. A associação de duas moléculas distintas representa o escalão de actuação seguinte. Justifica-se a utilização de corticosteróide sistémico nos casos mais graves, com lesões exuberantes e generalizadas, quando associados a angioedema ou em reacções anafilácticas, (nestas últimas após o tratamento inicial com adrenalina). Devem ser usados ciclos muito curtos (3 a 5 dias) de prednisolona ou equivalente na dose de 0,5 a 1mg/Kg/dia. A evicção de alimentos ricos em histamina (marisco, bacalhau, morango, cacau, tomate, enlatados, charcutaria, queijos fermentados, entre outros) também têm o seu papel durante a fase aguda; de realçar o papel modesto dos alimentos na etiopatogénese da urticária na criança (aguda ou crónica) ao contrário do que é geralmente assinalado. Nas urticárias crónicas estão indicados antihistamínicos tipo bloqueantes H2 nos casos sem resposta aos de tipo anti-H1 (por exemplo cimetidina). De referir efeito sinérgico pela associação dos Anti-H1 + Anti-H2. 3. Prurigo estrófulo Definição A designação de prurigo diz respeito a toda e qualquer dermatose acompanhada de prurido e lesões papulosas. O prurigo estrófulo ou urticária papular é uma patologia inflamatória cutânea, definida pela existência de máculo-pápulas, do tamanho de cabeça de alfinete com ou sem vesículas, eritematosas e pruriginosas; é frequentemente observada na sequência de picada de insectos e, mais raramente, após ingestão de certos alimentos ricos 382 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA em histamina ou com propriedades histaminolibertadoras (peixe, tomate, ovo, cacau, morango, beterraba, soja, amendoim e aditivos alimentares). Os grupos etários pediátricos são os mais afectados. Os insectos mais frequentemente incriminados na etiologia do prurigo estrófulo, são os artrópodes, de que é exemplo o Culex pipiens (melga comum) que se encontra em todo o mundo à excepção da Antártida. É conhecido como o mosquito doméstico, por muitas vezes se desenvolver em pequenos reservatórios de água, perto ou dentro das casas. As suas larvas desenvolvem-se em águas estagnadas, com abundância de matéria orgânica. Esta patologia não constitui factor de risco de expressão de outras doenças alérgicas, exceptuando dermatite atópica. Fisiopatologia A pápula associada à picada de insecto foi inicialmente encarada como uma reacção mastocitária cutânea ao componente mecânico dessa mesma picada, decorrente da inoculação de algumas proteínas, nomeadamente enzimas (hialuronidase); existem estudos que objectivam a presença de IgE sérica de proteínas de saliva do mosquito. A intensidade da reacção e sua consequente expressão clínica são influenciadas pela idade. As picadas sucessivas induzem habitualmente um estádio de tolerância. Manifestações clínicas e diagnóstico Factores como a permanência prolongada no exterior dos edifícios (durante a prática desportiva, casual ou recreativa), o suor, os odores fortes, a pele quente e o movimento, parecem aumentar a susceptibilidade à picada. A reacção clínica à picada pode incluir dois mecanismos: um imediato (minutos após) mais frequentemente traduzido por quadro de eritema e pápula, menos frequentemente por edema extenso ou anafilaxia; e, um retardado (horas). Este último tem tradução preferencial nas crianças manifestando-se, por ordem decrescente de frequência, por pápulas muito pruriginosas, vesículas, lesões pustulares e exantema semelhante ao eritema multiforme. Na sequência de uma picada de insecto, a reacção clínica observada depende do estádio imunológico em que a criança se encontra, correspondendo o prurigo estrófulo às fases II e III (Quadro 2). A evolução do estádio I para o V, pode ter uma duração variável, de 2 a mais de 10 anos. O diagnóstico depende do reconhecimento das lesões e, em alguns casos, da identificação do agente causal (especialmente insectos). Não está habitualmente indicada a realização de exames auxiliares de diagnóstico. Prevenção e tratamento As medidas de prevenção assentam no uso de roupas que cubram áreas do corpo expostas e na utilização de repelentes de insecto aplicados na pele da criança, em pulseiras ou no próprio vestuário; pode ser recomendado o uso de mosquiteiros e insecticidas. A terapêutica tópica, para além da aplicação de emolientes, inclui a prescrição de corticóides que têm um efeito anti-inflamatório; não deverão ser prescritos anti-histamínicos tópicos, que podem desencadear sintomas extrapiramidais ou dermatite de contacto fotoalérgica. Os anti-histamínicos diminuem o eritema, o tamanho da pápula e, a intensidade do prurido; também exercem influência na menor expressão da reacção tardia, pelo que devem ser utilizados como profilácticos QUADRO 2 – Estádios imunológicos de resposta cutânea à picada de insecto Estádio imunológico I (sem sensibilização) II III IV V (tolerância) Reacção imediata (15 minutos) – – + + – Reacção tardia (24 horas) – + + – – CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa (anti-histamínicos não sedativos) durante períodos prolongados (semanas a meses) nos casos de agudizações sucessivas. Na fase aguda o intenso prurido pode tornar preferíveis os anti-histamínicos de primeira geração, como a hidroxizina, pelo seu efeito sedativo adicional. Os corticóides sistémicos podem ser considerados apenas quando são atingidas grandes áreas corporais, se verifica a reactivação de zonas anteriormente picadas, e nos casos raros de anafilaxia; nestas últimas situações o uso de adrenalina coloca-se na primeira linha de actuação. 383 67 ALERGIA MEDICAMENTOSA Paula Leiria Pinto Definição e importância do problema BIBLIOGRAFIA American Academy of Dermatology Task Force. Guidelines of care for atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol 2004; 50: 391-404 Barnetson RS, et al. Childhood atopic eczema. BMJ 2002; 324: 1376-1379 Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non atopic eczema. BMJ 2006; 332: 584-588 Bogniewicz M. Chronic urticaria in children. Allergy Asthma Proc 2005; 26: 13-17 Greaves MW, Kaplan AP (eds). Urticaria and angioedema. New York: Marcel Rekker, 2004 Johansson SGO et al. A revised nomenclature for allergy. An EAACI position statment from the EAACI nomenclature task force. Allergy 2001; 56:813-824 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Leaute-Labreze C, Mortureux P, Taïeb A. Urticaria. In: Harper J, Orange A, Prose N, (eds). Textbook of Pediatric Dermatology. Oxford: Blackwell Science 2000:587-599 Neto M, et al. Prurigo estrófulo e o risco do seu impacto. Cadernos de Imuno-Alergologia Pediátrica 2003;1/2:43-45 Pereira C et al. Urticária na criança. In A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 433-441 O termo “hipersensibilidade” destina-se a designar todo o tipo de reacções a fármacos independentemente do mecanismo subjacente. Por outro lado, recorda-se: “alergia” refere-se às situações que envolvem a activação do sistema imunológico, por mecanismo mediado ou não por IgE. As reacções de hipersensibilidade correspondem aproximadamente a 15% das reacções adversas a fármacos. Dificuldades relacionadas com o diagnóstico e a deficiente notificação das reacções a entidades responsáveis pela farmacovigilância não permitem ter informação rigorosa sobre a verdadeira dimensão do problema. Numa revisão de 17 estudos prospectivos realizados em crianças) da autoria de Impicciatore verificou-se que em 2,1% das crianças hospitalizadas o diagnóstico principal foi reacções adversas a fármacos, sendo 39,3% graves com risco de vida. Neste estudo a incidência de reacções adversas foi 9,5% nas crianças hospitalizadas, e 1,5% no ambulatório. Estes resultados mostram que as reacções adversas a fármacos na criança constituem um problema de saúde pública importante. Factores de risco Santa Marta C, et al. Prurigo estrófulo. In A Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 449-451 Santa Marta C. et al. Síndrome de eczema / dermatite atópica. In Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 421431 A imunogenicidade é um dos factores de risco mais importantes de desenvolvimento duma reacção de hipersensibilidade a fármacos a qual está directamente relacionada com o peso molecular e as propriedades químicas do respectivo fármaco. A utilização de doses elevadas, a via de administração parentérica, a maior duração do tratamento, a exposição repetida ao fármaco e as doenças concomitantes são outros dos factores de risco. 384 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Em relação ao doente destacam-se a idade, a condição de sexo feminino e a presença de atopia. Na criança a alergia a fármacos parece ser menos frequente e menos grave que nos adultos, o que se pode dever à imaturidade do sistema imunitário. O terreno atópico aumenta, no entanto, o risco de reacções alérgicas graves mediadas por IgE, sem aumento de probabilidade de se desenvolver um mecanismo IgE em resposta a moléculas de baixo peso molecular. Manifestações clínicas As manifestações clínicas podem ser muito variadas assim como as formas de apresentação; envolvem um ou vários órgãos e sistemas. As manifestações cutâneas isoladas são as mais frequentes. No entanto, quadros de anafilaxia potencialmente fatais, assim como manifestações do tipo de doença do soro, reacções autoimunes induzidas pelo fármaco e febre isolada fazem parte do espectro clínico. Diagnóstico O diagnóstico deve ser suspeitado após o aparecimento de um sinal ou sintoma não previsível, relacionado, no tempo, com a administração de um fármaco. A relação de causalidade deve ser investigada criteriosamente, existindo vários algoritmos que poderão servir de orientação, como o de Jones. As questões requerendo resposta são: – os sinais e os sintomas são compatíveis com uma reacção de hipersensibilidade a fármacos? – há uma relação temporal entre a administração do fármaco e o início da reacção? – a classe e a estrutura química do medicamento estão associadas a reacções imunológicas? – o doente recebeu previamente o fármaco suspeito, numa ou em várias ocasiões? – não há outra razão plausível para a reacção descrita ou observada? – os testes cutâneos e /ou laboratoriais disponíveis são compatíveis com o diagnóstico de reacção explicada por mecanismos imunológicos? Apesar do número limitado de testes objectivos in vivo e in vitro para confirmação do diagnóstico, têm sido utilizados numerosos testes “in vitro”, com fins de investigação. Salientam-se, assim, os testes de libertação de mediadores (ex. triptase, metil-histamina urinária, histamina no plasma); testes de reactividade celular – dos linfócitos (transformação linfocitária – TTL – ou produção de linfocinas), dos leucócitos (libertação de leucotrienos e marcadores de activação celular) e ainda os testes de hemaglutinação ou hemólise na presença do fármaco e de soro do paciente. Apenas o último tem interesse clínico para a avaliação das citopénias mediadas imunologicamente. Perante a suspeita de reacções mediadas por IgE, pode proceder-se ao doseamento da IgE específica cujo resultado apresenta em geral menor sensibilidade quando comparado com o dos testes cutâneos intradérmicos; aliás os testes estão disponíveis apenas para um número limitado de fármacos (ex. penicilina G e V, amoxicilina e sulfonamidas). Recentemente, os testes de estimulação por antigénio específico dos basófilos e a utilização da citometria de fluxo para detecção de marcadores de activação celular (ex: CD63) – Flow-CAST, assim como os TTL, simulando uma prova de provocação in vitro, são métodos promissores no diagnóstico da alergia medicamentosa. Em relação aos testes “in vivo”, os testes cutâneos intradérmicos para detecção de IgE específica têm sido os únicos com valor preditivo elevado, sobretudo na avaliação da suspeita de alergia aos antibióticos β-lactâmicos, relaxantes musculares e anestésicos locais. A sua principal limitação prende-se com o facto de os determinantes antigénicos responsáveis pela alergia à maioria dos fármacos serem desconhecidas; assim, aqueles devem ser realizados por especialistas de imunoalergologia e em meio hospitalar. Podem ainda utilizar-se testes epicutâneos – patch tests, cujos resultados encontrados por vários autores não têm sido superiores aos demonstrados pelos testes intradérmicos (leitura tardia), reservando-se a sua utilização para o estudo das reacções à aplicação tópica de fármacos e conservantes. Na maioria das situações o diagnóstico de uma reacção de hipersensibilidade pressupõe a realização de uma prova de provocação em meio hospitalar, consistindo na administração controlada de doses progressivas de fármaco, com o intuito de CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa confirmar ou excluir o diagnóstico e, em casos particulares, para obtenção de alternativas terapêuticas consideradas necessárias. Tratamento Quando há suspeita de alergia medicamentosa é importante proceder à suspensão da administração do fármaco em causa. Nas crianças com medicações múltiplas devem ser interrompidas todas as dispensáveis e substituir as necessárias por fármacos sem reactividade cruzada. A confirmação do diagnóstico de hipersensibilidade implica a evicção do fármaco e dos que apresentam reactividade cruzada. Raras são as situações em que há que prosseguir a utilização do medicamento ao qual o paciente é alérgico, sob medicação. Nas reacções mais ligeiras como os exantemas ligeiros, a utilização de anti-histamínicos é em geral suficiente. Apresentações mais graves ou agravamento clínico podem requerer corticoterapia para controlo, sendo a dose usual de prednisolona de 2mg/Kg de peso (máximo de 60mg/dose), uma a duas vezes por dia. O tratamento da anafilaxia não difere do que é utilizado em situações com outras etiologias, sendo o fármaco de eleição a adrenalina (1/1000) por via intramuscular, na dose 0,01ml/Kg de peso (máximo de 0,5ml); pode repetir-se duas vezes em intervalos de 15 minutos, dependendo da evolução. Outras medidas de suporte poderão ser necessárias. Indução de tolerância Perante situações particulares de necessidade imperiosa de utilizar um fármaco essencial num indivíduo com manifestações de hipersensibilidade, e em que alternativas não existem ou as mesmas conduzem a resultados pouco eficazes, é possível recorrer à indução de tolerância através da utilização de protocolos que envolvem a administração de doses progressivas do medicamento. Na maioria das vezes este tipo de procedimentos é feito em internamento hospitalar, numa unidade de cuidados intensivos. Alguns dos protocolos usados podem ser encontrados na literatura, nomeadamente para antibióticos β-lactâmicos, trimetoprim-sulfametoxazol, insulina, ácido ace- 385 tilsalicílico, entre outros. A tolerância desaparece após suspensão do fármaco. Prevenção São de destacar algumas recomendações para a prevenção da alergia medicamentosa: – prescrever apenas os fármacos essenciais; – evitar fármacos com reacções prévias suspeitas, assim como aqueles com os quais se verifique reactividade cruzada; – utilizar medicação preventiva antes e durante a administração de fármaco; – informar o paciente/família sobre a reacção medicamentosa, procedendo ao registo médico do incidente; – reportar as reacções adversas graves ou inesperadas, ao Infarmed, especialmente de fármacos recentes. Situações particulares São abordados seguidamente alguns dos aspectos mais importantes relativos aos principais grupos de fármacos implicados nas reacções de hipersensibilidade em idade pediátrica, como antibióticos, anti-inflamatórios não esteróides (AINE) e vacinas. Os antibióticos β-lactâmicos e as sulfonamidas são os antimicrobianos que com maior frequência originam reacções adversas. 1. Antibióticos β-lactâmicos Em cerca de 7% das crianças expostas à penicilina e outros antibióticos β-lactâmicos, refere-se o aparecimento de exantema. No entanto, apenas 10 a 20% dos indivíduos com “história de alergia” são verdadeiramente alérgicos, o que significa que na maioria dos casos as pessoas podem tolerar a exposição à penicilina sem que ocorram reacções adversas. Perante uma história sugestiva de reacção alérgica aos β-lactâmicos devem realizar-se testes cutâneos por picada e intradérmicos. Estima-se que 7 a 20% dos indivíduos com suspeita de história de alergia à penicilina tenham testes cutâneos positivos. O valor preditivo negativo destes testes é excelente. As reacções sistémicas aos testes cutâneos são raras (<1%) embora existam notificações de óbitos. 386 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Em situações não mediadas por IgE os testes cutâneos não têm qualquer valor preditivo (ex: febre medicamentosa, dermatite exfoliativa, doença do soro, exantemas). As determinações da IgE específica para detecção de alergia à penicilina têm uma sensibilidade muito baixa. O diagnóstico de alergia à penicilina é excluído através da realização de uma prova de provocação. Ocasionalmente, indivíduos alérgicos à penicilina necessitam de efectuar terapêuticas com a penicilina (ex: endocardite por enterococos, neuro-sífilis) sendo necessário proceder à indução de tolerância. 2. Sulfonamidas A incidência de reacções ao sulfametoxazol-trimetoprim (SMX-TMP) na população geral é cerca de 3 a 5%, sendo de referir que em 1/10000 casos podem ocorrer reacções de toxicidade idiossincrásica grave. A patogénese é multifactorial. O aparecimento de reacções mediadas por IgE são raras. Salientase que os indivíduos infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) têm níveis celulares de glutatião-redutase diminuídos, o que contribui para aumentar a toxicidade e imunogenicidade dos metabolitos do SMX. Os factores de risco parecem ser o grau de imunodeficiência (CD4+<200/mm3), duração e dose do tratamento, infecção vírica coexistente, fenótipo acetilador lento, e atopia. Os testes "in vitro" poderão vir a ser úteis como marcadores clínicos de hipersensibilidade ao SMX (ex: haptenização do SMX). Devem realizar-se testes cutâneas com picada e intradérmicos com SMX-TMP para detecção das reacções mediadas por IgE embora o valor dos mesmos não esteja confirmado. Os protocolos de indução de tolerância são, em geral, seguros e eficazes. 3. Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) A revisão das casuísticas mostra que os AINE’s constituem a segunda causa de reacções adversas a fármacos na idade pediátrica, sendo responsáveis por cerca de 10% destas. Estudos realizados em grupos seleccionados de crianças asmáticas e/ou atópicas mostram um aumento da prevalência da hipersensibilidade em função da idade. Uma revisão dos estudos sobre a asma induzida pelo ácido acetilsalicílico (AAS) e anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) em crianças asmáticas revela uma prevalência de 5%, valor superior ao obtido através da história clínica. Considera-se hoje que a hipersensibilidade provocada pelos AINEs se deve a alterações do metabolismo do ácido araquidónico com inibição da ciclo-oxigenase (COX) e consequente aumento da libertação de leucotrienos com marcada actividade pró-inflamatória. Questiona-se a possibilidade de formação de IgE específicas nos quadros de “anafilaxia” associados a determinado AINE específico. Na suspeita de reacção a um AINE e ausência de contraindicação preconiza-se a realização de prova de provocação para confirmação do diagnóstico. Podem efectuar-se provas de provocação oral (PPO) com AAS ou outro AINE e provas de provocação por inalação brônquica (PPIB) ou nasal (PPN), com acetilsalicilato de lisina. Pelo risco que comportam, deverão ser efectuadas em meio hospitalar, sob vigilância cardio-respiratória e com equipa de emergência disponível. Estão reservados a casos duvidosos em que é necessário confirmar o diagnóstico e investigar fármacos alternativos. As PPO são o método mais utilizado. Na presença de hipersensibilidade a um AINE é importante investigar um AINE alternativo, atendendo à possível reactividade clínica simultânea a diferentes fármacos do mesmo grupo ou de grupos diferentes. É consensual o recurso a provas de provocação para avaliar a tolerância a um determinado AINE. Deve optar-se pelos fármacos de menor risco, ou seja, utilizar AINEs inibidores fracos da COX1 (ex: paracetamol) ou inibidores preferenciais da COX2 (ex: nimesulido). A interdição no mercado nacional do nimesulido em idade pediátrica levanta problemas na selecção do AINE alternativo. Encontra-se em fase de investigação a forma pediátrica segura em crianças à semelhança do que se passa nos adultos. A indução de tolerância deve ser considerada nos pacientes com artrite ou doença arterial tromboembólica recorrente, tratando-se de situações excepcionais. É recomendado que, a crianças com asma e com factores de risco clínico de hipersensibilidade CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa aos AINEs (asma persistente grave ou rinosinusopatia crónica), apenas se administrem estes fármacos quando estritamente necessário e sob vigilância clínica. Várias séries demonstram, no entanto, que não há risco de deterioração da asma em crianças submetidas terapêutica analgésica ou anti-inflamatória por curtos períodos. 4. Vacinas Como a maioria das vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV) são administradas em população pediátrica, as reacções alérgicas às vacinas são mais frequentes neste grupo etário. As reacções sugestivas de alergia são muito raras mas ocorrem, sobretudo, na sequência da vacina antidifteria, tétano e pertussis, sob a forma tríplice (DTP) e associação da vacina anti-sarampo, parotidite e rubéola (VASPR). Os dois principais componentes identificados na patogénese das reacções alérgicas foram a gelatina e as proteínas do ovo. Algumas reacções imediatas que surgem relacionadas com a administração da VASPR e da DTP são justificadas pela sensibilidade à gelatina. Em relação às proteínas do ovo, o conteúdo é muito elevado em vacinas de crescimento em tecido extraembriónico (febre amarela), é elevado em vacinas de crescimento em embrião (parotidite, raiva e influenza), e é baixo ou indetectável em vacinas de crescimento em fibroblastos de embrião de galinha (rubéola, sarampo). Foram descritas ainda algumas reacções raras relacionadas com antibióticos associados a vacinas como estreptomicina e polimixina (poliomielite injectável inactivada), neomicina (poliomielite oral e injectável). Em muitas outras reacções imediatas não se conseguiu provar a etiologia alérgica. As reacções de hipersensibilidade retardada podem ser causadas por timerosal (nos casos de vacina de anti-DTP, hepatite B), formaldeído (nos casos de vacina anti-hepatite B), hidróxido de alumínio (nos casos de vacinas anti-DTP, hepatite B). A incidência de reacções anafilácticas à vacina anti-sarampo com risco de vida é menos de 71,6 /1 000 000 doses de vacina. Na metodologia de diagnóstico os testes cutâneos não têm indicação porque não são fidedignos. A determinação da IgE específica para a gelatina é importante. Nos doentes alérgicos ao ovo deve adoptar-se o seguinte procedimento: 387 – Todas as vacinas devem ser administradas por equipa capaz de tratar uma reacção de anafilaxia associada à administração de vacina. – A alergia ao ovo não é contraindicação para a imunização VASPR (mesmo em doentes com anafilaxia induzida pelo ovo é preconizada vacina sem realização prévia de testes cutâneos). – As vacinas anti-sarampo ou VASPR estão contraindicadas em indivíduos com antecedentes de reacção anfiláctica à vacina antisarampo. As reacções anafilácticas são raras ao toxóide tetânico, ocorrendo uma em um milhão de administrações. Vários mecanismos imunológicos estão envolvidos: – Hipersensibilidade mediada por IgE (muito rara). – Reacção de hipersensibilidade tipo III. Vários estudos demonstram uma correlação entre o nível de IgG contra o toxóide tetânico e o grau de reacção local. – Reacção de hipersensibilidade tipo IV por presença de timerosal ou hidróxido de alumínio explicando algumas reacções locais tardias. A história de reacção anterior ao toxóide tetânico, hidróxido de alumínio e timerosal constitui factor de risco. Na metodologia de diagnóstico os testes cutâneos são discutíveis porque originam muitos resultados falsos positivos e negativos. Mesmo os doentes com antecedentes de anafilaxia raramente evidenciam testes positivos. Nos casos com história anterior de reacção ao toxóide tetânico deverá ser ponderado: 1 – Avaliar o título de IgG para verificar a necessidade de reimunização; 2 – Usar outras formas de toxóide com diferente conservante; 3 – Usar formas isoladas de toxóide tetânico e não associações DTP e DT; 4 – Iniciar protocolo de dessensibilização sob orientação do imunoalergologista. BIBLIOGRAFIA Businco B B, Paganelli R, Bruno G, Grossi O, Rienzo D, Businco B. Allergy to tetanus toxoid vaccine. Allergy 2001; 56: 701702 388 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Demoly P, Bousquet J. Epidemiology of drug allergy. Curr Opinion Allergy Clin 2001; 1: 305-310 Gruchalla RS, Pirmohamed M. Antibiotic allergy. NEJM 2006; 354: 601-608 Impicciatore P, Choonara I, Clarkson A, Pandolfini C, Bonati M. Incidence of adverse drug reactions in paediatric/outpatients: a systemic review and meta-analysis of 68 ALERGIA ALIMENTAR prospectve studies. Br J Clin Pharmacol 2001; 52:77-83 Jenkins C, Costello J, Hodge L. Systematic review of preva- Sara Prates lence of aspirin induced asthma and its implications for clinical practice. BMJ 2004; 328: 434 Nanazy JA, Simon RA. Sensitivity to nonsteroidal anti-inflamatory drugs. Ann Allergy Asthma Immunol 2002; 89: 542- Definição 550 Pichler WJ, Tilch J. The lymphocyte transformation test in the diagnosis of drug hypersensitivity. 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Ann Allergy Asthma Immunol 2000; 85: 330-331 Ao longo dos últimos anos, coincidindo com o aumento de prevalência das doenças alérgicas, as reacções adversas relacionadas com a ingestão de alimentos têm vindo a ser consideradas um importante problema de saúde pública. Tais reacções podem ser denominadas duma forma abrangente como Hipersensibilidade alimentar e divididas em duas categorias principais: 1. Alergia alimentar – compreende qualquer resposta imunológica anormal secundária à ingestão de um alimento, mais frequentemente mediada pela produção de anticorpos IgE (alergia alimentar IgE mediada); tal resposta pode ter subjacentes mecanismos com envolvimento de outras células e mediadores do sistema imunitário (alergia alimentar não-IgE mediada). 2. Hipersensibilidade alimentar não alérgica (mais prevalente e anteriormente referida como intolerância alimentar) – inclui manifestações clínicas associadas à ingestão de um alimento ou de um aditivo alimentar, resultantes de fenómenos não imunológicos, tais como reacções metabólicas, defeitos estruturais, reacções farmacológicas ou reacções idiossincrásicas. Os quadros de alergia alimentar têm então um substrato imunológico mediado ou não por IgE (celular ou outro), existindo situações clínicas em que podem estar envolvidos ambos os tipos de mecanismo imunológico (mistas). No Quadro 1 exemplificam-se algumas entidades clínicas representativas de formas de hipersensibilidade imediata, retardada e mista. Aspectos epidemiológicos A epidemiologia da alergia alimentar não é co- CAPÍTULO 68 Alergia alimentar QUADRO 1 – Alergia alimentar – Classificação quanto ao mecanismo imunológico IgE mediado (início imediato) Urticária e angioedema, hipersensibilidade intestinal imediata (anafilaxia gastrintestinal), síndroma de alergia oral, rinoconjuntivite aguda, sibilância (broncospasmo), anafilaxia induzida pelo exercício, choque anafiláctico. Misto (início variável) Esofagite eosinofílica alérgica, gastrite eosinofílica alérgica, gastrenterocolite eosinofílica alérgica, dermatite atópica, asma. Não IgE mediado (início tardio) Enterocolite, proctite, enteropatia, síndromas de máabsorção, doença celíaca, síndrome de Heiner (hemossiderose pulmonar induzida por alimentos), dermatite herpetiforme, dermatite de contacto. nhecida de forma precisa, quer pela falta de estudos bem desenhados, quer pelos diferentes critérios de diagnóstico e metodologias utilizados nos poucos disponíveis, dificultando comparação. Em inquéritos realizados em amostras populacionais é habitualmente possível identificar uma frequência elevada de indivíduos convictos de que são “alérgicos” a algum tipo de alimento, mas em menos de um terço destes casos tal se confirma quando se procede a avaliação diagnóstica correcta. Estima-se, assim, que a prevalência de alergia alimentar na população em geral seja 1% a 3% e em populações da idade pediátrica, cerca de 8%. Os alergénios alimentares mais importantes variam entre as diferentes populações em função dos hábitos alimentares predominantes e do grupo etário estudado. Na população pediátrica o leite e o ovo são os mais frequentes, seguidos do peixe. A partir da idade escolar começa a ganhar expressão outro tipo de alimentos, como os crustáceos, o amendoim, frutos secos e frutos frescos. Salienta-se a alergia ao amendoim, extrememente prevalente noutros países como EUA e França, e que parece estar a ganhar expressão entre nós. Este alimento é actualmente um problema grave nos países anglo-saxónicos pela gravidade, sendo responsável por elevado número de casos fatais de anafilaxia alimentar. A elevada prevalência de alergia ao amendoim nestes países 389 correlaciona-se com a introdução precoce deste alimento sob a forma de respectivos derivados, hábito até há pouco tempo praticamente inexistente em Portugal, mas que parece estar a modificar-se. Manifestações clínicas e diagnóstico As manifestações clínicas de alergia alimentar podem ser muito variadas, evidenciando o envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas, predominando o compromisso mucocutâneo, gastrintestinal e respiratório. (Quadro 1) A ampla diversidade de apresentações clínicas levanta várias dificuldades diagnósticas, especialmente quando estão em causa situações crónicas e multifactoriais, como a asma brônquica e a dermatite atópica, ou quando se confia excessivamente nos resultados dos meios auxiliares de diagnóstico in vitro e in vivo, eles próprios com valor preditivo negativo e positivo variável. Assim, uma abordagem correcta deve basearse nos seguintes passos: História clínica – permite identificar os alimentos responsáveis, com base numa relação consistente entre a ingestão do alimento e o aparecimento dos sintomas. A execução de diários alimentares pode ser um auxiliar precioso nos casos de sintomatologia crónica em que a relação causal não é óbvia ou quando a informação fornecida não é rigorosa. O exame objectivo poderá permitir a exclusão de outras causas das queixas; Exames auxiliares de diagnóstico – a sua escolha deve basear-se na apresentação clínica e no respectivo quadro imunológico subjacente, IgE ou não IgE mediado. Se se suspeitar de um processo imunitário IgE mediado, a realização de testes cutâneos com picada e os doseamentos de IgE específica constituem importantes auxiliares, nomeadamente na selecção dos alimentos a incluir na programação de provas de provocação alimentares. Apresentam geralmente um excelente valor preditivo negativo (superior a 95%), mas um baixo valor preditivo positivo (inferior a 50%); Provas de provocação oral – se a clínica apontar para um quadro sem mediação por anticorpos, reduz-se a utilização de exames auxiliares de diagnóstico devendo o procedimento diagnóstico basear-se essencialmente na resposta a dietas de 390 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA evicção e na realização de provas de provocação oral. Outros exames – finalmente, na avaliação da patologia gastrintestinal as biópsias e os estudos de permeabilidade intestinal podem estar indicados; e os doseamentos de mediadores nas fezes carecem ainda de validação. No entanto, mesmo conjugando dados clínicos e os resultados dos exames auxiliares, não é possível confirmar com segurança a hipótese de diagnóstico inicial em mais do que 30% a 40% dos casos, mantendo-se as provas de provocação como gold standard na abordagem diagnóstica e na avaliação evolutiva dos quadros de alergia alimentar. Estas devem ser efectuadas em meio hospitalar, por clínicos experientes na sua realização, na interpretação dos sintomas eventualmente resultantes, e na abordagem terapêutica de emergência das reacções potencialmente desencadeadas. Tratamento O tratamento da alergia alimentar assenta fundamentalmente na evicção dos alimentos identificados e responsabilizados pelo quadro clínico detectado. A terapêutica farmacológica não é habitualmente utilizada, à excepção do tratamento de emergência da reacção aguda. Relativamente às medidas de evicção alimentar, há que salientar que na maioria dos casos fatais o alimento foi ingerido inadvertidamente pelo doente. Os pais da criança com alergia alimentar devem ser alertados para este facto e ensinados a atitude preventiva, nomeadamente pela leitura atenta dos rótulos e pelo cuidado na manipulação dos alimentos, de forma a evitar a contaminação inadvertida dos alimentos que o doente irá consumir. No que diz respeito ao tratamento de emergência, há que salientar a necessidade de elaborar planos de actuação que devem incluir informação que permita ao doente e/ou aos pais identificar os sintomas de alarme e definir critérios para utilização da terapêutica. Reacções mais ligeiras poderão ser tratadas com anti-histamínicos e corticóides sistémicos e, no caso de se tratar de um doente asmático, deve ser prevista a administração de broncodilatadores por via inalatória. Caso se considere que se trata de um doente de alto risco anafiláctico, deve ser prescrito estojo de emergência incluindo adrenalina; e as pessoas que contactam mais de perto com a criança devem ser informadas e treinadas na sua utilização. Após a terapêutica inicial da reacção, o doente deve ser observado em meio hospitalar onde deverá permanecer em vigilância algumas horas dado o risco de reacções bifásicas. A história natural dos sintomas relacionados com alergia alimentar é muito variável, tendendo com frequência a sensibilidade a perder-se com o tempo. Consequentemente, a realização de provas de provocação regulares constitui o seguimento adequado destas formas clínicas. O cronograma das provas deve ser feito tendo em conta múltiplos factores, como a idade do doente, o tipo de manifestações clínicas, o alergénio incriminado e a evolução dos níveis de IgE específica sérica. Estes procedimentos só devem ser realizados em ambiente hospitalar, geralmente em regime de hospital-de-dia, e com supervisão de especialistas com experiência nesta área. Como nota importante há a realçar que a negativação dos testes cutâneos não constitui critério indispensável para a realização de provas de provocação; a positividade pode persistir para além da tolerância, nalguns casos durante mais de uma década. Do mesmo modo as IgE específicas podem continuar detectáveis muito para além de se alcançar a tolerância ao alimento. Prevenção Dado o elevado impacte desta patologia na qualidade de vida do doente e da sua família e a ausência, até à data, de medidas terapêuticas eficazes, a prevenção primária adquire nesta situação particular importância. As medidas de prevenção têm, em regra, tido algum efeito, quando são incluídos lactentes de alto risco alérgico (ambos os progenitores alérgicos, ou um progenitor alérgico e um irmão alérgico ou um alérgico e marcadores in vitro do lactente positivos). No Quadro 2 estão enumeradas as medidas preventivas mais consensuais para a generalidade das crianças, e para as de elevado risco atópico em particular. A alergia alimentar tem implicações importantes a vários níveis: saúde (riscos de reacções graves, por vezes fatais, riscos de défices nutri- CAPÍTULO 68 Alergia alimentar QUADRO 2 – Alergia alimentar - Prevenção primária Todas as crianças • Gravidez sem restrições dietéticas (excepto amendoim); • Aleitamento materno sem dieta restritiva da mãe; • Maternidade – fórmulas hipoalergénicas; • Aleitamento materno exclusivo até 5/6 meses; • Evicção de alimentos sólidos até aos 5/6 meses; • Evicção de exposição tabágica, incluindo na gravidez. Nas crianças de elevado risco atópico, também • Aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses; • Regime materno de restrição durante o aleitamento (leite, ovo, peixe, frutos secos e amendoim) se dermatite atópica, • Suplementos ou fórmulas hipoalergénicas, preferencialmente com utilização das fórmulas extensamente hidrolisadas; • Evicção de alimentos sólidos até aos 6 meses; • Ovo e peixe após os 12 meses, • Frutos secos, amendoim, frutos tropicais e mariscos após os 36 meses. cionais), sociais e psicológicos (necessidade de dietas especiais, de ingestões inadvertidas com possibilidade de efeito de alergénios ocultos, integração da criança no meio social) e económicos (o custo das dietas alternativas). Em suma, é importante conhecer as medidas que cada profissional de saúde deve recomendar para que se possa inverter a tendência actual na nossa sociedade. BIBLIOGRAFIA Almeida M, Prates S, Pargana E, et al. Alegria alimentar em crianças numa consulta de imunoalergologia. Rev Port Imunoalergol 1999; 7: 167-171 Bindslev-Jensen C, Ballmer-Weber BK, Bengtsson U, et al. Standardization of food challenges in patients with immediate reactions to foods – position paper from the European Academy of Allergology and Clinical Immunology. Allergy 2004; 59: 690-697 Bischoff SC, Crowe S. Gastrointestinal food allergy. New insights into pathophysiology and clinical perspectives. Gastroenterol 2005; 128: 1089-1113 Fiocchi A, Martelli A, DeChiara A, et al. Primary dietary prevention of food allergy. Ann Allergy Asthma Immunol 2003; 91: 3-13 Hourihane J. Recent advances in peanut allergy. Curr Opin Allergy Clin Immunol 2002; 2: 227-231 391 Pumphrey RS. Lessons for management of anaphylaxis from a study of fatal reactions. Clin Exp Allergy 2000; 30: 1144-1150 Sampson HA. Food Allergy. J Allergy Clin Immunol 2003; 111: S540-547 Sampson HA. Update of food Allergy. J Allergy Clin Immun 2004; 113: 805-819 Sicherer SH. Diagnosis and management of childhood food allergy. Curr Probl Pediatr 2001; 31; 39-57 Yu JW, Kagen R, Verrault N, et al. Accidental ingestions in children with peanut allergy. J Allergy Clin Immunol 2006; 118: 466-472 Zeiger RS. Food allergen avoidance in the prevention of food allergy in infants and children. Pediatrics 2003;111: 16621671 392 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 69 IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS Conceição Neves Definição e importância do problema As imunodeficiências englobam um grupo de doenças congénitas e hereditárias que têm em comum um défice no sisteme imune, quer do desenvolvimento, quer da função, do que resulta predisposição para infecções recorrentes com agentes patogénicos pouco comuns. As imunodeficiências primárias (IDP) somente foram identificadas após a introdução dos antibióticos, já que a mortalidade e morbilidade devidas à infecção, mesmo em indivíduos considerados saudáveis, era muito elevada. De referir que várias síndromas de imunodeficiências com achados clínicos característicos tinham já sido descritas antes de 1940, incluindo a candídiase mucocutânea por Thorpe e Handley em 1929, a ataxia-telangiectasia por Syllaba e Henner em 1926 e, a síndroma de Wiskott-Aldrich por Wiskott em 1937. O primeiro doente com défice da imunidade celular foi descrito inicialmente por Glazmann e Riniker em 1950. Os défices do complemento foram identificados mais tardiamente em 1965 por Klemperer e seus colaboradores. Fisiopatologia A resposta imune corporal depende de uma série de mecanismos de defesa, designadamente barreiras físicas, componentes celulares e mediadores solúveis.O sistema imune normal possui dois mecanismos essenciais: numa fase inicial, põem-se em marcha respostas rápidas e inespecíficas (resposta imune inata) contra a infecção inicial; depois entram em acção as chamadas respostas imunes específicas de adaptação (imunidade específica adquirida) contra um determinado factor patogénico. Juntos, estes dois mecanismos cooperam na manutenção de uma função normal no hospedeiro no que respeita à resistência às infecções. A interrupção de qualquer elo deste sistema da resposta imune resulta em incapacidade de controlo da infecção com aparecimento de subsequente doença. A resposta imune inata envolve três tipos de células: células fagocitárias como os neutrófilos e macrófagos; células “natural killer” que têm a capacidade de lise de células estranhas ao organismo, e células apresentadoras de antigénios envolvidas na indução da resposta imune de adaptação. As proteínas do complemento são uma classe importante de mediadores solúveis da resposta imune inata, contribuindo para promover a inflamação e a morte de microrganismos extracelulares. O sistema imune adaptativo é filogeneticamente mais tardio e aparece nos organismos superiores; envolvendo processos altamente específicos de reconhecimento de substâncias estranhas (antigénios), inclui os linfócitos T e B , responsáveis respectivamente pelas respostas imunes celular e humoral. A resposta imune celular é mediada primariamente pelas células T, contribuindo para limitar as infecções intracelulares por vírus, parasitas e micobactérias. Os anticorpos, chave principal da resposta humoral, são produzidos pelas células B activadas com papel importante no controlo da infecção por agentes patogénicos extracelulares. As respostas dependentes de linfócitos T e B não são independentes uma da outras; assim, défice de qualquer das linhagens pode afectar tanto a imunidade celular quanto a humoral em grau variável. Na actualidade são conhecidos os genes responsáveis por grande número de imunodeficiências congénitas. Em suma, considera-se que o sistema imune, por conveniência clínica e fisiopatológica, integra os seguintes componentes essenciais: • Linfócitos B (sistema imune humoral) • Linfócitos T (sistema imune celular) • Sistema fagocitário (polimorfonucleares e mononucleares) • Sistema do complemento (relacionado com a opsonização). CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias Esta sistematização permite adaptar uma classificação das IDP (cujas características essenciais são adiante discriminadas) mais ajustada à prática clínica; de referir, no entanto, que muitas doenças têm deficiências de um ou mais sistemas, particularmente défices humorais e celulares combinados. Aspectos epidemiológicos Mais de 80 IDP são hoje reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde. A incidência de muitas delas é desconhecida devido à falta de registos nacionais. Num registo americano da Immune Deficiency Foundation estima-se que existam aproximadamente 50.000 casos nos Estados Unidos com a incidência de 1/10.000 nascimentos. Na Europa, em 1994, através da European Society of Immunodeficiency, foram reunidos dados de 10.000 doentes pertencentes a 26 países, não havendo, no entanto, conhecimento acerca do número actual de registos. Estima-se que surjam aproximadamente 400 novos casos/ano em crianças nascidas nos Estados Unidos. Manifestações clínicas Os doentes com IDP são susceptíveis a infecções que, não sendo reconhecidas e tratadas atempadamente, podem ser letais. Existem determinados sinais e sintomas que podem conduzir o clínico a suspeitar de IDP. (Quadro 1) Uma história clínica pormenorizada pode dar indicadores para o diagnóstico, já que muitas IDP são herdadas de modo dominante ligado ao X, ou autossómicas recessivas. As crianças com infecções oportunistas com patogénios não habituais, restrição de crescimento e algumas doenças cutâneas nos primeiros meses de vida têm, na sua forma típica, anomalias das células T. Apesar de os anticorpos maternos adquiridos por via transplacentar e as próprias células fagocitárias e complemento serem suficientes para proteger as crianças com IDP de infecções bacterianas, elas são altamente susceptíveis a doenças por vírus, fungos e protozoários já nos primeiros meses de vida. As crianças com infeções bacterianas graves 393 QUADRO 1 – Sinais suspeitos de imunodeficiência primária • Oito ou mais otites durante um ano • Duas ou mais sinusites graves durante um ano • Necessidade de, pelo menos, 2 meses de antibiótico com resposta ineficaz • Duas ou mais pneumonias por ano • Falência de ganho ponderal ou restrição de crescimento • Abcessos recorrentes cutâneos ou de órgãos profundos • Candidíase bucal ou cutânea persistente , após o 1º ano de vida • Necessidade de antibioticoterapia endovenosa para o tratamento de infecções • Duas ou mais infecções graves em órgãos profundos • História familiar de imunodeficiência primária Adaptado : The warning signs of primary immunodeficiency. The Jeffrey Model Foundation,2007 após os 6 meses de vida têm alteração das células B. Esta idade coincide com o desaparecimento das IgG maternas mantendo, no entanto, uma somatometria e desenvolvimento psicomotor adequados. Os défices das células fagocitárias podem ser de início observados em crianças com patologia do foro dermatológico ou odontológico. Os défices do complemento podem apresentar-se exactamente da mesma forma do défice de células B, com infecções bacterianas graves.O complemento não atravessa a placenta; o respectivo défice pode ocorrer em qualquer idade. De referir que muitas situações acompanhadas de défice do complemento revelam-se, sobretudo, por manifestações do foro reumatológico e, menos frequentemente, por infeções recorrentes. São referidas seguidamente as características essenciais das IDP. 1. Doenças da imunidade humoral Afectam a diferenciação das células B e a produção de anticorpos. Correspondem a cerca de 50% de todas as IDP. Na maioria dos casos os doentes manifestam-se após os 6 meses de idade quando há uma diminuição da taxa dos anticorpos maternos transmitidos por via transplacentar. Tipicamente desenvolvem-se infecções 394 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA com bactérias capsuladas, das quais as mais frequentes são as infecções sinopulmonares. O quadro designado por imunodeficiência variável comum corresponde à situação mais frequentemente diagnosticada, englobando um grupo heterogéneo de doenças que têm de comum hipogamaglobulinémia. Estes doentes têm uma resposta ineficaz a vacinas, e um risco aumentado de desenvolvimento de doenças autoimunes e tumorais. O défice selectivo de IgA pode ter a incidência mais elevada, mas é muitas vezes assintomático e subdiagnosticado.Os doentes apresentam-se com infecções do aparelho respiratório e com envolvimento gastrintestinal; verifica-se uma resposta normal a vacinas. A doença de Bruton ou agamaglobuliménia ligada ao X é causada por uma mutação ou ausência do gene tirosina-cinase de Bruton (BTK). O desenvolvimento precoce das células B não é efectuado e as imunoglobulinas estão muito diminuídas ou ausentes. 2. Défices combinados de células T e B Geralmente estas doenças são mais graves que as provocadas por défice de imunidade humoral. Os doentes afectados apresentam-se precocemente com restrição de crescimento e infecções disseminadas. A síndroma de DiGeorge é uma das entidades mais reconhecidas neste grupo. Geralmente tais défices cursam com infecções víricas e fúngicas fatais. A imunodeficiência grave combinada está associada a profunda deficiência da função das células T e B (e algumas vezes das células natural killer). Caracteriza-se por infecções oportunistas graves, ou diarreia crónica e restrição de crescimento. Cerca de metade dos casos corresponde à hereditariedade ligada ao X e os restantes herdados de modo autossómico recessivo. A síndroma de Wiskott-Aldrich é uma doença recessiva ligada ao X; caracteriza-se por trombocitopénia, plaquetas de volume diminuído, disfunção plaquetar, eczema e susceptibilidade às infecções. As crianças apresentam-se na sua forma típica com hemorragia prolongada no local de circuncisão, diarreia sanguinolenta e equimoses generalizadas. 3. Défices fagocitários A forma mais comum é a doença granulomatosa crónica, afectando sobretudo o sexo masculino. O défice da fosfatase da nicotinamida-adeninadinucleótido nos fagócitos resulta numa eliminação defeituosa dos patogénios extracelulares como bactérias e fungos. Os doentes são mais susceptíveis a infecções com organismos catalasepositivos (estafilococos) que requerem actividade fagocítica eficaz para a sua eliminação.A causa de morte mais frequente é a infecção por Aspergilus. 4. Défices do complemento Contribuem para 2% de todas as IDP.Os défices da via clássica são os mais comuns e os doentes apresentam-se com manifestações autoimunes como as síndromas “lupus-like” ou semelhantes a lúpus. Os doentes com alterações da via alternativa têm habitualmente infecções por Neisseria. Os doentes com défice de properdina estão particularmente predispostos a infecções por N meningitidis. O angioedema hereditário ocorre nos casos em que se verifica défice de síntese do inibidor de C1 (C1INH). O Quadro 2, de utilidade na prática clínica, relaciona as manifestações clínicas com a base patogénica e a probabilidade de relação com determinados germes causais. O Quadro 3 sintetiza os exames complementares básicos para identificação da imunodeficiência. Na presença de um diagnóstico incerto, poderá haver necessidade de mais exames complementares, tais como estudos genéticos e de imunofenotipagem. Em tal circunstância o doente deverá ser encaminhado para uma consulta de imunologia clínica. Tratamento Discriminam-se, a seguir, de modo conciso aspectos da actuação prática (profiláctico-terapêutica) pressupondo que as situações de IDP deverão ser seguidas num centro especializado. Imunoglobulina endovenosa Utilizada nos casos de agamaglobulinémia, agamaglobulinémia ligada ao X, défices de anticorpos, imunodeficiência variável comum, imu- CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias 395 QUADRO 2 – Manifestações clínicas de imunodeficiência e organismos causais Anomalia Células T Células B Fagocitos Complemento Manifestação clínica Candidiase oral persistente Diarreia crónica Exantema Pneumonia intersticial Otite média recorrente Sépsis Meningite Artrite supurada Pneumonia Sinusite Abcessos em tecidos moles, na pele, pulmão, maxilares Úlceras bucais Queda tardia do cordão umbilical Otite média recorrente Sépsis Meningite Artrite supurada Pneumonia Sinusite Doenças autoimunes Angioedema nodeficiência grave combinada e défices selectivos de subclasses de IgG (dose de IGIV: 400 mg/Kg/mês). Transplante de medula óssea Indicado em caso de imunodeficiência grave combinada, síndroma de DiGeorge e síndroma de Microrganismo Candida albicans Pneumocystis jiroveci Micobactérias atípicas Citomegalovírus H. influenzae tipo b S. pneumoniae Staphylococcus aureus Echovirus Staphylococcus aureus Serratia marcescens Klebsiella Candida Aspergilus Staphylococcus aureus H. influenzae tipo b S. pneumoniae Neisseria meningitidis Wiskott-Aldrich. Os resultados não são conclusivos na doença granulomatosa crónica. Terapêutica antimicrobiana e imunoterapia Em doentes com doença granulomatosa crónica o uso de antimicrobianos profilácticos como trimetoprim-sulfametoxazol reduz para metade a inci- QUADRO 3 – Diagnóstico laboratorial das IDP Imunodeficiência Todos os tipos Défice de anticorpos Imunodeficiência celular Défice do complemento Défice fagocitário Exames complementares básicos Hemograma completo Estudo do sangue periférico Imunoglobulinas (doseamento) Titulos de anticorpos pós imunização Iso-hemaglutininas Provas cutâneas de hipersensibilidade retardada Radiografia do tórax Complemento hemolítico total(CH50) Prova do nitro-azul de tetrazólio Estudo da população CD11+/CD18+ 396 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dência de infecções. Nos défices do complemento preconiza-se a vacinação anti H influenzae, S pneumoniae e N meningitidis, igualmente das pessoas que contactam com o doente. No casos de angioedema hereditário está indicada a profilaxia com infusão de concentrado de C1INH nos casos submetidos a tratamento cirúgico ou procedimentos estomatológicos. BIBLIOGRAFIA Ballow M.Primary immunodeficiency disorders: antibody deficiency.J Allergy Clin Immunol 2002; 109:581-591 Cherry JD,Feigin RD.Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Saunders; 2004: 1796-1809 Fischer A Human primary immunodeficiency diseses: a per- 70 SÍNDROMA DE IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA) spective. Nat Immunol 2004; 5: 23-30 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson A. Bessa Almeida, Júlia Galhardo e Ema Leal Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Notarangelo L, Casanova JL, Conley MS, et al. Primary Immunodeficiency diseases: an update. J Allergy Immunol Definição e importância do problema 2006; 117: 883-896 Stiehm ER, Ochs H, Winkelstein J. (eds) Immunologic Disorders in Infants and Children. Philadelphia: Elsevier Saunders,2004 Woroniecka M, Ballow M. Office evaluation of children with recurrent infection.Pediatr Clin North Am 2000;47:12111224 A síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA) – descrita neste capítulo como exemplo de imunodeficiência secundária – é uma doença provocada por um vírus que destrói os mecanismos de defesa imunitária do organismo (os linfócitos T) expondo-o a diversas infecções oportunistas graves(candidíase esofágica e broncopulmonar, criptococose disseminada do sistema nervoso central, pneumonia intersticial por Pneumocystis jiroveci ou por micobactérias atípicas, etc.). A estas acrescentamse ainda, em todos os estádios de doença, certas neoplasias como sarcoma de Kaposi e linfomas. Trata-se, pois, dum problema grave de saúde pública que comporta elevadas taxas de morbilidade e de mortalidade. Pouco tempo depois de descritos os primeiros casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em 1982, foram identificados os agentes responsáveis por esta entidade clínica: primeiramente o vírus da imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje disseminado em todas as regiões do Mundo; e, mais tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2 (VIH2), mais comum em determinadas regiões da África Ocidental, designadamente Guiné. Os agentes microbianos em causa são retrovírus humanos ARN que se integram no genoma das células-alvo como um pró-vírus, sendo que o CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida genoma vírico é copiado durante a replicação celular, persistindo na pessoa infectada toda a vida. Aspectos epidemiológicos Apesar de demonstrada a presença do VIH em estado latente em várias células e fluidos corporais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uterinas e leite humano estão implicados na transmissão da infecção. São, pois, três as vias de transmissão do VIH: contacto sexual; via percutânea (agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais com altos títulos de VIH; transmissão vertical mãe-filho, durante a gravidez, na data do parto e pelo aleitamento materno. Devido a medidas de exclusão de dadores de sangue potencialmente infectados, tratamentos de inactivação vírica de concentrados de factores da coagulação, e utilização desde há alguns anos de factores da coagulação recombinantes, a transfusão de sangue ou produtos derivados tornou-se uma via raríssima de transmissão VIH, pelo menos nos países desenvolvidos. Na ausência de contacto sexual ou de exposição parentérica ou mucosa a sangue ou fluidos corporais contendo sangue, muito raramente se tem demonstrado a transmissão do VIH em contactos familiares ou na prestação de cuidados em instituições de saúde. Também nunca foi demonstrada a transmissão do VIH em escolas ou creches. De acordo com dados da OMS, no final de 2005 havia em todo o mundo mais de 2 milhões de crianças com menos de 15 anos infectadas com o VIH, com uma taxa de incidência anual de cerca de 640 mil. Estima-se que nesse ano tenham morrido mais de 500 mil crianças. Dados do Instituto Nacional de Estatística de Portugal indicam um total de 28 370 casos de infecção pelo VIH; destes, 12 702 correspondem a SIDA(0,8% em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4 das quais em idade reprodutiva). Na região de Lisboa em cerca de 1% as grávidas são seropositivas para o VIH, situação comparável à de certas regiões de África ao sul do Saará. Nos países industrializados mais de 90% das crianças infectadas com menos de 13 anos adquiriram a infecção por via perinatal. As 10% restantes 397 incluem crianças politransfundidas, sobretudo hemofílicas, com sangue, componentes do sangue ou concentrados de factores da coagulação contaminados. Poucos casos de infecção VIH resultaram de abuso sexual. Nesses países incluindo Portugal actualmente quase todas as novas infecções são adquiridas por transmissão vertical (cerca de 25-40% dos casos ocorrem no decurso da gravidez e, entre 60-75% , durante o parto). Nos adolescentes a transmissão do VIH é atribuída sobretudo a exposição sexual e/ou toxicodependência. No nosso país, segundo dados do Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças Transmissíveis (CVEDT), nos últimos anos o número de casos de infecção neste grupo etário, tem vindo a diminuir. Ao aleitamento materno também é atribuído papel de transmissão(determinadas estatísticas apontando taxas entre 8 e 30%), salientando-se que os maiores índices se verificam durante a infecção aguda da mulher lactante, em relação directa com a duração da amamentação, e com a evidência de patologia mamária acompanhada de eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras). Antes do advento da profilaxia ou tratamento com fármacos antiretrovíricos a taxa de transmissão perinatal do VIH era estimada entre 13% e 39%, sendo na Europa e em Portugal de cerca de 15%. Em relação ao VIH2 a taxa de transmissão estimava-se em menos de 5%. Com a utilização dos antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal diminuiu cerca de 3/4. A determinante materna de maior risco de transmissão do VIH à criança é uma maior carga vírica (infecção recente). Outros factores associados com um risco aumentado de transmissão incluem: número baixo de linfócitos CD4+, doença materna avançada, condições intraparto com aumento da exposição do feto ao sangue materno, inflamação da membrana placentária, parto prematuro, parto prolongado e rotura prolongada de membranas. O aleitamento materno constitui também um risco adicional importante. É possível hoje, tendo em conta os factores de risco mencionadas, diminuir a transmissão vertical do VIH para menos de 2% com intervenções que incluem: utilização antenatal, perinatal e pós- 398 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA natal de fármacos antirretrovíricos (zidovudina, nevirapina, lamivudina); cesariana electiva para evitar contacto com o canal de parto; evicção do aleitamento materno, a ponderar em função de contexto económico e social. Manifestações clínicas A infecção pelo VIH na criança e no adolescente origina um largo espectro de manifestações clínicas e uma evolução variada, representando a SIDA o espectro clínico terminal mais grave. A história natural da infecção pelo VIH caracterizase por um período assintomático (mais curto nas crianças infectadas por via vertical), a que se segue uma fase de doença progressiva, embora com velocidades de progressão diferentes de criança para criança e até na mesma criança, dependendo, entre outros factores, de características do vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, da terapêutica prescrita e da adesão à mesma. A apresentação clínica varia com o grau de imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas, crianças com imunodeficiência ligeira podem apresentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenomegália, parotidite; com imunodeficiência moderada pode haver infecções bacterianas recorrentes, candidíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia intersticial linfóide (LIP), trombocitopénia; manifestações de imunodeficiência grave a muito grave incluem infecções oportunistas (pneumonia por Pneumocystis jiroveci, esofagite por Candida, infecção disseminada por Citomegalovírus, infecções crónicas ou disseminadas por Herpes simplex ou Varicela zoster, infecção por Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium avium complex, enterites crónicas por Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado do desenvolvimento (Wasting Syndrome), encefalopatia, e tumores malignos (raros na criança). De acordo com critérios propostos pelos CDC e AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro formas clínicas agrupando um conjunto de determinados sinais, sintomas e de resultados de exames complementares, a saber: Forma assintomática ou N Nesta forma clínica verifica-se ausência de sintomatologia ou apenas um dos parâmetros da forma clínica seguinte-A. Forma ligeira ou A Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois ou mais dos parâmetros seguintes desde que não se verifique qualquer dos que fazem parte das formas B ou C. Os parâmetros que definem a forma A são: hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfadenopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em duas cadeias ganglionares diferentes). Forma moderada ou B Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb< 8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bacteriana, sépsis ou pneumonia,candidíase oral durando > 2 meses, miocardiopatia,febre > 1 mês, varicela disseminada ou complicada, toxoplasmose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2 episódios anuais de estomatite pelo vírus Herpes simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica, infecção por CMV no RN. Forma grave ou C Para se incluir o caso nesta forma é condição necessária a verificação de qualquer dos parâmetros a seguir mencionados, exceptuando a LIP: infecções bacterianas graves e recorrentes, sistémicas ou localizadas , confirmadas por exame cultural com a frequência de, pelo menos, 2 episódios por ano; encefalopatia persistindo mais de 2 meses, comprovada por exames imagiológicos-TAC,RMN; linfoma; sarcoma de Kaposi; desnutrição grave acompanhada de diarreia crónica, febre de duração superior a 30 dias;toxoplasmose cerebral iniciada após o período neonatal, histoplasmose disseminada, estomatie/esofagite/ pneumonite por HSV em crianças de idade superior a 1 mês e de duração superior a 1 mês; pneumonia por Pneumocystis; infecções disseminadas por micobactérias de diversas espécies; infecções por CMV após o período neonatal; candidíase esofágica ou pulmonar; coccidioidomicose disseminada; criptococose; diarreia crónica por criptosporidíase ou isosporíase. Exames complementares A suspeita de infecção é levantada pelo conhecimen- CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida to de dados epidemiológicos indicadores de exposição provável ao vírus, ou pela existência de sintomas sugestivos de infecção. A precocidade do diagnóstico possibilita a adopção de medidas de profilaxia e terapêutica numa fase de relativo bom estado de imunidade e, deste modo, o prolongamento do período assintomático e a consequente melhoria da qualidade de vida da criança e da família. Como se disse, a infecção pelo VIH na criança nos países desenvolvidos como em Portugal é quase exclusivamente adquirida por via vertical. O primeiro passo é, pois, a identificação da infecção na mãe, pelo que se recomenda a realização de serologia VIH em todas as grávidas, pelo menos no 1º e 3º trimestres (com consentimento informado). O conhecimento da infecção em tempo útil na mãe permite à mulher infectada receber terapêutica antirretrovírica apropriada e profilaxia contra infecções oportunistas, efectuar quimioprofilaxia com antirretrovíricos (zidovudina, nevirapina, lamivudina), programar cesariana electiva para prevenção da transmissão à criança e impedir o aleitamento materno; e no RN iniciar quimioprofilaxia (zidovudina, nevirapina, lamivudina), iniciar profilaxia para o Pneumocystis jiroveci nas crianças expostas e facilitar o diagnóstico precoce de infecção na criança para início de terapêutica antirretrovírica (ver adiante). O diagnóstico é sempre laboratorial (com excepção dos países mais pobres onde se aceita o diagnóstico de SIDA, com base na aplicação dos critérios clínicos e epidemiológicos definidos pela O.M.S), dispondo-se para tal de exames serológicos e virológicos. O diagnóstico de infecção na criança menor de 18 meses pode fazer-se por cultura ou por PCR-DNA. A PCR-DNA, por necessitar de menor quantidade de sangue e pelo facto de os respectivos resultados serem mais rápidos, deve ser o método escolhido. O diagnóstico provável de infecção pelo VIH na criança é feito com um destes testes positivo. Deve ser efectuada uma segunda colheita de imediato. O diagnóstico definitivo é efectuado com dois resultados positivos. Nos filhos de mães seropositivas para o VIH, a PCR-DNA ou o exame cultural, devem ser efectuados às 48 horas, aos 14 dias, entre o 1º e o 2º mês e entre o 4º e o 6º mês. 399 Se os resultados forem negativos, deve realizar-se estudo serológico VIH por ELISA / WB de 3 em 3 meses e, depois, entre o 1 ano de idade e os 18 meses. Para o diagnóstico de infecção na criança maior de 18 meses é suficiente o resultado de serologia positiva (ELISA / WB), podendo também utilizar-se os mesmos critérios aplicáveis à criança menor de 18 meses. A PCR-RNA ou a determinação da “carga vírica” não são, por enquanto, consideradas técnicas recomendadas para o diagnóstico, embora possam ser utilizadas (técnica ultra-sensível com limiar de detecção suficientemente baixo – 20 a 50 cópias). O diagnóstico de infecção pelo VIH pode ser excluído com elevada probabilidade se: 1) dois ou mais exames virológicos forem negativos, desde que efectuados com idade igual ou superior a 1 mês, e um deles, obrigatoriamente, com idade superior a 4 meses, em criança sem evidência clínica de infecção; ou : 2) dois ou mais resultados serológicos negativos para VIH, se a idade for superior a 6 meses, com, pelo menos, um mês de intervalo, em criança sem evidência clínica de infecção. A infecção pelo VIH pode ser definitivamente excluída aos 18 meses se o resultado do estudo serológico for negativo, na ausência de hipogamaglobulinémia, em criança sem evidência clínica de infecção e com resultados de estudos virológicos negativos. A contagem de linfocitos CD4+ por citometria de fluxo constitui uma técnica fundamental para determinar o estádio evolutivo da infecção na idade pediátrica, estabelecer a data de início da terapêutica antirretrovírica, e também a profilaxia das infecções oportunistas. Cabe referir, a propósito, que os valores de referência na criança até aos seis anos de idade são mais elevados do que no adulto; por outro lado, é importante salientar que poderá haver discordância entre ausência ou presença de sintomatologia e ausência ou presença de sinais de imunossupressão. O Quadro 1 discrimina os valores de linfocitos T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos, em relação com o grau de compromisso imunológico. 400 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Valor quantitativo de CD4+ (por mm3 e em % ) Quadro Imunológico < 1 ano 1-5 anos 6-12 anos Normal Alteração moderada Alteração grave > 1500 (>25%) 750-1499 (15-25%) <750 (<15%) > 1000 (> 25%) 500-999 (15-25%) <500 (<15%) >500 (>25%) 200-499 (15-25%) <200 (<15%) Adaptado de ER Stiehm e col, 2004 Tratamento O tratamento da infecção pelo VIH na criança tem-se tornado cada vez mais complexo e a prescrição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por um especialista com experiência nesta área em centros especializados . O controlo eficaz das necessidades de uma criança infectada obriga necessariamente à disponibilidade de uma equipa multidisciplinar incluindo Médico de família, Pediatra, Infecciologista, Enfermeiro, Imunologista, Virologista, Psicólogo, Assistente Social, Farmacêutico e Dietista. Torna-se igualmente necessário proceder à monitorização regular da contagem de linfócitos CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter acesso ao perfil genotípico das resistências aos antirretrovíricos. Há que ter em atenção as características especiais da infecção pelo VIH na criança: na grande maioria das crianças adquire-se o vírus por transmissão perinatal; a transmissão ocorre na grande maioria dos casos em período próximo do parto ou mesmo durante o parto, o que possibilita a terapêutica da infecção primária. Uma vez que a infecção perinatal ocorre durante o desenvolvimento do sistema imunológico, as manifestações clínicas e os marcadores imunológicos e virológicos são diferentes dos do adulto. Há factores a considerar no planeamento de um regime antirretrovírico: disponibilidade; tolerância; eficácia; formulações; perfil de efeitos secundários dos medicamentos, incluindo frequência de administração e seu impacte na escola, família e vida social; interacção com outros medicamentos e alimentos; desenvolvimento de resistência antirretrovírica e planeamento futuro dos subsequentes regimes. Antes de se iniciar a terapêutica é fundamentar esclarecer e formar intensivamente a família, treinando-a na administração dos medicamentos, explicando a importância da adesão e esclarecendo dúvidas. É necessário ainda o seguimento intensivo durante os meses iniciais da terapêutica e a verificação da tolerância. As recomendações para o início da terapêutica antirretrovírica combinada não são ainda absolutamente consensuais e o seu início precoce colhe argumentos e contra-argumentos. São vários os fármacos antirretrovíricos disponíveis para tratamento da criança e adolescente: • Inibidores da Transcriptase Reversa Nucleosidos – ITRN’s – abacavir, didanosina (ddI), lamivudina (3TC), stavudina (d4T), tenofovir, zalcitabina (ddC), zidovudina (ZDV, AZT), ZDV + lamivudina, ZDV + lamivudina + abacavir • Inibidores da Transcriptase Reversa Não Nucleosidos – ITRNN’s – delavirdina (DLV), efavirenz (EFV), nevirapina (NVP) • Inibidores da Protease – IPs – amprenavir, indinavir, nelfinavir, ritonavir, saquinavir, lopinavir + ritonavir • Inibidores da Fusão – enfuvirtide Os regimes mais utilizados na criança para início de tratamento incluem uma associação tripla (2 ITRN + 1 IP ou ITRNN). Em certos casos é necessária uma associação quádrupla (2 ITRN + 2 IP, ou 2 ITRN +1 IP + 1 ITRNN). As associações duplas (2 ITRN) são cada vez menos utilizadas e qualquer monoterapia não é recomendada. A prescrição dos antirretrovíricos deve ser cuidadosamente ponderada tendo em conta todos os factores apontados, pois, para além das repercussões que possa vir a ter na sobrevivência e na qualidade de vida das crianças infectadas, tem custos muito elevados. CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida Prevenção Para a prevenção da transmissão vertical da infecção pelo VIH na criança é importante a adopção das seguintes medidas: rastreio da infecção na grávida; realização de cesariana electiva, sempre que possível; terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido; e evicção do aleitamento materno. Em relação à terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido, o esquema utilizado durante a gravidez deverá ser sempre discutido com a mulher, colocando à sua disposição os conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios da administração dos vários antirretrovíricos. Há que ter em conta os cenários possíveis: • Mulher sem qualquer terapêutica antirretrovírica anterior e sem indicação para terapêutica: quimioprofilaxia com zidovudina recomendada a partir das 14 – 34 semanas de gravidez; considerar a utilização de outros antirretrovíricos. • Mulher sem qualquer terapêutica antirretrovírica anterior e com indicação para terapêutica: terapêutica semelhante à que é instituída em mulher não grávida, mas sempre incluindo zidovudina; o seu início deve ser diferido até às 10 – 12 semanas de gravidez, de acordo com a situação clínica e a opção da mulher. • Mulher sob terapêutica prévia com antirretrovíricos: manutenção da terapêutica se esta estiver a ser eficaz; suspensão da terapêutica até às 10 – 12 semanas de gravidez por decisão da mulher; associar sempre zidovudina se esta não fizer parte do esquema terapêutico, após as 14 semanas. • Mulher que se apresenta em trabalho de parto sem seguimento médico anterior: zidovudina intra-parto e à criança . • Recém-nascido de mãe que não recebeu terapêutica: zidovudina durante 6 semanas iniciada até às 48h após o nascimento: (2mg/kg/dose de 6-6 horas). Pode considerar-se a associação com outros antirretrovíricos). Outros esquemas incluem como antirretrovíricos a nevirapina ou a associação zidovudina + lamivudina. 401 A grávida infectada pelo VIH deve ser seguida em Consulta de Alto Risco, sendo ainda necessário rastrear outras doenças transmissíveis, por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplasmose, hepatite B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia e Chlamydia . A puérpera deve ser encaminhada para uma Consulta de Planeamento Familiar. Para prevenção das infecções secundárias na criança com infecção pelo VIH devem ser instituídas medidas adequadas, as quais constituem um pilar essencial no tratamento das mesmas. A profilaxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela administração de vacinas, imunoglobulinas e antimicrobiano: Vacinas – Aos filhos de mulheres seropositivas, com infecção indeterminada ou infectadas, devem ser administradas todas as vacinas inactivadas de acordo com o actual Programa Nacional de Vacinação. A vacina contra o sarampo, parotidite e rubéola (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem de linfócitos CD4 ≥15% (contraindicada , no entanto, se houver sinais de imunossupressão grave, declínio rápido do número ou percentagem de CD4+ e em crianças com a forma grave de doença). Deve ser administrada, de preferência, aos 12 meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses) se o risco de agravamento da doença e/ou o risco de exposição ao sarampo for elevado. A vacina contra a varicela deve ser considerada em crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥ 25%. A vacina antigripe deve ser administrada no princípio do Outono às crianças com mais de 6 meses de idade e a todos os seus contactos, incluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s). Em relação à vacina antipneumocócica deve efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois. A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres seropositivas deverá ser adiada até que a infecção pelo VIH seja excluída. Imunoglobulinas – A administração regular (mensal) de imunoglobulina inespecífica intra- 402 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA venosa (IGIV) está indicada em situações de hipogamaglobulinémia (IgG < 250mg/dL), ausência de resposta humoral a antigénios comuns (vacinas, por exemplo), infecções bacterianas, graves e recorrentes, e crianças vivendo em área endémica de sarampo e sem resposta a 2 doses de vacina. Tal administração de imunoglobulinas deve também ser considerada em situações pósexposição a hepatite B, tétano, varicela e sarampo. Antimicrobianos – Para a prevenção da pneumocistose utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol(cotrimoxazol), a iniciar pelas 6 semanas de idade na dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habitualmente em dose única diária, trissemanalmente. Esta medicação é interrompida se a infecção for excluída (dois resultados de carga vírica na ausência de sintomatologia e em crianças não amamentadas). Seguimento Dados os problemas habitualmente associados a crianças e famílias com tal patologia ( dificuldade de que se reveste o seguimento destas crianças – e de suas mães – decorrentes da complexidade da patologia, da necessidade de aplicação de esquemas terapêuticos rigorosos e de contextos económicos e sociais habitualmente complicados, o acompanhamento deve ficar a cargo de equipas multidisciplinares experientes e proactivas, possível em consulta própria, de modo a propiciar apoio eficaz, eficiente e efectivo. Chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de promover uma boa articulação com as equipas médicas e de enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, igualmente implicadas nos cuidados a prestar que deverão primar pela qualidade e em espírito de humanização. BIBLIOGRAFIA Abgrall S. Initial strategy for antiretroviral – naive patients.Lancet 2006; 368: 2107-2109 American Academy of Pediatrics. Red Book – Report of the Committee on Infectious Diseases. Elk Grove Village, IL: American Academy of Pediatrics, 2006 Avença AP. Tempo Medicina -Supl ECOS 2006;(1179):2E-3E Bertooli J, HSU HW, Sukalac T, et al. Hospitalization trends among children and youth with perinatal human immunodeficiency vírus infection, 1990-2002. Pediatr Infect Dis 2006; 25: 628-633 Burchett S, Pizzo P. HIV infection in infants, children and adolescents. Pediatr Rev 2003; 24: 186 – 194 Feigin R, Cherry J, Demmler G, Kaplan S. (eds) Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Saunders, 2004 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics.Philadelphia:Saunders Elsevier, 2007 Robertson J, Shilkofski N. The Harriet Lane Handbook. Philadelphia: Elsevier Mosby, 2005 PARTE XIII Oto-rino-laringologia 404 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 71 FARINGITE Carlos Ruah Definições e importância do problema Faringite é um termo geral usado para descrever a inflamação ou infecção da faringe, incluindo o anel de Waldeyer. Nas crianças o termo rinofaringite pode sobrepor-se a adenoidite. Em relação à orofaringe, há autores que falam em faringoamigdalite em vez de faringite. Assim, subentende-se que faringite é uma infecção da orofaringe com ou sem componente inflamatório das amígdalas palatinas. Se este componente é predominante e domina o quadro clínico, fala-se em amigdalite. As faringites podem ser divididas em agudas e crónicas O estabelecimento da flora normal da faringe inicia-se logo após o nascimento, sendo a mesma colonizada por lactobacilos e estreptococos anaeróbios. Aos 6 meses de idade já se encontram actinomicetas, fusobactérias e bacteróides. As fusobactérias atingem o auge com a dentição e ao ano de idade, com uma relação da flora saprófita aeróbia e anaeróbia de 1/10. O Streptococcus do grupo A é um habitante normal da nasofaringe em 15-20% das crianças. Colheitas feitas em crianças assintomáticas demonstraram que, para além da flora saprófita, podem existir Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus betahemolítico do grupo A, Moraxella catarrhalis e Staphylococcus aureus. 1. Faringite Aguda Etiopatogénese As formas agudas ocorrem sobretudo na época invernal e são frequentemente víricas, incluindo os adenovírus, rinovirus, influenza, parainfluenza e o vírus sincicial respiratório. As formas bacteria- nas instalam-se sobre as víricas ou ocorrem primariamente, sendo habitualmente causadas por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Moraxella catarrhalis. De todas as bactérias a mais frequente é o Streptococcus beta-hemolítico do grupo A pelo que convém relembrar algumas noções básicas sobre Streptococcus: 1) É uma bactéria gram positiva, classificada em 18 grupos (de Lancefield) designados por uma letra maiúscula, consoante o componente de hidrato de carbono antigénico da sua parede celular; 2) Ainda são classificados consoante a capacidade de hemolisar eritrócitos de carneiro: o beta-hemolítico causa hemólise, o alfahemolítico causa hemólise parcial e o gama-hemolítico não causa hemólise; 3) A patogenicidade da bactéria é dada pela proteína M com 80 serotipos; a mesma é responsável pela resistência bacteriana à fagocitose; 4) A existência no hospedeiro, de uma IgG anti-proteína M específica a um dos serotipos, confere imunidade contra esse estreptococo; 5) Produz cerca de 20 exotoxinas das quais 2 são importantes: a estreptolisina 0, antigénica, e a estreptolisina S que não é antigénica; 6) Ainda produz 3 endotoxinas eritrogénicas. 7) Não se isolaram até hoje estreptococos resistentes à penicilina; no entanto já foram obtidos em laboratório, verificando-se que todos eles têm ausência de proteína M (portanto, fagocitáveis). A faringite também pode ser provocada por fungos, sobretudo Candida, em crianças submetidas a tratamento frequente com antibióticos ou imunocomprometidas. Manifestações clínicas As infecções víricas produzem odinofagia com febrícula, sensação de secura, irritação faríngea com pigarro que se pode estender à árvore laringo-tráqueo-brônquica com tosse, inicialmente seca, e depois com expectoração. A faringe apresenta-se ligeiramente vermelha: habitualmente tais infecções não se acompanham de adenopatias. As infecções bacterianas produzem habitualmente dor mais intensa, febre alta, odinofagia intensa, mal estar geral e, por vezes, dor abdominal. A faringe apresenta-se mais vermelha, por vezes com exsudado que pode fluir da nasofa- CAPÍTULO 72 Amigdalite ringe; nestas situações as adenopatias cervicais são frequentes. Tratamento As formas víricas tratam-se com repouso, hidratação , analgésicos, antipiréticos e dieta adequada à odinofagia. As formas bacterianas obrigam a antibioticoterapia: 1) amoxicilina na dose de 50 mg/kg/dia dividida em 2-3 doses, durante 7-10 dias; ou 2) penincilina G benzatínica na dose de 50.000 unidades/kg via intramuscular (máxima dose: 1.200.000 U); em regra 600.000 U se a criança tiver menos de 15 kg e 1.200.000 U se mais de 15 kg; ou como alternativa se houver alergia à penicilina, 3) cefalosporinas de primeira geração como cefradina (50 mg/kg/dia em 3 tomas) ou cefadroxil (30 mg/kg/dia em 2 tomas), durante 7-10 dias. No caso de alergia à penicilina ou cefalosporinas devem utilizar-se macrólidos (por ex. eritromicina, 40-50 mg/kg/dia em 3 tomas e 10 dias ou claritronicina, 15 mg/kg/dia em 2 tomas e 10 dias, ou azitromicina, 20 mg/kg/dia em 1 toma em 3 dias). 2. Faringite crónica Enquanto a faringite aguda é mais frequente nas crianças, a crónica é rara devido à ausência de factores de cronicidade tais como agressões profissionais, álcool, tabaco, e ressonar do adulto com consequente secura faríngea. BIBLIOGRAFIA (em conjunto com o capítulo 78). 405 72 AMIGDALITE Carlos Ruah Definição e classificação Este termo refere-se vulgarmente à infecção das amígdalas palatinas, apesar de o mesmo processo poder ocorrer nas amígdalas linguais e adenóides (adenoidites) ou nos cordões linfóides da faringe. A amigdalite pode dividir-se em aguda, recidivante e crónica. 1. Amigdalite aguda Etiologia A amigdalite é provocada pelos mesmos germes descritos na faringite aguda. A amigdalite, no entanto, tem habitualmente uma etiologia vírica até aos 3 anos de idade e uma predominância bacteriana dos 5 aos 15 anos. O Streptococcus betahemolítico do grupo A está presente em cerca de 5% dos casos em crianças mais pequenas, verificandose as maiores incidências entre os 5-8 anos e entre os 12-14 anos. Sistematizando, as amigdalites agudas podem ser divididas duma forma empírica em: 1) Não específicas, que constituem a maioria dos casos e são provocadas por bactérias e vírus comuns; e 2) Específicas as quais incluem essencialmente a angina de Vincent, a diftérica, do sarampo, escarlatina, difteria, herpética, herpangina e da mononucleose (vírus de Epstein - Barr/VEB). Manifestações clínicas A maioria das amigdalites víricas origina sintomas ligeiros de odinofagia e febrícula que desaparecem ao fim de uns dias. A favor duma etiologia vírica são a existência de rinofaringite associada, de envolvimento da árvore laringo-tráqueo- 406 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA brônquica, de adenomegálias cervicais difusas e pouco exuberantes, de sinais gerais menos intensos e de fórmula leucocitária normal ou evidenciando ligeira leucocitose com linfocitose. Destas, salientam-se: a) Herpangina (coxsackievirus A) em que aparecem pequenas vesículas nos pilares amigdalinos e palato mole; rebentando dão origem a ulcerações redondas de fundo cinzento. Acompanham-se de, intensa odinofagia, febre alta e não de adenomegálias. b) Mononucleose infecciosa (vírus de EpsteinBarr); trata-se de uma doença sistémica que origina amigdalite pseudomembranosa ou ulceronecrótica com grande astenia, febre alta, múltiplas adenopatias e hepatoesplenomegália. O leucograma mostra linfocitose e monocitose. O diagnóstico é confirmado por provas serológicas, salientandose: detecção qualitativa de anticorpos heterófilos (Paul Bunnell); detecção de anticorpos específicos VEB IgG-VCA e IgM-VCA (Viral Capsid Antigen). Nas amigdalites bacterianas as adenopatias são mais confinadas às regiões jugulo-digástricas, os sinais gerais mais exuberantes e a fórmula leucocitária apresenta leucocitose com neutrofilia. Destas destacam-se: a) Angina de Vincent. Habitualmente unilateral, ocorre em crianças com má nutrição e má higiene oral, sendo causada por uma associação fuso-espiralar e anaérobia. b) Escarlatina. Causada pelo Streptococcus betahemolítico do grupo A, tem um início abrupto, com febre alta, taquicárdia desproporcionada à febre, vómitos e uma amigdalite eritematosa. A erupção eritemato-papular aparece 24 horas depois nos ombros e tórax e estende-se a todo o corpo acentuando-se nas pregas de pele, poupando a planta dos pés, a palma das mãos e face. Ao 6º dia a erupção melhora e dá lugar a uma descamação cutânea que pode durar até 6 semanas. O exantema relaciona-se com a produção duma toxina eritrogénica cuja reacção à injecção intradérmica diluída (teste de Dick) confirma o diagnóstico. A observação permite distinguir 4 tipos de amigdalites: 1) Eritemato-pultáceas em que as amígdalas se apresentam vermelhas com ou sem exsudado esbranquiçado. Podem ser causadas por bactérias ou vírus, sendo impossível distinguir a sua etiologia, somente pelo aspecto das amígdalas (Figura 1). 2) Úlcero-necróticas em que a amígdala se apresenta com úlceras de fundo sujo e exsudado purulento. Se unilateral, há que admitir angina de Vincent (associação fuso-espiralar). Se bilateral, há que admitir mononucleose (vírus de Epstein-Barr) ou hemopatias como a agranulocitose e a leucemia. 3) Vesiculosas como acontece na herpangina. 4) Pseudomembranosas, caracterizadas pelo aparecimento de pseudomembranas de fibrina sobre as amígdalas; podem ser causadas por agentes etiológicos bacterianos comuns e pelo vírus de Epstein-Barr (Figura 2). Diagnóstico É realizado através da anamnese e observação do doente. Os exames complementares servem para o diagnóstico etiológico e incluem a colheita de exsudado faríngeo e amigdalino para exame cultural, a fórmula leucocitária, as transaminases (na hipótese de mononucleose), e exames que permitem o diagnóstico rápido do Streptococcus beta hemolítico com a detecção do poliósido C da superfície da bactéria (antigénio). Uma vez que número significativo de bactérias se localizada nas criptas amigdalinas, um exsudado com resultado negativo não exclui a presença FIG. 1 FIG. 2 Amigdalite eritemato – pultácea (isolamento de Streptococcus A. (NIHDE) Amigdalite pseudomembranosa (mononucleose infecciosa). (NIHDE) CAPÍTULO 72 Amigdalite duma bactéria patogénica localizada na superfície da amígdala. A medição do título de anti-estreptolisinas O (TASO) é útil apenas quando combinada com a colheita do exsudado faringo-amigdalino. Se o TASO está elevado e a colheita é positiva, está-se na presença da doença. Se o TASO é normal e a colheita é positiva pode tratar-se dum portador são. Notas importantes: a) O valor do TASO não deve constituir, só por si, critério para tratamento antimicrobiano e não constitui rotina a sua determinação; b) Os exames bacteriológicos ou detecção de antigénios apenas estão indicados em situações em que: o exsudado possa levantar dúvidas quanto à etiologia estreptocócica; haja antecedentes de amigdalites de repetição ou, nos contactos, antecedentes de febre reumática, glomérulo – nefrite aguda ou síndroma de choque tóxico por Streptococcus. Tratamento 1) Amigdalites víricas. São tratadas sintomaticamente com análgésicos, antipiréticos e regime alimentar adaptado à odinofagia. 2) Amigdalites bacterianas. A penicilina continua a ser o tratamento de escolha uma vez que o Streptococcus beta-hemolítico do grupo A é sensível a este antibiótico. Em regra usa-se a penicilina G benzatínica por via intramuscular em dose única (600.000 U se menos de 15kg, 1.200.000 U se mais de 15kg). Como alternativa podem utilizar-se formulações do mercado na proporção de 6/3/3, respectivamente para penicilina G benzatínica, penicilina G procaínica e penicilina G aquosa. A falência do tratamento com a penicilina pode indicar a comparticipação duma bactéria produtora de beta-lactamase ou de flora mista predominantemente anaeróbia. Segundo as mais recentes recomendações da Academia Americana de ORL (2007), o tratamento com um antibiótico resistente à beta-lactamase é preferível à penicilina. Dum modo geral poderão ser aplicados os princípios de antibioticoterapia descritos a propósito da faringite bacteriana. De referir que o período de contagiosidade cessa após 24 horas do início do tratamento antimicrobiano. 3) Angina de Vincent. O tratamento consiste em lavar a boca com 407 uma solução de água oxigenada e soro fisiológio para além da administração de penicilina G e metronidazol; como alternativa poderão ser utilizados, amoxicilina / clavulanato, macrólido ou doxiciclina. 4) Escarlatina. Especificamente, no que respeita à amigdalite no contexto de escarlatina, aplicam-se os princípios já enunciados a propósito da faringite aguda bacteriana. (capítulo 278) Complicações Poderão surgir as seguintes complicações: 1) Celulite e abcesso periamigdalino: verificase na extensão progressiva da infecção da amígdala para os tecidos moles periamigdalinos (celulite) a partir do polo superior da amígdala ou para o espaço periamigdalino com acumulação localizada de pus (abcesso). Em ambos os casos o tratamento deve ser parentérico, aplicando-se os princípios clássicos para o tratamento da celulite da face. Estando em causa o Haemophilus influenzae do tipo B, S. aureus ou S. pyogenes (grupo A), os antibióticos de escolha são a cefuroxima, ou a amoxicilina/clavulanato; como alternativa, cefalosporina de terceira geração. No caso do abcesso está indicada a drenagem.(ver parte Infecciologia) 2) Abcessos parafaríngeos e retrofaríngeos: ocorrem pela extensão da infecção através do músculo constritor superior da farínge. O tratamento é semelhante ao anterior 3) Adenite cervical supurada: consiste na persistência dum gânglio cervical aumentado e abcedado, podendo ter como agentes etiológicos o Staphylococcus aureus ou o Streptococcus beta-hemolítico. O tratamento consiste em antibioticoterapia parentérica contra estes dois agentes e a drenagem do abcesso se necessário. Tratando-se de S aureus: flucloxacilina; se Streptococcus: penicilina. Como alternativas: cefalosporina de 1ª geração ou clindamicina. 4) Glomerulonefrite e febre reumática: podem ocorrer 1 a 3 semanas após a amigdalite por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A. O risco de aparecer febre reumática é de 0,3% numa situação endémica, mas aumenta para 3% numa situação epidémica. Um episódio de febre reumática põe a criança em risco de recorrência após anterior episódio de amigdalite ou faringite estreptocócica. 408 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 5) Recentemente foram descritos os primeiros casos duma doença neuropsiquiátrica autoimune em crianças, após infecção por Streptococcus betahemolítico. A patogenia parece ser semelhante à da coreia de Sydenham sendo aquela designada pela sigla PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections). 6) Síndroma de Lemierre: consiste na associação de amigdalite, tromboflebite da veia jugular interna, múltiplos abcessos metastáticos sobretudo no pulmão, articulações e ossos, septicémia por Fusobacterium necrophorum (gram-negativo, anaeróbio, habitualmente saprófita da faringe). O tratamento consiste no internamento e na administração de antibiótico resistente às beta-lactamases e metronidazol durante 6 semanas 7) Fascite necrosante: pode ocorrer em relação, quer com o Streptococcus beta hemolítico quer com o Staphylococcus aureus, a partir duma amigdalite. 2. Amigdalite recidivante A definição de amigdalite recidivante varia com os autores. Dum modo geral define-se com base na verificação de 3 episódios por ano em 3 anos consecutivos, 5 episódios por ano em 2 anos consecutivos, ou mais de 6 episódios num ano. As causas das recidivas incluem a modificação do equilíbrio ecológico entre as bactérias saprófitas e as patogénicas, a fibrose progressiva da amígdala que dificulta a penetração antibiótica, aparecimento de estirpes produtoras de beta-lactamases, o não cumprimento correcto da terapêutica, e a constante reinfecção por indivíduos próximos que são portadores sãos. O tratamento consiste na utilização de antibióticos que atinjam as estruturas mais profundas das amígdalas fibrosadas (clindamicina ou cefalosporinas), na detecção e tratamento dos portadores sãos próximos do doente, na imunoestimulação e na amigdalectomia. 3. Amigdalite crónica Ocorre sobretudo em crianças mais velhas e adultos. Existe odinofagia, habitualmente sem febre, com ou sem rubor das amígdalas e pilares. As amígdalas são habitualmente mais duras à pal- pação e a sua expressão liberta caseum amigdalino, uma mistura de alimentos retidos e pus, que dá mau hálito. Habitualmente não existem adenopatias. As colheitas de exsudado amigdalino permitem habitualmente o isolamento de flora mista aeróbia-anaeróbia. O tratamento consiste na amigdalectomia. BIBLIOGRAFIA (Em conjunto com o capítulo 78). CAPÍTULO 73 Adenoidite 73 ADENOIDITE Carlos Ruah 409 O tratamento sintomático consiste na aspiração de secreções, administração de analgésicos, antipiréticos e anti-histaminicos se houver confirmação de que a criança tem antecedentes de atopia. A adenoidectomia é indicada nos casos recidivantes, nos que se acompanham de grande obstrução nasal, e nas formas complicadas: otite aguda de repetição, otite média com derrame persistente, ou associadas a complicações do tracto respiratório inferior. Definição e classificação 2. Adenoidite crónica Adenoidite é o processo inflamatório localizado nas vegetações adenóides; classicamente são consideradas duas formas clínicas: adenoidite aguda e adenoidite crónica. Ocorre em crianças sujeitas a um regime de vida que as expõe a agressões ambientais e infecciosas (creches, infantários, exposição frequente a lareiras, pais que fumam em casa), com antecedentes de atopia, ou com hipertrofia adenoideia. Tais crianças têm uma rinorreia anterior e posterior persistente que vai da hidrorreia ao exsudado francamente purulento; são frequentes os episódios febris e a roncopatia. O tratamento consiste no afastamento dos factores agressivos, limpeza nasal com soro fisiológico ou “água do mar” tratada e antialérgicos se indicado. A colheita do exsudado nasofaríngeo evitando a contaminação cutânea à passagem do estilete é útil, demonstrando, muitas vezes, a presença de mais de uma bactéria patogénica. A adenoidectomia tem indicação na presença de complicações nos órgãos vizinhos (otites, sinusites persistentes ou laringo-tráqueo-bronquites), ou de obstrução nasal persistente. 1. Adenoidite aguda O quadro clínico de adenoidite aguda é sobreponível ao da rinofaringite. Ocorre predominantemente em crianças dos 6 meses aos 8 anos sendo causada em 15 a 70% dos casos por vírus (rino-, adeno-, mixo-, e enterovírus e, nas muito jovens, por virus sincicial respiratório). Nas formas bacterianas, os agentes mais frequentes são Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e Moraxella catarrhalis. As manifestações clínicas compreendem febre alta que, inicialmente, pode ser inexplicável até aparecer uma rinorreia posterior branca a esverdeada, obstrução nasal por hipertrofia adenoideia e rinorreia anterior. A infecção pode estender-se ao ouvido médio (dando origem a otite média aguda ou com derrame), à faringe e à árvore laringo-tráqueo-brônquica. O exame objectivo apenas detecta a presença da rinorreia anterior e posterior ou de otite, não sendo possível observar a nasofaringe em crianças senão com a endoscopia. A radiografia de perfil do cavum não proporciona qualquer informação válida nestes casos. A antibioticoterapia de primeira escolha compreende amoxicilina/clavulanato ou macrólido azitromicina; como alternativa: cefalosporina de 2ª geração. A duração da terapêutica antibiótica é 7-10 dias (sendo de 3 dias para a azitromicina). BIBLIOGRAFIA (Em conjunto com o capítulo 78). 410 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 74 RINO – SINUSITE Vital Calado Definição e importância do problema Rinite (termo sinónimo de coriza) é definida como a inflamação aguda ou crónica das fossas nasais a qual origina como sinais predominantes rinorreia e obstrução nasal. A rino-sinusite é um processo de inflamação da mucosa naso-sinusal. Pode ser classificada de acordo com a sua evolução temporal e a intensidade dos sintomas, em aguda, subaguda, crónica ou recorrente. A rino-sinusite aguda caracteriza-se por sinais e sintomas de infecção aguda das vias respiratórias superiores, que duram mais do que 10 dias e menos do que três semanas. Na sinusite crónica os sintomas persistem por mais de três meses, enquanto na subaguda duram entre 3 semanas a três meses. É importante referir, a propósito, que o nariz e os seios perinasais são revestidos por um epitélio ciliado pseudo-estratificado. Tendo em conta que existe uma identidade anatómica e funcional entre a mucosa nasal e a sinusal e que ambas estão em continuidade, a inflamação sumultânea destas mucosas é muito frequente, razão pela qual é preferível a designação de rino-sinusite. Portanto, relativamente ao termo sinusite há que ter presente este conceito. Os agentes patogénicos infecciosos mais frequentemente associados a rinite são os rinovírus. Na sinusite predominam as bactérias. Neste capítulo é abordada a sinusite de causa infecciosa bacteriana. Etiopatogénese Na situação sinusite aguda, as principais bactérias patogénicas que têm sido isoladas, quer por co- lheita do meato médio, que por punção sinusal são: S. pneumoniae, H. influenzae, Moraxella catarrhalis, S. aureus e Streptococcus pyogenes. Na sinusite crónica, predominam os Streptococcus aneróbios, os Bacteróides sp e os Fusobacterium sp. A integridade da mucosa naso-sinusal, assim como o bom funcionamento dos mecanismos de transporte mucociliar, são essenciais para a manutenção de uma fisiologia normal. Todos os factores que alteram a composição da camada do muco ou o funcionamento dos cílios favorecem a infecção. É importante também que a ventilação e a drenagem dos seios sejam adequadas e que os orifícios de drenagem estejam funcionantes. A unidade ostiomeatal constitui a zona chave de toda a fisiologia dos seios: é o espaço para onde drenam os seios frontais, os seios etmoidais anteriores e os maxilares. Corresponde a uma zona complexa e bastante estreita nas crianças, que pode facilmente ser obstruída por edema inflamatório da mucosa, secreções espessas, pólipos, ou alterações anatómicas. A obstrução dos ostia produz dificuldades de ventilação e drenagem dos seios, retenção de secreções e pressão negativa intra-sinusal que facilita a aspiração de bactérias patogénicas para dentro dos seios com consequente infecção. A sinusite aguda é muitas vezes precedida de uma infecção por vírus, que prepara o terreno para a infecção bacteriana. Na sinusite crónica ou na recorrente predominam os factores gerais ou as anomalias locais. Os seios mais afectados são, por ordem decrescente, os maxilares, os etmoidais e os esfenoidais. Os seios frontais só são afectados a partir dos 7 anos. Muitas vezes há um processo de poli ou de pansinusite. Factores de risco Os factores de risco de sinusite são semelhantes aos factores de risco de otite. Deve referir-se que as infecções por vírus das vias aéreas superiores, tais como metapneumovírus, rinovírus, influenzae, parainfluenzae, sincicial respiratório e adenovírus, constituem importantes factores de risco, tanto de sinusite aguda como de crónica ou recorrente. CAPÍTULO 74 Rino – Sinusite Também outras doenças sistémicas como a fibrose quística, a síndroma de cílio imóvel, a síndroma de Down e os estados de imunodeficiência constituem importantes factores de risco. A rinite alérgica, a asma e a sinusite estão intimamente associadas. A poluição, o fumo passivo, a exposição a lareiras e a inalação de irritantes contribuem também para a eclosão ou manutenção da sinusite. Como factores locais são de salientar os pólipos nasais, os corpos estranhos, os desvios do septo nasal, as anomalias anatómicas do meato médio, os traumatismos, as infecções das amígdalas e das adenóides. Salienta-se que cerca de 14% das crianças com sinusite crónica têm deficiência de IgA, de IgG ou subclasses, sindroma de cílio imóvel ou mucoviscidose. O refluxo gastro-esofágico está muitas vezes presente nas sinusites crónicas ou resistentes ao tratamento médico. Manifestações clínicas Na sinusite aguda os sintomas são idênticos aos de uma infecção aguda por vírus das vias aéreas superiores: obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, febre, mal estar de expressão facial, e tosse. Pode ser difícil o diagnóstico diferencial quer com a rinite por vírus, quer com a rinite alérgica. Se os sintomas forem mais marcados do que um simples resfriado (febre alta, edema periorbitário), durarem mais de 10 dias ou se se agravarem alguns dias após o início, é provável que o diagnóstico seja de rino-sinusite aguda bacteriana. Na sinusite crónica existe obstrução nasal, rinorreia purulenta anterior e posterior, tosse persistente, mau hálito e dor faríngea. Muitas vezes verifica-se otite sero-mucosa acompanhante. A dor de expressão facial franca é rara na criança. Os sintomas persistem por mais de 3 meses. Pode ser realizada com um otoscópio e espéculo auricular: permite verificar o estado da mucosa, a existência de secreções , corpos estranhos, pólipos, a permeabilidade nasal e alterações do septo e dos cornetos. A aplicação local de um vasoconstritor facilita o exame. Maior valor tem a endoscopia nasal com o endoscópio de Hopkins ou fibroscópio que, feita por especialista treinado, permite observar toda a fossa nasal, o meato médio, determinar a origem da rinorreia purulenta, colher secreções para exame bacteriológico, tecidos ou células para exame histológico, e verificar a importância do volume das adenóides. O estudo radiológico dos seios perinasais , nas posições de Waters, Hirtz e perfil deve ser valorizado de acordo com o contexto clínico, dado que existem muitos resultados falsos positivos. Podem encontrar-se níveis hidro-aéreos ou opacificação total dos seios. O edema da mucosa só tem significado se for superior a 4 mm. A radiografia do cavum (Figura 1) é útil para o estudo das adenóides e seio esfenoidal. A tomografia computadorizada, sobretudo no plano coronal, é mais esclarecedora. Deve ser reservada para o estudo das complicações das sinusites, sinusites crónicas (Figura 2) , tumores e para ajuda ao planeamento operatório. A ressonância magnética nuclear (RMN) tem inte- Diagnóstico É essencialmente clínico. A anamnese é muito importante. Já foram referidos os principais sintomas. A rinoscopia anterior é dificil de realizar nas crianças, dadas as reduzidas dimensões das fossas nasais e a resistência que oferece tal exame. 411 FIG. 1 Radiografia do cavum de perfil revelando sinais de hipertrofia das adenóides. 412 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 2 TAC dos seios perinasais, no plano coronal. Opacificação dos seios revelando um extenso processo de polissinusite. resse no diagnóstico de certas sinusites fúngicas, nas complicações orbitárias e endocranianas, e na avaliação da extensão local dos tumores. Tratamento O tratamento médico tem por objectivo erradicar a infecção, restabelecer a permeabilidade ostial e o mecanismo de transporte mucociliar, por forma a promover boa ventilação e drenagem dos seios. O tratamento com antibióticos é muitas vezes empírico. Deve ter em conta a prevalência bacteriana para a região e as resistências conhecidas. Devido ao uso e abuso da prescrição de antibióticos quer a resistência do pneumococo à penicilina, quer a do Haemophilus (30%) e a da Moraxella (70%) aos beta-lactâmicos, têm vindo a aumentar de forma continuada. Na sinusite aguda os antibióticos de eleição são: a amoxicilina/clavulanato utilizando a dose máxima de amoxicilina e a formulação de 7: 1; ou a cefuroxima. Como alternativas: azitromicina ou claritromicina. O tratamento deve ter a duração de cerca de duas semanas; a azitromicina utiliza-se durante 35 dias. Não havendo melhoria clínica procede-se a colheita de pus para exame bacteriológico com TSA (teste de sensibilidade aos antibióticos), e a eventual mudança de antibiótico até conhecimento do resultado daquele. Nas complicações das sinusites, quer orbitárias, quer intracranianas, devem usar-se antibióti- cos de largo espectro, em doses elevadas e por via endovenosa. A colheita do pus (no meato médio ou por punção sinusal) é fundamental na tentativa de isolamento da bactéria responsável e determinação da sua sensibilidade aos antibióticos. Na sinusite crónica o tratamento é idêntico, mas deve ser prescrito para um período mínimo de 4 semanas. Os antibióticos de eleição são a amoxicilina/clavulanato ou a clindamicina; como alternativa, a penicilina. Haverá igualmente que tratar eventuais alergias, deficiências imunológicas, mucoviscidose e o refluxo gastro-esofágico. As lavagens nasais com soro e os corticosteróides tópicos têm um papel importante no tratamento da sinusite. Os antialérgicos só devem ser usados se se demonstrar alergia. O tratamento cirúrgico deve ser encarado com grandes reservas. Está indicado nos casos graves, nalgumas complicações ou em situações de falência de tratamento médico, em crianças com mais de 12 anos. Consiste numa cirurgia endoscópica ou, microscópica funcional. As lesões a excisar são mínimas. O que importa é permeabilizar os orifícios e drenar os seios. Outras indicações são a imperfuração coanal, a polipose nasal ( mucoviscidose ) ou os mucocelos. A adenoidectomia pode ser ponderada face ao contexto clínico. Prognóstico A maior parte das sinusites agudas cura com tratamento médico. No entanto, alguns casos, agudos ou crónicos, podem originar complicações graves, quer sejam locais (como o mucocelo, o mucopiocelo ou a osteomielite), orbitárias (como a celulite periorbitária, a celulite orbitária, o abcesso orbitário) e a tromboflebite do seio cavernoso; ou endocranianas como a meningite, o abcesso epidural, o empiema subdural e o abcesso cerebral. Muitas destas situações devem ser tratadas em meio hospitalar, com antibióticos adequados, por via endovenosa e em altas doses, com vigilância rigorosa e, eventualmente, com recurso à cirurgia. Prevenção Há que ter em atenção os factores de risco já referi- CAPÍTULO 75 Otite média aguda dos e tratar correctamente as situações agudas ou recorrentes para evitar complicações ou a cronicidade. BIBLIOGRAFIA Calado V, Monteiro L. Rinite alérgica e rino-sinusite na criança in Rosado Pinto J, Morais Almeida M. A Criança Asmática 413 75 OTITE MÉDIA AGUDA no Mundo da Alergia. Lisboa: Euromédice, 2003. Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Vital Calado Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Piccirillo JF. Acute bacterial sinusitis. NEJM 2004, 351: 902-910 Steele RW. Rhinosinusitis in children. Curr Allergy Asthma Definição e importância do problema Rep 2006; 6: 508-512 A otite média aguda (OMA) pode ser definida como uma infecção aguda da mucosa do ouvido médio, de instalação súbita, acompanhando-se de sinais e sintomas tais como otalgia e febre. A OMA tem sido considerada como a forma supurada da otite média. É uma doença com elevada prevalência em idade pediátrica, sobretudo entre os 6 e os 11 meses de idade, decrescendo à medida que a idade avança. Por volta dos três anos de idade cerca de 45% das crianças terão tido já 3 ou mais episódios de otite. Fala-se em otite recorrente quando ocorrem pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou 4 ou mais num ano. Os gastos anuais em actos médicos e tratamentos antimicrobianos são consideráveis e representam um pesado encargo para os Serviços de Saúde. Etiopatogénese As principais bactérias causadoras de OMA, evidenciadas por culturas obtidas por timpanocentese, são o S. pneumoniae (35 a 50 %),que é o mais prevalente em todas as idades, o H. Influenzae (20 a 30 %) e a Moraxella catarrhalis (10 a 20%). Outros agentes isolados incluem S. pyogenes, S. aureus, Mycoplasma pneumoniae e bactérias Gram-negativas como E. coli, P. aeruginosa, e Klebsiella. No recémnascido têm sido isolados o S. aureus, o Streptococcus B e Enterobactérias Gram-negativas. Os vírus podem ser isolados em cerca de 10 a 20% dos exsudados do ouvido médio. A disfunção da trompa de Eustáquio desempenha um papel central na eclosão da otite. Poderá resultar de uma agressão vírica que conduz a obstrução da trompa 414 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA por congestão da mucosa ou por existirem factores anatómicos ou fisiológicos desfavoráveis. Como consequência surge um défice de ventilação do ouvido médio. A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma pressão negativa que contribui para a aspiração, através da trompa, dos germes patogénicos que colonizam o cavum faríngeo, com localização especial nas adenóides. O facto de a trompa de Eustáquio nas crianças ser mais curta, mais horizontal e flácida do que no adulto, favorece também o refluxo das secreções infectadas para o ouvido médio. Em certos casos a infecção pode fazer-se por via hematogénica ou através de perfuração do tímpano. A otite média aguda predomina nos meses frios, quando as infecções por vírus das vias aéreas superiores são mais frequentes. Os vírus constituem um factor predisponente para a infecção bacteriana. Os que têm maior importância são os rinovírus, o vírus sincicial respiratório, o influenzae e o adenovírus. Factores de risco A idade constitui um factor de risco de OMA. Quanto mais precoce for a otite maiores são as possibilidades de recorrência. Um primeiro episódio de otite antes dos seis meses constitui factor de mau prognóstico. Outros factores de risco incluem alergia, défices imunitários, fenda palatina, anomalias crânio-faciais, síndroma de Down, factores genéticos e frequência de infantários, sobretudo os superlotados e funcionando em condições precárias de higiene. Também o fumo passivo, a exposição a lareiras, a não alimentação com leite materno, o baixo nível socioeconómico e uso de chupeta parecem favorecer a infecção. dade e os sintomas gastrintestinais. A dor expressa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa alimentar. Se a doença progredir, há aumento da pressão do pus no ouvido médio, o tímpano pode perfurar e iniciar-se um período de otorreia. Com a saída do pus a dor acalma e os sintomas gerais atenuam-se. A cura ocorre naturalmente, ou pela acção medicamentosa. Diagnóstico O diagnóstico, nem sempre fácil, baseia-se na anamnese, no exame objectivo e nos exames complementares de diagnóstico. A otoscopia é essencial. Deve ser feita com a criança confortavelmente sentada ao colo da mãe, bem imobilizada e com otoscópio de luz de halogénio. O ideal será usar o espéculo pneumático de Siegle para testar a mobilidade do tímpano. O canal externo deve ser limpo de detritos e de cerúmen. O espéculo deve ter um diâmetro apropriado ao conduto e não deve ser introduzido profundamente para não lesar a fina pele do canal. Na OMA podemos observar, de acordo com a evolução da doença, hiperémia difusa do tímpano e cabo do martelo (Figura 1), hiperémia radiária, edema e perda de caracteres, hiperémia e abaulamento da membrana, traduzindo exsudado sob pressão dentro da caixa, ou perfuração com saída de pus. A valorização dos dados otoscópicos é difícil, sobretudo Manifestações clínicas Os sintomas variam conforme a fase da doença e a idade do doente. O sintoma mais específico da OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada, hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com infecções por vírus do tracto respiratório superior, poderá haver obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, e tosse. Nos lactentes predomina a febre, a irritabili- FIG. 1 Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia). CAPÍTULO 75 Otite média aguda nos lactentes. A avaliação das lesões e a sua interpretação requerem muita prática e análise crítica. A comprovação da presença de líquido no ouvido médio, pela timpanometria ou com o espéculo pneumático, confirma o diagnóstico de OMA, quando integrada num quadro agudo. Em caso de dúvida a criança deve ser enviada para avaliação por especialista de Otorrinolaringologia que, com o auxílio da aspiração e da observação otomicroscópica, estará mais apto para obter uma maior precisão diagnóstica e aconselhar a terapêutica mais adequada. Tratamento Em cerca de 70 a 80% dos casos de otite média aguda verifica-se a cura sem tratamento, ao fim de 3 a 4 dias.Com base nesta evidência há países, como a Holanda, em que alguns autores preconizam só tratar com antibióticos as crianças com menos de 2 anos, unicamente por receio de complicações neste grupo etário. Nos restantes grupos etários os mesmos autores prescrevem tratamento sintomático, usando antibióticos apenas se a evolução for desfavorável. No entanto, na maior parte dos países, por razões de segurança, não é seguida esta norma e os antibióticos são prescritos na maioria das otites agudas adquiridas na comunidade. Como primeira linha de actuação, há a referir o analgésico (paracetamol) e a necessidade de manter a permeabilidade nasal (aspiração cuidadosa de secreções e instilação de soro fisiológico). A escolha empírica do antibiótico deve ter em conta a idade da criança, as resistências locais conhecidas, a existência de recorrências e eventuais alergias conhecidas aos fármacos. A amoxicilina (80-90 mg/ Kg/dia de 12-12h durante 5 dias) continua a ser o antibiótico preferido no tratamento do primeiro episódio de otite aguda ou na otite ocasional. No caso das crianças que frequentam infantários, têm otites recorrentes ou outros factores de risco significativos, é preferível usar logo de início a associação amoxicilina /ácido clavulânico, na relação ponderal de 7/1 dada a existência, muito provável, de estirpes resistentes produtoras de beta- lactamases. Na prática utiliza-se a dose de amoxicilina de 80 mg/kg/dia na suspensão oral (400 mg de 415 amoxicilina/57 mg de ácido clavulânico em 5 ml) O tratamento é prescrito para 8 a 10 dias. A reavaliação é feita às duas semanas e ao fim de um mês. Outras alternativas terapêuticas em função de resultados de exames microbiológicos incluem a cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas), o cefaclor (30-50mgr/kg/dia em 2-3 tomas) e a cefixima (8-12mg/kg/dia em 1-2 tomas). Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos macrólidos (eritromicina 50mg /kg/dia em 7-10 dias nas crianças com menos de 6 meses; azitromicina 10 mg /Kg/dia, dose diária durante 3 dias nas crianças com mais de 6 meses). A ceftriaxona tem sido recomendada ultimamente por vários autores como tratamento das otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80 mg/kg/dia, em injecção única intramuscular diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança altas concentrações no ouvido médio sendo, assim, bastante eficaz. Em certas situações o tratamento médico é insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgico. A paracentese do tímpano com aspiração do exsudado do ouvido médio está indicada nos casos de otalgia intensa com sinais muito marcados de infecção, otites de repetição resistentes à terapêutica médica, ou presença de complicações como a paralisia facial ou meningite. Prognóstico O prognóstico é bom. Porém, em certos casos, devido à virulência bacteriana, baixa resistência do organismo ou insuficiência terapêutica, poderão surgir complicações otológicas ou intracranianas, das quais as mais frequentes são a mastoidite, a paralisia facial e a meningite. Prevenção É importante reduzir ao mínimo os factores de risco já referidos, assim como tratar e corrigir correctamente todas as situações agudas para se evitar as recorrências. A prevenção prolongada (6 meses) com antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para a otite recorrente. Trata-se dum dos problemas polémicos do foro 416 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA da otorrinolaringologia que ultrapassam o âmbito deste capítulo. A vacina conjugada contra o S. pneumoniae, há poucos anos introduzida na clínica, tem-se revelado útil para prevenir as infecções provocadas por essa bactéria contribuindo para diminuir a prevalência atrás referida. Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a adenoidectomia são recomendados para prevenir os casos graves de otites recorrentes. BIBLIOGRAFIA Alper CM, Bluestone CD, Casselbrant ML, Dohar JE (eds). 76 OTITE SERO-MUCOSA Vital Calado Definição e importância do problema Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker Inc, 2004 Bluestone CD, Klein JO (eds). Otitis media in infants and children. Philadelphia: Saunders, 2001. Fireman B, Black SB, Shinefield HR, et al. Impact of pneumococcal conjugate vaccine on otitis media. Pediatr Infect Dis J 2003; 22: 10-66. Garbut J, Rosenbloom I, Wu J, et al. Empiric first-line antibiotic treatment of acute otitis in the era of the heptavalent pneumococcal conjugate vaccine. Pediatrics 2006, 117: e 1087-1094. Hall-Stoodley L, Hu FZ, Gieske A, et al. Direct detection of bacterial biofilms on the middle – ear mucosa of children with chronic otitis media. JAMA 2006; 296: 202-211. Spiro DM, Tay KY, Arnold DH, et al. Wait and see prescription for the treatment of acute otitis media. JAMA 2006; 296: 1235-1241. A otite sero-mucosa (OSM) pode definir-se como uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa do ouvido médio, a tímpano fechado, que cursa com derrame líquido intratimpânico, não purulento, de duração superior a três meses. Actualmente é mais correctamente designada por otite média com derrame ou efusão. O derrame pode ser seroso (fino, aquoso, dourado), mucoso (espesso, viscoso, tipo cola) ou sero-mucoso. Se crónico, pode conter cristais de colesterina. Trata-se de uma doença de elevada prevalência nas idade pediátrica. A incidência máxima situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de 80% dos casos é bilateral. Etiopatogénese A etiologia é incerta. Vários factores podem contribuir para a eclosão da doença tais como infecções agudas das vias respiratórias superiores (vírus, bactérias), alergia, factores anatómicos, factores hereditários e mau funcionamento da trompa de Eustáquio. A OSM é uma complicação frequente da otite média aguda ou da otite média recorrente. Tal como na OMA, a disfunção da trompa de Eustáquio tem um papel importante na OSM. O processo começa muitas vezes por uma otite média aguda supurada que provoca alterações na mucosa do ouvido médio e da trompa, dando origem a um derrame purulento que, ao ser esterilizado pela acção dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido. Noutros casos a disfunção resulta de alterações anatómicas ou funcionais. O CAPÍTULO 76 Otite sero-mucosa mau funcionamento tubário compromete a ventilação e a drenagem do ouvido médio, dando origem a uma pressão negativa na caixa timpânica. Secreções infectadas existentes no cavum podem, assim, ser aspiradas para o ouvido médio e o processo reactivar-se. A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão negativa do ouvido médio devida à reabsorção do ar, levam a alterações estruturais da mucosa traduzidas por um infiltrado celular composto por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este complexo processo gera a formação de uma grande quantidade de glândulas produtoras de muco que segregam constantemente para o interior do ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimática, a membrana timpânica sofre um processo de atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos resistente às variações de pressão, pode deprimirse e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa. Factores de risco São considerados factores de risco de OSM as infecções frequentes do tracto respiratório superior, a alergia, o barotraumatismo, a idade do primeiro episódio de otite, a frequência de infantários superlotados, o fumo passivo, os estados de imunodeficiência e o baixo nível económico e social. A OSM é frequente nas crianças com adenoidites de repetição, rinossinusites e otites recorrentes. Também as anomalias crânio-faciais, a sindroma de Down e a fenda platina (completa ou submucosa) constituem importantes factores de risco. Quase todas as crianças com fenda palatina têm OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio. 417 evolução pode ser tão insidiosa que os pais das crianças ficam surpreendidos quando é feito o diagnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desencadeia os sintomas. A criança começa a ficar desatenta, apresenta alterações de comportamento, sobretudo irritabilidade, aumenta o volume do som da televisão, e pede para repetirem as palavras. Se a situação se prolongar sem que seja identificada, poderão surgir problemas de aprendizagem da fala e da linguagem e perturbações do rendimento escolar. Diagnóstico É raro as crianças pequenas queixarem-se de perda da audição, pelo que o diagnóstico precoce está muito relacionado com a atitude dos pais, dos professores e do exame periódico feito pelo pediatra ou médico de família. Se houver suspeitas de perda da audição, perturbação do equilíbrio ou otalgia recorrente, a criança deve ser avaliada por um especialista de oto-rino-laringologia. A otoscopia pode ser difícil de interpretar. Por vezes, mesmo para um especialista bem treinado, não é fácil diferenciar entre otite sero-mucosa crónica agudizada e OMA. A ausência de sinais e sintomas de infecção aguda favorecem o diagnóstico de OSM. O tímpano está geralmente deprimido, com o Manifestações clínicas Ao contrário do que se passa com a otite média aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais e sintomas de infecção aguda tais como dores intensas nos ouvidos, febre ou mal estar. Pode ser assintomática ou revelar-se por perda de audição, perturbações do equilíbrio, alterações do comportamento, atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem e maus resultados escolares. Em certos casos não é possível identificar pela história clínica o momento do início da doença. A FIG. 1 Otite seromucosa. Tímpano opaco, com uma coloração róseaamarelada clara. 418 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseoamarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio através da transparência do tímpano. Os sinais são geralmente bilaterais. O timpanograma é um exame essencial para confirmar a presença de líquido no ouvido médio. Na otite sero-mucosa arrastada o traçado é aplanado. O audiograma revela sinais de surdez de transmissão de grau variável, em média de 25 a 30 dB, mas a perda pode ser muito maior. A endoscopia nasal poderá evidenciar um desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos, pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides. Tratamento Têm sido tentadas várias modalidades de tratamento da OSM, em geral sem qualquer eficácia. Os casos agudos podem resolver-se pela acção de antibióticos, descongestionantes nasais ou antiinflamatórios. Nas situações crónicas o problema é mais complicado. De notar que cerca de 10% das otites agudas tratadas com antibiótico apresentam ainda um derrame intratimpânico, passados 3 meses. É preciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H. influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos derrames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicilina / clavulânico. A tentação de prosseguir com outros antibióticos com maior espectro de acção deve ser desencorajada, por ser ineficaz. Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corticosteróides têm um efeito diminuto na evolução da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem ser usados quando existem sinais de alergia comprovada. Se a situação não se resolver, o tratamento recomendado consiste na aplicação de tubos de ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos casos em que o derrame tem duração superior a 3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30 dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de retracção ou ameaça de colesteatoma. Os tubos têm a finalidade de promover a ventilação e facilitar a drenagem do ouvido médio. São expulsos espontaneamente em geral ao cabo de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a entrada de água nos ouvidos durante o banho para se prevenir a infecção. Devem usar tampões auriculares e bandas de protecção. O mergulho(mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidectomia é feita muitas vezes no mesmo tempo operatório que a aplicação dos tubos. Prognóstico A otite sero-mucosa não tratada pode dar origem a complicações graves. A atrofia do tímpano e a pressão negativa no ouvido médio geram os mecanismos que conduzem à depressão timpânica, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular, otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar gravemente comprometida. Por outro lado, a membrana timpânica atrófica está em grave risco de perfurar se surgir otite aguda. A aplicação dos tubos não resolve todos os problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes terão que ser submetidos a mais do que uma timpanostomia. Prevenção A prevenção deve incidir sobre a atenuação ou eliminação dos factores de risco diagnosticados, o correcto tratamento das infeccções das vias aéreas superiores e a otoscopia de controlo. BIBLIOGRAFIA Alper CM, Bluestone CD,Casslbrant ML,Dohar JE (eds). Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker Inc, 2004 Brackmann DC, Shelton C, Arriaga (eds). Otologic Surgery. Philadelphia. Saunders, 2004 Bluestone CD, Klein JO (eds). Otitis Media in Infants and Children. Philadelphia: Saunders, 2001 Valtonen H, Tuomilehto H, Qvarnberg Y, et al. A 14-year prospective follow-up study of children treated early in life with tympanostomy tubes. Part 2: Hearing outcomes. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2005; 131: 299-303 Zapalac JS, Billings KR, Schwade ND, et al. Suppurative complications of acute otitis media in the era of antibiotic resistance. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2002; 128: 660-663 CAPÍTULO 77 Otomastoidite aguda 77 OTOMASTOIDITE AGUDA Maria Caçador, Carlos Ruah Definição Otomastoidite aguda é definida como processo inflamatório agudo da mastóide, num doente sem história de otite média crónica purulenta simples ou colesteatomatosa. Aspectos epidemiológicos A referida situação é mais frequente em crianças com idade inferior a 8 anos podendo, contudo, ocorrer em qualquer idade. Um terço dos doentes com o diagnóstico de otomastoidite aguda apresenta história prévia de otite média aguda (OMA) de repetição. A incidência de otomastoidite aguda diminuiu com a introdução da antibioticoterapia na terapêutica da OMA (de uma incidência de 0,4% dos episódios de OMA a desenvolverem otomastoidite na década de 60, para 0,004% na passada década de 90). Nos últimos anos, contudo, tem-se verificado um aumento do número de internamentos por otomastoidite aguda. A explicação para este facto parece ser, por um lado, o aumento de resistências aos antibióticos pelo abuso destes fármacos e, por outro lado, a redução do número de miringotomias durante os episódios de OMA. Etiopatogénese Todos os doentes com OMA apresentam inflamação da mucosa da mastóide, com ou sem derrame. Quando o processo inflamatório, a nível da mastóide, ultrapassa o mucoperiósteo e envolve o osso, verifica-se desmineralização e erosão dos septos das células mastoideias, com a formação de empiema intramastoideu. Esta fase é descrita como “otomastoidite coalescente”, com a mas- 419 tóide a ser transformada numa grande cavidade abcedada. A dificuldade de drenagem do pus acumulado pode levar à exteriorização da infecção pela área cribiforme ou pela fissura timpanomastoideia, com sinais inflamatórios cutâneos da região mastoideia, apagamento do sulco retroauricular e empurramento para diante do pavilhão auricular, tradução semiológica de otomastoidite aguda. Se o processo se estender ao periósteo forma-se um abcesso do subperiósteo. Nas últimas duas décadas foram realizados vários estudos para identificação dos agentes implicados nos casos de otomastoidite aguda. Ao contrário do que se poderia esperar os resultados não foram sobreponíveis aos dos estudos dos agentes implicados na OMA. Os microrganismos mais frequentemente isolados foram Streptococcus pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e Staphylococcus aureus coagulase negativo. Estes resultados têm implicações práticas importantes: o antibiótico escolhido na terapêutica inicial da otomastoidite aguda, enquanto se aguarda o resultado dos exames culturais, deverá ter uma potente acção anti-estafilocócica, para além de dever incluir no seu espectro terapêutico os agentes mais frequentemente implicados na OMA (Haemophilus influenzae e M. catarrhalis). Manifestações clínicas O quadro clínico da otomastoidite aguda é caracterizado por sintomas otológicos sugestivos de OMA, seguidos pelo aparecimento de sinais inflamatórios sobre a mastóide (dor, eritema e edema retroauricular, apagamento do sulco retroauricular com deslocamento do pavilhão para a frente e para baixo, e abaulamento da parede pósterosuperior do canal auditivo externo). Os sinais inflamatórios surgem habitualmente entre o 4º e o 10º dia após o início das queixas otológicas, podendo esse período variar de 1 a 60 dias. A febre faz geralmente parte do quadro clínico, apesar de a sua ausência não excluir o diagnóstico. Para a confirmação diagnóstica e detecção precoce de complicações intracranianas, a maioria dos autores defende a utilização, por norma, de tomografia computadorizada (TC) do ouvido e crânio-encefálica. Para o diagnóstico radiológico 420 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de mastoidite coalescente não basta a presença de níveis hidro-aéreos ou espessamento da mucosa das células pneumatizadas da mastóide; é necessária a demonstração de erosão dos septos ósseos das células mastoideias ou do cortéx mastoideu. Dado que, na maioria dos casos, a realização de TC em crianças exige sedação ou anestesia geral, deve, sob a mesma anestesia, proceder-se à colheita de material para estudo macrobiológico. Tratamento É consensual, entre os diferentes autores, que o tratamento dos casos de otomastoidite aguda não complicada, implica miringocentese, com ou sem colocação de tubo transtimpânico, associada a antibioticoterapia endovenosa, instituída precocemente (amoxicilina + ácido clavulânico: (80 mg/ kg/dia de amoxicilina) ou cefalosporina de 3ª geração (cefotaxima – 50-100 mg/kg/dia; ou ceftriaxona – 50-80 mg/kg/dia) em regime de internamento. (ver capítulo 75) Se não houver melhoria em 24 a 48 horas, ou se se suspeitar de complicação, deve instituir-se medidas cirúrgicas adequadas, e ser alterada a antibioticoterapia, segundo os resultados do exame cultural. A terapêutica deverá durar 3 semanas. Complicações Embora a incidência de otomastoidite aguda tenha diminuído significativamente com o aparecimento dos antibióticos, a prevalência de complicações graves continua elevada. As complicações desta situação clínica dependem da zona para a qual o processo infeccioso se estende; podem ser classificadas em extracranianas e intracranianas. (Quadro 1) Consideram-se grupos de risco para o desenvolvimento de complicações os doentes com perfuração espontânea da membrana timpânica e otorreia no momento do diagnóstico, e aqueles em que os agentes etiológicos são Streptococcus pyogenes ou Staphylococcus aureus. Os doentes em que foi realizada miringocentese antes do diagnóstico clínico de otomastoidite aguda parecem ter menor risco de desenvolvimento de complicações graves. QUADRO 1 – Complicações da otomastoidite aguda Extracranianas – Propagação da infecção • Região retroauricular (Abcesso retroauricular) • Região pré-auricular (Abcesso zigomático) • Região inferior (Abcesso de Bezold) • Região retroauricular (Abcesso retroauricular) • Ouvido interno (Labirintite) • Apex petroso (Síndroma de Gradenigo) • Seio sigmoideu (Trombose do seio sigmoideu) • Seio longitudinal (Hidrocefalia otítica) Intracranianas • Meningite • Abcesso subdural • Abcesso epidural • Abcesso cerebral • Abcesso cerebeloso Prognóstico O prognóstico de otomastoidite aguda é habitualmente bom e tem melhorado graças a vários factores, nomeadamente, melhor compreensão da fisiopatologia da doença, antibioticoterapia específica, disponibilidade de exames complementares de diagnóstico e possibilidade de intervenção cirúrgica atempada. No entanto, quando o diagnóstico se acompanha de complicações intracranianas graves, pode ser reservado. BIBLIOGRAFIA Acuin J. Chronic suppurative otitis media. BMJ 2002; 325: 11591160 American Academy of Pediatrics. Subcommittee on management of acute otitis media: diagnosis and management of acute otitis media. Pediatrics 2004; 113: 1451-1465 Bauchner H, Marchant CD, Bisbee A, et al. Effectiveness of centers for disease control and prevention recommendations for outcomes of acute otitis media. Pediatrics 2006; 117: 1009-1017 Brackmann DC, Sheltonc, Arriaga L (eds). Otologia Surgery. Philadelphia: Saunders, 2004 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Neto A, Flores P, Ruah C, Sousa E, Pereira P, Noronha F, Palminha J, Penha R. Mastoidites agudas na criança. Acta Médica Portuguesa, 1998; 11: 643-647 CAPÍTULO 78 Patologia inflamatória laríngea 78 PATOLOGIA INFLAMATÓRIA LARÍNGEA Carlos Ruah 421 (epiglotite, laringite, laringite subglótica e laringotráqueo-bronquite ou falso “croup”), químicas (refluxo gastro-esofágico, ingestão de caústico), traumáticas (entubação, corpo estranho) e alérgicas. 5) Discute-se se a laringite, para além da etiologia infecciosa (vírica ou bacteriana) poderá traduzir hiperreactividade da via aérea. Neste capítulo são descritas três entidades clínicas representativas da patologia inflamatória da laringe. 1. Epiglotite Importância do problema Para compreender a importância de patologia inflamatória da laringe há que salientar aspectos particulares de anátomo-fisiologia e semiologia. 1) A laringe da criança não é uma laringe do adulto mais pequena; tem características particulares que são importantes: a região supraglótica é muito elástica e ampla; o espaço glótico é mais arredondado do que o do adulto; o espaço subglótico é muito pouco distensível, o mais estreito da laringe, sendo mesmo mais estreito que a traqueia e medindo 4 milímetros de diâmetro no recém-nascido (ao contrário do adulto em que a glote é o espaço mais estreito da laringe). Assim, um edema subglótico aumentado em 1 milímetro a espessura, reduz a via aérea em cerca de 50%. 2) A frequência respiratória no recém-nascido é cerca de 40 por minuto, na criança 30 por minuto e no adulto 20. A dispneia laríngea é definida como bradipneia inspiratória (o tempo inspiratório está prolongado) com sinais de tiragem ou retracção torácica (a inspiração torna-se um fenómeno activo com utilização dos músculos respiratórios acessórios como os intercostais e os esterno-cleido-mastoideus). Nos recém-nascidos a dificuldade respiratória de causa laríngea traduz-se por taquipneia rapidamente ineficaz. 3) A dispneia laríngea pode acompanhar-se de estridor. Sistematizando, pode afirmar-se que o estridor inspiratório corresponde a lesões supraglóticas, ao passo que o inspiratório-expiratório (bifásico) corresponde a lesões glóticas e subglóticas. 4) As doenças inflamatórias da laringe em idade pediátrica podem classificar-se em infecciosas Definição e importância do problema O termo de epiglotite (ou processo inflamatório da epiglote) tem sido substituído por supraglotite por alguns autores. A sua incidência era cerca de 3 a 9 casos por 10.000 internamentos pediátricos antes do aparecimento da vacina anti Haemophilus influenzae tipo b. Após a vacinação a incidência diminuiu para cerca de para 0,4 a 0,6 casos 10.000 internamentos. Etiologia Haemophilus influenzae tipo b era, até existir vacina, o agente mais frequentemente implicado em (>90% dos casos). Situação hoje mais rara, podem estar implicados menos frequentemente outros germes: Streptoccocus do grupo A, B, C, Staphylococcus aureus, Streptoccocus pneumoniae e, nos imunocomprometidos, Herpes simplex, Pseudomonas e Candida. Manifestações clínicas O início é rápido com febre alta odinofagia intensa e sialorreia (“baba-se”). A criança está pálida, com a boca aberta, ansiosa, irritável, dispneica com ou sem estridor (ruído inspiratório agudo por obstrução da laringe supraglótica), prefere estar sentada com hiperextensão do pescoço e inclinação do tronco para diante para melhorar a respiração, e tem uma voz “abafada” pelo edema supraglótico. Tratamento Havendo suspeita de epiglotite (emergência médica), há que adoptar a seguinte conduta: a) Medidas gerais 1) Não tentar observar a faringe nem laringe 422 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA com espátula nem executar manobras invasivas (tirar sangue por ex.) para não provocar choro e obstrução aguda respiratória. 2) Transportar a criança com a mãe ao serviço de imagiologa para proceder ao estudo de perfil das partes moles cervicais, o qual evidenciará o aumento da epiglote. 3) Se se confirmar o diagnóstico, levar a criança para o bloco operatório e induzir anestesia geral por máscara com criança sentada ao colo da mãe. 4) Uma vez entubada e com a via aérea controlada, pode observar-se então a laringe que demonstra a epiglote edemaciada muito vermelha e exsudativa, quase “em carne viva”. 5) Proceder a hemocultura iniciando antibioticoterapia endovenosa no bloco antes da transferência para a unidade de internamento. O diagnóstico etiológico é feito com base no resultado da hemocultura, e não por colheitas faríngeas ou laríngeas. b) Terapêutica antimicrobiana Dada o aumento da resistência do Haemophilus às penicilinas, utilizam-se hoje as cefalosporinas de 2ª ou 3ª geração como tratamento de primeira linha durante 5 dias: 1) Cefuroxima: 75-100 mg/Kg/dia excepto se se suspeitar de envolvimento meníngeo; ou 2) Cefotaxima: 75-180 mg /Kg/dia se houver suspeita de envolvimento do sistema nervoso central; ou 3) Ceftriaxona: 100 mg/Kg/dia em dose única diária. O tratamento pode ser continuado com amoxicilina e ácido clavulânico oral. A corticoterapia e a epinefrina não são eficazes; a primeira pode provocar complicações hemorrágicas gastrintestinais nestes casos. A data da extubação tem sido controversa porque o estado da epiglote não tem relação directa com a dificuldade respiratória, e a persistência da febre não constitui critério para se manter a entubação. Assim, em regra procede-se extubação ao fim de 48 horas do início da terapêutica. 2. Laringite Etiologia Os agentes etiológicos mais frequentes são vírus: o rhinovirus e o parainfluenza. No entanto, esta situação clínica pode fazer parte doutras afecções como gripe, papeira, varicela, sarampo, ou tosse convulsa. Independentemente do agente etiológico primário, poderá surgir sobreinfecção bacteriana por Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus influenza. Manifestações clínicas Verifica-se inicialmente mal estar geral, tosse iritativa, febrícula e pigarro. O aparecimento de estridor agudo, disfonia ou rouquidão e retracção torácica supraesternal permitem o diagnóstico. Se ao fim de dias ocorrer febre alta e expectoração purulenta, há que suspeitar de infecção bacteriana. Tratamento É sintomático com aerossolterapia com soro fisiologico, anti-inflamatórios e antipiréticos. Se se suspeitar de infecção bacteriana, deve utilizar-se amoxicilina com ácido clavulânico; como alternativa, cefalosporinas de primeira ou segunda geração, ou macrólidos. 3. Laringite subglótica e laringo-tráqueo-bronquite (falso croup) Etiologia Trata-se duma situação de etiologia habitualmente vírica; os vírus mais frequentes são os parainfluenza virus tipos I e II. No entanto, podem também estar implicados os vírus respiratório sincicial e influenza A e B. Ocorre sobretudo entre os 6 meses e os 3 anos, sendo raríssima antes dos 6 meses. Manifestações clínicas As duas situações são descritas em conjunto pela semelhança do quadro clínico, considerando-se fases diferentes do mesmo processo inflamatório, com tendência descendente. A doença inicia-se com uma infecção do tracto respiratório superior durante 1 a 3 dias com febrícula, mal estar geral e disfonia. A tosse aparece subitamente, conhecida como “tosse de cão” e a ocorrência do edema subglótico leva ao aparecimento da dispneia e do estridor bifásico (inspiratório e expiratório, de tonalidade grave) (laringite subglótica). Se a infecção atingir a árvore brônquica verifica-se aumento de secreções, respi- 423 CAPÍTULO 78 Patologia inflamatória laríngea ração mais ruidosa e agravamento da obstrução respiratória (laringo-tráqueo-bronquite). Magalhães M. Laringites. In Ruah S, Ruah C, Manual de Diagnóstico É feito essencialmente pela clínica. A radiografia ântero-posterior das partes moles cervicais mostra o fim proximal da traqueia em “bico de lápis” devido ao edema subglótico. Melo-Cristino J, Serrano N, et al. Estudo Viriato: Actualização Otorrinolaringologia. Lisboa: edições Laboratórios Roche vol. V, 2001; 95-99 dos dados de susceptibilidade aos antimicrobianos de bactérias responsáveis por infecções respiratórias adquiridas na comunidade em Portugal em 2001 e 2002. Rev Port Pneumol 2003; (IX): 293-310 Moreno S, Garcia Altozano J, Pinilla B, Lopez J C, et al. Tratamento Para obter humidificação eficaz estão indicadas nebulizações com aparelhos ultrassónicos. Em regime hospitalar poderá proceder-se à inalação de adrenalina racémica (1 ml de soluto a 1/1000), quer através de nebulizador, quer através de ventilador de pressão positiva intermitente; o efeito pode verificar-se ao cabo de 20-30 minutos. Os corticóides (hidrocortisona por via endovenosa: 100mg 6-6 h; ou prednisolona por via oral: 1-2 mg/Kg/dia) durante cerca de 3 dias estão também indicados pela acção anti-inflamatória, embora o seu efeito seja mais lento. Em função do estado clínico poderá haver necessidade de entubação traqueal. Lemierre’s disease: postanginal bacteriemia and pulmonary involvement caused by Fusobacterium necrophorum. Rev Infect Dis 1989; 11: 319-324 Reis LM, Rego C, Marinheiro JL. Classificação clínica das amigdalites Bjornson Cl, Klassen TP, Williamson J, et al. A randomized Trial of a single dose of oral dexametasone for mild croup. NEJM 2004; 351: 1306-1313 Darrow D H. Infectious and inflammatory illness of the oral cavity and pharynx. In de Souza, Stankiewicz, Pellitteri, Pediatric Otorhinolaryngology Head and Neck Surgery, vol II. San Diego: Singular Publishing Group Inc, 1999; 61-86 Darrow D H, Zwack G C. Infectious and inflammatory illness of the larynx, trachea and bronchi. de Souza, Stankiewicz, Pellitteri, In Pediatric Otorhinolaryngology Head and Neck Surgery, vol II. San Diego: Singular Publishing Group Inc, 1999; 87 - 101 Discolo C M, Darrow D H, Koltai PJ, Infectious indications for tonsillectomy. Pediatr Clin North Am 2003; 50: 445-458 Fairbanks D N, Pocket Guide to Antimicrobial Therapy in Otolaryngology Head nad Neck Surgery. New York: The American Academy of Otolaryngology Head and Neck Surgery Foundation, 2003 Johson Yu, et al: Infectious Diseases and Antimicrobial Therapy of the Ears, Nose and Throat. Philadelphia: Saunders 1997; 422-434 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 a etiopatogenia. In Pathos Ruah S, Ruah C. O complexo faríngeo. In Ruah S, Ruah C, Manual de Otorrinolaringologia vol. V Lisboa: edições Laboratórios Roche, 2001 Scolnik D, Coates A, Stephens D et al. Controlled delivery of high vs low humidity vs mist therapy for croup in emergency departments. JAMA 2006; 1274-1280 Swedo S E, Leonard H L, Garvey M, Mittleman B, et al. Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infections. Am J Psychiatry, 1998; 155: 264-271 BIBLIOGRAFIA segundo Monografias de Patologia Geral Ano XI 1995; 11: 23-28 424 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 79 AVALIAÇÃO AUDIOLÓGICA Luísa Monteiro Função auditiva A audição é uma função complexa que resulta da integração central (e interpretação) dos sons previamente captados e processados pelo órgão periférico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado nas suas três principais dimensões: frequência, amplitude e tempo. A via auditiva está completamente desenvolvida na data do nascimento; no entanto,sofre complexos fenómenos de maturação. Com efeito, a plasticidade do sistema nervoso central permite que, por exposição ao som, haja um desenvolvimento de conexões neuronais a nível cortical até aos seis meses de idade. A via auditiva sofre também maturação ao longo dos primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de condução nervosa estão diminuídos, atingindo os valores dos adultos cerca dos dezoito meses de idade. O Quadro 1 refere os apectos mais significativos do desenvolvimento da via auditiva e o Quadro 2 a relação entre audição e linguagem. Surdez infantil Considera-se surdez significativa a hipoacusia permanente, superior a 40 decibeis (dB), nas frequências conversacionais, no melhor ouvido. Esta definição tem em conta que, a partir destes valores, a hipoacusia tem repercussões negativas na aquisição de linguagem e no desenvolvimento de competências comunicativas da criança. Existem vários graus de hipoacusia: ligeira, moderada, grave e profunda, correspondendo a dificuldades crescentes de comunicação audio-verbal. QUADRO 1 – Desenvolvimento da Via Auditiva • Nos RN a via auditiva periférica está completamente desenvolvida. • O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de vida pela experiência auditiva, sobretudo pela exposição à fala. • Embora as crianças só produzam palavras reconhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a sua própria fala. • Ao nascer,o sistema auditivo periférico possui as capacidades semelhantes às do adulto, pronto a estabelecer as conexões neurais baseadas na experiência auditiva. • O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos dois primeiros anos. • A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas esta é mantida a nível do SNC. QUADRO 2 – Audição e Linguagem • A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre, velocidade de produção). • O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e palavras com grande fidelidade e exactidão, começando estas capacidades a desenvolver-se após o nascimento. • A aquisição de linguagem perceptiva precede a linguagem expressiva. Os bebés aprendem a organização dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano de vida. • Pequenas alterações da audição podem alterar a aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em condições de ruído - escolas) . Etiologicamente, a hipoacusia pode ser classificada em sensorioneural relacionada com patologia (endo ou retrocolear), de transmissão relacionada com patologia (ouvido externo ou médio) e mista. Na maior parte dos casos, a hipoacusia de transmissão é adquirida, constituindo a otite seromucosa a causa mais frequente. No entanto, menor grau de hipoacusia pode influenciar negativamente a integração social e escolar da criança. Na infância ocorrem frequente- CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica mente períodos mais ou menos longos (semanas, meses ou anos) em que as crianças sofrem de hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral, o que influencia o seu desenvolvimento. Estes períodos correspondem a episódios de otite serosa (otite com efusão ou otite com derrame) os quais podem decorrer com hipoacusia de transmissão de grau variável até 40dB, e que é reversível. O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de deficiência auditiva em relação a perda tonal média. Importância do problema Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos aparentemente saudáveis; trata-se da doença congénita mais frequente para a qual existe rastreio e intervenção precoce. Reconhece-se a existência de factores de risco que podem aumentar a incidência de surdez. Em determinadas situações de maior risco de hipoacusia a incidência pode aumentar para 1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores de risco relaciona-se com ocorrências desfavoráveis durante o período perinatal (muito baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal, sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave, etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa pode ter uma prevalência de 8 por cada mil crianças. As causas genéticas correspondem a cerca de 30 % dos casos de surdez congénita, relacionável na maioria dos casos com transmissão autossómica QUADRO 3 – Graus de Deficiência Auditiva 1. Deficiência Auditiva Ligeira 2. Deficiência Auditiva Média 3. Deficiência Auditiva Grave 4. Deficiência Auditiva Pofunda 5. Deficiência Auditiva Total 1. Perda tonal média: >20 e <40 dB 2. Perda tonal média: >40 e <70 dB 3. Perda tonal média: >70 e <90 dB 4. Perda tonal média: >90 e <120 dB 5. Perda tonal média: ≥120 dB (dB = decibéis) 425 recessiva. Em geral, a surdez surge isolada, mas poderá estar integrada em síndroma; há descritas cerca de 400 síndromas que incluem défice auditivo. (Figura 1) Existem mais de 20 loci descritos para a surdez isolada, mas um único locus – DFNB1 – é responsável por uma elevada proporção dos casos: tratase do gene GJB2, que codifica a proteína conexina 26. Mutações neste gene são responsáveis por aproximadamente 50% dos casos de surdez congénita isolada não infecciosa. As causas infecciosas pré-natais (rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus) são, felizmente, cada vez menos frequentes. A hipoacusia pode classificar-se quanto à cronologia do seu aparecimento, em congénita ou adquirida (período perinatal ou ao longo da vida). Assim, a criança pode ser portadora de deficiência auditiva desde o período pré-lingual (congénita ou adquirida no período perinatal) ou a dquirida no período de aquisição de linguagem (ex: meningite bacteriana), pós-lingual (expresssão tardia de surdez congénita, meningite bacteriana, traumatismo craniano, etc.). O prognóstico é diferente conforme as competências linguísticas que já existiam quando surgiu a hipoacusia. Rastreio auditivo neonatal Desde longa data tem havido tentativa de programas de rastreio da deficiência auditiva, nomeadamente no período neonatal, utilizando métodos baseados na pesquisa de reacções motoras dos recém-nascidos após apresentação de estímulos auditivos de elevada intensidade. Estes testes baseavam-se na interpretação das reacções dos recém-nascidos feita por observadores treinados, consumindo, assim, muitos recursos humanos. Existia, no entanto, uma grande variabilidade de resultados entre os vários observadores, e além da fraca confiabilidade, os referidos testes apenas detectavam graus de surdez grave e profunda; por isso, foram abandonados. Em 1972 o “Joint Commitee on Infant Hearing”, grupo multidisciplinar, elaborou uma lista de circunstâncias em que os recém-nascidos tinham risco acrescido de ocorrência de surdez devendo por isso, ser obrigatoriamente sujeitos a rastreio que era habitualmente efectuado pelos nove 426 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 1 Exemplo de criança com hipoacusia de transmissão por anomalia congénita do ouvido externo e médio. meses de idade. Esta lista de factores de risco foi sendo progressivamente alargada ao longo dos anos. No entanto, uma vez que cerca de 50% das crianças surdas não possuem nenhum factor de risco de surdez, houve necessidade de pôr em acção rastreios universais no recém-nascido. Durante a década de noventa foram organizados rastreios universais dos recém-nascidos, mercê da disponibilidade de técnicas de rastreio sensíveis, específicas, rápidas, de preço acessível e de aplicação fácil: os aparelhos de oto-emissões acústicas (OEA) que surgiram nesta altura. Estes rastreios foram divulgados a partir dos Estados Unidos, sendo a sua aplicação facilitada pelo ulterior aparecimento de aparelhos automáticos, quer de oto-emissões acústicas, quer de potenciais evocados auditivos. Estes aparelhos dão resposta do tipo “Apto”, “que passa” ou sem problema, e “Inapto” ou com problema a esclarecer. Não necessitando de interpretação dos resultados por parte do técnico, podem ser utilizados por pessoal sem formação específica em audiologia (enfermeiros, médicos, pediatras, voluntários), após um determinado tempo de treino. Estes rastreios devem ser coordenados por profissionais da área da audiologia pediátrica e com o apoio de uma unidade de audiologia com recursos técnicos e humanos apropriados. Actualmente os rastreios universais da audição dos recém-nascidos são aplicados na maioria dos países desenvolvidos, segundo critérios padroniza- dos. Prevê-se que nos próximos anos surjam critérios normativos para as diferentes características técnicas dos mesmos. A eclosão destes programas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia significativa antes dos 3 meses de idade e o início da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos recém-nascidos usufruirem dos benefícios da intervenção precoce que se traduzem em níveis de aquisição de linguagem superiores aos que iriam adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio. De salientar que estudos publicados pelo grupo do Colorado vieram demonstrar que a idade de intervenção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o factor que mais positivamente influencia a reabilitação e aquisição de linguagem para qualquer grau de surdez. A maioria dos rastreios é organizada em 3 fases, com início ainda na maternidade, nas primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas automáticas, potenciais evocados automáticos ou oto-emissões acústicas automáticas. De acordo com as recomendações do GRISI, na instituição onde se procede ao rastreio considerase equipamento indespensável: dois aparelhos, de OEA (de diagnóstico ou automático) e/ou de PEATC (de diagnóstico ou automático). Os bebés que não “passam” ou não são considerados “aptos” na primeira fase (por exemplo por existência de exsudado no ouvido médio, colapso ou obstrução do canal auditivo externo), serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geralmente uma ou duas semanas depois. Pode utilizar-se a mesma técnica que foi utilizada na primeira fase, verificando-se que na maioria dos casos o resultado será normal. Caso contrário, a criança será encaminhada para uma consulta de otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da técnica de potenciais evocados auditivos diagnósticos e impedancimetria. Esta terceira fase, diagnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses. Os programas de rastreio auditivo deverão ser integrados, apoiados por programas de reabilitação habilitação e estimulação precoce apropriados que envolvem a adaptação protética, a estimulação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de formar equipas multiprofissionais dotadas de meios técnicos apropriados, motivadas para o objectivo final que consiste em diagnosticar e CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as famílias nas suas decisões e necessidades. Estas equipas deverão incluir pediatras, otorrinolaringologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas de fala, professores de surdos, psicólogos, assistentes sociais e administradores hospitalares, entre outros. É evidente que novos desafios se perfilam aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o correcto diagnóstico e o início de intervenção cada vez mais precocemente; daí a necessidade de meios técnicos sofisticados e de treino específico na área da audiologia pediátrica. O Quadro 4, adaptado do “Joint Commitee on Infant Hearing” discrimina os critérios considerados de alto risco que determinam o rastreio da audição De salientar, a propósito, a filosofia expressa pelo European Consensus on Infant Screening em 1998: “....embora os sistemas de saúde na Europa variem de país para país em termos de organização e financiamento, deverão ser postos em marcha sem atrasos de programas de rastreio de audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor qualidade de vida no próximo milénio”. No âmbito de uma política nacional de saúde QUADRO 4 – Critérios de alto risco para rastreio auditivo (RN em UCIN) • História familiar de surdez infantil de origem hereditária. • Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus, rubéola, sifílis, herpes e toxoplasmose. • Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do pavilhão auricular e canal auditivo externo. • Peso de nascimento < 1,5 Kg. • Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis que necessitam de exsanguinotransfusão. • Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas ou em combinação com diuréticos de ansa. • Meningite bacteriana. • Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a 6 aos 5 minutos. • Ventilação assistida durante cinco ou mais dias. • Estigmas associados a síndroma conhecida por se associar a hipoacusia sensorial ou de condução. 427 para o diagnóstico precoce da surdez e intervenção, constituiu-se o Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez (GRISI). Este grupo de trabalho, aberto e multidisciplinar, reúne profissionais com experiência nesta área. O objectivo deste grupo coordenado pela autora é o desenvolvimento de um programa nacional de detecção e intervenção auditiva precoces, padronizando técnicas e metodologias, através de acções conjuntas entre os vários organismos oficiais e associações profissionais. O Quadro 5 define as condições consideradas indispensáveis para garantia de rendibilidade e de qualidade do rastreio considerado universal. As Figuras 2 e 3 resumem os esquemas organizativos respectivamente do Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU) – sem risco conhecido, e rastreio considerado de alto risco, em crianças internadas em UCIN (Quadro 4 já referido). Estes esquemas são aplicados no Hospital Dona Estefânia desde 2003. Rastreio auditivo pós-neonatal Na hipótese de não se ter procedido ao rastreio auditivo no período neonatal, há que atender aos indicadores de risco de surdez em geral, os quais constam do Quadro 6, de grande utilidade na prática clínica, quer para pediatras QUADRO 5 – Condições para rastreio universal (qualidade e rendibilidade) 1. Um mínimo de 95% dos recém-nascidos deverá de ser sujeito a rastreio conclusivo (só poderão ser perdidos para seguimento cerca de 5% ). 2. Deverão ser utilizados métodos objectivos (potenciais evocados auditivos ou oto-emissões acústicas) e testar-se os 2 ouvidos. 3. O rastreio deverá detectar todas as crianças com hipoacusia significativa, isto é, com limiares superiores a 35 dB no melhor ouvido. 4. A taxa de falsos positivos deve ser inferior a 3% (normo-ouvintes evidenciando alterações no âmbito do rastreio). 5. A taxa de verdadeiros casos positivos deve situar-se entre 2-4/1000. 6. É desejável taxa zero de falsos negativos. 428 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA RASTREIO DE CRIANÇAS EM UCIN ORGANIZAÇÃO DO RASTREIO AUDITIVO NEONATAL UNIVERSAL UCIN Na Maternidade OEA PEATC PEATC e OEA (antes da alta) “Passa” Informação Família Médico “Não Passa” Problema a esclarecer 2.ª Fase OEA/PEATC 2ª semana Passa Informação Família Médico ORL e PEATC antes dos seis meses “Não Passa” Encaminhamento para centro especializado 3.ª Fase ORL Impedância PEATC Audição Normal “Passa” Informação Família Médico Deficiência Auditiva Intervenção em Centro especializado antes dos seis meses (Adaptado de GRISI, 2007) FIG. 2 Organização do rastreio auditivo neonatal universal. quer para médicos de família. O referido quadro chama igualmente a atenção para as situações com necessidade de acompanhamento, e associadas ao aparecimento tardio de perda auditiva. Provas diagnósticas Uma vez realizado o rastreio, cabe referir a abordagem diagnóstica que pode ser realizada nos casos em que foi detectada alteração da função auditiva através daquele. “Não Passa” ORL e PEATC antes dos seis meses ORL e PEATC Cada seis meses até 3 anos (Adaptado de GRISI, 2007) FIG. 3 Rastreio de crianças em UCIN. A avaliação audiológica das crianças utiliza um conjunto de provas cujos resultados devem ser cruzados e interpretados em conjunto. Cada prova tem um valor relativo e constitui uma “janela” que avalia uma determinada área/função da via auditiva. De um modo geral as provas diagnósticas podem ser classificadas em comportamentais e fisiológicas (também denominadas objectivas). Provas comportamentais As alterações do comportamento da criança após exposição a um som teste são avaliadas por um audiologista. As condições do teste são controladas pelo técnico e os resultados deverão ser reprodutíveis (não deverão existir variações intra e inter-teste). São, por isso, provas objectivas e precisas. Trata-se de provas que exigem que a criança tenha o desenvolvimento psicomotor necessário e que a mesma coopere na execução do teste. O técnico deverá ter a capacidade para determinar que tipo de teste é o mais indicado para cada criança, baseado no desenvolvimento psicomotor, e não na idade cronológica. CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 429 QUADRO 6 – Indicadores de risco de surdez Crianças até aos dois anos: – Preocupação/suspeita dos pais em relação ao desenvolvimento da fala, linguagem ou audição. – Meningite bacteriana e outras infecções associadas com perda auditiva neurossensorial. – Traumatismo crânio-encefálico acompanhado de perda de consciência ou fractura do crânio – Estigmas ou sinais de síndromas associadas a perdas auditivas de condução e/ou neurossensoriais. – Medicamentos ototóxicos (incluindo, mas não limitados a, agentes quimioterápicos ou aminoglicosídeos, associados ou não a diuréticos de ansa). – Otite média de repetição/persistente, com efusão por períodos de, pelo menos, 3 (três) meses. Crianças que necessitam de acompanhamento até aos 3 anos de idade: – Alguns RN podem “passar” no rastreio auditivo, mas necessitam de acompanhamento periódico pois têm risco aumentado de aparecimento tardio de perda auditiva neurossensorial ou de condução. – Crianças com indicadores abaixo referidos, requerem avaliação a cada 6 (seis) meses. Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda neurossensorial: – Antecedentes familiares de perda auditiva tardia na infância. – Infecções congénitas (rubéola, sífilis, herpes, citomegalovírus, toxoplasmose). – Neurofibromatose tipo II e doenças neurodegenerativas. Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda de condução: – Otite média de repetição/recorrente ou persistente com derrame. – Defeitos anatómicos e outras alterações que afectam a função da trompa de Eustáquio. – Doenças neurodegenerativas. Podem dividir-se em provas limiares, quando visam a detecção da menor intensidade sonora perceptível para cada som teste (limiar para aquela frequência), e supralimiares quando a intensidade do som teste se situa acima do limiar de percepção. São abordadas as seguintes provas comporta- FIG. 4 Exemplos de instrumentos que produzem sons, utilizados para testar os reflexos incondicionados. FIG. 5 Reflexos Incondicionados – A criança vira a cabeça na direcção da fonte sonora. mentais: • Prova dos reflexos incondicionados Assim chamada porque são desencadeadas reacções reflexas inatas dos recém-nascidos a sons de intensidade audível. É habitualmente utilizada até aos 6-7 meses de idade. Consiste na detecção de reflexos incondicionados (reacções de sobressalto, abertura dos olhos, pestanejo, suspensão de actividades motoras tais como a sucção) a sons de intensidades supralimiares e de várias frequências. É muito importante para complementar a informação obtida através de provas fisiológicas, não devendo ser utilizada isoladamente (Figuras 4 e 5). • Prova dos reflexos de orientação condicionada A partir do momento em que a criança se senta e segura a cabeça (6-7 meses), é possível estudar reacções de orientação do olhar para a fonte sonora no plano horizontal, sendo possível condicionála utilizando técnicas de condicionamento ope- 430 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA rante. É apresentado um som de suficiente intensidade para que a criança vire o olhar na direcção da fonte sonora. Após esta reacção da criança ao som, é apresentado um reforço positivo ao seu comportamento. O reforço comportamental poderá ser uma luz que se acende, um brinquedo eléctrico que se liga ou um boneco que se torna visível. Cada vez que a criança “vira o olhar” em resposta à apresentação do som-teste, recebe o reforço positivo. Quando a criança se encontra condicionada, isto é, quando consistentemente vira a cabeça e procura o reforço após a apresentação do som teste, pode ser feita uma determinação de limiares auditivos para cada frequência: o estímulo vai diminuindo de intensidade até que a criança não responde mais (limiar auditivo). O processo de determinação de limiares vai-se repetindo para as várias frequências. As crianças que não permitam a colocação de auscultadores terão de ser testadas em campo livre, sendo os limiares obtidos respeitantes ao melhor ouvido. A criança um pouco mais velha, ao permitir a colocação de auscultadores e de vibrador ósseo, poderá ser testada separadamente aos dois ouvidos, por via aérea e por via óssea (Figura 6). • Audiomatria condicionada por jogos A criança mais velha, geralmente a partir dos dois anos e meio, poderá ser condicionada utilizando jogos: é-lhe explicado que, cada vez que ouvir o som-teste, deverá colocar uma peça do jogo. O som teste poderá ser apresentado em campo livre, através de auscultadores ou de vibrador. Inicia-se o exame pela apresentação de um som com uma intensidade suficiente para que a criança oiça; e depois vai-se diminuindo a intensidade e variando a frequência, de modo a obter os limiares para as frequências entre 250 a 4000 Hz (Figura 7). As limitações das provas comportamentais são: exigem condições técnicas adequadas a crianças (cabines insonorizadas de dimensões adequadas, audiómetros adaptados a colunas calibradas para campo livre, técnicos treinados em audiometria infantil, sendo por vezes necessários dois em simultâneo); a criança tem que cooperar, o que nem sempre é possível, devido à sua idade ou a atraso do desenvolvimento psico-motor; a resposta comportamental pode extinguir-se rapidamente, pelo que muitas vezes a prova terá que ser FIG. 6 Reflexos de Orientação Condicionada – A criança é condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco começa a mexer-se e a luz acende-se. interrompida, recomeçado de novo, quando a criança volte a cooperar, por vezes no dia seguinte. Pelas limitações descritas, quando as respostas não são claras e consistentes, há necessidade de complementar as provas comportamentais com provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados de ambas as provas. Provas fisiológicas No grupo das provas fisiológicas consideram-se as seguintes modalidades: provas de impedância (incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos acústicos); a prova dos potenciais evocados auditivos (incluindo uma nova modalidade designada por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory Steady State Response), e a prova das oto-emissões acústicas. • Timpanograma Esta prova permite avaliar as condições físicas do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpanoossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio de transmissão do som: gás ou exsudados). Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226 Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em bebés até esta idade. CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica FIG. 7 Audiometria Lúdica (condicionada por jogos) – A criança coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som teste. Há três tipos principais de resultados obtidos pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o gráfico corresponde a um ouvido normal, com uma mobilidade normal do sistema timpanoossicular; o segundo (B) corresponde a um aumento significativo da impedância do ouvido médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossicular, na maior parte das vezes correspondendo à presença de derrame dentro do ouvido médio; o timpanograma do tipo C corresponde a situações intermédias, com pressões negativas dentro do ouvido médio, por funcionamento anómalo da trompa de Eustáquio. • Prova dos reflexos acústicos Esta prova que perdeu a importância diagnóstica que teve no passado, com a utilização generalizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais evocados auditivos a referir adiante, testa a integridade da via auditiva (arco reflexo da via auditiva-nervo facial). O princípio utilizado é o seguinte: apresentando um som-teste de intensi- 431 dade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60 dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na contracção dos músculos do ouvido médio, no ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos ipsi e contralaterais). Como principais limitações citam-se: tempo exigido para o teste, durante o qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser executada na presença de líquido no ouvido médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular. A presença de reflexos normais significa normalidade das duas vias testadas (aferente e eferente), mas a sua ausência não permite a afirmação de hipoacusia. • Potenciais evocados auditivos (PEA) São provas que avaliam as variações dos potenciais eléctricos entre vários pontos da superfície da calote craniana em resposta a um estímulo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos. Podem designar-se, quanto à sua latência, em potenciais de curta, média e longa latência. Muitas vezes estes potenciais são denominados quanto à origem das ondas que examinam (ex: potenciais evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC). Tais provas exigem que o doente se encontre perfeitamente relaxado, preferencialmente adormecido, havendo muitas vezes necessidade de recorrer à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade, pois permitem confirmar os limiares auditivos obtidos pelas provas comportamentais; em casos de crianças muito jovens, não cooperantes ou com deficiência, estas provas podem ser as únicas a fornecer dados acerca das capacidades auditivas. As respostas obtidas deverão ser interpretadas por um técnico treinado e relacionadas com a clínica e com os resultados das restantes provas. Os potencias evocados auditivos mais utilizados na clínica audiológica pediátrica são os potenciais evocados auditivos precoces, de curta latência ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A prova consiste no seguinte: são colocados eléctrodos na superfície da calote craniana sendo registado o traçado electroencefalográfico (EEG) do doente, o que corresponde à actividade eléctrica de base. Registam-se as variações da actividade eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apresentação de um estímulo auditivo por meio de auscultadores a cada um dos ouvidos separadamente, sendo este som-teste repetido rapidamente (por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadên- 432 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cia de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo mais utilizado é um “click”, estímulo transitório com um espectro frequencial centrado entre 2 000 e 4 000 Hz. O computador analisa as ondas, extraindo a resposta eléctrica da via auditiva da actividade eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas ondas positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que representam a activação de diversas zonas da via auditiva (Quadro 7) . A intensidade do estímulo vai depois sendo diminuída, em degraus de 10 dB, até que as ondas se vão extinguindo progressivamente. Quando a chamada onda V se extingue (geralmente a mais resiliente), verifica-se se o limiar auditivo se situa cerca desta intensidade. Este limiar corresponde ao limiar obtido por audiometria comportamental entre os 2 000 e os 4 000 Hz. Com esta prova não é possível a determinação de limiares electrofisiológicos para as restantes frequências. Além do limiar electrofisiológico, podem medir-se as latências das ondas e os intervalos entre as ondas, o que permite um diagnóstico topográfico das lesões da via auditiva, contribuindo para o esclarecimento etiológico da hipoacusia. Esta prova tem elevadas especificidade e sensibilidade, estando disponível na maioria das unidades de audiologia desde há décadas. Actualmente existem no mercado aparelhos automáticos com algoritmos de decisão, em que o próprio aparelho procede à identificação das ondas e à sua análise, dando resultados do tipo “Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com problema” que exige esclarecimento, tal como foi descrito a propósito dos rastreios. • Otoemissões acústicas (OEA) Com esta prova são utilizados sons de fraca intensidade com origem nas células ciliadas externas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normoouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas (transitórias), e OEA de produtos de distorção. Após a sua produção na cóclea estas ondas sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se estas vibrações ao ar do canal auditivo externo onde serão detectadas por um microfone. Após processamento destas respostas obtêm-se valores QUADRO 7 – Origem provável das ondas dos PEATC • Onda I – Cóclea e porção mais distal do VIII par • Onda II – Porção proximal do VIII par e Núcleos Cocleares • Onda III – Complexo Olivar Superior • Onda IV – Leminiscus Lateralis, Núcleos Cocleraes e Complexo Olivar Superior • Onda V – Coliculus Inferior que serão representados graficamente e que podem ser utilizados para fins diagnósticos. Considera-se que, quando as oto-emissões acústicas estão presentes, o ouvido tem um limiar auditivo igual ou melhor que 40 dB; por outro lado a ausência de OEA, que pode resultar de oclusão do canal auditivo externo, presença de líquido dentro do ouvido médio, ou disfunção coclear, significa que o ouvido deverá ter limiares auditivos piores que 40 dB. As OEA não permitem a definição de limiares auditivos, mas constituem um teste importante para avaliar a função coclear. Utiliza-se, sobretudo, em rastreios auditivos (rastreio universal da audição de recém-nascidos, rastreio da audição após meningite, e também na monitorização de fenómenos de ototoxicidade e de surdez induzida por ruído). Em suma, a avaliação audiológica correcta deverá basear-se num conjunto de testes adaptados para cada idade e para cada criança; é mais difícil nas crianças muito pequenas, com atraso psicomotor, com perturbações da esfera do autismo e nas crianças com multideficiência (cerca de 30% das crianças com surdez). O papel dos profissionais de saúde (pediatras, clínicos gerais, técnicos) com responsabilidade na avaliação do desenvolvimento das crianças, deverá ser proactivo, no sentido de detectar a deficiência auditiva cada vez mais precocemente. Com efeito, no passado, muitas vezes o diagnóstico apenas se fazia aos dois ou três anos, quando a criança apresentava um manifesto atraso de aquisição da linguagem verbal. BIBLIOGRAFIA Ferraro J. Electrocochleography. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg 1998; 6: 338-341 CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica Ferraro JA. Clinical electrocochleography: overview of theories, techniques and applications. www.audiologyonline. com/articles/(acedido a 8.03.2008) Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil (GRISI). Monteiro L. Recomendações para o rastreio auditivo neonatal universal. Acta Pediatr Port 2007; 38: 209-214 Kennedy C, McCann D, Campbell MJ, et al. Universal newborn screening for permanent childhood hearing impairment: an 8 year follow-up of a controlled trial. Lancet 2005; 366: 660-662 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Monteiro L, Calado V. Como organizar um rastreio universal da audição neonatal. Rev Port ORL 2001; 39: 27-38 Smith RJH, Bale JF Jr, White KR. Sensorineural hearing loss in children. 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Videira Amaral Neste capítulo é feita uma abordagem de conjunto de determinadas anomalias de conformação do tórax, quer congénitas, quer adquiridas, as quais poderão estar ou não associadas a outras anomalias congénitas, em muitos casos fazendo parte de diversas síndromas plurimalformativas. Tórax assimétrico Alguns lactentes, em especial com antecedentes de prematuridade, exibem nos primeiros meses de vida , tórax assimétrico, em geral associado a assimetria da cabeça. Trata-se de crianças que permanecem durante muito tempo em decúbito, sempre na mesma posição, mais inclinadas para um lado do que para outro. A cabeça e o tórax cedem no lado comprimido, achatando- se e perdendo a simetria. Para corrigir tal situação bastará mudar de vez em quando a posição da criança no berço ou virála para o lado oposto durante algum tempo, para prevenir ou corrigir a deformação. notam-se nódulos arredondados dispostos de cada lado da linha média da face anterior do tórax, desde as costelas superiores às inferiores. A correcção desta situação consiste no tratamento do raquitismo com vitamina D e, eventualmente, suplemento de cálcio. (ver Parte Nutrição). No âmbito do raquitismo, cabe referir, a propósito: 1.1 - o chamado “pulmão raquítico”, quadro clínico hoje praticamente inexistente, associado às síndromas de raquitismo grave e às infecções respiratórias de repetição/pneumonias no contexto de tal afecção. A etipatogenia relaciona-se com as alterações da dinâmica respiratória associadas, quer às deformações do tórax, quer à hipotonia muscular acompanhante; as costelas, com défice de calcificação, não resistem às tracções musculares e compressões deixando- se deformar (Figura 1). 1.2 - a cinta raquítica ou sulco de Harrison A tracção exercida pelo diafragma pode ocasionar, na parte inferior do tórax, um pouco acima do rebordo costal, um sulco ou depressão horizontal que se acentua durante a inspiração. Como o raquitismo se acompanha de hipotonia muscular, o abdómen, consideravelmente abaulado, impele para fora as costelas situadas abaixo das inserções diafragmáticas, assumindo, nos casos mais típicos, a forma de tórax em sino. (ver Parte Nutrição). 2. Escorbuto No caso do escorbuto (situação que nos países Tórax com “rosário costal“ 1. Raquitismo O ponto de união costocondral palpa-se com facilidade em muitos lactentes saudáveis nos primeiros meses de vida;no entanto, não chega a ser visível. No raquitismo encontra-se, por vezes já no segundo trimestre, o chamado “rosário costal”, designação clássica para traduzir a tumefacção esferóide “em conta de rosário” na junção osteocartilaginosa das costelas; com efeito, à inspecção FIG. 1 Padrão radiográfico de pneumonia no contexto de raquitismo grave (“Pulmão raquítico”) (NIHDE). CAPÍTULO 80 Anomalias da parede do tórax 437 desenvolvidos hoje pertence à história) existe também rosário costal, no entanto com etiopatogénese diferente da do raquitismo. Com efeito, no escorbuto o esterno encontra-se deprimido, sendo precisamente o deslocamento do esterno para trás que origina subluxação das condrocostais e, consequentemente, a sua “saliência” ou ”contas do rosário”. No entanto, as contas deste “rosário“ são angulares, em “baioneta”, contrastando com as do raquitismo, largas e achatadas ou esferóides. Recorde- se que não se observam as deformações de tipo raquítico da cabeça e tórax. A correcção deste defeito consiste, essencialmente, na administração de vitamina C. (ver Parte Nutrição). Tórax “em quilha ou de pombo”/ Pectus carinatum Uma das alterações mais comuns consiste no achatamento ou depressão ântero-lateral com saliência do esterno. Tal deformação produz-se quando ao raquitismo se associam infecções broncopulmonares repetidas a que atrás se fez alusão. Esta deformidade pode ser congénita, independente do raquitismo. É o que acontece , por exemplo, numa das mucopolissacaridoses(doença de Mórquio). Independentemente da correcção do possível défice de base na situações adquiridas, os quadros clínicos com deformação mais exuberante deverão ser avaliados pelo cirurgião pediátrico para eventual correcção cirúrgica. Tórax “em barril” ou enfisematoso Nas situações de enfisema pulmonar crónico as costelas tornam-se horizontais e o tórax globoso, arredondado; é o exagero da disposição normal da primeira infância. Este tipo de tórax encontra-se transitoriamente na bronquiolite aguda e nas crises de asma. Com carácter permanente é mais raro, associando-se na maioria das vezes a fibrose quística ou asma grave. Tórax “em funil” ou pectus excavatum FIG. 2 Pectus excavatum no contexto de sindroma de Poland (Atrofia do grande peitoral). (NIHDE) restrita à parte inferior do esterno e às articulações condrocostais, da 4ª costela à 9ª. Deste modo, reduz- se o diâmetro ântero- posterior do tórax ao nível do apêndice xifoideu. A profundidade da depressão por vezes muito acentuada, simétrica ou assimétrica, pode progredir ou regredir com a idade. O pectus excavatum pode estar associado a diversas síndromas tais como síndroma de Marfan, de Pierre Robin, de Coffin Lowry, de Poland, etc.. (Figura 2). Para avaliação do compromisso da função respiratória poderá estar indicada espirometria. Tal deformidade deve ser avaliada pelo cirurgião pediátrico; se for decidida a correcção cirúrgica, sendo isolada, ela é feita mais por razões cosméticas do que pela repercussão funcional respiratória. BIBLIOGRAFIA Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia:Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Gill D, O´Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2003 Kliegman RM, Marcdante KJ, Jenson HB, Behrman RE. Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia:Elsevier Saunders, 2006 Rudolph CD, Rudolph AM. Rudolph´s Pediatrics. New York: Esta deformidade, quase sempre congénita, caracteriza-se por depressão, arredondada ou angular, McGraw-Hill, 2002 438 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 81 ANOMALIAS CONGÉNITAS DO SISTEMA RESPIRATÓRIO Julião Magalhães e João M. Videira Amaral Importância do problema As anomalias congénitas do sistema respiratório, implicando em geral resolução cirúrgica, são situações raras de expressão clínica muito variável. Com a evolução da tecnologia de imagem aplicada no período pré-natal é hoje possível o diagnóstico antecipado de muitas destas situações, o que contribui para a melhoria do prognóstico. Etiopatogénese A morfogénese das estruturas da árvore respiratória (tracto respiratório inferior) que derivam primordialmente do intestino primitivo do embrião, é classicamente dividida em cinco períodos: estes são contados a partir da separação do divertículo “em dedo de luva”ou saccuilus pulmonalis que emerge da face ventral do tubo digestivo primitivo pelos 24 dias de gestação,bifurcando-se pelos 26-28 dias (esboços dos brônquios principais): – Período embrionário (4ª -7ª semana) Neste período inicia-se a separação do primórdio respiratório a partir da face ventral do intestino anterior como resultado da formação do septo tráqueoesofágico; estão então constituídos dois “tubos” independentes: o esófago e o tubo laringotraqueal. – Período pseudoglandular(7ª-16ª semana) Neste período ocorrem determinados eventos em simultâneo: ramificação da árvore respiratória até aos bronquíolos terminais, migração das estruturas vasculares, e desenvolvimento da cartilagem, glândulas mucosas e musculatura lisa nos brônquios a partir do mesênquima. – Período canalicular (16ª-26ª semana) Neste período formam-se os bronquíolos respiratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a partir dos bronquíolos terminais. – Período sacular (26ª-36ª semana) Os eventos importantes deste período são o crescimento das unidades para as trocas gasosas e a produção de surfactante alveolar. – Período alveolar (a partir da 36ª semana) Neste período completa- se a formação das estruturas envolvidas na função respiratória continuando o crescimento da superfície de trocas gasosas. A perturbação deste processo em diversas datas e por efeito de diversos factores dá origem a diversas anomalias congénitas; neste capítulo é feita menção especial a quatro situações deste foro, de possível solução cirúrgica: enfisema lobar congénito, quisto broncogénico, malformação adenomatóide quística e sequestração broncopulmonar. 1. ENFISEMA LOBAR CONGÉNITO Definição O enfisema lobar congénito consiste na insuflação anormal de um pulmão anatomicamente normal resultando provavelmente de um defeito intrínseco da cartilagem bronquiolar favorecendo broncomalacia. Como consequência verifica- se colapso do brônquio afectado durante a expiração levando a retenção progressiva de ar no pulmão por dificuldade de saída daquele. O lobo mais frequentemente afectado é o superior esquerdo (LSE), seguindo-se em frequência o lobo médio direito e o superior direito. Manifestações clínicas O enfisema lobar congénito pode ser assintomático durante algum tempo (dias), sendo habitual um quadro de dificuldade respiratória, de instalação mais ou menos rápida, nos primeiros dias de vida; é possível que o mesmo seja desencadeado pelo choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda. As manifestações poderão surgir mais tarde, na idade pré-escolar. O quadro clínico é explicável pela compressão exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal. CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório Exames complementares e diagnóstico diferencial Através da radiografia do tórax realizada perante manifestações de dificuldade respiratória torna-se evidente o sinal de hipertransparência na área do lobo afectado(em geral LSE) com herniação e desvio do mediastino para o lado oposto ; a hemicúpula diafragmática homolateral está aplanada (Figura 1). O diagnóstico diferencial faz-se com pneumotórax e com anomalia adenomatóide quística na sua forma de apresentação de quisto gigante. A tomografia axial computadorizada ajuda nesta destrinça, bem como esclarece a possível confusão com compressão extrínseca do brônquio por estruturas mediastínicas. Nestes casos a broncoscopia pré-operatória pode tornar-se indispensável. Poderá estar indicada a cintigrafia de perfusão/ventilação nos casos de enfisema lobar que se admite tenha sido adquirido após ventilação com pressão positiva de longa duração. Também está indicada a observação por cardiologista pediátrico que procede a ecografia cardíaca pela elevada probabilidade de associação a anomalia cardiovascular. Tratamento Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento é cirúrgico . Se o quadro for de instalação aguda, pode ser necessária uma toracotomia de urgência. FIG. 1 Padrão radiográfico convencional do tórax (Enfisema lobar à esquerda). TAC torácica (imagem bolhosa). (NIHDE) 439 Se se demonstrar que a causa da insuflação é broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se existir compressão extrínseca, a intervenção tem como objectivo retirar a causa. Se se tratar de compressão extrínseca, após remoção da causa o lobo afectado retomará a sua função normal. Se no pré-operatório se tornar indispensável apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação oscilatória de alta frequência. 2. QUISTO BRONCOGÉNICO Definição O quisto broncogénico gera-se a partir do divertículo respiratório, em que um grupo de células, que se desenvolve independentemente do tracto respiratório, se separa deste. Pode ter várias localizações sendo a mais frequente no mediastino posterior ou médio, por de trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe” (carina, hilo pulmonar); está frequentemente ligado a esta por um pedículo obliterado ou permeável. Em geral é central e único. Pode, raramente, localizar-se no esófago, pericárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assumindo nesta última localização a forma multilocular. No que respeita a características morfológicas, os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de diâmetro, parede bem individualizada e contêm muco, pus ou sangue. Manifestações clínicas Mais frequentemente as manifestações têm início na idade pré- escolar traduzindo- se por sinais de broncospasmo, sinais de compressão, ou por infecções respiratórias de repetição, nalguns casos relacionadas com infecção do próprio quisto quando este comunica com a árvore tráqueo-brônquica. Os quistos de localização intercarinal podem manifestar-se muito mais precocemente, já no recém- nascido, com insuficiência respiratória, o que implica correcção precoce; podem ser causa de morte súbita. Noutros casos são assintomáticos, sendo então identificados como achados no âmbito da realização de exame radiográfico do tórax por motivos diversos. 440 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Exames complementares A radiografia do tórax poderá evidenciar massa paratraqueal ou imagem esferóide com parede fina (semelhante a “balão” ou grande “bolha” correspondente a área de distensão gasosa. A TAC e a RMN, com maior discriminação imagiológica, possibilitarão a identificação de pequenos quistos intercarinais. primir as estruturas vizinhas. Surge com uma frequência aproximada de 14/100.000 nascimentos. São descritos 3 tipos: 1 ( 50%), macroquístico, com um ou mais quistos de diâmetro superior a 2 cm; 2 ( 40%), microquístico com histologia semelhante à do tipo 1; 3 ( 10%) em que a lesão é sólida simile bronquíolos preenchidos por epitélio cubóide ciliado e não ciliado. Diagnóstico diferencial Manifestações clínicas e diagnóstico As manifestações clínicas e o padrão radiográfico do tórax convencional evidenciando imagem de distensão gasosa ou “bolhosa” única poderão levar a admitir a presença doutra situação – o quisto pulmonar – com patogénese semelhante ao quisto broncogénico, mas derivando das células do bronquíolo respiratório. O referido quisto pulmonar é, no entanto, periférico (e único) com um padrão radiográfico que evidencia parede melhor definida do que no caso do quisto broncogénico. Por sua vez, o quisto pulmonar pode confundir-se com pneumatocelo o qual apresenta parede menos espessa. O quisto pulmonar, quando infectado, pode confundir-se com abcesso pulmonar. As manifestações são precoces, no pós – parto traduzidas por síndroma de dificuldade respiratória conduzindo a insuficiência respiratória; a manifestação mais tardia inaugural pode ser infecção respiratória com recorrências. A ecografia fetal permite o diagnóstico entre a 12ª e a 14ª semana de vida intra-uterina; por vezes verifica-se inexplicavelmente a sua regressão espontânea o que prova a complexidade de tal anomalia congénita. Em certas formas surge hydrops fetalis. Após o nascimento a radiografia do tórax é essencial para o diagnóstico definitivo, chamando- se a atenção para o diagnóstico diferencial com a hérnia diafragmática de Bochdaleck (esta última abordada no capítulo 308). Em casos especiais pode proceder-se à tomografia axial computadorizada. Definição e importância do problema Esta anomalia relativamente frequentemente é caracterizada por crescimento desordenado (histologia de tipo hamartoma ou displasia) dos bronquíolos terminais impedindo quase completamente o crescimento e desenvolvimento alveolar no lobo de um pulmão; como consequência há formação de múltiplos quistos desorganizados alternando com zonas de parênquima não afectado, sendo que os referidos quistos não comunicam com a árvore tráqueo-brônquica e podem com- Ⲙ 3. MALFORMAÇÃO ADENOMATÓIDE QUÍSTICA Ⲙ O tratamento, quer do quisto broncogénico, quer do quisto pulmonar, é a excisão cirúrgica. Ⲙ Tratamento Tratamento O tratamento é a excisão cirúrgica – lobectomia – mesmo no doente assintomático, de preferência antes dos 12 meses de idade, face à possibilidade de evolução sarcomatosa ou carcinomatosa. Quando as lesões são de grandes dimensões pode verificar-se hipoplasia do pulmão e hipertensão pulmonar implicando medidas de suporte respiratório em unidade de cuidados intensivos. 4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR Definição e etiopatogénese Esta anomalia é caracterizada pela presença de segmento de parênquima pulmonar não funcionante, sem comunicação evidente com a árvore traqueo-brônquica ; a sua vascularização é anó- CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório mala, recebendo a totalidade ou a maior parte da sua irrigação arterial sanguínea por vasos oriundos directamente da circulação sistémica. São descritos dois tipos: – intralobar em que o tecido sequestrado está contido no lobo normal; – extralobar, ocorrendo quando a lesão está separada do lobo pulmonar normal e também fora da pleura visceral; este tipo está mais frequentemente associado a outras anomalias congénitas. 441 A Manifestações clínicas e diagnóstico O início das manifestações é muito variável, desde a idade pediátrica à idade adulta. Em geral traduzemse, quer por sinais e sintomas de infecções respiratórias, quer relacionáveis com shunt de alto débito em relação com os vasos anómalos. A sintomatologia é predominantemente respiratória, mas a presença de shunts de alto débito, por si só, ou pelas malformações cardíacas congénitas associadas, pode produzir manifestações cardiocirculatórias. Com efeito, a infecção respiratória é habitual neste tecido pulmonar não funcionante, pelo que as crianças com infecções respiratórias de repetição de causa não evidente devem ser consideradas suspeitas de serem portadoras deste tipo de malformação e investigadas nesse sentido. A radiografia do tórax convencional, nos casos de tipo intralobar, pode evidenciar sinais de opacidade ou de lesão quística com nível líquido. A ecografia doppler é o exame de eleição, mas pode haver necessidade de se associar TAC com reconstrução a 3 dimensões, ou ângio-ressonância. Deve ser feito o estudo por ecografia e cintigrafia do fígado quando a lesão está localizada na base direita, pois há casos de hérnia diafragmática com fígado intratorácico que podem levar a erros de diagnóstico. Tratamento B FIG. 1 Sequestração pulmonar: A – Radiografia do tórax convencional evidenciando opacidade ovóide no terço inferior do hemitórax esquerdo; B – TAC torácica evidenciando opacidades arredondadas confluentes em “mapa geográfico”. (NIHDE) dente, poderão ser seguidos sem intervenção cirúrgica a qual só estará indicada se se verificar infecção ou sintomatologia cardiocirculatória. BIBLIOGRAFIA Calvert JK, Boyd PA, Chamberlain PC, et al. Outcome of antenatally suspected congenital cystic adenomatoid malformation of the lung: 10 years experience 1991-2001. Arch Dis Child 2006; 91: F26-F28 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, O tratamento da sequestração pulmonar intralobar é a lobectomia ou, caso possível, a segmentectomia, tendo sempre em atenção a necessidade de laquear o vaso anómalo face ao risco de hemorragia e morte intra-operatória . Os casos de sequestração extralobar que, na sua maioria, são assintomáticos e descobertos por aci- 2007 Sauvat F, Michel JL, Benachi A, et al. Management of asymptomatic neonatal cystic adenomatoid malformations. J Pediatr Surg 2003; 38: 548-552 Schmittenbecher P. Congenital cystic adenomatoid malformation of the lung: Indications and timing of surgery. J Pediatr Surg 2005; 40: 891-892 442 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 82 PNEUMONIA ADQUIRIDA NA COMUNIDADE Laura Oliveira e Fátima Abreu Definição e importância do problema Pneumonia é a inflamação dos alvéolos e das vias aéreas terminais causada, regra geral, por um agente invasor, vírus ou bactéria. Outras causas não infecciosas podem também originar tal processo inflamatório, como aspiração de alimentos ou conteúdo gástrico, corpos estranhos, hidrocarbonetos, substâncias lipóides, reacções de hipersensibilidade, radiações, etc.. As causas de infecção no RN e no doente imunocomprometido são diferentes. Este processo traduz-se na maioria das vezes por um quadro de febre e sintomas respiratórios de início agudo, associados a infiltrados parenquimatosos (hipotransparência) pulmonares evidenciados em radiografia de tórax. É o conceito de pneumonia aguda. Assim, na perspectiva da prática clínica surgem dois termos: 1) Pneumonia no sentido genérico definida pela presença de febre e/ou sintomas e sinais agudos de afecção da via respiratória inferior, associados a sinais radiográficos de tórax (infiltrados parenquimatosos); 2) Pneumonia adquirida na comunidade, definida pelo quadro de infecção adquirida fora do ambiente hospitalar no pressuposto de o doente não ter estado internado nos 7 dias precedendo o diagnóstico e de este último ser feito dentro de 48 horas após o internamento. Certos factores aumentam o risco de aquisição desta patologia; as crianças imunodeprimidas, com doenças neuromusculares, refluxo gastro-esofágico, defeitos anatómicos congénitos pulmonares (por exemplo sequestro intrapulmonar, fístula tráqueo-esofágica) ou com anomalias do mecanismo de depu- ração pulmonar (fibrose quística, disfunção ciliar) são particularmente susceptíveis. A pneumonia de causa infecciosa é uma das situações graves mais comuns na infância, com uma incidência anual na Europa e América do Norte de 34 a 40 casos por 1000 crianças, sendo causa frequente de morbilidade nas idades pediátricas nos países desenvolvidos. Em Portugal, no que respeita à pneumonia adquirida na comunidade, estima-se uma incidência de 30/1000 internamentos. Etiologia Em idade pediátrica, de um modo geral não é possível determinar o agente microbiano causador da pneumonia. Tal requereria técnicas invasivas e cruentas como a biópsia ou a aspiração pulmonares, poucas vezes efectuadas. O diagnóstico etiológico de presunção baseia-se, pois, em inúmeros pressupostos, tais como: a clínica; a epidemiologia local; aspectos radiológicos; variações sazonais e a idade do doente. Exceptuando o período neonatal, os vírus são responsáveis por cerca de 80 a 85% dos casos de pneumonias. Destes os mais frequentes são os vírus respiratório sincicial (VRS), parainfluenza 1,2,3 e influenza A e B. Os agentes microbianos mais frequentemente implicados no período neonatal são o estreptococo do grupo B (Streptococcus agalactiae) e os bacilos entéricos gram-negativos, particularmente a Escherichia coli, adquiridos por transmissão vertical na altura do parto. Fora deste período, o agente bacteriano mais frequente é o Streptococcus pneumoniae, embora em crianças mais velhas e adolescentes o M. pneumoniae e a Chlamydia pneumoniae estejam frequentemente implicados. Lactentes com menos de 20 semanas com tosse seca arrastada e conjuntivite podem ter infecções por Chlamydia trachomatis. Lactentes não imunizados podem também ter pneumonia por Haemophilus influenzae. A infecção por Staphylococcus aureus pode resultar de infecções cutâneas e ser adquirida por via hematogénica causando pneumonias graves. Fisiopatologia A pneumonia resulta da inflamação do tecido pulmonar causada pela invasão de agentes pato- CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade génicos como sejam vírus, bactérias, agentes químicos ou outros. O agente causador de lesão chega ao pulmão por inalação, por microaspiração ou por via hematogénica. Ao chegar ao alvéolo pulmonar o sistema imunológico tenta eliminá-lo através de dois mecanismos principais: meios de defesa físicos (processo de depuração mucociliar e drenagem linfática), e mecanismos de destruição de bactérias (opsonização, acção de imunoglobulinas G específicas, ingestão macrofágica ou destruição bacteriana mediada pelo complemento). Se estes mecanismos não forem capazes de deter a infecção, são recrutados polimorfonucleados para o local, resultando daí uma resposta inflamatória. A perpetuação desta resposta conduz à pneumonia. Classicamente foram descritos quatro entidades histológicas para a pneumonia por pneumococo: ingurgitamento; hepatização vermelha; hepatização cinzenta e resolução. A primeira destas fases está associada à presença de bactérias nos alvéolos e ao exsudado seroso associado que progride posteriormente para a hepatização vermelha por passagem dos eritrócitos para os alvéolos. A fase seguinte, hepatização cinzenta, resulta da migração dos leucócitos para a área afectada com depósito de fibrina intravascular, dificultando a perfusão na área afectada. Por fim, a fagocitose do micróbio e a eliminação da fibrina e detritos conduzem à resolução da pneumonia. Quando as bactérias se estendem à cavidade pleural, a supuração intrapleural pode produzir empiema. A resolução desta reacção pleural pode ocorrer espontaneamente, mas habitualmente leva a espessamento fibroso ou forma aderências. 443 Manifestações clínicas O quadro clínico das pneumonias reveste-se de contornos diferentes consoante a idade do doente, a gravidade da doença e o agente etiológico. As manifestações clínicas são diversas e muitas vezes inespecíficas ou subtis, sobretudo no período neonatal em que pode haver apenas um quadro de irritabilidade, recusa alimentar, taquipneia e gemido. Nem sempre este quadro se acompanha de febre, podendo, pelo contrário, associar-se a hipotermia. Após o 1º mês de vida a tosse é o sintoma mais comum de apresentação da doença, em geral acompanhada de febre. Os lactentes podem ter história precedente de infecção das vias respiratórias superiores. Vómitos, particularmente após acesso de tosse, recusa alimentar e irritabilidade, são também sinais comuns de apresentação da doença. Em lactentes com menos de 20 semanas, sintomas como tosse seca, conjuntivite, taquipneia e fervores crepitantes detectados pela auscultação pulmonar devem levar a admitir a hipótese de pneumonia por Chlamydia trachomatis. As crianças mais velhas e adolescentes, para além dos sintomas comuns às crianças pequenas, podem queixar-se de cefaleia, dor pleurítica ou dor abdominal vaga, vómitos, diarreia, odinofagia e otalgia, sugerindo pneumonia provocada por germes como Mycoplasma. A tosse acompanhada de sibilância é também muito comum a este tipo de infecção. A existência de sinais infecção pulmonar associada, por exemplo, a abcessos cutâneos ou dos tecidos moles, pode sugerir como agentes etiológicos o Staphylococcus aureus e o Streptococcus QUADRO 1 – Pneumonia: manifestações clínicas e germe microbiano Pneumonia bacteriana Pneumonia por vírus, M. pneumoniae, C. pneumoniae Febre Início Sintomas associados geralmente > 39° C abrupto dor torácica; dor abdominal Auscultação pulmonar diminuição do murmúrio vesicular geralmente > 39° C gradual mialgias, faringite, conjuntivite, diarreia, exantema sibilos 444 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA do grupo A; otite média aguda, sinusite ou meningite podem ter como causa Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus influenza; este último também se pode associar a epiglotite e pericardite. No exame físico deve atender-se primeiramente ao estado geral do doente, ao grau de hidratação, aos sinais de perfusão periférica e a sinais de dificuldade respiratória (taquipneia; adejo nasal; retracção costal). A auscultação pulmonar pode revelar fervores crepitantes, diminuição do murmúrio vesicular na área pulmonar afectada ou, pelo contrário, pode não revelar qualquer alteração, sobretudo em lactentes pequenos. Nas crianças mais velhas ocorrem sinais pulmonares na área afectada do pulmão com macicez à percussão, aumento das transmissões vocais e finos fervores crepitantes. Salienta-se, a propósito, que as manifestações clínicas não são suficientemente específicas nem sensíveis para estabelecer o diagnóstico etiológico de pneumonia. O Quadro 1 sintetiza as principais características clínicas relacionadas com etiologia microbiana mais provável. O Quadro 2 sistematiza os germes microbianos mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comunidade em função da idade. Condições especiais, tais como disfunções neuromusculares e perturbações da deglutição, podem condicionar pneumonias de aspiração nas quais estão muitas vezes implicadas bactérias anaeróbias. Distinguir na prática clínica uma pneumonia de causa vírica doutra de causa bacteriana nem sempre é possível, já que nem a gravidade da doença, nem as características da tosse ou os aspectos radioló- gicos permitem a destrinça com segurança. No entanto, determinados achados tais como a presença de derrame pleural extenso, pneumatocelo, abcesso, consolidações lobares e pneumonias com opacidades “redondas” são, em geral, indicadores de pneumonias bacterianas. Deve, porém, ter-se em conta que cerca de 25 a 75% dos casos de pneumonia bacteriana têm uma infecção vírica precedente ou concomitante, e que a infecção por mais que um agente etiológico é frequente em doentes hospitalizados (10-40% dos casos). Exames complementares Sendo o diagnóstico de pneumonia essencialmente clínico, cabe salientar, no entanto, que: a radiografia simples do tórax é o método mais útil para confirmar a existência de tal patologia; e que a realização da mesma em formas clínicas aparentemente ligeiras não está indicada rotineiramente, de acordo com as recomendações e consensos da Secção de Pneumologia da SPP (2007). Poderá não existir relação entre os aspectos radiográficos e a clínica nos lactentes e crianças mais pequenas, sendo também possível encontrarse sinais de pneumonia significativa na ausência de sinais clínicos. Dum modo geral pode dizer-se que a consolidação lobar se associa às infecções por pneumococo e os infiltrados intersticiais às infecções por vírus, embora estes diferentes padrões possam surgir associados a qualquer etiologia. Classicamente estão descritos três padrões de densidades pulmonares: o padrão alveolar (associado mais frequentemente ao pneumococo e outras bactérias), que se caracteriza por consoli- QUADRO 2 – Germes microbianos mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comunidade em relação com a idade RN (<1 mês) Streptococcus grupo B E coli S pneumonae Haemophilus influenzae (tipo B) 1 a 3 meses Vírus sincicial respiratório Vírus parainfluenza Adenovírus Streptococcus pneumoniae Staphylococcus aureus Chamydophila trachomatis Haemophilus influenza tipo b Mais de 3 meses a 5 anos Vírus sincicial respiratório Vírus parainfluenza Vírus influenza Adenovírus Streptococcus pneumoniae Mycoplasma pneumoniae Staphylococcus aureus Mais de 5 anos Mycoplasma pneumoniae Streptococcus pneumoniae Chlamydophila pneumoniae Streptococcus pyogenes CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade dação lobar ou segmentar e broncograma aéreo; o padrão de pneumonia intersticial (causada habitualmente por vírus e Mycoplasma) que se apresenta como um aumento reticulonodular e hiperinsuflaçao, com possível progressão para pequenas consolidações dispersas devido a atelectasias; por último descreve-se o padrão de broncopneumonia, mais frequentemente associada a Staphylococcus aureus e outras bactérias, que se apresenta como um padrão bilateral difuso, reforço peribrônquico e pequenos infitrados nodulares que se estendem até à periferia. No caso da pneumonia estafilocócica podem ainda existir sinais de necrose parenquimatosa (abcessos, pneumatocelos) e derrame pleural. As pneumonias “bolhosas” (acompanhadas de pneumatocelos) podem igual relacionar-se com S pyogenes (grupo A), S pneumoniae (raramente) e com Klebsiella pneumoniae (formas complicadas especiais). Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se a ecografia (por exemplo quando há suspeita de derrame pleural), a tomografia axial computadorizada e/ou a ressonância magnética nuclear. As Figuras 1 a 8 mostram diversos padrões radiológicos torácicos de pneumonia, correspondentes a crianças assistidas no Hospital de Dona Estefânia – Lisboa, quer em ambulatório, quer em internamento (documentos do NIHDE). A Figura 9 integra o esquema de projecção radiográfia do torax que facilita a compreensão das opacidades conforme a respectiva localização. O hemograma, proteína C reactiva e a velocidade de sedimentação são pouco específicos e de 445 FIG. 2 Padrão radiográfico de tipo intersticial acompanhado de enfisema importante (por vírus sincicial respiratório)-PA e perfil. (NIHDE) FIG. 3 Pneumonia estafilocócica com sinais de derrame pleural à direita. (NIHDE) FIG. 4 FIG. 1 Pneumonia por Mycoplasma pneumoniae. (NIHDE) Pneumonia estafilocócica. Imagens de pneumatocelos (PA e perfil). (NIHDE) 446 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 5 Padrão radiográfico de pneumonia lobar (identificada etiologia pneumocócica)- (PA e perfil). (NIHDE) FIG. 6 Padrão radiográfico de pneumonia “redonda” (opacidades arredondadas observáveis em ambos os campos pulmonares. (NIHDE) FIG. 7 FIG. 8 Pneumonia estafilocócica. Sinais de derrame pleural à esquerda. (NIHDE) Pneumonia estafilocócica. Radiografia do tórax (perfil); sinais de piopneumotórax. (NIHDE) escassa utilidade na orientação terapêutica do doente; nos casos de pneumonia por pneumococo há frequentemente leucocitose muito elevada com predomínio de polimorfonucleares e na infecção a Chlamyda trachomatis, eosinofilia. Nos doentes sem critérios de gravidade e cuja orientação pode ser feita em regime ambulatório não se torna imprescindível realização dos mesmos. Estão disponíveis a nível hospitalar testes para pesquisa rápida de antigénios de genomas ou dos próprios vírus (testes DNA, RNA, etc.) no exsudado da nasofaringe para vírus respiratório sincicial (VRS), parainfluenza, influenza A e B e adenovírus, os quais têm utilidade no diagnóstico. Os testes serológicos para determinação de títulos de IgM e IgG para o Mycoplasma e Chlamydia, são também úteis no estudo destas pneumonias, embora permitam apenas confirmar a etiologia a posteriori. As hemoculturas (positivas em apenas 3 a 11% dos doentes com pneumonia bacteriana), devem, no entanto, ser obtidas em todos os doentes internados com tal suspeita, e antes do início da antibioticoterapia. A prova de Mantoux (com tuberculina intradérmica) deve ser ponderada em casos especiais em função do contexto epidemiológico. (Parte Infecciologia) Relativamente à identificação do agente etiológico da pneumonia, os exames culturais do aspirado pulmonar ou de biópsia pulmonar são o método mais eficaz. Sendo métodos muito inva- CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 447 deve ser repetida se houver agravamento do quadro ou suspeita de complicações. Não há necessidade de ulterior estudo radiológico (ou laboratorial) perante boa evolução clínica. Nas pneumonias complicadas. deverá ser efectuada radiografia de controlo 4 a 6 semanas após a alta. Tratamento FIG. 9 Esquema da projecção radiográfica do tórax (de frente e de perfil). sivos, são reservados para situações muito graves que não respondam à terapêutica instituída. No caso de haver derrame pleural o exame bacteriológico do líquido pleural colhido na ausência de terapêutica prévia pode ser positivo em 65 a 80% dos casos. Quando há necessidade de se efectuar broncofibroscopia com lavado bronco-alveolar, na idade pediátrica a identificação dos agentes envolvidos pode variar entre 25 a 75% dos casos. Deve proceder-se a esclarecimento etiológico específico nos quadros graves se a evolução clínica for atípica ou complicada, e se existir suspeita de surto/epidemia. Notas importantes: A identificação de vírus (pesquisa de antigénios víricos no lavado nasofaríngeo) deve ser feita em todas as crianças internadas, com menos de 2 anos de idade. Não deve ser realizado exame bacteriológico das secreções respiratórias, já que o crescimento bacteriano apenas reflecte a flora da nasofaringe, não indicativo dos agentes infectantes das vias aéreas inferiores. Deve ser reservado para situações específicas. A radiografia de tórax só A decisão terapêutica deve ser tomada tendo em conta algoritmos diagnósticos que consideram a idade do doente, a clínica e factores epidemiológicos. Para além da terapêutica de suporte com fluidoterapia e oxigénio se houver hipoxémia com o objectivo de obter saturação em O2 ≥92%; na suspeita de pneumonia bacteriana a terapêutica antibiótica dita empírica (antes do eventual isolamento do agente) deve ser prontamente instituída. Recém-nascidos e lactentes com menos de 3 meses devem ser internados para terapêutica endovenosa com ampicilina + ceftriaxona, ou cefotaxima, ou gentamicina. No caso de suspeita de pneumonia por Chlamydia trachomatis ou pneumonia febril do lactente deve ser usado um macrólido (eritromicina ou claritromicina). O antibiótico de eleição de uma pneumonia não complicada, entre os 3 meses e os 5 anos, é a amoxicilina, mesmo considerando que 15% a 40% dos pneumococos são resistentes à penicilina; trata-se, no entanto de uma resistência intermédia (MIC 0.06-1.0mcg/ml), o que implica o uso de doses altas de amoxicilina (de 80mg/Kg/dia a 90mg/Kg/dia). As alternativas são a cefuroxima – acetil e a amoxicilina + ácido clavulânico. Quando a suspeita diagnóstica recai sobre o Mycoplasma e a Chlamydia pneumoniae, sobretudo nas crianças em idade escolar e adolescentes, devem ser usados macrólidos (azitromicina ou claritromicina); como alternativa acima dos 8 anos: doxiciclina. Nos adolescentes podem ser utilizadas fluoroquinolonas. Nas formas graves de pneumonia presumivelmente bacteriana exigindo internamento hospitalar, a terapêutica empírica inclui cefuroxima (150mg/kg/dia) ou cefotaxima ou ceftriaxona IV. Se as manifestações clínicas entretanto sugerirem etiologia estafilocócica (empiema, pneumatocelos, etc.), à terapêutica inicial deve acrescentar-se vancomicina ou clindamicina. 448 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Nos casos de pneumonia lobar sugerindo etiologia por S. pneumoniae ou por S. pyogenes (grupo A) os antibióticos de primeira escolha são a penicilina G 200.000-400.000 U/kg/dia ou amoxicilina po, ou ampicilina IV. Como alternativas: ceftriaxoma ou cefotaxima (+ vancomicina se suspeita de S. pneumoniae de resistência elevada à penicilina; ou penicilina G + clindamicina (se suspeita de S. pyogenes). Nos casos de pneumonia “bolhosa” detectada de início, os antibióticos de escolha são flucloxacilina + aminoglicosídeo. A duração do tratamento antimicrobiano é em geral 7-10 dias, salientando-se a duração entre 14 e 21 dias nas pneumonias bolhosas. O Quadro 3 especifica as doses de alguns antimicrobianos utilizados no tratamento das pneumonias adquiridas na comunidade, não referidas no texto. A via endovenosa, se estabelecida de início, deverá manter-se por 24-48 horas após desaparecimento da febre. Quando não se verificar resposta à terapêutica antibiótica a causa mais provável é vírica. Outros agentes bacterianos devem, no entanto, ser considerados (S. aureus; pneumococos multirresistentes, H. influenzae ampicilina – resistente e anaeróbios) tendo em conta contextos clínicos especiais. O internamento deve considerar-se nas seguintes situações: – Recém-nascidos; – Lactentes até aos 6 meses com febre; – Crianças de qualquer idade com: pneumonia multifocal; hipoxémia; sinais de dificuldade respiratória ou desidratação; impossibilidade de se proceder a terapêutica oral; doença crónica; ausência de resposta ao tratamento iniciado; famílias incapazes de garantir o tratamento ou a supervisão necessária da criança; imunodeficiência: complicações (derrame pleural, abcesso pulmonar, pneumatcelo, pneumotorax, etc.). A antibioticoterapia inicial deverá ser revista se houver identificação do agente etiológico e do seu perfil de sensibilidade aos antimicrobianos. A identificação de Streptococcus peumoniae de resistência intermédia à penicilina não justifica a mudança de antibiótico quando a opção inicial foi a ampicilina ou amoxicilina em dose adequada. Salienta-se o número crescente de S. pneumoniae resistentes à penicilina. Prognóstico e seguimento De uma maneira geral o prognóstico é excelente com a recuperação sem complicações na maior parte dos casos. A grande maioria das pneumonias por bactérias patogénicas comuns e por germes atípicos respondem à terapêutica antimicrobiana. Cerca de 80% dos infiltrados regridem em 3 semanas e os restantes em 3 meses. As complicações mais frequentes das pneumonias bacterianas são os derrames pleurais incluindo empiemas. Prevenção A imunização de rotina da criança tem tido um QUADRO 3 – Posologia e via de administração de alguns antimicrobianos utilizados nos casos de pneumonia Antimicrobiano Amoxicilina Ampicilina Amoxicilina + ácido clavulânico Azitromicina Via de administração oral endovenosa oral oral Cefotaxima Ceftriaxona Claritromicina Eritromicina Flucloxacilina endovenosa endovenosa oral ou endovenosa oral ou endovenosa oral endovenosa Dose (mg/Kg/dia) 80 - 100 150 - 200 75 - 90 1ª toma de 10 mg, 5 mg nos 4 dias seguintes 200 50 - 100 15 40 50 100 - 200 Intervalo 8/8 horas 6/6 horas 8/8 horas 24/24 horas 8/8 horas 24/24 horas 12/12 horas 6/6 horas 8//8 horas CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade papel preponderante na prevenção de pneumonia em idades pediátricas em geral; e, em especial, reduzindo drasticamente a fequência de pneumonias associadas à rubéola, tosse convulsa, e à infecção por H. Influenza tipo B. A vacina antipneumocócica heptavalente induz imunidade contra os serotipos do S. pneumoniae que mais frequentemente provocam doença na criança, pelo que o seu uso generalizado poderá diminuir a incidência de doença pneumocócica invasiva de forma significativa. A vacinação contra o vírus influenza poderá também prevenir uma das complicações desta infecção, a pneumonia. BIBLIOGRAFIA Bhutta ZA. Childhood pneumonia in developing countries BMJ 2006; 333: 612-613 BTS Guidelines for the management of community acquired pneumonia in childhood. Thorax 2002; 57: 1-24 Cunha BA. Therapeutic implications of antibacterial resistance in community acquired respiratory tract infections in children. Infection 2004; 32: 98-108 Duke T. Neonatal pneumonia in developing countries. Arch Dis Child Fetal Neonatal ED 2005; 90: F211-F219 Garau J. Role of beta-lactam agents in the treatment of community acquired pneumonia. Eur J Clin Microbiol Infect Dis 2005; 24: 201-206 Klig JE, Shah NB. Office pediatrics: current issues in lower respiratory infections in children. Curr Opin Pediatr 2005; 17: 111-118 Lakhanpaul M, Atkinson M, Stephenson T. Community acquired pneumonia in children: a clinical update. Arch Dis Child 2004; 89: ep 29-ep 34 McIntosh K. Community-acquired pneumonia in childen. NEJM 2002; 346: 429-437 Melo-Cristino J, Santos L, Ramirez M; Grupo de Estudo Português de Bactérias Patogénicas Respiratórias. The Viriato Study: update of antimicrobial susceptibility data of bacterial pathogens from community-acquired respiratory tract infections in Portugal in 2003 and 2004. Rev Port Pneumol 2006; 12: 9-30 Michelow IC, Olsen K, Lozano J, Rollins NK, Duffy LB, Ziegler T et al. Epidemiology and clinical characteristics of community acquired pneumonia in hospitalized children. Pediatrics 2004; 113: 701-707 Ostapchuk M, Roberts D, Haddy R. Community-acquired pneumonia in infants and children. American Family Physician: 2004; 9: 899-908 Sandora TJ, Harper MB. Pneumonia in hospitalized children. 449 Pediatr Clin North Am. 2005; 52: 1059-1081 Santos JAO, Vaz LG, Pereira L, Morais L, Reis MG, Félix M. Consensos e Recomendações de SPP – Secção de Pneumologia. Pneumonia adquirida na comunidade. Acta Pediatr Port 2007; 38: 90-92 Sinaniotis CV, Sinaniotis AC. Community acquired pneumonia in children. Curr Opin Pulm Med 2005; 11: 21-25 Sinanotis CA. Viral pneumonia in children: incidence and etiology. Pediatr Respir Rev 2004; 5 suppl A: S197-S200 Tan TQ. Antibiotic resistant infections due to Streptococcus pneumonia: impact n therapeutic options and clinical outcome. Curr Opin Infect Dis 2003; 16: 271-277 450 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 83 DERRAME PLEURAL Fátima Abreu Definição e importância do problema Derrame pleural define-se como acumulação anormal de líquido no espaço pleural. Os derrames pleurais em idade pediátrica são habitualmente secundários a outra patologia subjacente, surgindo, mais frequentemente nos países desenvolvidos, como complicação de pneumonia bacteriana. Estima-se que mais de 2% das pneumonias se complicam com esta patologia e que em cerca de 40% das crianças hospitalizadas com pneumonia se verifica derrame pleural. Outras causas mais raras são insuficiência cardíaca, doenças do foro reumatológico e tumorais. Neste capítulo são abordados apenas os derrames que surgem em concomitância ou como complicação de pneumonia. Etiopatogénese Na sua base fisiopatológica está um desequilíbrio entre o processo de formação e de depuração/filtração do líquido na cavidade pleural. Recorda-se que o movimento de líquido através dos capilares pleurais segue a lei de Starling variando com as pressões hidrostática e coloidosmótica. Nesta perspectiva, são considerados dois tipos de derrame pleural de acordo com o respectivo mecanismo de formação: transudados e exsudados. Os transudados, em que não se verifica compromisso inflamatório da pleura, resultam de um desequilíbrio entre a pressão hidrostática e oncótica podendo, por isso, estar associados a insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica, hipotiroidismo, ou obstrução do fluxo limfático. Os exsudados resultam de compromisso inflamatório da pleura (pleurisia), com consequente aumento da permeabilidade capilar com extravasão de proteínas para o espaço pleural. Para a destrinça entre exsudado e transudado são utilizados critérios bioquímicos, essencialmente quantificação das proteínas totais, doseamento da LDH (desidrogenase láctica) e determinação do pH pleural. De acordo com estes critérios (critérios de Light), os exsudados evidenciam: proteínas >3g/dl, relação proteína plasmática/proteína pleural >0.6 , LDH >200 UI/ml ou 2/3 da LDH plasmática, e pH >7.2. Na prática clínica são classicamente considerados seguintes tipos de exsudados de causa infecciosa (Quadro 1) sobre os quais recai a abordagem: – Pleurisias purulentas ou empiemas (líquido pleural purulento e/ou com germe identificado); – Derrames parapneumónicos não purulentos (geralmente serofibrinosos). Manifestações clínicas A doença subjacente determina os sintomas e sinais predominantes. Assim, a apresentação é a de uma pneumonia, com tosse, febre alta, dificuldade respiratória, cianose, prostração e anorexia. As crianças mais velhas podem queixar-se de dor pleurítica em pontada, exacerbada com a inspiração ou associada a tosse. Verifica-se igualmente taquipneia e tosse seca desencadeada pelas mudanças de posição, submacicez à percussão e diminuição ou abolição das vibrações vocais e do murmúrio vesicular; QUADRO 1 – Etiologia dos derrames de causa infecciosa Empiemas • Staphylococcus aureus Derrames serofibrinosos • Mycobacterium tuberculosis • Haemophilus influenzae • Mycoplasma pneumoniae • Streptococcus pneumoniae • Outras bacterias • Vírus CAPÍTULO 83 Derrame pleural raramente é detectado atrito pleural. Por vezes a criança adopta uma atitude escoliótica côncava para o lado do derrame. O derrame pleural parapneumónico habitualmente surge como complicação de pneumonias causadas por Streptococcus pneumoniae, Haemophylus influenzae, Staphyloccus aureus e Streptococcus do grupo A. Identifica-se uma causa bacteriana em cerca de 75% dos casos, embora muitas vezes não se consiga isolar o agente, ou por antibioticoterapia prévia, ou nos casos de infecção por Mycoplasma e vírus. O empiema corresponde a uma colecção de pus. Distinguem-se três fases: exsudativa, que corresponde a líquido livre, facilmente drenado; fibrinopurulenta, correspondendo à formação de septações e loculações, que pode ser díficil de drenar; organizativa, em que só é possível o desbridamento cirúrgico. 451 FIG. 1 Radiografia do tórax PA: sinais de derrame pleural esquerdo (linha de Damoiseau). (NIHDE) Exames complementares A base do diagnóstico desta situação assenta na clínica, na imagiologia, na toracocentese e na análise do líquido pleural. (LP) Para a confirmação da existência de derrame pleural já suspeitado clinicamente, é necessária a realização de radiografia de tórax em projecção póstero-anterior, perfil e decúbito lateral do lado do derrame, podendo verificar-se: preenchimento do fundo de saco costo-diafragmático nos derrames mínimos; hipotransparência da parte inferior do pulmão, com apagamento da cúpula diafragmática e do fundo de saco costo-diafragmático, sendo o limite superior desta hipotransparência oblíquo para cima e para fora (curva de Damoiseau), quando o derrame é medianamente abundante; hipotransparência de um hemitórax com desvio do mediastino para o lado oposto e alargamento dos espaços intercostais, no caso de derrame abundante. (Figura 1) É ainda possível observar pela radiografia sinais de um foco de pneumonia, por vezes mascarado pelo derrame, pneumatocelos, pneumopatia intersticial e adenopatias. A ecografia completa os dados da radiografia do tórax sendo de grande utilidade nos casos em que a radiografia identifica sinais de hemitórax opaco. Pode detectar pequena quantidade de líquido a envolver o pulmão e distinguir entre pulmão não arejado e líquido ou fibrina pleurais. Pode ainda: detectar loculação, dando assim boas informações relativamente às fases evolutivas do empiema; e identificar o melhor local para se efectuar toracocentese. Deve, no entanto, ser feita por técnicos experientes. A tomografia axial computadorizada diferencia complicações pleurais de processos intraparenquimatosos. A toracocentese para exame do líquido pleural é um método seguro e determina a causa do derrame. Quando se detecta pus (empiema) é requerida drenagem. A avaliação citoquímica de LP não purulento também é importante assim como a respectiva coloração de Gram; deste modo é possível a identificação dos agentes patogénicos implicados em cerca de 50% dos casos. Relativamente ao estudo das células, podem ser obtidos os seguintes achados: predomínio de neutrófilos aponta para derrames parapneumónicos; predomínio de linfócitos para a tuberculose, doença do tecido conjuntivo, ou infecções fúngicas; predomínio de eosinófilos é a favor de infecções parasitárias; e número de células >10.000 mmc sugere exsudado. A identificação de antigénios bacterianos no 452 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA sangue ou LP é um método que pode ajudar na escolha do antibiótico, nomeadamente através da análise da prova da reacção em cadeia da polimerase (PCR). A análise do LP permite ainda definir o estádio evolutivo do derrame parapneumónico. O metabolismo das bactérias e dos leucócitos presentes no LP resultam numa baixa da glucose e do pH. O nível de LDH aumenta em resultado da destruição dos neutrófilos e outros fagócitos presentes. Considera-se que o derrame é complicado quando o pH é inferior a 7, a glucose inferior a 40mg/dl e/ou cultura positiva. A hemocultura é positiva em cerca de 20% dos casos de derrame parapneumónico se a colheita de sangue for realizada antes do início da antibioticoterapia. Tratamento Medidas gerais O tratamento dos derrames plurais inclui os seguintes opções para além das medidas gerais: antibióticos, toracocentese, aplicação de tubo de drenagem pleural com ou sem agente fibrinolítico, descorticação por cirugia toracoscópica video assistida (VATS), ou por toracotomia aberta. As medidas gerais incluem suprimento adequado de fluidos,electrólitos e energia. A oxigenoterapia depende da observação de sinais de hipoxémia e de fadiga muscular. A verificação de insuficiência respiratória indica transferência para UCI (unidade de cuidados intensivos). Antibioticoterapia A presença de derrame pleural parapneumónico não altera a escolha empírica da antibioticoterapia dos doentes com pneumonia. A escolha inicial recai sobre antibióticos que cubram os agentes patogénicos mais prevalentes de acordo com a idade da criança. Ao se isolarem os agentes patogénicos pode estreitar-se o espectro baseando-nos no resultado da coloração pelo Gram, nas provas de detectação de antigénios ou nas culturas do LP. Por exemplo um empiema por Streptococcus A pode ser tratado com penicilina durante 10 dias. A pneumonia causada por estirpes de resistência intermédia à penicilina (CIM= 0,1-1,0 mcg de penicilina/ml) respondem normalmente a penicilina em altas doses ou a uma cefalosporina, com espectro mais alargado. A pneumonia causada por estirpes resistentes ( CIM >= 2,0 mcg de penicilina/ ml ) pode também responder à penicilina em altas doses ou a cefalosporinas. Pode ainda tentar-se a clindamicina, a vancomicina ou cloranfenicol. O empiema por Staphyloccus aureus pode ser tratado com uma penicilina sintética resistente à penicilinase ou com vancomicina, pelo menos durante 21 dias. Se a etiologia do empiema for Haemophylus influenzae, deve usar-se uma cefalosporina de terceira geração por via parentérica. Após a febre ter cedido ou a drenagem retirada deve continuar-se os antibióticos por mais 5 a 7 dias. O tratamento deverá ser completado com mais uma a duas semanas de antibióticos per os. Salienta-se que, de um modo geral, se aplicam neste âmbito as noções decritas a propósito da pneumonia. Drenagem Em caso de febre que persista por 48 horas após o início do curso de antibióticos, há indicação para drenar o derrame pleural (toracocentese evacuadora). A verificação de derrame purulento e/ou as seguintes características de LP [pH<7,2; glucose < 40 mg/dl; com bactérias identificadas ( pelo Gram ou pela cultura); com pus franco presente; LHD >200UI/ml] estabelecem a indicação de se proceder a toracostomia com tubo/cateter de drenagem pleural fechada; o cateter deverá ter o maior diâmetro interno possível para drenar com maior facilidade áreas loculadas, sendo que poderá ser necessário aplicar mais do que um tubo-cateter. As múltiplas toracocenteses evacuadores devem ser evitadas. A resposta à drenagem deve ser monitorizada pela quantidade de LP que sai e pela temperatura corporal. Assim, se o débito do LP for inferior a 10- 15 ml /dia e houver melhoria clínica, deve retirar-se o cateter. A duração média da drenagem é 5 a 10 dias. Se, pelo contrário, se verificar manutenção do quadro febril e da dificuldade respiratória para além de 72 horas após início de antibioticoterapia CAPÍTULO 83 Derrame pleural e toracostomia, está indicada a descorticação cirúgica via VATS. Ressecam-se, deste modo, as aderências pleurais, o que contribuirá para uma drenagem efectiva do espaço plural, encurtando a permanência no hospital. A descorticação por toracotomia aberta está indicada nos casos em que houve formação de camada fibrosa que reduz a expansão pulmonar. Trata-se duma técnica cirúrgica para remoção do tecido fibrinoso nos casos de empiema organizado ou fibrinopurulento que não respondem adequadamente aos procedimentos anteriores descritos. Agentes trombolíticos Ainda existem dados insuficientes para o seu uso por rotina nos derrames pleurais parapneumónicos e nos empiemas na criança. Há referência a resultados positivos com o uso de uroquinase e estreptoquinase, evitando-se a necessidade de descorticação em certos casos de empiema. Quando existem múltiplos septos ou locas, a terapêutica fibrinolítica com estes agentes pode ser necessária para aumentar a drenagem no caso de empiema. Alguns autores recomendam o seu uso precoce (às 48 horas). Estes agentes poderão originar hemorragias e fonómenos da anafilaxia. Prognóstico 453 Prevenção No que se refere à prevenção volta a referir-se o que foi dito no capítulo das pneumonias. Efectivamente, a imunização de rotina da criança permitiu tornar rara a pneumonia por Haemophylus, assim como as suas possíveis complicações. A doença pneumocócica invasiva também poderia ser muito reduzida com o uso mais generalizado da vacina antipneumocócica heptavalente; de igual modo, a vacinação contra o vírus influenzae permitiria evitar complicações da gripe sob a forma de infecções bacterianas das vias respiratórias inferiores. A prevenção das complicações do derrame pleural começa pela sua detecção precoce e por medidas terapêuticas rápidas e adequadas, mais ou menos invasivas, de acordo com o que se referiu anteriormente. BIBLIOGRAFIA Jaffe A, Cohen G. Thoracic empyema: A role for primary video assisted thorascopic surgery? Arch Dis Child 2003; 88: 839841 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kurt BA, Winterhalter KM, Connors RH, et al. Therapy of parapneumonic effusions in children: video-assisted thoracoscopic surgery versus convetional thoracostomy drainage. Pediatrics 2006; 118: e547-e553 Os derrames pleurais parapneumónicos não complicados respondem à terapêutica conservadora com internamento hospitalar, em geral num período não superior a uma semana. Quando é necessário recorrer à drenagem, a duração média do internamento sobe para duas semanas. Desenvolve-se espessamento pleural residual em cerca de 60% dos casos. No caso do empiema somente se verifica regressão dos sinais radiológicos ao fim de 3 meses. Há autores que referem que o prognóstico é influenciado pela susceptibilidade à penicilina das estirpes pneumocócicas. Os factores mais importantes do prognóstico favorável, são sem dúvida, a rápida detecção e drenagem imediata dos derrames parapneumónicos complicados. Light RW. A new classification of parapneumonic effusions and empyema. Chest 1995; 108: 299-301 Mocelin HP, Fischer GB. Epidemiology, presentation and treatment of pleural effusion. Paediatric Respiratory Reviews 2002 (3): 292-297 Yao CT, Wu JM, Liu CC, et al. Treatment of complicated parapneumonic pleural effusion with intra pleural streptorinase in children. Chest 2004; 125: 566-571 454 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 84 PNEUMONIA RECORRENTE blema comum. A maioria das crianças tem 5-10 infecções respiratórias por ano, com uma frequência maior depois dos 6 meses e predominando no segundo ano de vida. Geralmente estas infecções afectam o aparelho respiratório superior, e só em 10-30% dos casos é envolvido o aparelho respiratório inferior. José Guimarães Factores de risco Definição e importância do problema No capítulo sobre pneumonia adquirida na comunidade foi definido o conceito de pneumonia aguda: início agudo de sintomas (tosse, taquipneia, dispneia) e sinais (diminuição do murmúrio, fervores, macicez, aumento das vibrações vocais), acompanhados por hipotransparência na radiografia do tórax. Num primeiro episódio de pneumonia, se a criança evidenciar bom estado geral, por vezes não é feita radiografia do tórax. Contudo, se a situação não evoluir para a normalidade, ou se os episódios se repetirem, a radiografia do tórax torna-se fundamental. Define-se pneumonia recorrente como 2 episódios de pneumonia em 1 ano ou 3 episódios em qualquer período de tempo. Neste caso há uma resolução clínica e radiológica entre os episódios de infecção. Geralmente os sintomas melhoram em alguns dias, mas o tempo de resolução radiológica duma pneumonia é muito variável. A pneumonia pneumocócica não complicada pode curar em 4-8 semanas, enquanto uma pneumonia por adenovírus pode levar 6 meses ou mais. Por outro lado, com grande frequência desconhece-se a etiologia, o que dificulta o problema. Na maior parte dos casos há desaparecimento dos sintomas e melhoria ou cura das alterações radiológicas em 2-4 semanas. Fala-se de pneumonia persistente quando a clínica e radiologia persistem para além de 1 mês. Muitas vezes não é possível distinguir claramente entre recorrência e persistência por não se dispor de radiografias comprovando a resolução dos episódios. As pneumonias recorrentes constituem um pro- Vários factores influenciam a eclosão de infecções respiratórias (Quadro 1). A idade é um factor importante. É habitual a diminuição progressiva da frequência das infecções respiratórias com o incremento dos anos, reflectindo o desenvolvimento da imunidade. Por razões desconhecidas as infecções das vias respiratórias inferiores são mais frequentes nos rapazes. Os lactentes nascidos pré-termo, sobretudo aqueles com doença pulmonar crónica, têm maior número de internamentos por pneumonia e mortalidade mais elevada que os nascidos de termo. A exposição aos agentes infecciosos nas creches e infantários, em amas com várias crianças ou famílias numerosas, aumenta a frequência de infecções respiratórias. O tabagismo, sobretudo materno, seja pré ou pós-natal, a exposição a lareiras e a poluição em geral, aumentam o risco de infecções respiratórias particularmente pneumonia. As condições de vida e outros factores socioeconómicos também influenciam a frequência das infecções respiratórias. Avaliação clínica A avaliação começa pela amamnese e exame objectivo. É importante inquirir sobre os seguintes tópicos: antecedentes familiares nomeadamente QUADRO 1 – Factores de risco de pneumonia recorrente 1 – Idade 2 – Sexo masculino 3 – Prematuridade 4 – Exposição aos agentes infecciosos 5 – Tabagismo / Poluição do ar ambiente 6 – Factores socioeconómicos CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente doenças graves, mortes infantis, alergias; se a gravidez foi vigiada, se há toxicodependência ou se a mãe teve múltiplos parceiros aumentando o risco de infecção por VIH e outras infecções congénitas; se a criança nasceu pré-termo e como nasceu, se teve necessidade de ventilação e oxigénio, se teve infecções nos primeiros tempos de vida ou se tem anormalias congénitas; o ambiente em que vive, particularmente se contacta com fumo de tabaco ou outros poluentes, se há animais domésticos, plantas ou aves; com quantos irmãos convive, se está numa creche durante o dia ou se fica numa ama com outras crianças. Relativamente às infecções respiratórias: valorizar cada episódio de infecção; quando ocorreu, qual a localização da pneumonia e sua duração, se foi grave exigindo internamento ou se teve complicações; a frequência dos episódios e se os sintomas respiratórios persistem no intervalo entre infecções; como foi diagnosticada a pneumonia, se houve isolamento do agente etiológico; rever os exames radiológicos; que tratamentos fez, qual a sua duração e que resposta clínica obteve; valorizar a existência de outras infecções nomeadamente gastrintestinais, da pele ou do aparelho respiratório superior (otite, sinusite). No exame objectivo há que avaliar a repercussão das infecções na evolução ponderal: se a criança tem aspecto doente ou se tem dismorfismo; notar a presença de rinorreia serosa, prega nasal transversal ou “olheiras” indiciando atopia, ou se tem obstrução respiratória superior com respiração ruidosa bucal; na boca verificar a presença de gengivite, ulcerações, perda de dentes ou doença periodontal que são próprias de imunodeficiência; se tem deformação torácica ou hipocratismo digital sugerindo doença pulmonar crónica; valorizar alterações na pele: petéquias (síndroma de Wiskott-Aldrich), seborreia generalizada (histiocitose), erupção eczematiforme (S. Hiper-IgE, S. Wiskott-Aldrich), telangiectasias na pele e conjuntivas (S. ataxia-telangiectasia). É importante avaliar a presença de tecido linfóide palpável, pois a sua ausência sugere deficiência de linfócitos T; se há aumento do tamanho do fígado ou baço. Na auscultação: valorizar a presença de sopros cardíacos ou de fervores, e se são localizados ou não. 455 QUADRO 2 – Contexto de pneumonias recorrentes • Crianças provavelmente normais (50%) • Crianças com doença alérgica (30%) • Crianças com doença crónica não imunológica (10%) • Crianças com imunodeficiência (10%) Sistematização Geralmente a história clínica fornece elementos suficientes para classificar o doente com pneumonias recorrentes numa de 4 categorias: crianças provavelmente normais, crianças com alergia, crianças com doença crónica não imunológica e crianças com imunodeficiência (Quadro 2). Agrupar os doentes desta forma tem inconvenientes na medida em que compartimenta doenças que frequentemente têm alguns aspectos comuns. Por exemplo, a drepanocitose é uma doença crónica e não uma imunodeficiência primária; contudo, acompanha-se de alterações importantes dos mecanismos de defesa que levam a infecções respiratórias recorrentes. Contudo, tal forma de agrupar estes doentes tem grandes vantagens não só por facilitar o estudo, mas também para o tratamento e vigilância. 1. Crianças provavelmente normais As infecções respiratórias são muito frequentes nos primeiros anos de vida, particularmente até aos 2 anos. Tal se deve à maturação gradual da imunidade. Até cerca dos 6 meses a criança está protegida por anticorpos maternos adquiridos por via transplacentar, mas a partir dessa idade a protecção passiva começa a desaparecer. Se este fenómeno coincidir com a fase em que a criança entra para o infantário em Setembro, no início dos meses frios do ano a possibilidade de ter infecções recorrentes é grande. As crianças deste grupo constituem cerca de 50% dos doentes com pneumonias recorrentes. Apresentam algumas características comuns: geralmente não têm história familiar de imunodeficiência, o seu crescimento é normal, mantendo-se com bom estado geral entre os episódios infecciosos, sem alteração no exame objectivo. Além disso, não é 456 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA habitual que tenham infecções graves noutros locais (infecções cutâneas, gastrintestinais ou outras). Estas particularidades ajudam a separar este grupo dos restantes. Nestes casos é importante esclarecer os pais reforçando-lhes a confiança e propondo uma vigilância atenta da evolução. Por vezes são úteis alguns exames complementares simples como hemograma, proteína C reactiva (PCR), radiografia do tórax e eventuais exames culturais. 2. Crianças com doença alérgica Este grupo também apresenta algumas características distintivas constituindo cerca de 30% dos casos de infecções respiratórias recorrentes. Frequentemente há história familiar de alergia e pieira em cada episódio de infecção respiratória. Muitos episódios decorrem em apirexia respondendo mal aos antibióticos. A tosse é muito frequente, por vezes nocturna ou surgindo com o riso ou o esforço. Por vezes há infecções das vias respiratórias superiores que desencadeiam tosse importante e grande produção de muco, podendo levar a atelectasias ou infiltrados, sobretudo no lobo médio. O crescimento é normal verificandose frequentemente obstrução nasal com rinorreia, prega nasal transversal e eczema. Nestes casos são úteis hemograma, PCR, doseamento de imunoglobulinas, IgE, específicas, radiografia do tórax e testes cutâneos. A espirometria deve obter-se quando possível, (ver Parte Imunoalergologia). Os lactentes com pieira e pneumonias recorrentes colocam alguns problemas diagnósticos, sobretudo quando respondem mal aos broncodilatadores e anti-inflamatórios. Nestes casos será necessário excluir alguns diagnósticos, nomeadamente fibrose quística, aspiração de corpo estranho, refluxo gastro-esofágico, bronquiolite obliterante, anomalias congénitas do aparelho respiratório ou imunodeficiência. 3. Crianças com doença crónica não imunológica Correspondem a cerca de 10% das crianças com infecções respiratórias recorrentes. Ao contrário dos anteriores, este grupo tem infecções que são contínuas, por vezes graves, levando ao internamento, muitas vezes sem isolamento dos agentes etiológicos. É frequente a repercussão no peso e estatura e o exame pode evidenciar fervores, deformação torácica e hipocratismo. As infecções surgem de forma semelhante e, por vezes, com a mesma localização. Nestes casos são geralmente causadas por obstrução brônquica (corpo estranho), por compressão extrínseca geralmente de origem ganglionar (tuberculose ou outras infecções, tumores) ou por anomalias estruturais (estenose brônquica, bronquiectasias, quisto broncogénico, sequestro). Em algumas doenças deste grupo (Quadro 3) pode haver alteração dos mecanismos de defesa predispondo para a infecção como sucede em situações de má-nutrição ou na drepanocitose. A pneumonia (recorrente) é a infecção mais comum mas pode haver diarreia crónica, tosse crónica, episódios repetidos de febre, entre outras. Para esclarecimento etiológico, deve procederse nestes doentes a exames complementares como: hemograma, PCR, ureia e glicémia, urina, teste do suor, radiografia do tórax, imunoglobulinas e exames culturais. A broncofibroscopia e TAC torácica são geralmente necessárias. Poderá haver necessidade de outros testes diagnósticos mais QUADRO 3 – Doença crónica não imunológica • Síndromas de inalação (corpo estranho, refluxo gastroesofágico) • Bronquiectasias (fibrose quística, síndroma de cílios imóveis) • Anomalias congénitas do aparelho respiratório • Doenças pulmonares (displasia broncopulmonar, bronquiolite obliterante, hemossiderose pulmonar, pneumonias de hipersensibilidade) • Doenças neuromusculares • Doenças cardíacas congénitas • Doenças genéticas/ metabólicas (síndroma de Down, Werdnig-Hoffmann) • Doenças hematológicas (asplenia, hemoglobinopatias, imunossupressão) • Doenças nutricionais (má-nutrição, enteropatias) • Doenças renais (síndroma nefrótica, insuficiência renal) • Diabetes mellitus • Doenças do colagénio vascular CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente específicos para confirmação das hipóteses diagnósticas colocadas. 4. Crianças com imunodeficiência Perante uma criança com pneumonias recorrentes é muito frequente que se coloque a hipótese de imunodeficiência. Contudo, as imunodeficiências constituem apenas 10% das causas de infecções respiratórias recorrentes. Neste grupo as infecções frequentemente iniciam-se depois dos 6 meses de idade e são de vários tipos (sépsis, meningites, osteomielites), geralmente graves e predominando no aparelho respiratório, com localização variada. Apesar de ser comum a identificação do agente e a antibioticoterapia ser apropriada, a resposta ao tratamento é lenta. Muitas vezes a infecção é controlada mas não erradicada, as complicações são frequentes e, no intervalo entre os episódios agudos, persistem sintomas crónicos. Habitualmente o crescimento é afectado, são comuns alterações cutâneas como eczema, piodermite, telangiectasia. A crianças poderão não ter gânglios linfáticos palpáveis nem amígdalas, ou, pelo contrário, ter linfadenopatia generalizada, hepatoesplenomegália sugerindo infecção por VIH, doença hematológica ou dos fagócitos. As imunodeficiências primárias podem envolver os linfócitos B (50-70%), os linfócitos T (20-30%), ambos linfócitos B e T (10-15%), as células fagocíticas (15-20%) ou o complemento (25%) (Quadro 4). A identificação dos microrganismos causadores das infecções pode sugerir algumas entidades específicas. As infecções recorrentes com microrganismos extracelulares, capsulados ou infecções crónicas sinopulmonares são comuns nos doentes com asplenia ou défice de anticorpos. As infecções por oportunistas víricos, protozoários, bactérias, micobactérias ou fungos sugerem défice das células T. Infecções fúngicas, abcessos hepáticos ou osteomielite sugerem doença das células fagocíticas, enquanto as infecções recorrentes acompanhadas de sintomas autoimunes ou infecções recorrentes por N. meningitidis sugerem deficiência do complemento. Numa fase inicial alguns exames complementares são úteis: hemograma, PCR, imunoglobuli- 457 QUADRO 4 – Imunodeficiências Primárias Défice de anticorpos: Agamaglobulinémia ligada ao X Imunodeficiência comum variável Défice de IgA Défice de subclasses de IgG Má resposta específica a polissacáridos Hipogamaglobulinémia transitória da infância Imunodeficiências celulares: Imunodeficiência combinada grave Síndroma de DiGeorge Candidíase mucocutânea Síndroma de Wiskott- Aldrich Ataxia telangiectasia Células fagocíticas: Doença granulomatosa crónica Síndroma de Hiper IgE Défice de complemento: C3 ou C5 Secundárias Doença vírica (VIH, CMV, VEB) Prematuridade Má-nutrição Esplenectomia Drepanocitose Síndroma nefrótica Doenças hematológicas malignas e imunossupressão nas, culturas, VIH e exames radiológicos. Mesmo que os resultados destes exames sejam normais, os doentes suspeitos de imunodeficiência deverão completar o estudo com exames mais complexos, nomeadamente subclasses de IgG, doseamento de anticorpos contra antigénios vacinais (tétano, difteria, rubéola), testes cutâneos de hipersensibilidade retardada (Candida, toxóide tetânico), populações linfocitárias, estudo da função fagocítica, e testes para a função do complemento. São muitas as doenças específicas neste grupo e a sua caracterização é variável. Algumas são bem conhecidas e existem múltiplos doentes descritos; outras estão incompletamente caracterizadas ou são tão raras que ainda não estão bem compreendidas. Por isso, na suspeita de imunodeficiência de difícil caracterização é prudente dirigir o doente 458 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA um centro com experiência, o mesmo sucedendo nas doenças mais raras cujo seguimento deverá ser feito por especialistas. (ver parte Imunoalergologia). BIBLIOGRAFIA Couriel J. Assessment of the child with recurrent chest 85 BRONQUIOLITE AGUDA Infections. British Medical Bulletin 2002; 61: 115-132 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson António Amador e Joaquim Sequeira Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Panitch HB. Evolution of recurrent pneumonia. Pediatr Infect Dis J 2005; 24: 265-266 Definição e aspectos epidemiológicos Taussig LM, Landau LI (eds). Pediatric Respiratory Medicine. St. Louis: Mosby, 1999; 136-152 Wacogne I, Negrine RJS. Are follow-up chest x ray examinations helpful in the management of children recovering from pneumonia? Arch Dis Child 2003; 88: 457-458 Wald ER. Recurrent and nonresolving pneumonia in children. Seminars in Respiratory Infections 1993; 8: 46-58 Wardlaw T, Salama P, White Johansson E. Pneumonia: the leading killer of children. Lancet 2006; 368: 1048-1050. A expressão bronquiolite aguda designa uma afecção de etiologia predominantemente vírica caracterizada por obstrução das vias aéreas de pequeno calibre, atingindo sobretudo crianças com menos de dois anos de idade (incidência máxima entre o primeiro e o sexto meses de idade), quase sempre com carácter epidémico; traduz-se clinicamente por polipneia com retracção costal e expiração prolongada, ruidosa ou sibilante; esta situação é precedida tipicamente por quadro inflamatório das vias respiratórias superiores constituído por tosse, rinorreia e/ou febre. Em geral reserva-se o diagnóstico de bronquiolite aguda para o primeiro episódio de sibilância com as características referidas antes, devendo evitar-se o termo de bronquiolite para situações de sibilância repetida. A maioria dos casos de sibilância (quadro acompanhado de ruídos adventícios designados por sibilos produzidos nos brônquios e bronquíolos na expiração, os quais traduzem estreitamento das respectivas vias aéras) relaciona-se com processo inflamatório; contudo, tais sinais podem surgir em situação de broncospasmo e no contexto doutras entidades a abordar adiante. Sendo uma doença autolimitada, pode habitualmente ser assistida em casa com medidas simples; com efeito, só em cerca de 1 a 2% dos casos se torna grave a justificar internamento hospitalar. No entanto, a sua elevada incidência e o maior risco inerente ao grupo etário em que predomina, justificam o elevado número de internamentos hospitalares a ela associados, nomeadamente em unidades de cuidados intensivos (UCI). CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda De acordo com estatísticas da União Europeia, estima-se uma incidência de internamentos hospitalares de cerca de 30/1000. É a primeira causa de hospitalização antes dos 6 meses. Surgindo habitualmente nos meses de Inverno e início da Primavera (nos países de clima temperado), e predominando nos centros urbanos, é a doença infecciosa das vias aéreas inferiores mais frequente nas crianças com menos de 12 meses de idade. Cerca de 60 % das crianças atingidas são do sexo masculino. A bronquiolite é mais frequente em crianças que vivem em situações de baixo nível socioeconómico expostas ao fumo do tabaco e não alimentadas com leite materno. Em cerca de 50% das crianças com bronquiolite desenvolve-se sibilância subsequente. Entre 50-90% dos casos é causada por infecção pelo VSR. A mortalidade atinge entre 0,5 – 1% dos doentes internados, aumentando para 3-4% nos casos de doença cardiopulmonar subjacente. No que respeita a custos por internamento de crianças com esta patologia com menos de 1 ano, determinados estudos na América do Norte divulgaram valores da ordem de 700 milhões de dólares dos USA/por ano. Etiopatogénese É habitualmente causada pelo vírus sincicial respiratório (VSR), mas outros vírus podem estar implicados como os parainfluenzae 1,2 e 3, influenzae A e B, rinovirus e adenovírus (cujos serotipos 3, 7 e 21 causam doença mais grave capaz de conduzir a insuficiência respiratória aguda com necessidade de suporte ventilatório). O metapneumovírus e bocavírus humano, são causa primária de infecção respiratória vírica, podendo associar-se ao VSR (coinfecção), o que constitui factor de agravamento. Mycoplasma pneumoniae e H. influenzae raramente estão implicados. Aos 2 anos de idade, a maioria das crianças foi já infectada pelo VSR. Até mesmo recém-nascidos e adultos podem ser infectados, embora sem o quadro clínico típico da doença. O VSR é altamente contagioso, ficando activo cerca de 6 a 10 horas em gotículas de secreções, e meia hora em roupa ou papel, persistindo no 459 exsudado nasal mesmo após melhoria clínica. A transmissão da infecção dá-se através do contacto directo das mucosas com secreções ou gotas aerossolizadas infectadas, variando o período de incubação entre 4 e 6 dias. A infecção vírica atinge particularmente os bronquíolos de calibres entre os 300 até aos 75 µ. O epitélio bronquiolar é colonizado pelo vírus que então se replica e desencadeia uma resposta inflamatória, induzindo necrose epitelial à qual se segue a proliferação de células que são desprovidas de cílios (perdendo-se importante mecanismo de defesa). Cabe salientar aspectos da resposta imune desencadeada pelo VSR, com papel na inflamação bronquiolar: a) desgranulação de eosinófilos com libertação de proteínas catiónicas com efeito citotóxico sobre o epitélio da via respiratória; b) libertação de IgE com papel importante na sibilância; c) outros mediadores com papel na patogénese da inflamação da via respiratória incluem a IL-8, a proteína inflamatória dos macrófagos 1 alfa, etc.; d) níveis mais elevados de interferão-gama e de leucotrienos na via aérea correlacionam-se com o grau de sibilância. Os tecidos peribronquiolares são invadidos por linfócitos, plasmócitos e macrófagos, surge edema e congestão da submucosa e tecido adventício e, por vezes, alteração das fibras elásticas e musculares (o que induz algum grau de espasmo a contribuir para a obstrução). O aumento da produção de muco, juntamente com a descamação epitelial e a fibrina formada, podem obstruir completamente o lume bronquiolar (na razão inversa das suas dimensões) induzindo, por um mecanismo valvular, a retenção do ar expiratório; tal origina áreas de hiperinsuflação pulmonar e áreas de atelectasia irregularmente distribuídas com maior ou menor repercussão na ventilação/ perfusão. Como consequência poderá surgir insuficiência respiratória tipo I (hipoxémia) ou de tipo II (com hipercápnia). Outros factores próprios do lactente pequeno predispõem para a gravidade deste processo, nomeadamente, ventilação alveolar colateral deficiente, caixa torácica pouco rígida, imaturidade das células pulmonares e dos mecanismos de 460 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA expulsão de muco. A recuperação surge a partir da camada basal do epitélio respiratório e inicia-se ao fim de 3-4 dias, podendo a regeneração dos cílios demorar ainda 15 dias ou mais. Manifestações clínicas O quadro clínico inicia-se por coriza, febre moderada (inferior a 38ºC) e tosse irritativa (por vezes com conjuntivite ou otite associadas); tais sintomas evoluem para respiração ruidosa ou expiração sibilante (pieira), polipneia, retracção costal com ou sem adejo nasal, hiperinsuflação torácica (tórax em tonel) e dificuldade alimentar, por vezes com vómitos e desidratação. Se alguns lactentes toleram bem a bronquiolite, outros evoluem com prostração, recusa alimentar, perturbação do sono, e mesmo, gemido. A cianose, se presente, é sinal de gravidade embora possa estar ausente em crianças gravemente doentes. Os movimentos respiratórios são superficiais e na auscultação pulmonar são audíveis: fervores finos no fim da inspiração (crepitantes) por abertura dos bronquíolos parcialmente obstruídos, roncos e, por vezes, sibilos; o tempo expiratório é prolongado. O fígado pode palpar-se aumentado por empurramento pelo diafragma. A agitação, a prostração e o aumento da frequência respiratória (FR) > 60/minuto poderão estar relacionados com hipoxémia. De salientar que a gravidade clínica deste quadro pode aumentar se existir outra patologia de base associada, complicando-se com insuficiência respiratória global com cianose, por exemplo em situações de cardiopatias congénitas e displasia broncopulmonar (DBP), ou apneia sobretudo em casos de prematuridade. O Quadro 1 sintetiza os factores de risco que poderão contribuir para a gravidade da bronquiolite. Diagnóstico O diagnóstico de bronquiolite é essencialmente clínico, baseado na síndroma de dificuldade respiratória, na idade da criança e na epidemiologia. Os casos de infecção por VSR QUADRO 1 – Factores de risco de bronquiolite grave Factores do hospedeiro • Pré-termo • Idade inferior a 3 meses • Doença cardíaca congénita • Doença respiratória crónica (DBP, FQ) • Deficiência imunitária Factores ambientais • Pobreza • Sobrepopulação • Exposição pós-natal ao fumo de tabaco • Desnutrição • Não aleitamento materno surgem em surtos epidémicos, tal como na gripe e infecções pelo vírus parainfluenzae; as infecções por adenovírus e rinovírus podem estar associadas a casos esporádicos. A radiografia do tórax, não sendo específica, é sugestiva do diagnóstico ao revelar sinais de hiperinsuflação pulmonar com horizontalização dos arcos costais e abaixamento do diafragma; áreas de espessamento peribrônquico e de consolidação ou colapso alveolar (segmentar ou mesmo lobar), a não confundir com pneumonia. É particularmente frequente a opacificação de um segmento ou de todo o lobo superior direito por obstrução provocada por secreções. A radiografia do tórax deverá ser sempre solicitada no primeiro episódio de bronquiolite visto ser auxiliar essencial no diagnóstico diferencial da síndroma de dificuldade respiratória aguda na criança (Figura 1). O hemograma, não dá, em geral, contributo importante. A gasometria capilar pode demonstrar a existência de pressão de O2 (PO2) diminuída e PCO2 elevada, correlacionando-se melhor este parâmetro com a gravidade da doença. A oximetria de pulso evidencia diminuição da saturação em O2. É possivel detectar por métodos rápidos de imunofluorescência ou ELISA os antigénios dos vírus respiratórios, os agentes etiológicos mais frequentes (VSR, influenzae, parainfluenzae e adeno- CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 461 QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial da bronquiolite aguda Causa anatómicas Anel vascular, quisto pulmonar, enfisema lobar Pneumotórax, hidrotórax, quilotórax Aspiração de corpo estranho Insuficiência circulatória Doença cardíaca congénita ou adquirida Anemia Infecções Pneumonia por vírus, Chlamydia, Rickettsia, Mycoplasma, bactérias, fungos Parasitas Irritantes Inalação de substâncias tóxicas Pneumonia de aspiração Refluxo gastroesofágico Causas metabólicas Intoxicações (ex: salicilatos) Acidose FIG. 1 Aspecto radiográfico do tórax (póstero-anterior e perfil), na bronquiolite aguda: sinais de hiperinsuflação; setas indicando áreas de espessamento peribrônquico e focos de atelectasia/ enfisema. vírus) nas secreções brônquicas ou da nasofaringe. A identificação pode fazer-se igualmente por métodos de PCR (reacção em cadeia da polimerase). O diagnóstico serológico não está indicado pela demora (semanas) na seroconvensão e pela escassa sensibilidade do método. O diagnóstico diferencial pode ser difícil, sobretudo nas formas clínicas menos típicas ou sem contexto epidemiológico (Quadro 2). Salientam-se outras infecções respiratórias com carácter obstrutivo (ex. laringotraqueíte), anomalias congénitas do aparelho respiratório, doença cardíaca congénita ou adquirida(ex. miocardite vírica) e ainda outras situações associadas a dispneia expiratória na primeira infância como o refluxo gastroesofágico, a fibrose quística, a fístula tráqueo-esofágica, as anomalias Causas alérgicas Asma Pneumonias designadas de hipersensibilidade dos grandes vasos e, finalmente, a asma brônquica. Mais de 50% das crianças com asma brônquica têm a sua primeira crise antes dos 2 anos de idade sendo habitualmente desencadeada por infecção vírica. Os parâmetros que podem diferenciar esta afecção em relação à asma (que se pode acompanhar de inflamação dos bronquíolos), são essencialmente a idade da criança, o agente etiológico e o carácter epidémico. Avaliação da gravidade O Quadro 3 sintetiza critérios de avaliação da gravidade da doença, com particular implicação na decisão de internamento hospitalar. A presença de taquipneia com frequência respiratória (FR) > 60/m, a necessidade de O2 suplementar para 462 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Avaliação da gravidade e terapêutica na bronquiolite aguda Ligeira Capacidade alimentar normal Dificuldade respiratória ligeira (FR <50) Sem necessidade de O2 suplementar (Saturação em O2>96%) Moderada Dificuldade respiratória moderada com adejo nasal e retracções costais (FR 50-70) Hipoxémia ligeira corrigida com O2 Agravamento de dificuldade respiratória durante alimentação Breves episódios de apneia Grave Recusa alimentar Dificuldade respiratória grave / retracção costal acentuada, adejo nasal e gemido (FR > 70) Hipoxémia não corrigida com O2 Episódios de apneia frequentes Cansaço progressivo Sem necessidade de exames complementares Tratamento no domicílio (pais esclarecidos) se idade > 3 meses Reavaliação pelo médico assistente Internamento O2 suplementar para obter Saturação de O2≥90% Ponderar fluidoterapia endovenosa e alimentação por sonda gástrica Monitorização Telerradiografia do tórax Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico etiológico Adrenalina em nebulização (ver texto) Internamento O2 suplementar para obter Sat O2≥90% Eventual necessidade de ventilação mecânica/unidade de cuidados intensivos Pausa alimentar / fluidoterapia endovenosa Monitorização cardiorrespiratória e gasometria Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico etiológico Ponderar broncodilatador (salbutamol inalado ou adrenalina em nebulização) Se melhorar Reintroduzir alimentação Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90% Reavaliação continuada pelo médico assistente Se melhorar Reintroduzir alimentação Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90% Reavaliação continuada pelo médico assistente manter saturação de Hb em O2 superior a 90%, a presença de dificuldade alimentar grave e desidratação, de prostração e gemido, e ainda a presença de doença de base que aumenta o risco de complicações da doença, são factores decisivos para o internamento hospitalar da criança, ainda que apenas para vigilância de parâmetros vitais e terapêutica de suporte. A leitura da alínea sobre Tratamento ajudará a compreender na íntegra o referido quadro. Tratamento Sendo a bronquiolite uma doença autolimitada, as formas ligeiras poderão requerer apenas as habituais medidas de humidificação e aspiração cuidadosa das secreções da via respiratória (que promovem a sua drenagem e desobstrução por mecanismos fisiológicos), dos cuidados alimentares, hidratação, e do esclarecimento de quem presta os cuidados. Com o fim de diminuir o risco de aspiração de alimento para a via repiratória face à SDR, a criança deverá ser colocada em posição de tórax e cabeça elevados a 30º, podendo ser necessária a entubação nasogástrica para providenciar a alimentação. A maioria das situações evolui, assim, para a cura em 7 a 14 dias, sem complicações. Estas poderão surgir, sobretundo, nos casos comportando factores de risco de doença mais grave, tais como antecedentes de prematuridade, patologia respiratória (como displasia broncopulmonar – DBP), cardíaca, imunodeficiência ou imunossupressão, etc.. A seguir são sistematizadas as principais medidas a aplicar com base em recomendações e consensos recentes da Academia America de Pediatria decorrentes de estudos cientifícos. (medicina baseada na evidência). Alguns procedimentos já foram descritos sucintamente a propósito dos critérios de gravidade (Quadro 3) Oxigenoterapia Na bronquiolite moderada a grave, e sempre que a saturação em O2 seja persistentemente <90% o CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda oxigénio humidificado é a medida terapêutica mais importante (usualmente por cânulas nasais a um ritmo máximo de 2L/m ou por máscara facial a 4L/m). Crianças com episódios de hipoxémia (saturação em O2 < 90%), episódios de apneia ou gasometria capilar com PO2 < 60 mmHg, PCO2 > 60 mmHg ou pH < 7.25 poderão necessitar de internamento em unidade de cuidados intensivos e eventual assistência respiratória com CPAP (pressão positiva contínua) ou ventilação convencional. Estas formas moderadas/graves quase sempre têm indicação de hidratação por via endovenosa, com necessidade de balanço de fluidos rigoroso e/ou alimentação por sonda nasogástrica. Antibioticoterapia A utilização de antibióticos somente está indicada se se provar a coexistência de infecção bacteriana a qual deverá ser tratada do mesmo modo, caso tivesse surgido na ausência de bronquiolite. Dados sugestivos são febre persistente, leucocitose com neutrofilia, proteína C reactiva elevada e agravamento do quadro clínico. Broncodilatadores A resposta aos broncodilatadores alfa e betaadrenérgicos sendo imprevisível, determina que os mesmos não sejam indicados como rotina na bronquiolite. Podem, de facto originar melhoria clínica, nem sempre significativa; a resposta clínica sugere, por outro lado, que no doente em que foram aplicados existe comportamento de hiperreactividade brônquica; ou seja, algumas das crianças com primeiro episódio de “pieira” poderão ter asma. Assim, será lícito o seu emprego por via inalatória como atitude inicial, procedendo à sua interrupção no caso de não existir melhoria. No nosso meio os broncodilatores mais usados por via inalatória, nas formas graves e/ou que requerem internamento são a salbutamol e o brometo de ipratrópio, este último particularmente eficaz também como antitússico (ver capítulo 64). Se se verifica efeito após 1ª dose (brometo ipratrópio: 125 μg) o fármaco pode ser continuado até 4 a 8 vezes/dia. Quanto ao salbutamol: 75-150 μg/kg/dose (0.015-0.03 ml/kg/dose), a repetir dentro dos 463 limites definidos [mínimo 0.25 ml, máximo: 1ml]. Em circunstâncias a ponderar poderão ser utilizados em concomitância os referidos dois broncodilatadores. A adrenalina evidencia propriedades, tanto alfa como beta adrenérgicas; o efeito alfaadrenérgico, através da vasocontrição dos vasos pulmonares e da redução do edema, tem sido considerado útil no tratamento da bronquiolite. Nas formas moderadas (Quadro 3) está indicada a administração de duas doses de adrenalina através de nebulização com intrevalo de 30 minutos (3ml da solução a 1/1000) avaliando-se o resultado durante pelo menos 2 horas no serviço de urgência. Havendo melhoria, a situação poderá ser tratada em regime ambulatório. Corticosteróides Os corticosteróides (inalados – budesonido, fluticasona, por ex; orais – prednisolona, betametasona, por ex.) têm sido utilizados no tratamento agudo da bronquiolite numa tentativa de reduzir, tanto os sintomas agudos, como a pieira pós-bronquiolite aguda. De acordo com diversos estudos, com resultados variáveis, não se conseguiu demonstrar benefício dos corticosteróides no tratamento da bronquiolite aguda. Os estudos em que se observaram efeitos positivos incluiram crianças com pieira recorrente (com hiperreactividade brônquica e muito provável asma) e que possivelmente por este motivo, responderam aos corticosteróides. Consequentemente, os corticosteróides não estão indicados como rotina nos casos de bronquiolite aguda (ver capítulo 64). Cinesiterapia respiratória No tratamento agudo da bronquiolote é importante um manuseamento mínimo do doente; por isso a utilização da cinesiterapia respiratória não deve fazer parte do tratamento de rotina; nomeadamente está contraindicado se existir pieira relacionável com broncopasmo. A cinesiterapia respiratória pode estar indicada apenas nas formas associadas a perturbação da ventilação pulmonar por atelectasia. Ribavirina A ribavirina é um nucleósido análogo das purinas. 464 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Pensa-se que este medicamento possa interferir com o funcionamento normal do ácido nucleico vírico. A ribavirina tem actividade contra o VSR, vírus da gripe e da hepatite C. As revisões sistemáticas não demontraram qualquer efeito com a utilização da ribavirina nas situações agudas, embora exista certo benefício (não significativo) nos indivíduos com doença grave requerendo internamento numa unidade de cuidados intensivos. Embora as orientações iniciais surgerissem que este medicamento fosse administrado sob a forma de aerossol durante 12-18 horas diariamente, ele tem sido utilizado durante períodos mais curtos (duas horas três vezes por dia) na mesma dose de 6 g/dia. A ribavirina é administrada durante 3-5 dias. Tratando-se duma droga potencialmente tóxica e teratogénica para grávidas que com ela contactam, e igualmente dispendiosa e difícil de administrar, a sua utilização deve ser restringida apenas a doentes seleccionados, com risco de infecção grave. Imunoglobulina anti-VSR A imunoglobulina anti-VSR, obtida de dadores adultos com títulos elevados anti-VSR, comporta risco baixo de transmissão vírica por via sanguínea devido ao processo de esterilização a que é submetida. Actualmente, não é recomendada a utilização da imunoglobulina anti-VSR no tratamento da bronquiolite aguda. Palivizumab O palivizumab é um anticorpo monoclonal de origem humana produzido através de tecnologia de ADN recombinante, com uma actividade semelhante contra ambas as estirpes (A e B) do VSR. Não está provada eficácia no tratamento da bronquiolite aguda. Este medicamento é recomendado para prevenir a bronquiolite pelo VSR (ver adiante). Assistência respiratória A bronquiolite pelo VSR pode causar insuficiência respiratória grave, sendo, por vezes necessário o suporte ventilatório. Muitas unidades têm facilidade em instituir aplicação de pressão positiva contínua das vias aéreas (CPAP) como medida inicial de assistência respiratória. Nos casos graves poderá estar indicada ventilação mecânica em UCI. Outros tratamentos Outros tratamentos incluindo o interferão, a vitamina A e a desoxirribonuclease humana recombinante 1 (rhDNase 1) foram experimentados mas não revelaram benefício. Os produtos naturais chineses, o surfactante, e o Heliox merecem possivelmente investigações adicionais. Com base nos dados actuais o surfactante o Heliox (70% de hélio e 30% de oxigénio) e nebulização com NaCl a 3% devem ser reservados para os doentes internados em unidades de cuidados intensivos pediátricos. Profilaxia da infecção pelo VSR Não existe ainda uma vacina eficaz contra o VSR. O anticorpo monoclonal humano recombinante (Palivizumab) pode reduzir a taxa de hospitalização nos grupos de risco (como crianças com antecedentes de prematuridade, doentes com displasia broncopulmunar ou cardiopatia), não se tendo provado redução de necessidade de ventilação mecânica. De salientar que existem normas da Sociedade Portuguesa de Pediatria para a sua utilização preventiva nestes grupos de risco. Nas situações atrás referidas são recomendadas 5 doses mensais na chamada época fria, com ínicio em Novembro (15mg/kg/dose) por via IM. A grande viabilidade do vírus no meio ambiente facilita a sua transmissão pelos que rodeiam a criança (pais e familiares, educadoras, pessoal de saúde); são, assim, importantes medidas simples mas eficazes como a correcta lavagem das mãos, uso de bata, luva e máscara, limitação dos contactos e quartos de isolamento para doentes nos quais foi isolado o VSR. Medidas ambientais como a evicção do fumo do tabaco são igualmente importantes. A AAP chama atenção para a eficácia da fricção das mãos com compressas embebidas em álcool após lavagem convencional das mesmas. As orientações dos Centers for Disease Control and Prevention sugerem que a lavagem frequentes das mãos e a não partilha de objectos, tais como chávenas, copos e outros outros utensílios com as pessoas com uma infecção pelo VSR podem reduzir o risco de disseminação. Admite-se que não é necessário impedir as crianças com resfriados ou CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda outras doenças respiratórias (sem febre) e bom estado geral, de frequentarem infantários ou escolas. Chama-se mais uma vez atenção para o facto de o tabagismo passivo aumentar o risco de internamento por bronquiolite. A AAP chama igualmente com atenção para o facto de, na criança alimentada com leite materno, se verificar menor probalidade de infecções das vias respiratórias inferiores; trata-se, pois do papel preventivo do leite materno, como recomendação explícita. Complicações e prognóstico A bronquiolite é considerada uma doença de baixa mortalidade (inferior a 0.01%) a qual está relacionada com patologia concomitante e préexistente que aumenta o risco de complicações. No entanto, a sua morbilidade é importante, sendo relativamente frequentes as complicações na fase aguda, sobretudo as do foro respiratório como a atelectasia e a insuficiência respiratória obrigando, por vezes, à necessidade de ventilação mecânica. Também pode observar-se pneumotórax, pneumomediastino e infecções bacterianas secundárias como pneumonia e otite. A deterioração súbita com apneia é uma complicação, sobretudo no lactente pré-termo. Há casos com evolução mais arrastada, mantendo tosse, sibilância e/ou dispneia expiratória para além de duas semanas (por vezes meses) ou evoluindo com crises de agravamento e intolerância progressiva ao esforço. Trata-se dum quadro clínico designado por bronquiolite obliterante, abordada no capítulo 86. Muitos autores têm demonstrado que nalgumas crianças se mantém, após o primeiro episódio de bronquiolite, alteração da função respiratória, ou hiperreactividade brônquica, que pode persistir desde meses até 8 a 10 anos (sobretudo após infecção pelo VSR); tal alteração muitas vezes traduz-se por episódios de sibilância recorrente, levando ao diagnóstico de asma do lactente ou de pieira recorrente da infância. Não estão cabalmente esclarecidos os factores que condicionam este quadro sendo admitidas várias hipóteses: 1 – Estudos epidemiológicos sugerem que tais crianças fazem parte da população asmática, sobretudo se houver história pessoal ou familiar 465 QUADRO 4 – Complicações de bronquiolite • Atelectasia • Hiperreactividade brônquica • Bronquiolite obliterante • Bronquiectasias • Síndroma do pulmão hiperlucente • Pneumonia bacteriana • Estenose brônquica • Granuloma endobrônquico de atopia ou detecção de IgE específica para o VSR nas secreções nasofaríngeas. 2 – Outros estudos sugerem tratar-se de sequela a longo prazo da lesão bronquiolar induzida pela infecção vírica ou relacionável com factores do hospedeiro como a presença de calibre mais reduzido das vias aéreas ou distensibilidade pulmonar perturbada; tal não implica, no entanto que venha a desenvolver-se asma na idade escolar em tais circunstâncias. 3 – Com base noutros estudos demonstrou-se que, se não existir história familiar de atopia, a tendência para pieira pós-bronquiolítica regredirá por volta dos 10 anos de idade. O Quadro 4 sintetiza as principais complicações. BIBLIOGRAFIA Bertrand P, Aranibar H, Castro E, Sanchez I. Efficacy of nebulized epinephrine versus salbutamol in hospitalized infants with bronchiolitis. Pediatr Pulmonol 2001; 284-288 Bilderling G, Bodart E. Bronchiolitis management by the Belgian paediatrician: discrepancies between evidence based medicine and pratice. Acta Clin Belg 2003; 58: 98-105 Bisgaard H. Randomized trial of montelukast in respiratory sincytial virus postbronchiolitis. Am J Respir Crit Care Med 2003; 167: 379-383 Bisgaard H. Intermittent inhaled corticosteroids in infants with episodic wheezingh. N Engl J Med 2006; 354: 1998-2005 Fitzgerald D, Kiham H. Bronchiolitis: assessment and evidence-based management. MJA 2004; 180: 399-404 Gold D, Fuhlbrigge A. Inhaled corticosteroids for young children with wheezing. N Engl J Med 2006; 354:2058-2060 Grigg J, Silverman M. Wheezing disorders in young children: one disease or several phenotypes? Eur Respir Mon 2006; 37:153-169 Kimpel JLL, Hammer J. Bronchiolitis in infants and children. Eur Respir Mon 2006; 37: 170-190 466 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Liberthal AS, Bauchner H, Hall CB, et al. Subcommittee on the diagnosis and management of bronchiolitis, 20042006/AAP. Pediatrics 2006; 118: 1774-1793 Lehtinen K. Prednisolone reduces recurrent wheezing after a 86 BRONQUIOLITE OBLITERANTE first wheezing episode associated with rhinovirus infection or eczema. J Allergy Clin Immunol 2007; 119: 570-575 José Guimarães Martinon-Torres F, Rodriguez-Nunez A, Martinon-Sanchez JM. Heliox therapy in infants with acute bronchiolitis. Pediatrics 2002; 109: 68-73 Meates - Dennis M. Bronchiolitis - Clinical pratice. Arch Dis Definição e importância do problema Child. 2006; 14:5-14 (edição Portuguesa) Secção de Neonatologia da SPP. Prevenção da infecção por VSR. Acta Pediatr Port 2007; 38: 169-171 Szefler S. Montelukast for respiratory syncytial virus bronchiolitis: Significant Effect or Provocative Findings? Am J Respir Crit Care Med 2003; 167: 290-291 Weinberger M. Should corticosteroids be used for first time young wheezers? J Allergy Clin Immunol 2007; 119: 567-569 www.uptodate.com (acesso Janeiro 2008) A bronquiolite obliterante (BO) é uma doença pulmonar crónica pouco comum na idade infantil secundária a agressão ao aparelho respiratório inferior, do que resulta: pequenos brônquios e bronquíolos obstruídos por tecido de granulação e fibrose, por vezes em associação a bronquiectasias nas vias aéreas de maior calibre. Em estudos de exames necrópsicos em idade pediátrica foi calculada a prevalência de cerca de 2/1.000. Etiopatogénese A maioria dos casos segue-se a infecção respiratória causada por adenovírus, particularmente dos tipos 3, 7 e 21. Outras infecções têm sido associadas ao aparecimento de BO nomeadamente por Legionella, Mycoplasma, B. pertussis, vírus influenza e do sarampo. Também a aspiração de material estranho, em particular conteúdo gástrico ácido em casos de refluxo gastro-esofágico, ou a inalação de tóxicos (por ex. NO2, NH3), podem levar ao aparecimento de BO. Alguns casos têm sido associados a artrite reumatóide, lúpus eritematoso e síndroma de Stevens-Johnson. Nos últimos anos a BO tem sido descrita como uma complicação tardia major da transplantação pulmonar. Além disso, têm sido identificadas lesões semelhantes (nos doentes transplantados com medula óssea) associadas a doença enxertohospedeiro. Nalguns casos não é possível determinar a etiologia. A BO inicia-se como uma pneumonia grave necrosante com destruição do epitélio bronquiolar. Quando ocorre a cicatrização, massas de teci- CAPÍTULO 86 Bronquiolite obliterante do de granulação obstruem o lume dos pequenos brônquios e bronquíolos, tornando-se posteriormente fibróticas e causando obliteração parcial ou total das vias aéreas. Nos casos mais graves há destruição do músculo e do tecido elástico com fibrose da parede e áreas envolventes. Existem áreas heterogéneas de distensão e outras de atelectasia. O calibre do leito capilar pulmonar fica diminuído. Devido à obstrução, a resistência aérea e o trabalho respiratório aumentam. A perfusão de áreas pulmonares mal ventiladas causa hipoxémia, e a diminuição na ventilação eficaz causa hipercapnia. A hipoxémia crónica, obstrução aérea e redução do calibre do leito vascular pulmonar, levam a edema pulmonar, o que compromete adicionalmente as trocas gasosas. Manifestações clínicas Na fase aguda a doença não se distingue da bronquiolite aguda: tosse, febre, pieira e dificuldade respiratória. Contudo, a evidência de broncopneumonia e pneumonia intersticial é mais comum. Após um período breve de aparente melhoria ou resolução, voltam a surgir sintomas de doença obstrutiva pulmonar com dispneia, taquipneia e tosse crónica. A auscultação pulmonar revela fervores e sibilos geralmente dispersos. Ocasionalmente o processo obliterativo é predominantemente unilateral traduzido radiologicamente por um quadro de pulmão hipertransparente unilateral ou síndroma de Swyer-James. Neste caso, um exame torácico cuidadoso pode evidenciar sinais localizados no pulmão afectado. Diagnóstico O diagnóstico é sugerido pela clínica de tosse arrastada, pieira e dificuldade respiratória variável, evoluindo: com períodos de melhoria seguidos de agravamento, mais frequentemente após infecção pulmonar moderada a grave por adenovírus ou Mycoplasma; ou com obstrução respiratória persistente respondendo mal aos broncodilatadores, após transplante de medula óssea. A recuperação clínica em geral é incompleta e o doente raramente fica assintomático. A radiografia do tórax evidencia sinais de insuflação com hiperclaridade pulmonar periféri- 467 ca e zonas de opacidade do interstício, espessamentos peribrônquicos e áreas dispersas de broncopneumonia, podendo haver colapso ou consolidação de segmentos ou lobos. A broncoscopia não mostra obstrução das grandes vias aéreas, e a broncografia – na época em que era realizada – evidenciava aspecto característico em “árvore de inverno” sem contraste nos pequenos brônquios. Quer a cintigrafia, quer a angiografia digital, podem evidenciar diminuição da vasculatura pulmonar periférica. Estes aspectos geralmente são difusos, dispersos e bilaterais, mas podem ser localizados a um pulmão ou lobo como na síndroma de Swyer-James. A confirmação diagnóstica poderá obter-se com biópsia pulmonar que deverá ser cirúrgica face à natureza dispersa das lesões. A tomografia computadorizada de alta definição (TCAD) melhorou muito a capacidade de diagnóstico de lesões das pequenas vias aéreas. Na BO frequentemente existe um padrão em vidro despolido bilateral, com áreas de hiperdensidade alternando com outras de hipodensidade e rarefação da vascularização na periferia dos campos pulmonares. Presentemente a história clínica associada a estes aspectos típicos na TCAD tornam desnecessária a broncografia e a própria biópsia pulmonar em muitos casos. As provas de função respiratória são importantes não só no diagnóstico como no seguimento destes doentes. Geralmente evidenciam sinais de doença pulmonar obstrutiva irreversível. O fluxo expiratório forçado a meio da expiração (FEF 2575) é um bom indicador de doença das pequenas vias aéreas. A sua descida marcada abaixo de 30% do valor previsível é um indicador sensível de BO. Em doentes submetidos a transplantes de órgãos sólidos ou medula óssea, têm sido descritos quadros clínicos com pneumonite intersticial aguda não infecciosa e bronquiolite. Aparentemente tais quadros estão relacionados com doença enxerto-hospedeiro ou são devidos à quimioterapia, respondendo à terapêutica imunomoduladora. A BO pode ocorrer, tal como foi referido, como complicação tardia grave do transplante pulmonar. A patogénese é desconhecida, mas parece tratar-se de uma forma peculiar de rejeição de órgão. Ocorre em quase 50% dos sobreviventes de 468 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA transplante pulmonar e não responde à terapêutica usual, podendo ser irreversível. Nos últimos anos uma entidade patológica diferente chamada bronquiolite obliterante-pneumonia organizativa (BOOP) tem sido descrita associada a várias doenças pulmonares incluindo pneumonias infecciosas, inalação de tóxicos e doenças do colagénio vascular. O aspecto anatomopatológico é semelhante à BO excepto no que respeita a uma característica: os septos alveolares estão espessados por um infiltrado celular inflamatório crónico e existe hiperplasia das células tipo II. Tratamento alguns com sintomas ligeiros que melhoram gradualmente sobretudo depois dos 8-10 anos, até outros que continuam a ter significativa doença respiratória com obstrução crónica, bronquiectasias e infecções recorrentes. Mais raramente podem ter evolução rapidamente progressiva para insuficiência respiratória e morte pouco tempo depois do início dos sintomas. Presentemente o prognóstico em geral é razoavelmente bom com uma mortalidade baixa. Nalguns casos graves tem sido feito transplante pulmonar. BIBLIOGRAFIA Guimarães J. Pieira.In: Radiologia do Tórax em Pediatria. Amadora: Roche Farmacêutica Química, 1997; 64-76 O tratamento é de suporte e inclui oxigénio para manter saturação O2-Hb adequada prevenindo a hipertensão pulmonar e a insuficiência cardíaca. Por vezes os diuréticos são úteis no tratamento do edema pulmonar. É importante evitar lesão pulmonar secundária, quer por infecção, quer por aspiração nos casos em que há refluxo gastro-esofágico. A fisioterapia respiratória e a manutenção de um bom estado nutricional são também muito importantes. O papel dos broncodilatadores é controverso, pois os doentes com BO têm obstrução fixa. Contudo, geralmente são usados, podendo haver benefício clínico mesmo em doentes em que não se verifica melhoria da função respiratória. É possível que os corticóides possam limitar a progressão da doença modificando a resposta fibroblástica na fase inicial. Usam-se por via oral, por vezes durante períodos prolongados de meses. Alguns doentes beneficiam desta terapêutica melhorando a sua função pulmonar; contudo, outros não. Admite-se que a resposta positiva aos broncodilatadores possa indiciar utilidade da corticoterapia prolongada. Em centros especializados têm sido utilizados agentes imunomodulares (por ex. tacrolimus), ciclofosfamida em aerossol e macrólidos nos casos de BO associada a transplantes pulmonares. Também o infliximab (anticorpo monoclonal) que se liga ao TNF-alfa tem sido empregue nos casos de doentes transplantados com medula óssea. Prognóstico A evolução dos doentes com BO varia muito: desde Kim CK, Kim SW, Kim JS, Koh YY, Cohen AH, Deterding RR, White CW. Bronchiolitis obliterans in the 1990’s in Korea and the United States. Chest 2001; 120:1101-1106 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Texbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kurland G, Michelson P. Bronchiolitis obliterans in children. Pediatr Pulmonol 2005; 39: 193-208 Mauad T, Dolhnikoff M, et al. Histology of childhood bronchiolitis obliterans. Pediatr Pulmonol 2002; 33:466-474 Wohl MEB. Bronchiolitis. In: Chernick V and Boat T (eds). Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998; 473-484 Zhang L, Irion K, Kozakewich H, Reid L, Camargo JJ, Porto NS, Silva FA. Clinical course of postinfectious bronchiolitis obliterans. Pediatr Pulmonol 2000; 29; 341-350 CAPÍTULO 87 Bronquite 87 BRONQUITE João M. Videira Amaral 469 alergénios (estes últimos abordados noutro capítulo) tem igualmente papel importante. Está provada a associação entre fumo do tabaco (activo ou passivo), poluição do ar e bronquite, com ou sem sibilância. No que respeita à bronquite crónica, em termos de factores etiológicos, tem perfeito cabimento, o que foi referido a propósito das pneumonias recorrentes. Manifestações clínicas Definição e importância do problema A bronquite aguda consiste num processo inflamatório agudo da mucosa dos brônquios de início abrupto, geralmente de origem vírica, em que a tosse é o sinal proeminente. De acordo com estatísticas dos Estados Unidos, estima-se que na idade pré-escolar ocorram cerca de 2 milhões de episódios de bronquite aguda. Dum modo geral acompanha ou surge na sequência de rinofaringite aguda ou de traqueíte aguda, fazendo parte do quadro clínico acompanhante doutras doenças infecciosas ou do foro respiratório com localização diversa. A bronquite crónica corresponde a uma situação caracterizada por produção excessiva de muco e tosse, associada a febre em períodos não inferiores a 3 meses. De facto, surgindo como manifestação clínica ou epifenómeno de um conjunto doutras entidades, em idade pediátrica o termo “bronquite crónica“ não tem a relevância que lhe é atribuída no adulto,acabando por prevalecer a situação de base como entidade. Etiologia Os agentes infecciosos mais frequentemente associados à bronquite aguda são:os adenovírus dos tipos 1, 7 e 12, vírus influenza e para-influenza, o vírus sincicial respiratório e os rinovírus. Relativamente às bactérias estão mais frequentemente implicadas Bordetella pertussis e para pertussis, Haemophilus influenzae, Streptococcuus pneumoniae e Streptococcus pyogenes. Outros germes igualmente isolados são: o Mycoplasma pneumoniae e a Chlamydia psittaci. O factor ambiente através das poeiras, fumos e Os sinais e sintomas característicos são tosse e febre associados a processo inflamatório das vias respiratórias superiores, sendo notória a rinite mucopurulenta com obstrução nasal. A tosse é inicialmente seca , irritatativa, não produtiva, tornando-se produtiva nos dias seguintes. Nos lactentes a tosse é emetizante conduzindo a anorexia e , por vezes, a desidratação. Nas crianças maiores poderá haver expectoração e dor torácica. A evolução tem, em geral, a duração de uma semana, com uma fase de recuperação de 1-2 semanas em que é típica a tosse persistente. Tratase em geral dum processo autolimitado e benigno. Poderá surgir infecção bacteriana secundária. As situações crónicas de “bronquite” obrigam ao diagnóstico diferencial com displasia broncopulmonar, bronquectasias e fibrose quística. Os dados auscultatórios do tórax revelam roncos dispersos mais audíveis na metade superior da caixa torácica. A radiografia do tórax é em geral normal na ausência de sobreinfecção bacteriana. Os exames complementares têm valor limitado , sugerindo em geral processo vírico. O hemograma poderá revelar leucocitose ligeira e em cerca de 1/3 dos casos, mesmo nos processos compravadamente de etiologia vírica, neutrofilia ligeira. Tratamento e complicações O tratamento mais eficaz é o tratamento preventivo incluindo o cumprimento do programa de vacinas disponíveis. Uma vez surgido o episódio, são adoptadas apenas medidas paliativas: desobstrução nasal 470 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA com soro fisiológico e aspiração nasal cuidadosa, mas eficaz, das secreções; antipiréticos com prudência (paracetamol) e suprimento abundante de líquidos por via oral para promover a mucolise. Os antitússicos deverão ser utilizados com prudência e apenas nas situações de tosse não produtiva. Em circunstâncias especiais e em crianças maiores poderão ser utilizados anti-histamínicos durante 3-4 dias, havendo congestão nasal importante. Nos casos de infecção bacteriana secundária está indicada antibioticoterapia. 88 BRONQUIECTASIAS Ana Margarida Reis e José Cavaco Definição BIBLIOGRAFIA Arnold JC, Singh KK, Spector SA, et al. Human bocavírus: Prevalence and clinical spectrum at a children´s hospital. CID 2006; 43: 283-288 Arroll B, Kenealy T. Antibiotics for acute bronchitis. BMJ 2001; 322: 939-940 Chernick V, Boat TF. Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998 Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Taussig LM, Landau LE. Pediatric Respiratory Medicine. St Louis:Mosby, 1999 Esta entidade clínica, descrita pela primeira vez por Laennec em 1819, define-se como uma dilatação anormal, permanente e irreversível do calibre brônquico, provavelmente como resultado de diversos eventos patológicos. Na criança a incidência das bronquiectasias diminuiu nos últimos anos em resultado do desenvolvimento dos programas de vacinação, do tratamento precoce e adequado das infecções respiratórias, e da melhoria do estado de nutrição. A incidência real desta doença é difícil de avaliar devido à baixa suspeita clínica que condiciona o subdiagnóstico; no entanto pode considerar-se que é relativamente rara nos países desenvolvidos. Etiopatogénese Nos países desenvolvidos a causa mais frequente de bronquiectasias é a fibrose quística, devido à obstrução brônquica e infecção crónica associada a esta doença. No entanto, os factores etiológicos de bronquiectasias são múltiplos, como se pode observar no Quadro 1. Devido à melhoria dos cuidados de saúde algumas doenças como a tuberculose, sarampo e tosse convulsa, que eram as principais causas de bronquiectasias, diminuiram significativamente em incidência; no entanto, a infecção pulmonar ainda constitui o factor predisponente mais relevante do desenvolvimento de bronquiectasias. O adenovírus é particularmente agressivo para o pulmão. O vírus sincicial respiratório (VSR) pode causar bronquiectasias se a infecção ocorrer em crianças nascidas pré-termo. A síndroma de Kartagener é uma tríade com- CAPÍTULO 88 Bronquiectasias QUADRO 1 – Factores etiológicos Infecções Vírus (adenovírus, sarampo, VIH, VSR), tuberculose, tosse convulsa, Aspergillus, Pseudomonas, Mycoplasma. Doenças congénitas Deficiência da cartilagem (síndroma de WilliamsCampbell), traqueobroncomegalia (síndroma de MounierKuhn), síndroma de Marfan, síndroma de Ehler-Danlos, discinésia ciliar primária, síndroma de Kartagener, fibrose quística, deficiência de alfa1-antitripsina. Imunodeficiência Primária (hipogamaglobulinémia), secundária (causada por neoplasia, quimioterapia ou imunossupressão). Obstrução Aspiração de corpo estranho, tumor, estenose, compressão por anomalia congénita, asma, síndroma do lobo médio. Aspiração Refluxo gastroesofágico, anomalias congénitas. Inalação de gases tóxicos Heroína, amónia, dióxido sulfúrico. Abreviaturas: VIH: vírus da imunodeficiência humana; VSR: vírus sincicial respiratório. posta por situs inversus, sinusite e bronquiectasias. A discinésia ciliar primária é uma doença autossómica recessiva caracterizada por uma diminuição de função dos cílios brônquicos que contribui para a retenção das secreções e infecções recorrentes. O refluxo gastroesofágico e as aspirações crónicas secundárias às dificuldades de deglutição podem complicar-se com lesões brônquicas. A presença prolongada de corpo estranho nas vias aéreas provoca obstrução crónica e inflamação, factores importantes do desenvolvimento de bronquiectasias. A síndroma do lobo médio, que se caracteriza por atelectasia persistente deste lobo, é uma causa frequente de bronquiectasias localizadas, pela ausência de ventilação colateral; com efeito o brônquio lobar médio é mais longo e de calibre mais 471 estreito, sendo a drenagem mais difícil. Uma das principais causas desta síndroma é a asma. De salientar que em muitos casos a etiologia continua desconhecida. As bronquiectasias, primariamente uma doença dos brônquios e bronquíolos, envolvem um ciclo vicioso de obstrução, infecção e inflamação transmural, com libertação de mediadores. Existe uma agressão inicial das vias aéreas que compromete os mecanismos de defesa, causando colonização bacteriana da árvore brônquica. Na tentativa de eliminar estes microrganismos surge uma reacção inflamatória que é ineficaz e, por este motivo, se torna crónica. Esta reacção provoca destruição da parede brônquica e consequente alteração e compromisso dos mecanismos de defesa com aumento da susceptibilidade à invasão bacteriana. Neste processo parece estarem envolvidos neutrófilos e linfócitos-T, tendo sido encontradas na expectoração concentrações aumentadas de elastase, interleucina-8 e factor de necrose tumoral alfa (TNF-alfa). Microscopicamente o lúme brônquico encontra-se obstruído por muco, há hipertrofia e hiperplasia das células caliciformes e glândulas da submucosa, com infiltração da mucosa e submucosa por células inflamatórias; verifica-se também hipervascularização brônquica e destruição do tecido elástico, tecido cartilagíneo e músculo liso, que são substituídos por tecido fibroso. Classificação Macroscopicamente verifica-se que os brônquios são irregulares e tortuosos, e os bronquíolos distais estão obstruídos por secreções, transformando-se progressivamente em cordões fibrosos. De acordo com o aspecto macroscópico, as bronquiectasias podem dividir-se em: – Cilíndricas: nesta forma as vias aéreas dilatadas surgem, por vezes, como efeito residual de uma pneumonia; – Varicosas: nesta forma existem áreas constritivas focais ao longo das vias aéreas dilatadas que resultam de defeitos da parede brônquica; – Quísticas ou saculares: caracterizadas por dilatação progressiva das vias aéreas que terminam em formações quísticas ou aglomerados 472 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA em cacho de uva. Este achado encontra-se nas formas graves de bronquiectasias. Manifestações clínicas Nas crianças existe habitualmente tosse que pode ser produtiva (as crianças deglutem as secreções); por vezes a expectoração é purulenta com cheiro fétido. As hemoptises são mais raras do que nos adultos. A recidiva de pneumopatia no mesmo território ou infecções brônquicas de repetição, devem fazer suspeitar de bronquiectasias. Existem outros sinais menos específicos como atraso do desenvolvimento estaturo-ponderal ou febre inexplicada. Na anamnese é importante salientar os antecedentes familiares de doença respiratória, a consanguinidade assim como os antecedentes pessoais desde o período neonatal. O exame objectivo permite evidenciar sinais de gravidade como a alteração do estado geral, atraso estaturo-ponderal, deformação torácica, dispneia, hipoxémia, cianose e hipocratismo digital. A auscultação permite detectar fervores nas áreas afectadas, por vezes sibilos e roncos. As provas de função respiratória revelam sinais de obstrução, podendo ocorrer também defeito restritivo nos doentes em que existe destruição avançada do parênquima. Diagnóstico A telerradiografia de tórax poderá não revelar quaisquer sinais anómalos nos estádios mais precoces. As bronquiectasias são identificadas como imagens de dilatação brônquica com espessamento da respectiva parede, hiperinsuflação compensatória, impactação mucóide e formação quística. Classicamente existem dois sinais característicos: sinal de “anel de sinete” (corte de topo do brônquio que é espessado e maior que o topo da artéria adjacente, o que não acontece em situações sem patologia em que a artéria e o brônquio têm tamanhos similares); e “sinal do carril” (linhas espessadas paralelas que representam corte longitudinal do brônquio). Nos casos mais graves pode ocorrer a imagem de pulmão em favo de mel. No entanto, devem ter-se em atenção outros sinais como uma condensação pulmonar que permanece após antibioticoterapia. FIG. 1 TAC Torácica: Sinais de bronquiectasias no contexto de hemossiderose pulmonar. (NIHDE) A broncografia de anteriores décadas foi substituída pela TCAD (tomografia computadorizada de alta definição), que se tornou o método “gold standard” para o diagnóstico de bronquiectasias pela elevada sensibilidade e elevada especificidade. A TAC permite também avaliar as complicações pulmonares associadas às bronquiectasias (como a bronquiolite obliterante), a extensão e evolução das lesões, e orientar o tratamento cirúrgico. (Figura 1) Através da broncoscopia é possível verificar ou excluir a presença de corpo estranho, efectuar a biópsia e colheita de lavado brônquico para diagnóstico etiológico. Outros exames complementares de diagnóstico devem ser orientados para as etiologias mais prováveis. É importante salientar a prova do suor, a intradermorreação de Mantoux e o estudo da imunidade e alergia. Tratamento Globalmente, a actuação tem como objectivos o tratamento da doença primária, a drenagem das secreções, o controlo das infecções agudas e a diminuição da colonização bacteriana e da inflamação. CAPÍTULO 88 Bronquiectasias As exacerbações agudas são reconhecidas pelo aumento da expectoração, que se torna mais espessa e purulenta. A antibioticoterapia deve ser dirigida empiricamente aos agentes mais frequentes que são: Haemophilus influenza, Streptococcus pneumoniae e Staphylococcus aureus. A Pseudomonas aeruginosa e o Proteus vulgaris são menos frequentes. No tratamento das agudizações moderadas prefere-se a terapêutica oral com β-lactâmicos e macrólidos. O antibiótico deve ser posteriormente ajustado de acordo com o exame bacteriológico da expectoração. A duração do tratamento é geralmente 2 a 4 semanas. Para exacerbações mais graves é, por vezes, necessário recorrer à terapêutica endovenosa. Nalguns centros procede-se à profilaxia contínua com macrólidos ou outros antibióticos, por via oral ou em nebulização. Existem outros medicamentos que podem ser utilizados, tais como os broncodilatadores inalados que diminuem a broncoconstrição, e os corticoesteróides que reduzem a inflamação das vias aéreas. Outra vertente importante do tratamento é a cinesiterapia respiratória que melhora a drenagem pulmonar. As indicações para cirurgia são limitadas a doentes com: bronquiectasias localizadas, que sofrem exacerbações frequentes, com complicações graves como hemoptises maciças, ou processos piogénicos como o abcesso pulmonar. Prognóstico Apesar de dependente da precocidade do diagnóstico e do tratamento, de factores predisponentes e das complicações, o prognóstico é geralmente favorável devido às terapêuticas disponíveis actualmente, como antibióticos de largo espectro mais eficazes, e à melhoria dos resultados cirúrgicos. BIBLIOGRAFIA Angrill J et al. Bronchiectasis. Curr Opin Infect Diseases 2001; 14; 193-197 Barker AF. Bronchiectasis. N Engl J Med 2002; 346: 18; 13831393 Brow MA, Leman RS. Bronchiectasis in Chernick V, Boat T (eds). Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998: 538-550 473 Eastham KM, Fall AJ, Mitchell L et al. The need to redefine non cystic fibrosis bronchiectasis in childhood. Thorax 2004; 59: 324-327 Evans DJ et al. Long-term antibiotics in the management of non-CF bronchiectasis – do they improve outcome? Respir Med 2003; 97; 851-858 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Redding G et al. Early radiographic and clinical features associated with bronchiectasis in children. Pediatr Pulmonol 2004; 37; 297-304 Silverman E. et al. Current management of bronchiectasis: review and 3 case studies. Heart Lung 2003; 32; 59-64 474 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 89 SÍNDROMAS DE ASPIRAÇÃO João M. Videira Amaral Importância do problema Existe uma gama muito variada de substâncias, produtos, corpos estranhos ou até produtos biológicos (como por exemplo, secreções nasofaríngeas e conteúdo gástrico) que podem atingir intempestivamente a via respiratória e originar obstrução mecânica e sinais e sintomas que podem culminar em asfixia e morte na ausência de procedimentos emergentes ou urgentes. Cabe referir ainda a possível acção de determinados produtos tóxicos aspirados ou inalados, tais como petróleo, naftaleno, pó de talco, vapores de mercúrio, pesticidas, produtos clorados, gomalaca, berílio, etc., que poderão originar, para além de obstrução mecânica, a formação de granuloma e pneumonite intersticial por acção crónica irritativa e agressiva sobre as estruturas canaliculares da via respiratória. O objectivo deste capítulo é abordar sucintamente as situações relacionadas com a aspiração acidental de objectos de pequenas dimensões na perspectiva de chamada de atenção para a necessidade de prevenção. Etiopatogénese Qualquer objecto de pequenas dimensões (peças de jogos ou de brinquedos,botões, feijões ou grãos de leguminosas secas, rebuçados,pequenas peças acessórias do vestuário de metal ou plástico,etc.) que ultrapasse a barreira laríngea pode ser aspirado para as vias respiratórias inferiores originando obstrução de grau diverso. Se os objectos aspirados forem constituídos por matéria orgânica, o risco de vida imediato é menos significativo.No caso de se se tratar de objectos irritantes para a mucosa brônquica, o edema da respectiva parede contribui agravar a diminuição do calibre da via respiratória. Manifestações clínicas A noção precisa de aspiração de corpo estranho é rara sobretudo em crianças pequenas com ausência de testemunhas. Esta circunstância implica, por isso, elevado índice de suspeita. Por outro lado, a história de início súbito de tosse disfónica e dificuldade respiratória ( sibilância ou estridor, cianose e retracção torácica, apneia, etc.) é muito típica e sugestiva. Dum modo geral, os sinais e sintomas dependem da localização do corpo estranho na via respiratória. Localizando-se na traqueia com obstrução total, surgirão asfixia e retracções torácicas marcadas . Se a obstrução for parcial e alta, como consequência surgirão estridor inspiratório e expiratório assim como retracção costal superior ; se a obstrução for baixa e parcial, os sinais serão sibilância e estridor inspiratório. Se a localização for o brônquio principal, os sinais mais típicos são a tosse , sibilância e, por vezes, hemoptise. Se o corpo estranho se alojar em brônquio lobar ou segmentar serão notórios diminuição do murmúrio vesicular, sibilos e roncos, com sibilância localizados ao lado afectado. Pela inspecção, poderá notar-se diferença quanto ao grau de expansão dos dois hemitóraxes. No caso de haver atraso no diagnóstico, poderão surgir episódios recorrentes de sibilância diagnosticados como “asma, pneumonia ou bronquiectasias”, não sendo de excluir em tal circunstância, pneumonia secundária. Torna-se importante frisar que a possibilidade da presença de corpo estranho nas vias respiratórias deve ser sempre admitida no diagnóstico diferencial de todo e qualquer tipo de problema respiratório, designadamente na criança pequena, valorizando sempre, claro está, a anammese. Exames complementares A suspeita de aspiração de corpo estranho implica proceder a exame radiográfico do tórax (deven- CAPÍTULO 89 Síndromas de aspiração 475 cesso educativo incidindo sobre as próprias (cuidado com os objectos dados às crianças pequenas para brincar: objectos pequenos não!). Esta acção educativa deve começar na escola pré-primária. Tratamento FIG. 1 Padrão radiográfico de atelectasia pulmonar (segmento do lobo superior à direita) por aspiração de corpo estranho não radiopaco. (NIHDE) do idealmente ser feito em inspiração e em expiração, contemplando igualmente as incidências em decúbito bilateral); poderá não revelar qualquer sinal anómalo ou, pelo contrário, sinais directos e indirectos. De referir os seguintes sinais: enfisema notório na fase de expiração por acumulação progressiva de ar nos casos de obstrução parcial e mecanismo valvular; atelectasia; sinais retracção com desvio do mediastino; (Figura 1) imagem do próprio corpo estranho caso seja radiopaco. Como complemento poderá haver necessidade de recurso à vídeo-radioscopia. A broncospia constitui uma técnica obrigatória, quer para a confirmação diagnóstica, quer na perspectiva de intervenção terapêutica para a remoção do corpo estranho. Prevenção Na maior parte das vezes a aspiração de corpo estranho não constitui uma situação de emergência com asfixia e risco de vida. O grau de urgência/emergência depende da localização do corpo estranho e do grau de dificuldade respiratória. No entanto, se a criança for admitida no serviço de urgência em apneia e tiver idade superior a 1 ano, deverá proceder-se à manobra de Heimlich de imediato; se tiver menos de 1 ano deverá proceder-se à manobra de percussão forte do dorso. No entanto, o procedimento de eleição em situações de emergência /asfixia e história convincente de aspiração é a broncoscopia com broncoscópio rígido para remoção do corpo estranho. Nos casos em que a história não é convincente poderá utilizar-se inicialmente o broncoscópio flexível para confirmar o diagnóstico; em segunda linha, uma vez confirmado o diagnóstico, procede-se a broncoscopia rígida para remoção do corpo estranho. Em função do contexto clínico (sinais sugestivos de sobreinfecção) poderá estar indicada a antibioticoterapia. BIBLIOGRAFIA Chernick V, Boat TF. Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998 Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 Delegge MH, Aspiration pneumonia: incidence, mortality, and at-risk population. J Parentr Enteral Nutr 2002; 26: S19-S25 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, Este tipo de acidentes que surge com mais frequência entre os 6 meses e os 3 anos, pode ser prevenido através duma vigilância adequada por quem é responsável pelos cuidados a prestar à criança, e da escolha apropriada de brinquedos, alimentos ou peças de vestuário para a mesma. Tratando-se de crianças mais velhas, a prevenção passa pelo pro- 2007 Marik PE. Aspiration pmeumonitis and aspiration pneumonia. NEJM 2001; 344: 665-671 Taussig LM, Landau LE. Pediatric Respiratory Medicine. St Louis:Mosby, 1999 476 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 90 HEMOSSIDEROSE PULMONAR Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida Definição e importância do problema A designação de hemossiderose pulmonar idiopática corresponde a um estado patológico de causa desconhecida, associado a episódios repetidos de hemorragia intra-alveolar com acumulação de ferro nos macrófagos na forma de hemossiderina, subsequente fibrose pulmonar e anemia ferropénica. O termo é por vezes usado incorrectamente como sinónimo de hemorragia pulmonar. A deposição de hemossidermia secundária a hemorragia alveolar difusa pode surgir como doença primária, ou secundariamente a doença cardíaca ou a doença vascular sistémica. Na idade pediátrica a forma primária surge mais frequentemente do que a forma secundária. Relativaemente à hemossiderose pulmonar primária, trata-se de uma patologia muito rara, com uma incidência de entre 0,23 a 1,23 por milhão de crianças. Em geral ocorre entre 1-7 anos e mais raramente na idade adulta. Quando surge em idade inferior a 10 anos apresenta igual distribuição por sexos; no entanto, em crianças com mais de 10 anos ocorre mais frequentemente no sexo masculino (2/1). Com base nesta hipótese foi estabelecida uma classificação que considera as seguintes formas clínicas de hemossiderose pulmonar: 1) primária englobando a forma idiopática, ou não associada a doença subjacente, a forma associada à hipersensibilidade às proteínas do leite de vaca ou síndroma de Heiner, e a forma associada a glomerulonefrite progressiva ou síndroma de Goodpasture; 2) secundária englobando diversas etiologias: estenose mitral, a insuficiência cardíaca congestiva, a miocardite, conectivites, vasculites – por exemplo púrpura de Henoch-Schonlein, doença celíaca, diabetes, doenças malignas, diversas “noxas – por exemplo citotóxicos e imunossupressores, radiação, monóxido de carbono, etc.. Sob o ponto de vista de localização das lesões, a extenção destas é variável, distinguindo-se as chamadas formas difusas e as formas focais. Será dada ênfase a duas das formas de hemossiderose pulmonar primária atrás referidas: idiopática e síndroma de Heiner. Anatomia Patológica Macroscopicamente o pulmão tem peso elevado, com áreas de consolidação vermelho-acastanhadas. Histologicamente evidenciam-se sinais de degenerescência intensa, divisão e hiperplasia das células epiteliais alveolares (pneumócitos tipo II) e dilatação capilar alveolar localizada intensa, sem sinais de capilarite. Há vários graus de fibrose intersticial pulmonar e hemorragia nos espaços alveolares com deposição de hemossiderina dentro dos septos alveolares e nos macrófagos intra-alveolares. 1. IDIOPÁTICA Etiopatogénese e classificação Manifestações clínicas A etiopatogénese não está esclarecida. Alguns estudos sugerem um mecanismo imunológico (por vezes a prova de Coombs é positiva, há crioaglutininas circulantes ou mastócitos nos pulmões). A favor da patogénese de base imunológica na forma idiopática é a verificação de forma secundária associada a doença celíaca com remissão das queixas após a instituição de uma dieta sem glúten. Em geral surgem antes dos 10 anos de idade, caracterizando-se por episódios recorrentes de tosse, dispneia, pieira e cianose, que duram entre 2 a 4 dias. As crianças pequenas apresentam vómitos com o sangue deglutido. No decurso da doença surgem anemia ferropénica moderada a grave com palidez, taquicardia, prostração e hemoptises. A figura 1 mostra sinais de hipocratismo digital por insuficiência respiratória CAPÍTULO 90 Hemossiderose pulmonar 477 FIG. 1 Sinais de hipocratismo digital no contexto de hemossiderose pulmonar. (NIHDE) crónica no contexto de hemossiderose pulmonar. Deve valorizar-se a tríade clássica: anemia ferropénica, hemoptises e infiltrados alveolares detectados pela radiografia do tórax. Exames complementares Uma vez que os macrófagos alveolares não conseguem metabolizar o ferro da hemoglobina, este acumula-se no seu interior provocando anemia ferropénica com níveis de ferro sérico e medular muito baixos. Assim, esta patologia é caracterizada pelo paradoxo de uma anemia ferropénica com ferro depositado no tecido pulmonar, o que condiciona fibrose. A anemia é tipicamente microcítica e hipocrómica com reticulocitose. Os níveis de bilirrubina sérica estão aumentados bem como a excreção urinária de urobilinogénio. Em geral, após um episódio agudo há leucocitose com desvio à esquerda (neutrófilos imaturos no sangue periférico). Em cerca de 15 a 20% dos casos verifica-se eosinofilia. Pela deglutição de saliva com sangue, a pesquisa de sangue nas fezes pode ser positiva. Em cerca de 20% das crianças há hepatoesplenomegália e linfadenopatia. Na radiografia do tórax executada após uma episódio agudo pode observar-se infiltrado alveolar uni ou bilateral, migratório, e que pode sofrer remissão completa após a fase sintomática. (Figura 2). A tomografia axial computadorizada do tórax FIG. 2 Hemossiderose pulmonar: radiografia do tórax (AP) evidenciando opacidades dispersas em ambos os campos pulmonares. (NIHDE) (TAC) revela opacidades alveolares difusas de predomínio inferior na fase aguda. (Figura 3). Durante a fase aguda a cintigrafia pode demonstrar sinais de hemorragia. A capacidade de difusão do monóxido de carbono está aumentada (uma vez que este se liga aos eritrócitos presentes nos alvéolos). A broncoscopia com lavado broncoalveolar pode revelar a presença de macrófagos com depósito abundante de hemossiderina (apenas se a hemorragia tiver ocorrido há mais de 2 ou 3 dias); no entanto, este achado apenas comprova a ocorrência de hemorragia pulmonar e não a etiologia. O exame cultural é negativo. A negatividade doutros exames específicos como ANA, ANCA, factor reumatóide, anticorpo antifosfolípidos e anticorpos antimembrana basal do glomérulo exclui certas formas secundárias. 478 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Tratamento FIG. 3 Hemosiderose pulmonar: TAC torácica evidenciando opacidades dispersas e sinais de bronquiectasias. (NIHDE) O aspirado gástrico também pode conter macrófagos com hemossiderina. A biópsia pulmonar na forma idiopática é característica e demonstra a ausência de deposição de imunoglobulinas ou complemento na membrana basal alveolar. Este dado exclui síndroma de Goodpasture. A referida biópsia inicialmente deve ser feita por fibroscopia (biópsia transbrônquica retirandose amostras de diferentes lobos e segmentos). Se não for possível o diagnóstico por esta técnica, deverão ser colhidas amostras maiores e a biópsia deverá ser realizada por toracoscopia ou em “pulmão aberto”. O estudo da função pulmonar demonstra um padrão de insuficiência respiratória restritiva (pela fibrose) e obstrutiva (por irritabilidade brônquica). A detecção de autoanticorpos deve ser negativa. Diagnóstico Não existe qualquer achado patognomónico desta entidade. Por isso, o diagnóstico baseia-se na clínica, nas alterações radiológicas e na biópsia pulmonar após exclusão de outra causa de hemorragia pulmonar difusa e recorrente. A tríade “achados radiológicos do tórax, hemoptises e anemia ferrofénica” é sugestiva como hipótese inicial, como foi referido. Durante a fase aguda está indicada a utilização de corticóides sistémicos (prednisona, 1mg/Kg/dia) com repercussão na diminuição da morbilidade e da mortalidade. Quanto ao seu uso a longo prazo com doses baixas, dada a baixa incidência desta patologia, não existem estudos controlados que comprovem a sua eficácia, mas admite-se que poderão evitar exacerbações e até prolongar a sobrevivência. Alguns autores defendem o uso de imunossupressores (por ex. ciclosfosfamida) associados à corticoterapia. Os resultados, no entanto, variam conforme as séries de doentes analisados. A anemia pode ser corrigida com ferro excepto numa fase mais avançada de doença crónica em que a síntese de hemoglobina está suprimida. Em certos casos pode ser necessária a transfusão de concentrado eritrocitário. Prognóstico Cerca de cinquenta por cento dos doentes morre dentro de 1 a 5 anos após o diagnóstico devido a hemorragia pulmonar aguda ou insuficiência respiratória progressiva. 2. SÍNDROMA DE HEINER As crianças com a forma de hemossiderose pulmonar associada a hipersensibilidade às proteínas do leite de vaca (síndroma de Heiner) têm um quadro clínico típico de hemossiderose pulmonar idiopática associado a rinite crónica, otite média recorrente, sintomas gastrintestinais e atraso do crescimento. A hipertrofia do tecido linfóide nasofaríngeo pode ser suficientemente obstrutiva conduzindo a cor pulmonale secundário. A patofisiologia ainda não está totalmente compreendida, mas algumas crianças têm anticorpos (IgE) contra o leite de vaca e melhoram após supressão do leite no regime alimentar. A corticoterapia é útil, principalmente durante os episódios agudos. Esta entidade tem melhor progóstico do que a anteriormente descrita. BIBLIOGRAFIA Boat T. Pulmonary Hemorrhage and Hemoptysis. In Chernick CAPÍTULO 91 Fibrose quística V et al (eds). Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998: 623-633 Godfrey S. Pulmonary hemorrhage/hemoptysis in children. Pediatr Pulmonol 2004; 37: 476-484 Ioachimescu OC, Sieber S, Kotch A. Idiopathic pulmonary hemosiderosis revisited. Eur Respir J 2004; 24: 162-170 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson 479 91 FIBROSE QUÍSTICA Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Ana Maia Pita e José Cavaco Moissidi SI, Chaidaron D, Vichyanond P, Bahna SL. Milk induced pulmonary disease infants (Heiner Syndrome). Pediatr Allergy Immunol 2005; 16: 545-562 Yao TC, Hung IJ, Jaing TH, et al. Pitfalls in the diagnosis of Definição e importância do problema idiopathic pulmonary haemosiderosis. Arch Dis Child 2002; 86: 436-438 A fibrose quística (FQ) é uma doença hereditária multissistémica que resulta de mutações no gene do CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), uma proteína transportadora que se localiza nas membranas apicais das células epiteliais de várias mucosas, nomeadamente da via aérea, da via biliar, intestino, ductos pancreáticos, glândulas sudoríparas, entre outras. Este transportador de membrana está relacionado com o transporte de iões; em caso de ausência ou défice funcional, verifica-se aumento da viscosidade das secreções. Daqui resulta a disfunção multiorgânica, típica da FQ, com repercussão mais importante no pulmão e pâncreas, caracterizando-se essencialmente por doença pulmonar crónica e insuficiência pancreática. Aspectos epidemiológicos e genética Trata-se da doença autossómica recessiva mais frequente na população caucasiana com uma incidência estimada de 1/1.600 a 1/2.500 entre caucasianos (1/17.000 entre africanos e 1/90.000 entre asiáticos). Em Portugal uma pessoa em cerca de 30 é portadora de uma mutação. Uma em cada 3600 crianças nasce com esta doença. Estão descritas mais de 1.000 mutações do gene da FQ no cromossoma 7, sendo no entanto a mutação ΔF508 a que determina a deleção da fenilalanina na posição 508, e a mais frequente (corresponde a cerca de 67% dos casos de FQ em todo o mundo, variando de região para região, com uma frequência entre 45 e 55% no sul da Europa). 480 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Fisiopatologia As mutações do gene determinam alterações na função com ausência ou diminuição da produção da CFTR; consequentemente há alteração do transporte transmembranar de cloro, bem como diminuição da actividade dos canais de sódio das células epiteliais da via aérea, de que resulta diminuição da secreção de cloro e aumento da reabsorção de sódio. Ocorrem ainda alterações estruturais na membrana celular, com repercussão em várias funções da mesma (por exemplo o aumento do número de receptores para a Pseudomonas nas células epiteliais das vias aéreas é uma das alterações ultraestruturais). Assim, o espectro de alterações funcionais é vasto e complexo, estando a desvendarse progressivamente. Por outro lado, admite-se que as alterações funcionais dependam da mutação envolvida, e as manifestações clínicas variem consoante estas alterações. Assim, diferentes mutações determinam quadros clínicos particulares, com gravidades diferentes. Por exemplo, a mutação ΔF508, está habitualmente associada a manifestações clássicas, incluindo doença respiratória crónica e insuficiência pancreática, com consequente síndroma de má absorção, e o genotipo ΔF508/R117H a um fenotipo ligeiro. A síndroma de má absorção está relacionada com o défice de secreção, quer enzimática, quer de bicarbonato. O défice de enzimas pancreáticas é agravado pela deficiente alcalinização do conteúdo duodenal, com inactivação dessas mesmas enzimas. O genotipo não parece ser determinante em termos de prognóstico. Manifestações clínicas No período neonatal pode manifestar-se como íleo meconial (15% dos doentes), peritonite meconial, icterícia (com hiperbilirrubinémia directa elevada) mais prolongada e importante do que o habitual, ou alcalose hipoclorémica (resultante de perda de sais). O referido quadro de oclusão intestinal neonatal é quase patognomónico da FQ; por isso torna-se obrigatória a investigação de FQ em tal circuntância (tripsina imunorreactiva, prova de suor logo que possível e/ou estudo genético) – ver adiante. As manifestações mais frequentes (51% dos casos nos EUA) da FQ são respiratórias, nomeadamente sibilância recorrente e infecções respiratórias de repetição, com colonização sucessivamente por Staphylococcus aureus, Haemophilus influenzae e Pseudomonas aeruginosa (colonização crónica estabelecida com uma prevalência de cerca de 80%, aos 18 anos). A colonização por estes agentes pode classificar-se em intermitente e crónica (se houver isolamento bacteriano em 6 meses consecutivos). A colonização por Pseudomonas aeruginosa começa por ser intermitente e depois persistente, uma vez que a bactéria tem a capacidade de adquirir uma alteração da expressão génica que permite a produção de um biofilme que dificulta a sua eliminação (forma mucóide). Após colonização definitiva verifica-se deterioração acelerada da função pulmonar. A colonização por este último agente é influenciada por vários factores, nomeadamente o genotipo, o sexo (as crianças do sexo feminino são colonizadas mais precocemente), a presença de insuficiência pancreática e a eficácia de isolamento dos doentes em cada centro. Outro agente que pode colonizar as vias aéreas dos doentes com FQ é a Burkholderia cepacea. A infecção por este agente multirresistente aos antibióticos associa-se a deterioração importante da função pulmonar e a mau prognóstico, podendo manifestar-se de três formas diferentes: colonização crónica assintomática, deterioração progressiva e evolução rápida fatal. Podem surgir infecções por outros agentes, como Stenotrophomonas maltophilia, Achromobacter xylosoxidans e Aspergillus fumigatus, muitas vezes assintomáticas; um dos quadros é a chamada aspergilose broncopulmonar alérgica. A infecção recorrente e/ou persistente pelos germes microbianos referidos conduz a uma resposta inflamatória intensa, com hipertrofia e hiperplasia das glândulas secretoras e lesão progressiva das vias aéreas, com evolução para bronquiectasias e outras alterações irreversíveis do tecido pulmonar. Surge, assim, uma doença pulmonar crónica obstrutiva, com insuficiência respiratória progressiva; são habituais os períodos de exacerbação da sintomatologia, nomeadamente com tosse mais frequente, incremento de secreções CAPÍTULO 91 Fibrose quística brônquicas, agravamento da dificuldade respiratória, febre com perda de peso (superior a 5%), hemoptises, e/ou agravamento radiológico e das provas de função respiratória (diminuição do volume expiratório máximo por segundo /VEMS superior a 10% do valor basal e/ou da capacidade vital forçada). Outra complicação respiratória possível é o pneumotórax espontâneo (5 a 8% dos casos de FQ), que pode resultar de mecanismos valvulares (obstrução de vias aéreas por secreções), com ruptura de espaços aéreos periféricos para a pleura. Trata-se de uma situação com mortalidade significativa e alta taxa de recorrência. Além das vias aéreas inferiores, também as superiores são afectadas: sinusopatia e polipose nasal, frequentes. Em cerca de 2% dos doentes surge um quadro clínico atípico, caracterizado apenas por doença sinopulmonar crónica, sem insuficiência pulmonar e com prova de suor normal (cloro < 40 mEq/L) ou no valor limite (40 a 60 mEq/L), através de iontoforese com pilocarpina. Verifica-se igualmente na infância má progressão ponderal (cerca de 40% dos casos), relacionada com o maior consumo energético e com a síndroma de má absorção resultante da insuficiência pancreática (em cerca de 85 a 90% dos casos). Esta última conduz a diarreia crónica por má absorção (dejecções volumosas, fétidas e gordurosas), edema relacionado com a hipoproteinémia, anemia, défice de vitaminas lipossolúveis, com aumento do tempo de protrombina (por défice de vitamina K), neuropatia periférica, encurtamento de semi-vida dos eritrócitos (por défice de vitamina E), etc.. De referir que são também característicos os episódios recorrentes de pancreatite aguda. Mais rara e tardiamente poderá surgir diabetes mellitus em relação com a lesão pancreática crónica (3% das crianças 14% dos adultos). Outras manifestações frequentes são o refluxo gastro-esofágico, a síndroma de oclusão intestinal distal (10% dos casos), o prolapso rectal (< 1% de pacientes), a litíase biliar (5%), a desidratação hiponatrémica ou alcalose metabólica graves, o atraso pubertário e a atrésia do canal deferente com infertilidade masculina (azoospermia em > 95% dos casos). Nas adolescentes pode surgir 481 amenorreia secundária. Raramente surge cirrose biliar com hipertensão portal. Diagnóstico O diagnóstico é efectuado no primeiro ano de vida em 70% dos casos, e até aos 8 anos em 90%. Existem situações de diagnóstico tardio, associadas a quadros clínicos menos exuberantes. É feito com base na clínica (uma ou mais características fenotípicas clássicas) e história familiar (consanguinidade, irmão ou primo em primeiro grau com FQ), e/ou resultado do rastreio neonatal positivo e confirmado por duas provas do suor positivas (doseamento no suor de Cl > 60 mEq/L), e/ou detecção de duas mutações do gene da fibrose quística, e/ou evidência de anomalias características do transporte do ião cloro através do epitélio nasal – por método biofísico. (Quadro 1). De referir que as provas do suor podem apresentar resultados falsos positivos e falsos negativos, tal como é sintetizado no Quadro 2. Alguns genotipos (3849+10KbC>T) estão associados a valores normais de cloro no suor. Em relação ao estudo genético por ADN salienta-se que: habitualmente apenas são estudadas as mutações mais frequentes, que correspondem a aproximadamente 90% das existentes; em aproximadamente 1% dos casos de fibrose quística não são detectadas mutações; e em cerca de 18%, apenas um dos genes mutantes é identificado. Pode ainda existir mais do que uma mutação QUADRO 1 – Diagnóstico de FQ Presença de sinais clínicos típicos (respiratórios, gastrintestinais ou génito-urinários) ou Familiar próximo com FQ ou Rastreio neonatal positivo + 2 provas de cloro no suor > 60 mEq/L ou Identificação de 2 mutações FQ ou Alteração da diferença dos potenciais nasais 482 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Prova do suor em diversas situações clínicas 1. VALORES FALSOS POSITIVOS Causas metabólicas Fucosidose Glicogenose tipo I Mucopolissacaridoses Defice da desidrogenase da glicose 6-fosfato Hipotiroidismo Diabetes insípida resistente à vasopressina Insuficiência supra-renal Colestase familiar Hipoparatiroidismo familiar Anorexia nervosa Disfunção autonómica Doença celíaca Hipogamaglobulinémia Doenças da pele e glândulas sudoríparas Má-nutrição Displasia ectodérmica Dermite atópica Causas iatrogénicas Infusão de prostaglandinas E1 2. VALORES FALSOS NEGATIVOS Erros metodológicos Amostra insuficiente Evaporação parcial da amostra Erros de cálculo em cada gene, com múltiplas combinações possíveis, que contribuem inclusivamente para modificar o fenotipo. Nalguns países, laboratórios comerciais testam hoje entre 30-80 das mutações de CFTR mais comuns. A metodologia utilizada poderá ser a sequenciação completa da zona codificante dos 27 exões do gene CFTR com as regiões intrónicas adjacentes. O estudo da chamada diferença de potenciais nasais, método biofísico mais preciso que a prova de suor para detecção de alterações no funcionamento do CFTR, é muito complexo e moroso, não se efectuando presentemente em Portugal. Outros exames complementares importantes incluem os estudos da função pancreática, nomeadamente através dos doseamentos de gorduras fecais (72 horas), da quimiotripsina e da elastase fecais, entre outros. O doseamento da tripsina imunorreactiva sérica (TIR) nos recém-nascidos (utilizando o cartão para a prova de Guthrie no âmbito do diagnóstico precoce) e a detecção de azoospermia obstrutiva após a puberdade (análise do esperma e ecografias, com confirmação por biópsia testicular), também podem contribuir para o diagnóstico. Outro aspecto quase patognomónico da fibrose quística é a pansinusite, detectada por radiografia ou tomografia axial computadorizada dos seios perinasais. Actualmente é já possível o diagnóstico prénatal, por pesquisa das mutações em células fetais obtidas por biópsia das vilosidades coriónicas, ou amniocentese. Nalguns países é efectuado o rastreio neonatal com base no doseamento de TIR. Vigilância e tratamento A FQ implica um acompanhamento regular da criança e família, por uma equipa multidisciplinar, que inclui pediatra com experiência em FQ, médico de família enfermeira, dietista, fisioterapeuta e psicóloga, entre outros. Nesta perspectiva está indicada a vigilância regular trimestral englobando: Avaliação seriada de determinados parâmetros 1. altura (deve manter-se acima do percentil 5) 2. peso (sinal de alarme: perda de peso em 2 meses consecutivos) 3. índice nutricional (que se deve manter >90%) de acordo com a fórmula Peso actual (Kg) x 100 Peso ideal para a altura (Nornal – 90 a 110%; baixo peso – 85 a 89%; má-nutrição ligeira – 80 a 84%; má-nutrição moderada – 75 a 79%; mánutrição grave – <75%) 4. sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, saciedade precoce, dor abdominal) 5. sintomas respiratórios (tosse, expectoração, tolerância ao esforço) 6. sintomas sugestivos de diabetes (poliúria, polidipsia, perda de peso súbita) CAPÍTULO 91 Fibrose quística 7. oximetria para avaliação de saturação de O2-Hb por método transcutâneo (em todas as consultas) 8. provas de função respiratória (periodicidade de 3 a 6 meses, após os 5 anos) 9. análises de sangue: velocidade de sedimentação, hemograma, transaminases, fosfatase alcalina, tempo de protrombina, amilase, glicémia em jejum, ureia, creatinina, ácido úrico, ionograma sérico, cálcio, fósforo, gasometria, electroferese das proteínas, colesterol, triglicéridos, vitaminas A, D e E, ferro, ferritina, transferrina, imunoglobulinas, RAST para Aspergillus (anualmente) 10. exame cultural da expectoração (3/3 meses e durante as exacerbações respiratórias) 11. radiografia de tórax póstero-anterior e de perfil (de 2 em 2 ou 4 em 4 anos, em doentes estáveis) 12. TAC de alta definição de tórax (eventualmente de 5 em 5 anos) 13. ecografia abdominal (anual) 14. vigilância de efeitos tóxicos da terapêutica (audiograma, função renal) Suprimento nutricional os cálculos são feitos na base de 150% das necessidades calóricas de uma criança saudável da mesma idade e sexo) incluindo suplementos vitamínicos, vitaminas liposolúveis A, D, E e K, suplementos de enzimas pancreáticas – 500 a 2.000 unidades de lipase/kg/refeição) e inibidores da secreção ácida gástrica (inibidores da bomba de protões e antagonistas H2). Pode eventualmente ser necessário proceder a gastrostomia ou jejunostomia para alimentação por débito contínuo durante a noite rendibilizando o suprimento nutricional. Prevenção de infecções respiratórias através de vacinação anual contra o vírus influenza e contra pneumococo (vacina conjugada ou polissacarídea). Deve evitar-se infantário antes dos 12 meses. Deve evitar-se o contacto entre doentes com fibrose quística colonizados por agentes microbianos diferentes. Promoção do processo de depuração das vias aéreas através de cinesiterapia respiratória, broncodilatadores fluidificantes das secreções e mucolíticos (N-acetil cisteina, DNAse recombinante). Nalguns centros tem sido aplicada a inalação com soluto salino hipertónico. 483 Diminuição da inflamação das vias aéreas com anti-inflamatórios (maior benefício abaixo dos 15 anos de idade e em doentes colonizados por Pseudomonas aeruginosa), nomeadamente com: 1 – prednisolona em dias alternados (reduz o declínio da função pulmonar, mas não melhora o quadro clínico, nem diminui o número de hospitalizações; por outro lado aumenta a incidência de diabetes, de atraso no crescimento e de cataratas. Não está provada a eficácia de corticóides inalados. 2 – ibuprofeno em altas doses (risco de hemorragia digestiva e de nefrotoxicidade). Nalguns centros o ibuproferro administrado durante períodos longos (4 anos) acompanhado de doseamento sérico com nível 50100 µg/mL contribuiu para diminuir a gravidade da doença respiratória. 3 – azitromicina (demonstrou-se, com efeito a acção anti-inflamatória deste macrólido acompanhando a acção de diminuição da virulência da P. aeruginosa. Outros fármacos estão em investigação, nomeadamente, inibidores da elastase ou outras proteases (alfa 1-antitripsina, entre outros fármacos). Tratamento das infecções respiratórias crónicas com antibioticoterapia cíclica ou diária, para supressão do crescimento bacteriano e das exacerbações (Quadro 3): a antibioticoterapia deve ser dirigida sempre que é isolado um agente microbiano nas secreções respiratórias, mas pode ser empírica (especialmente nos lactentes em que é difícil obter amostras adequadas). Muitas vezes são isolados vários agentes, sendo necessária antibioticoterapia múltipla. Existem estudos que defendem a terapêutica (incluindo terapêutica por via endovenosa) no domicílio; e outros que referem uma menor eficácia, maior duração e menores intervalos entre ciclos de antibioticoterapia com a terapêutica em ambulatório. A antibioticoterapia por via IV poderá ser efectuada no domicílio em situações de estabilidade clínica, apoio de enfermagem de cuidados continuados, vontade e esclarecimento dos pais/família no presuposto de que tal modalidade de tratamento tem início no hospital. Nalguns centros utiliza-se a antibioticoterapia no domicílio 484 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Antibioticoterapia na fibrose quística Agente isolado Antibioticoterapia em Ambulatório Antibioticoterapia em Internamento Haemophilus influenzae Amoxicilina: 50-100mg/kg/d, 8/8h, 2 a 3 semanas, PO Se β-lactamase (+): Cefuroxima-Axetil: 30-40mg/Kg/d, 12/12 h 2-3 semanas PO Flucloxacilina: 50-100 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8h, 2 a 3 semanas, PO Amoxicilina - ácido clavulânico: 150 mg/kg/de amoxicilina 8/8 h, 14 dias, ev ou Cefuroxima: 100-150mg/Kg/d, 8/8 h, 14 dias, ev Flucloxacilina: 100 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8 h, 14 dias, ev Se resistente: Vancomicina: 40 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8 h, 14 dias, ev Ceftazidima: 150-300 mg/kg/d, 8/8 h) (máx 6 gr)+ Tobramicina: 10 mg/kg/d, 8/8 ou 12/12 h, 14 dias, ev Staphylococcus aureus Pseudomonas aeruginosa Clindamicina: 20-30 mg/kg/d, 6/6 h, 2 semanas , PO Colistina: 1 a 2 milhões U, 12/12 h, em aerossol + Ciprofloxacina, 30 mg/kg/d, 12/12 h, 3-4 semanas, PO Infecção crónica Tobramicina: 300mg/kg, 12/12 h, em aerossol, ciclos de 28 dias “on–off” Abreviaturas: PO: “per os”; ev: via endovenosa por via inalatória (aerossóis) tendo validade as regras definidas para terapêutica IV. Existe mais experiência com a tobramicina. A terapêutica antibiótica frequente implica a possibilidade de aparecimento de estirpes resistentes e de toxicidade (renal, neurológica entre outras). Outras medidas Ácido urso-desoxicólico Para retardar a progressão da lesão hepática, o ácido urso-desoxicólico tem utilidade em pacientes com elevação das transaminases ou sinais de hipertensão portal. Terapêutica da insuficiência respiratória com oxigenoterapia, ventilação não invasiva e, em situações graves, transplante cardiopulmonar. Terapêutica da oclusão intestinal (íleo meconial ou síndroma de oclusão intestinal distal) com N-acetilcisteína, clisteres hiperosmolares (gastrografina) ou intervenção cirúrgica. Transplante hepático Poderá estar indicado o transplante hepático em situações graves. Infecção crónica Ciclos de 4/4 meses Ceftazidima: 150-200 mg/kg/d, 8/8 h + Tobramicina: 10 mg/kg/d, 8/8 ou 12/12 h, 14 dias, ev Prognóstico O prognóstico embora muito melhor em relação a décadas anteriores graças a um diagnóstico mais precoce, a mais adequado suporte nutricional, e a terapêutica antibiótica mais agressiva, é ainda reservado. Trata-se de uma doença crónica com importante morbilidade e mortalidade, que cursa com vários episódios de agudização e múltiplos internamentos, conferindo uma esperança de vida limitada à terceira década de vida. É de referir que a sobrevida é inferior no sexo feminino, embora existam estudos demonstrando que o género não influencia a esperança de vida. O agravamento das provas de função respiratória constitui o principal factor de mau prognóstico, e a insuficiência respiratória a principal causa de morte. Como medidas em fase experimental, que são promissoras, citam-se a vacina anti-Pseudomonas aeruginosa, administração de antiprotease em aerossol, e a terapia génica, entre outras. CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória BIBLIOGRAFIA Bosworth DG, Nielson DW. Effectiveness of home versus hospital care in the routine treatment of cystic fibrosis. Pediatr Pulmonol 1997; 24: 42-47 Davis PB. Cystic fibrosis. Pediatr Rev 2001; 22: 257-264 Döring G, Conway SP, Heijerman HGM, Hodson ME, et al. Antibiotic therapy against Pseudomonas aeruginosa in cys- 485 92 REABILITAÇÃO RESPIRATÓRIA tic fibrosis: a European consensus. Eur Respir J 2000; 16: 749-767 António Teixeira Ferkol T, Rosenfeld M, Milla CE. Cystic fibrosis pulmonary exacerbations. J Pediatr 2006; 148: 259-264 Grosse SD, Rosenfeld M, Devine OS, et al. Potential impact of newborn screening for cystic fibrosis on child survival: a Importância do problema systematic review and analysis. J Pediatr 2006; 149: 362-366 Hodson ME, Geddes DM. Cystic fibrosis. New York: Arnold (Oxford University Press Inc.), 2000 Kaappler M, Griese M. Nutritional supplements in cystic fibrosis. BMJ 2006; 332: 618-619 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Ramsey BW, Pepe MS, Quan JM, Otto K et al. Intermittent administration of inhaled tobramycin in patients with cystic fibrosis. N Engl J Med 1999; 340: 23-30 Smyth RL. Diagnosis and management of cystic fibrosis. Arch Dis Child 2005; 90: ep 1-ep 6 Na fisiopatologia respiratória da criança, para além das doenças próprias do grupo etário, há que considerar a sua exposição potencial a todos os agentes causadores de doença respiratória nos adultos. Por outro lado, os mecanismos de resposta broncopulmonar aos agentes agressores na criança são diferentes, estando condicionados pelas imaturidades anatómica, funcional e imunológica. Se doenças como a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) e doenças com supuração são comparativamente mais raras na criança, (excepto a fibrose quística e a doença de cílios imóveis) a maior susceptibilidade a algumas doenças víricas e bacterianas com grande resposta secretora e inflamatória pode condicionar alterações estruturais broncoalveolares numa fase maturativa facilitando o aparecimento de sequelas. Por outro lado, tal resposta inflamatória em vias aéreas de menor dimensão poderá explicar a frequência da sibilância já desde a primeira infância, chegando alguns estudos a referir a sua ocorrência em 40% do universo deste grupo etário. Daí a importância da reabilitação respiratória pediátrica (Rrp) definida como um conjunto de acções duma equipa interdisciplinar dirigidas à criança com doença respiratória com o objectivo de restaurar a anatomia e a função pulmonares, diminuir a incapacidade, aumentar a independência individual e a integração social, e diminuir a frequência das exacerbações e dos internamentos hospitalares. Na Rrp aplicam-se uma série de técnicas como a cinesiterapia respiratória, a inaloterapia, a readaptação ao esforço, a cinesiterapia vertebral, etc.. Como particularidade da Rrp está o facto de 486 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA os seus métodos estarem em grande parte condicionados pela capacidade de colaboração da criança. Tal colaboração está intimamente ligada à sua idade, e depende do entendimento que aquela tem do que se lhe pede e da sua capacidade de repetir o gesto. Tal capacidade vai, em geral, mas não de modo uniforme, aumentando ao longo dos anos. Crianças há colaborando precocemente no que lhes é solicitado, e outras com perturbação do desenvolvimento em que isso não é possível. Tal facto exigirá uma grande perícia do técnico de reabilitação com utilização de manobras em que o carácter passivo e activo-assistido será predominante. Para um funcionamento eficaz da função respiratória é necessário um conjunto de três condições: vias aéreas permeáveis que permitam a passagem do ar desde o exterior até aos pulmões; a integridade da caixa torácica associada à normal acção muscular que lhe permita funcionar como bomba inspiradora e expiradora do ar respondendo ao estímulo respiratório central com os seus mecanismos reguladores; uma correcta relação ventilação/ perfusão o que implica um adequado suprimento de sangue pela circulação pulmonar realizando-se as trocas gasosas através duma normal barreira alvéolo-capilar. A Rrp actua principalmente na restauração da primeira das condições acima enunciadas, menos na segunda e só indirectamente procura interferir na terceira. Para conseguir tais objectivos a Rrp utiliza as estratégias de limpeza das secreções das vias aéreas, de treino dos tempos inspiratório, expiratório e seu sincronismo, e de utilização de O2 como terapêutica, promovendo a readaptação ao esforço. Actuação prática Permeabilização das vias aéreas. É fundamental manter a permeabilidade das vias aéreas e, no que diz respeito à reabilitação das doenças broncopulmonares, será quase invariavelmente, a primeira acção a promover. Sem a manutenção duma via aérea minimamente permeável será difícil avançar para outras técnicas. O aumento das secreções brônquicas acontece frequentemente como resultado de múltiplas situações patológicas afectando a árvore tráqueo-brônquica e o parênquima pul- monar como as laringotraqueobronquite, bronquiolite, pneumonia, bronquiectasia e asma brônquica, sobretudo na fase secretora. Na fibrose quística a presença de secreções espessas e muitas vezes infectadas é uma constante e um factor fisiopatológico fundamental na evolução da doença. Situação particular é o caso das unidades de cuidados intensivos. Como se sabe, um dos efeitos secundários da ventilação mecânica (iatrogénico) é o aumento da produção da muco e a sua acumulação por impedimento dos mecanismos fisiológicos de limpeza. Em qualquer situação em que for necessária a entubação endotraqueal e/ ou a ventilação mecânica, mesmo sem doença broncopulmonar de base, é fundamental promover uma adequada cinesiterapia respiratória sendo insuficiente a simples aspiração do tubo endotraqueal. Todas as situações que cursam com retenção e espessamento das secreções criam as condições para o aparecimento de sobreinfecções e o desenvolvimento de atelectasias com desequilíbrio da relação ventilação/ perfusão concorrendo para acentuar as alterações gasométricas que se somam às da doença base. Neste enquadramento se percebe a importância desta etapa da Rrp. Situações há em que a limpeza eficaz e criteriosa das secreções brônquicas é o objectivo principal, quase único da intervenção da Rrp. A maneira como a cinesiterapia respiratória consegue restaurar a permeabilidade das vias aéreas depende dum conjunto de técnicas próprias exigindo treino e arte na sua aplicação a um grupo etário que vai desde o nascimento à adultícia e cuja descrição ultrapassa os objectivos deste livro. O primeiro passo é promover uma adequada humidificação das secreções, sobretudo nas situações em que estas se apresentam secas e aderentes. Pode ser conseguido tal desiderato na criança com uma abundante ingestão de líquidos, fluidificantes ou através da humidificação do ar inalado. De seguida promove-se a libertação e mobilização de secreções podendo, para o efeito, ser utilizadas técnicas vibratórias e de percussão cujos efeitos acessórios devem ser rigorosamente ponderados. Com as secreções soltas nas vias aéreas há que promover a sua deslocação da periferia para a orofaringe a partir da qual podem ser deglutidas ou CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória expelidas. Tal pode ser conseguido com técnicas de estimulação da tosse eficaz, aceleração do fluxo expiratório, drenagem postural, drenagem autogénica, etc.. Estas técnicas devem ser utilizadas na sua exigência, duração e frequência de acordo com a criança e a situação a tratar. Por outro lado, nas crianças com dificuldade respiratória ou com alterações gasométricas presentes ou latentes, todas estas técnicas deverão ser executadas com monitorização da saturação em O2 que pode ser efectuada, de forma cómoda com pulsoxímetro, ponderando a necessidade do ajuste ou introdução de suplemento de O2. Uma respiração progressivamente menos rude a caminho da normalidade, e mesmo uma subida dos valores da saturação em O2, podem ser sinais de cinesiterapia eficaz. Melhoria da capacidade inspiratória. A inspiração é, em condições normais, a fase activa da respiração com preponderância do papel do diafragma. Excluindo as doenças neuromusculares, são raras as situações em que há um verdadeiro défice de força muscular dos músculos inspiratórios. Entre estas estão as das crianças sujeitas a longos períodos de ventilação mecânica em que poderá vir a instalar-se um verdadeiro défice por desuso. Assim, para a melhoria da capacidade respiratória, pode justificar-se a inclusão dum cuidadoso programa de fortalecimento do diafragma e dos intercostais externos através de manobras de facilitação e cargas externas manuais ou mecânicas. O que acontece na esmagadora maioria das situações é uma incoordenada utilização destes músculos, tornando-se fundamental um programa de correcção das assinergias ventilatórias. Nas doenças neuromusculares da primeira infância em que haja tendência a baixa CV (capacidade vital) pode intalar-se uma menor expansibilidade da parede torácica por defeito com síndroma restritiva. Nesta patologia os objectivos essenciais da ajuda ventilatória externa são manter a distensibilidade pulmonar e a mobilidade torácica. Melhoria da função expiratória. A função dos músculos expiratórios (abdominais e intercostais internos) é sobretudo importante no mecanismo da tosse e no exercício físico. Para além do treino em força (por meio do uso de objectos e aparelhos de treino de sopro) deve ser procurada a eficácia no treino da tosse produtiva. 487 Em toda as patologia em que a acumulação de secreções seja um problema, sobretudo quando a tosse é pouco eficaz, será um dos treinos a realizar. Se na fase expiratória se verificar um encerramento precoce das vias aéreas (como no enfisema ou na fase de crise da asma) será treinada a chamada expiração “filada” (com lábios semicerrados), lenta e suave, para criar uma pressão expiratória positiva activa e assim facilitar o tempo expiratório combatendo a hiperinsuflação. Correcção das assinergias ventilatórias. Em muitas das patologias respiratórias há perturbação da sinergia dos movimentos respiratórios. Pode observar-se uma deficiente utilização do diafragma, por vezes em situação funcional prejudicada (em posição de distensão, como nos quadros de hiperinsuflação), esboçando um movimento paradoxal de ascensão na fase inspiratória. Em situações de desadequada utilização dos músculos inspiratóros acessórios, como é frequente nas crises de dificuldade respiratória, há um indevido desvio da predominância inspiratória para os andares superiores do tórax, com horizontalização dos arcos costais e anteversão dos ombros, acrescentando-se mais um factor de desvantagem ventilatória a um quadro de dificuldade. A tendência do asmático em forçar a inspiração associada ao encurtamento e ineficácia da expiração tem como resultado a distensão pulmonar com crescente deficiência ventilatória. A cinesiterapia utiliza técnicas de relaxamento, de posicionamento e de massagem para diminuir a tensão muscular, diminuindo o excessivo gasto energético associado à incoordenada utilização muscular; promove também a transferência da parte mais importante da mecânica ventilatória do andar torácico superior para o andar abdóminodiafragmático; e utiliza o treino de movimentos inspiratórios submáximos, nasais e expiratórios suaves e prolongados com deslocação do volume corrente para o volume de reserva expiratória. Em situações sequelares de doenças pleurais com retracção e assimetrias torácicas pode lançar-se mão de técnicas de correcção postural, cinesiterapia vertebral e tonificação muscular específicas. Todos estes treinos são inicialmente efectuados e aprendidos em repouso e, em fase posterior, são aplicados ao exercício e na realização das actividades de vida diária. 488 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Oxigenoterapia. O oxigénio como meio terapêutico é também utilizado em reabilitação tal como por outras especialidades que tratam estes doentes. São diversas as patologias respiratórias que cursam com hipoxémia (insuficiência respiratória) aguda ou crónica a que se pode associar ou não a hipercápnia (insuficiência ventilatória). A baixa crónica de pressão arterial de oxigénio (PaO2) na criança está habitualmente associada a hipertensão pulmonar, a policitémia e a restrição de crescimento estaturo-ponderal. Interferindo no desenvolvimento das funções mentais superiores e na capacidade de esforço físico, limita o direito fundamental da criança a brincar, criando incapacidade e desvantagem perante os seus pares. A correcção da hipoxémia na criança é, assim, uma necessidade ainda mais premente que no adulto. Deve procurar manter-se a PaO2 entre 65 e 90 mmHg e uma saturação em O2 acima 90%. Especial atenção deve ser prestada ao período nocturno e ao esforço físico. Durante a noite, por menor eficácia do centro respiratório e prejuízo funcional do diafragma, para além do agravamento da hipoxémia pode vir a associar-se a hipercápnia o que coloca o problema na forma de administração do O2. A causa para a dessaturação arterial durante o exercício pode ser múltipla e de difícil caracterização se não for procurada durante o mesmo. Tal pode ser conseguido, nas crianças capazes de colaborar, através duma prova de avaliação cárdio-respiratória, como adiante se desenvolve. O suplemento de O2 deverá ser aumentado de forma a permitir uma maior tolerância ao esforço. No dia a dia da criança a utilização de oxigénio em meios portáteis (garrafas transportáveis) e disponibilizado através da via nasal facilita a sua actividade e melhor integração entre os seus pares. O exercício físico. Como já foi referido, a actividade física, muitas vezes limitada na criança com doença respiratória, é um dos factores mais importantes no desenvolvimento psicomotor. A criança tem cansaço e dispneia e tem tendência para o sedentarismo quando não são os adultos a limitar-lhe a actividade. Com efeito, um programa de exercício físico correctamente aplicado melhora a capacidade de esforço, diminui o cansaço para o mesmo esforço, facilita a integração da criança no seu grupo, melhora a sua auto-estima contribuindo para o seu desenvolvimento psicomotor. O exercício físico usado desta forma terapêutica em crianças com patologia respiratória deve ser prescrito como um “medicamento”. Pode ter contra-indicações, alguns riscos, devendo ser doseado individualmente e com precauções para cada criança no pressuposto de que muitas dos problemas clínicos respiratórios podem ser acompanhados de doença cardiovascular primária ou secundária. Nas crianças com doença respiratória ou cardíaca que apresentem dispneia ou incapacidade de esforço, e a quem se queira indicar exercício físico duma forma adaptada e mais segura, aconselha-se a realização duma prova de esforço em unidade de avaliação cárdio-respiratória com equipamento apropriado de monitorização e pessoal treinado. Ao longo da prova de esforço são registados e vigiados os sinais vitais pulso,pressão arterial, respiração), ECG, consumo de O2, produção de CO2, QR (quociente respiratório), equivalentes ventilatórios, ventilação/minuto e taxa metabólica. A evolução da prova e a interpretação dos resultados permite, na maior parte dos casos, identificar se a causa da limitação ao exercício é pulmonar, cardíaca, por broncospasmo, etc.. Os parâmetros registados durante a prova servirão de base para a prescrição do tipo de exercício indicado caso a caso conforme a tolerância. Esta prova pode servir igualmente para avaliar o sucesso de algumas intervenções terapêuticas, nomeadamente nos casos de transplante pulmonar ou cardíaco. Nota final Não há estudos comparativos sobre a eficácia da reabilitação respiratória nas crianças com doença pulmonar, o que pode estar associado à dificuldade na individualização dos diversos componentes implicados na acção terapêutica. Está provado, contudo, que a reabilitação melhora o bem-estar das crianças com esta patologia, diminui a taxa de hospitalizações e, associada a outros programas terapêuticos, prolonga a sobrevida. BIBLIOGRAFIA Delisa JA. Physical Medicine & Rehabilitation Principles and Practice. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005 CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória Goldber B. Sports and Exercise for Children with Chronic Health Conditions. Champaign (USA): Human Kinetics, 1995 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Palfrey JS, Sofis LA, Davidson EJ, et el. The pediatric alliance for coordinated care: evoluation of a medical home model. Pediatrics 2004; 113: 1507-1516 Tzeng AC, Bach JR. Prevention of pulmonary morbidity for patients with neuromuscular disease. Chest 2000; 118: 13901396 489 PARTE XV Dermatologia 492 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 93 INTRODUÇÃO À DERMATOLOGIA PEDIÁTRICA António Pinto Soares A Dermatologia Pediátrica, com um grande incremento nos últimos trinta anos, nalguns países constitui uma subspecialidade em plena expansão. Na realidade, as particularidades da pele num período da vida caracterizado pelo crescimento e desenvolvimento, a importância das manifestações dermatológicas no reconhecimento da maior parte de doenças genéticas complexas, bem como todas as manifestações mais comuns neste grupo etário, ou ainda a especificidade das subtilezas clínicas, justificam o interesse e a sua individualidade. Salientando-se que a epiderme constitui a camada mais importante da pele, a este propósito cabe especificar algumas das referidas particulariedades: diminuição da espessura do extracto córneo, um maior número de folículos vellus, menor poder tampão e maior relação superfície/volume cororal, tanto mais marcados quanto menor a idade da criança. Tal implica maior susceptibilidade a agentes externos, e maior perda de líquidos transpidérmica. Acresce ainda, o grande número de queixas na área da Dermatologia, o impacte no desenvolvimento e auto-estima das doenças cutâneas na criança e em particular na adolescência; e, por último, a necessidade de um tratamento adequado às características da pele no recém-nascido, na criança e no adolescente. Nos capítulos seguintes, cuja bibliografia é apresentada em conjunto no final da Parte XV, são abordados os problemas dermatológicos com que o médico de família e o pediatra mais frequentemente lidam, e cuja orientação e terapêutica são considerados, dum modo geral, do respectivo foro na ausência de complicações. Alguns dos problemas dermatológicos são também abordados noutras partes do livro, designadamente (Infecciologia, Imunoalergologia, etc.). CAPÍTULO 94 Dermatite seborreica 94 DERMATITE SEBORREICA Teresa Fiadeiro Definição Define-se seborreia como aumento do teor em lípidos na superfície cutânea; trata-se dum estado fisiológico constitucional da pele (seborreica) que fica lisa, brilhante, untuosa, com dilatação dos poros foliculares, por vezes acompanhada de ligeiro eritema difuso. Localiza-se nas regiões em que as glândulas sebáceas são mais numerosas e desenvolvidas – as regiões seborreicas: couro cabeludo, fronte, pirâmide nasal, pregas axilares e inguinais. A pele seborreica é com frequência sede de diversas dermatoses que por ela estão condicionadas ou que dela dependem, como sucede na dermatite seborreica, caracterizada por lesões eritemato-descamativas, de escamas amarelas e untuosas, cujos limites são mais ou menos difusos ou, em regra, bem marcados, circulares ou circinados, pouco ou não pruriginosas. 493 terceiro mês, prolongando-se até cerca dos 6 meses e podendo reapareccer no adolescente. Iniciam-se, habitualmente, com lesões descamativas do couro cabeludo, a chamada «crosta láctea» (Figura 1) constituída por crostas amareladas, untuosas, mais ou menos aderentes ao couro cabeludo que frequentemente atingem também a região retroauricular. A erupção pode afectar a face com lesões eritematosas e descamativas localizadas predominantemente na fronte, supracílios e sulcos nasogenianos (Figura 2). A região cervical, sobretudo nas pregas, é um local também frequentemente atingido. As lesões podem envolver outras áreas do corpo (Figura 3), particularmente zonas intertriginosas e pregas de flexão, como o umbigo, axilas, pregas inguinais e anogenitais. São geralmente FIG. 1 Crosta láctea (dermite ou dermatite seborreica). Etiopatogénese A etiopatogénese ainda não está totalmente esclarecida. Sendo uma doença que afecta preferencialmente as “áreas seborreicas” do couro cabeludo, face e pregas de flexão proximais, crê-se que possa haver alguma relação com a secreção sebácea, nomeadamente com uma alteração qualitativa desta, nas crianças afectadas. Também o papel de agentes microbianos, como a Candida albicans e o Pityrosporum ovale, parece não ser desprovido de importância. Manifestações clínicas As lesões surgem, em geral, entre a segunda e a sexta semanas de vida e só excepcionalmente depois do FIG. 2 Eritema e descamação amarelada da face (dermite seborreica). 494 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA FIG. 3 Lesões eritematosas das pregas de flexão (dermite seborreica). secas mas podem ser exsudativas, sobretudo quando atingem as pregas. Caracteristicamente não são pruriginosas e não perturbam a criança, a qual não evidencia qualquer alteração do estado geral. No adolescente as lesões localizam-se no couro cabeludo, sobrancelhas, pestanas e região do manúbrio esternal (tórax); é o aspecto de localização em V. Diagnótico diferencial O diagnóstico é clínico e a distinção deve fazer-se com: – dermatite atópica – por vezes a destrinça é difícil; não há estigmas de atopia e a ausência de prurido é característica importante. Mas, ocasionalmente, a dermatite seborreica pode progredir para dermatite atópica; – psoríase – as lesões podem ser semelhantes e será a evolução a ajudar na distinção; – doença de Letterer-Siwe – raramente, na fase em que a doença afecta essencialmente as pregas, sobretudo as inguinais, poderá haver alguma confusão diagnóstica; o aparecimento de lesões papulares e purpúricas permitirá a distinção. Tratamento Estão indicados produtos com acção emoliente, tanto no banho diário, como em aplicação tópica após este. Para a remoção das crostas, para além dos agentes emolientes de limpeza, podem utilizar-se óleos minerais; se forem mais aderentes podem usar-se agentes com acção queratolítica, como por exemplo, vaselina salicilada com ácido salicílico em baixas concentrações (2-3%) e por períodos curtos de contacto com a pele dado o risco de intoxicação (salicilismo). Seguidamente a lavagem com champôs de tratamento (por exemplo, com cetoconazol ou ácido salicílico). Se as lesões forem mais inflamatórias poderão usar-se corticóides tópicos de baixa potência (hidrocortisona a 1%) em curtos períodos. No caso de sobreinfecção, nas áreas intertriginosas poderá ser necessário o recurso a agentes antibacterianos ou a antifúngicos tópicos. Prognóstico A dermatite seborreica é uma doença benigna e autolimitada que, muitas vezes, cura espontaneamente em poucas semanas. CAPÍTULO 95 Dermatite atópica 95 DERMATITE ATÓPICA Maria João Paiva Lopes Definição e importância do problema A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crónica exsudativa e pruriginosa de expressão cutânea muito frequente na infância. Pode ser provocada por agentes endógenos e exógenos. A sua prevalência tem vindo a aumentar nos últimos anos, sobretudo nos países mais desenvolvidos, (cerca de 10 – 15% em crianças com menos de 5 anos). Alguns estudos do Norte da Europa referem valores mais elevados, atingindo 20%. Este aumento de prevalência tem sido atribuído a vários factores, como a poluição, maior exposição a ácaros, aditivos alimentares, diminuição da prevalência do aleitamento materno e maior acuidade diagnóstica. Tal como foi referido no capítulo 66 admite-se hoje como mais correcta a designação de síndroma eczema/dermatite atópica (sigla: SEDA); alguns autores consideram os termos dermatite atópica e eczema atópico sinónimos. Etiopatogénese Existe uma associação entre a DA e outras doenças, como asma e rinite alérgica; os mecanismos patogénicos envolvidos nestas patologias são em larga medida semelhantes, sendo frequente a agregação familiar. A importância da genética na etiologia da DA está demonstrada em vários estudos, nomeadamente comparando a incidência em gémeos monozigóticos com a que se verifica em gémeos dizigóticos e outros irmãos; foram descritas alterações genéticas relevantes nos cromossomas (3q21, 1q21, 17q25 e 20p), com efeitos na inflamação e imunidade 495 cutâneas; vários aspectos permanecem, porém, obscuros e continuam ainda em investigação. Verifica-se na pele destes doentes uma colonização constante por Staphylococcus aureus, o que facilita a instalação de quadros de impétigo. Esta colonização tem ainda um papel relevante na manutenção de processos inflamatórios crónicos através da estimulação directa de linfócitos T pelos superantigénios que estas bactérias produzem. Algumas proteínas estafilocócicas podem interferir com a síntese de IgE, IL-4 e IFN-gama e podem induzir a libertação de histamina e de leucotrienos. Recentemente tem-se dado ênfase ao papel de péptidos antimicrobianos chamados catelicidinas (LL-37) e beta-defensinas (HBD-2) que existem na pele humana normal e cuja expressão está aumentada em doenças inflamatórias como a psoríase. A combinação de LL-37 e HBD-2 tem efeito sinérgístico bactericida para S. aureus. Na pele de doentes com DA demonstrou-se uma significativa depleção destes péptidos, quer em lesões agudas quer em lesões crónicas. Estes dados indicam uma possível explicação para a frequente colonização da pele por S. aureus na DA. Comparando a pele de indivíduos saudáveis com a de indivíduos com lesões agudas e crónicas de DA, notam-se as seguintes diferenças: 1) Nos casos não afectados e nas situações de DA aguda verifica-se aumento de células expressando IL-4 e IL-13; 2) Na DA aguda não se verifica número significativo de células que expressam IFN-gama ou IL-12; 3) Nos casos de DA crónica as lesões cutâneas evidenciam menor número de células que expressam IL-4 e IL-13, mas aumento do número de células que expressam IL-5, GMC5F, IL-12 e IFN-gama em comparação com a DA aguda. Histologicamente verifica-se espongiose linfocitária. Manifestações clínicas A DA inicia-se em cerca de 75% dos doentes nos primeiros 6 meses de vida e em cerca de 90% nos primeiros cinco anos; é raro o início da doença após a idade pediátrica. Pode haver remissão espon- 496 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA tânea em 60% dos casos com evolução recorrente nos restantes. Evolui com episódios de agudização caracterizados por prurido intenso. As localizações características variam com a idade. A DA caracteriza-se, nas fases de agudização, pelo aparecimento de pápulas ou placas eritemato-descamativas, ásperas, muito pruriginosas, por vezes com edema e exsudação. À medida que evoluem para a cronicidade, as placas tornam-se mais espessas e liquenificadas, com acentuação do reticulado normal da pele. Em todas as fases o prurido é um sintoma constante e assume importância pela sua intensidade, levando a coceira incoercível e perturbações do sono e da qualidade de vida. Nas crianças até aos 2 anos de idade as lesões localizam-se sobretudo na face, na região retroauricular -onde podem produzir fissuração- e nas superfícies de extensão dos membros superiores e inferiores. Podem, porém, generalizar-se e atingir grande parte da superfície corporal. À medida que a criança cresce, as lesões passam a estar localizadas sobretudo nas pregas de flexão dos membros, continuando a ser comum o envolvimento facial, cervical e retroauricular (Figura 1), evidenciando carácter acentuadamente exsudativo nas pálpebras, bochechas, preservando o maciço centrofacial. De referir, por comparação, que nos adultos é também este o padrão habitual, sendo frequente o eczema palpebral, muitas vezes persistente e criando dificuldades terapêuticas. Há várias alterações cutâneas características da DA que podem ser observadas mesmo nos FIG. 1 Eczema atópico grave afectando a face. períodos de remissão da doença, nomeadamente a xerose generalizada, a prega de Denni-Morgan (prega transversal nas pálpebras inferiores), a pitiríase alba (manchas hipopigmentadas residuais), a queratose pilar (micropápulas foliculares nas superfícies de extensão proximais dos membros, ásperas), o dermografismo branco, a queilite (cieiro), e a dermatose plantar juvenil. Verifica-se maior susceptibilidade a irritantes, produtos de limpeza comuns, detergentes, químicos, e a alergénios de contacto. Tal resulta da deficiência da função barreira da pele, provavelmente relacionada com alterações na composição lipídica do cimento intercelular. Têm sido registadas deficiências de alguns ácidos gordos essenciais e de ceramidas cuja correcção induz melhoria clínica. Este tipo de manifestações, semelhante às do adulto, é notório no adolescente. Outro aspecto importante na prática clínica é a maior susceptibilidade dos doentes com DA às infecções, traduzindo-se num maior risco de quadros infecciosos graves, por exemplo a disseminação de infecção pelos vírus Herpes simplex do que resulta o chamado eczema herpeticum. (Figuras 2 e 3). Tratamento Evicção de factores de exacerbação O primeiro passo para uma terapêutica eficaz é a educação do doente e da família, esclarecendo o carácter crónico da doença e a necessidade de manter cuidados de forma regular, como a evicção de factores de agravamento, estresse, agentes irritativos, químicos, plasticinas, agentes infecciosos, alergénios. Neste contexto está indicada a utilização de produtos de higiene não agressivos (óleos dispersíveis, syndets*), preferência por texteis de fibras não irritantes e calçado arejado não oclusivo. O algodão deverá ser recomendado no vestuário, bem como a utilização de roupas ligeiras, largas e leves. Na maioria dos casos não está indicada qualquer restrição alimentar. As excepções a esta regra (sintomalogia desencadeada pela ingestão de alimentos), devem ser analisadas pelo médico assistente. No lactente e na primeira infância os alimentos (*) Syndets: detergentes sintéticos ou “sabão sem sabão”, com pH neutro ou ligeiramente ácido, bom efeito detergente, fazendo pouca espuma. Também chamados “Pains”, podem apresentar-se em formas sólidas ou líquidas. CAPÍTULO 95 Dermatite atópica 497 Nas áreas de xerose, (pele anormalmente seca) a hidratação deverá ser efectuada ao longo do dia de forma repetida. FIG. 2 e 3 Eczema herpeticum (NIHDE). podem estar implicados na exacerbação clínica das lesões, (10 a 40% dos casos) consoante as populações, estando a frequência em Portugal no limite inferior do intervalo referido. Os quadros de maior gravidade e extensão, bem como a má resposta à terapêutica implicam a detecção de sensibilização alergénica, particularmente aos ácaros domésticos. Hidratação cutânea Emolientes – Uma formulação emoliente adequada com efeito de poupança de esteróides deverá conter ácidos gordos essenciais, óleos, substâncias calmantes, suavizantes e antipruriginosas. Deve ser de fácil aplicação, com textura conveniente e não ser excessivamente gorda para que não constitua um factor de rejeição a uma aplicação diária por períodos prolongados, embora suficientemente gorda para impedir a evaporação. Podem ser utilizados, quer na prevenção, quer na manutenção. Em períodos de maior exacerbação pode reforçar-se o efeito emoliente com banhos de imersão, (10 a 15 minutos) a temperaturas tépidas, seguidos da aplicação imediata de emolientes. Terapêutica farmacológica Corticosteróides – Em formulações tópicas (preferencialmente cremes), constituem a terapêutica efectiva de primeira linha. O tipo de fármaco varia consoante a apresentação clínica, a localização das lesões e o período previsível de utilização, verificando-se maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas. Os corticosteróides tópicos têm sido nas últimas décadas a terapêutica de primeira linha da DA. É importante a selecção criteriosa do produto a usar em cada caso, devendo a escolha depender da idade do doente, da área anatómica a tratar (há maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas), e também das características das lesões (dimensão, exsudação, liquenificação). Os potenciais efeitos secundários, locais e sistémicos, constituem limitação ao seu uso prolongado. A corticoterapia tópica não deverá ser prescrita em períodos prolongados, não só pelo risco de efeitos secundários, como também pela possibilidade de sensibilização. Os cremes deverão ser reservados para lesões agudas, e as pomadas para lesões de maior cronicidade. A hidrocortisona a 1%, de menor potência, é o esteróide. tópico de primeira escolha para a face. No restante tegumento deverão ser preferidos corticosteróides de maior potência, com reduzidos efeitos sistémicos (metil-prednisolona a 0.1%; fluticasona a 0.05%). Estes fármacos deverão ser aplicados idealmente após o banho à noite. A prescrição de corticóides sistémicos deverá reservar-se a ciclos muito curtos para permitir a redução da intensidade das lesões e facilitar a instituição de formas terapêuticas menos agressivas; a prednisolona (1mg/Kg/dia, em períodos geralmente inferiores a 1 semana) é de elevada eficácia, podendo proceder-se a uma diminuição progressiva da dose para obviar recorrências. Antibióticos – A antibiototicoterapia é frequentemente necessária na terapêutica da DA. Utiliza-se habitualmente ácido fusídico tópico nas situações de impetiginização ligeira das lesões de eczema, sendo de evitar a aplicação tópica de produtos contendo penicilina ou sulfamidas, devido 498 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ao risco de sensibilização. Nos quadros de impétigo manifesto dever-se-á optar por antibiótico sistémico cujo espectro inclua S. aureus. Com efeito, a infecçção cutânea é comum, particularmente com o S. aureus. As combinações de corticóides e antimicrobianos para uso tópico devem ser reservadas às formas de DA infectada, circunscrita. A terapêutica anti-infecciosa sistémica é de extrema importância nas formas infectadas graves; a flucloxacilina, os macrólidos e as cefalosporinas são os antibióticos sistémicos de eleição. Anti-histamínicos – Os anti-histamínicos sistémicos (hidroxizina, loratidina, cetirizina) são úteis para reduzir o purido, considerando-se neste contexto preferíveis as moléculas mais antigas, com efeitos sedativos. Não devem ser utilizados anti-histamínicos tópicos. Inibidores tópicos da calcineurina – Actualmente dispomos de uma excelente alternativa à corticoterapia tópica: os chamados imunomoduladores tópicos – tacrolimus e pimecrolimus. Trata-se de macrólidos imunossupressores que se ligam a um receptor intracelular (imunofilina) formando um complexo que inibe a calcineurina e, em consequência, a transcrição nuclear de vários mediadores inflamatórios, tais como interleucinas, TNF-alfa, IFN-gama, etc.. A sua actividade imunossupressora é complexa, sendo capazes nomeadamente de inibir a desgranulação de mastócitos, diminuir a expressão de receptores para interleucinas (IL-8), e de diminuir a expressão de moléculas de adesão. De acordo com os dados disponíveis a sua aplicação tópica é bastante segura, sendo a absorção sistémica reduzida. O efeito secundário mais frequente é uma sensação transitória de ardor ou picada no local de aplicação, que não impede habitualmente a continuação do tratamento e que se desvanece à medida que este prossegue, acompanhando a melhoria cutânea. Ao contrário dos corticosteróides tópicos, os imunomoduladores tópicos não provocam atrofia da pele e não induzem taquifilaxia. Estas novas terapêuticas têm sido muito úteis, rapidamente alcançando o estatuto de fármacos de primeira linha, quer como terapêutica de manutenção, quer como alternativa aos corticosteróides nas crises de agudização, sobretudo em áreas de maior susceptibilidade aos efeitos secundários destes. O tacrolimus (ou FK506) é uma pomada comercializada em duas concentrações: 0,03% e 0,1%. Está comprovada a sua eficácia e segurança em adultos e em crianças. O pimecrolimus, na forma de creme a 1%, tem maior especificidade cutânea e melhor tolerância, havendo estudos que comprovam a sua segurança em bebés a partir dos 3 meses de idade. Tem uma afinidade para a calcineurina cerca de 3 vezes inferior à do tacrolimus. Imunossupressores – A ciclosporina A é uma boa alternativa que tem sido usada com sucesso. Com doses iguais ou inferiores a 5mg/kg/dia obtêm-se habitualmente remissões rápidas. As taxas de recorrência são altas (cerca de 75% às 6 semanas). Também o micofenolato de mofetil e a azatioprina são imunossupressores eficazes que podem ser úteis no controlo de situações refractárias, embora o seu uso seja limitado pela potencial toxicidade. Outros fármacos – Os inibidores dos leucotrienos foram tentados como terapêutica adjuvante mas não revelaram grande eficácia. Os estudos com interferão gama e alfa tiveram resultados clínicos muito variáveis, globalmente pouco animadores e com efeitos secundários sistémicos importantes. Está descrita uma excelente resposta ao basiliximab, um anticorpo monoclonal anti CD 25 (cadeia a do receptor da IL2) que tem sido usado em transplantes renais. Fototerapia – A fototerapia com radiação ultravioleta B (UVB) e a fotoquimioterapia com radiação ultra-violeta A, após fotossensibilização com psoralenos (PUVA), são também opções terapêuticas de segunda linha, muito úteis e eficazes em doentes com idade e capacidade para colaborar. Em suma, salienta-se que a DA é uma doença com evolução crónica e início precoce, que afecta muito gravemente a qualidade de vida, de forma considerada equivalente à da diabetes insulino – dependente. Todas as atitudes terapêuticas devem ser cuidadosamente avaliadas no sentido de evitar os efeitos acessórios que a sua aplicação crónica ou prolongada pode acarretar. São referidas a seguir algumas regras gerais CAPÍTULO 96 Acne importantes a seguir (e algumas a reiterar), nos cuidados com a pele em idade pediátrica, e aplicáveis em diversas situações anteriormente descritas. 1 – A regra fundamental para um banho deve ser “água” qb. e pouco detergente”. Excluindo as zonas que acumulam mais sujidade, como a zona das fraldas, um banho diário não é indispensável. No entanto, acentuar a interacção mãe-filho, o que é muito mais importante do que uma real necessidade do banho. 2 – Uma vez que a hiper-hidratação pode aumentar a espessura da camada córnea pelo edema celular que o excesso de água provoca, pode haver uma diminuição da sua coesão com consequentes menor resistência e alterações da pele. Assim, no recém-nascido e crianças pequenas a sua duração não deve exceder os 5 minutos e na criança mais velha 10-15 minutos. 3 – O produto ideal para o banho deverá respeitar o pH cutâneo, a camada lipídica superficial e o ecossistema da pele. 4 – Podem ser utilizados sabões supergordos ou “syndets”. 5 – Nos casos da pele dita normal não há necessidade de produtos especiais para o banho. Devem no entanto incorporar uma base suave, com adição de agentes humidificantes e complexos gordos. Na face podem usar-se leites e loções de limpeza sem enxaguamento e “syndets”. No corpo podem usar-se sabões neutros “syndets” ou geles de banho; é admissível o uso esporádico de emolientes suaves (leites hidratantes). 6 – Os emolientes devem ser usados preferencialmente após o banho, com a pele ainda húmida. 7 – Nos casos da pele seborreica podem ser usados produtos com zinco cuja função é diminuir o excesso de produção de sebo. 8 – Nos casos de pele seca com elasticidade diminuída, xerose e descamação, têm prioridade a hidratação e lubrificação. Os sabões devem ser supergordos ou “syndets” (sólidos ou líquidos); podem ser também usados óleos de banho e banhos coloidais (que utilizam cereais que removem por adsorsão os detritos lipo e hidrofílicos e deixam uma camada superficial protectora). É aconselhável o uso de emolientes sob a forma de emulsões O/A ou (consultar Glossário e Parte Imunoalergologia). 499 96 ACNE Ana Macedo Ferreira Definição e importância do problema Define-se a acne como inflamação dos folículos pilosos e das glândulas sebáceas, com retenção de sebo, geneticamente determinada, evoluindo em ciclos, com acentuado relevo na juventude. A chamada acne vulgar é, assim, uma doença inflamatória crónica multifactorial da unidade pilo-sebácea caracterizada pela formação de pápulas eritematosas, pústulas, e menos frequentemente nódulos e pseudo-quistos, podendo determinar a formação de cicatrizes. Tem o seu início em regra na adolescência, afectando em grau variável 90% dos rapazes de 16 anos e menor percentagem de raparigas do mesmo grupo etário. Em regra surge mais precocemente no sexo feminino. No que respeita à nomenclatura são consideradas duas situações: acne propriamente dita (mais frequente e como tal mais importante na prática clínica) e erupções acneiformes (em regra precipitadas por agentes externos nos quais se incluem os medicamentos). Etiopatogénese Os factores genéticos podem ter influência, tanto na gravidade como na persistência da doença. Não constituindo uma entidade, a acne antes engloba um conjunto de situações que se diferenciam pelos aspectos clínicos e etiopatogénicos, possuindo em comum a localização pilo-sebácea dos processos iniciais da sua patogénese. O mecanismo acneico decorre em dois tempos: tem início na obstrução mecânica e não inflamatória do folículo pilo-sebáceo – com a formação do comedão; prossegue com a fase inflamatória que inclui manifestações clínicas diversas – pápu- 500 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA las, pústulas e nódulos. A esta diversidade associam-se intensidade, evolução e prognóstico extremamente variados. Recorda-se, a propósito, a definição de comedão (designação popular: ponto negro) – pequena saliência esbranquiçada em cujo centro há um ponto negro, formada por substâncias gordurosas acumuladas numa glândula sebácea. Localizamse preferencialmente no rosto. As fases do desenvolvimento da afecção são seguidamente descritas. Hiperprodução sebácea A produção activa das glândulas sebáceas sob a influência androgénica é a condição sine qua non da acne. Este fenómeno poderá ocorrer na presença de: níveis aumentados de secreção hormonal; ou níveis normais de secreção mas grande biodisponibilidade de androgénios livres;ou níveis de secreção normais mas com aumento de resposta no órgão alvo (hiperactividade da 5-alfaredutase ou aumento do número de receptores androgénicos). No sexo feminino uma percentagem significativa de pacientes com acne tem alteração do balanço hormonal androgénico e, consequentemente, apresenta também outros sinais de hiperandrogenismo (hirsutirmo, alopécia androgenética ou alterações menstruais). A testosterona é o androgénio mais importante na acne por actuar simultaneamente na proliferação das glândulas sebáceas e na lipogénese. A maior parte da testosterona plasmática (> 90%) encontra-se ligada a globulinas, pelo que só uma pequena porção é biologicamente activa. A testosterona livre (~3%) liga-se a receptores celulares antes de penetrar na célula sebácea onde, por acção da 5-alfa-redutase tipo I, se transforma em di-hidrotestosterona (DHT). Esta, por sua vez, liga-se a um receptor, e este complexo DHT-receptor actua no núcleo celular condicionando aumento da produção sebácea. O sebo é uma mistura complexa de glicéridos, ácidos gordos, escaleno, colesterol e seus ésteres, excretados por mecanismos holócrinos de forma contínua. Na acne a taxa de escaleno e ceras está muito elevada, havendo uma marcada diminuição de linolatos. O défice de linolatos torna o epitélio folicular mais permeável aos ácidos gordos, o que leva a exacerbação da hiperqueratose e aumento da proliferação bacteriana. Recorda-se que a superfície cutânea lipídica, designada por “filme lipídico”, é composta por mistura de sebo, produto de secreção das glândulas sebáceas, e de lípidos derivados da desintegração das células epidérmicas durante o processo de queratinização. Alteração de queratinização Na acne regista-se alteração da queratinização infundibular com tradução histológica (microcomedões) e clínica (comedões abertos e fechados). Este fenómeno depende de: alterações qualitativas do sebo, factores hormonais, flora microbiana, desregulação do fenómeno de renovação do epitélio pilo-sebáceo e de citocinas. Proliferação bacteriana e inflamação Se bem que a acne não seja definitivamente uma doença infecciosa, é indiscutível o papel etiológico do Propionibacterium acnes que, para além de produzir lipases, regula a produção de ácidos gordos livres (comedogénicos e irritantes) através do seu equipamento enzimático. Assim, este microrganismo participa na reacção inflamatória acneica com substâncias biologicamente activas (lipases, fosfatases e hialuronidases) que contribuem para o aumento da permeabilidade do epitélio folicular, e com a produção de factores quimiotáxicos que atraem polimorfonucleares neutrófilos, com consequente activação do complemento. Mitos e verdades Outros factores podem ser considerados como tendo influência no processo acneico; tais factores ocupam, no entanto, um campo minado de mitos e “verdades” populares, por vezes muito distanciados da realidade científica. Dieta: a relação causal de certos alimentos com o aparecimento de lesões carece de relevância científica. Radiação ultra-violeta: a convicção generalizada do efeito benéfico da exposição solar na acne, também carece de aceitação científica. Efectivamente, verifica-se agravamento das lesões em 20% dos doentes no período estival. Estresse: é um factor reconhecido de agravamento das lesões com especial enfâse na acne escoriada dos adultos jovens e adolescentes. CAPÍTULO 96 Acne Manifestações clínicas Nas fases iniciais predominam ou existem apenas lesões não-inflamatórias, os comedões abertos (pontos negros) e fechados (pontos brancos) (Figura 1). Estes últimos, de visualização mais difícil, são cobertos por pele normal e possuem maior tendência para evoluir para a inflamação. As lesões inflamatórias da acne podem ser superficiais ou profundas. As superficiais (pápulas e pústulas) são geralmente de diâmetro inferior a 5mm, com duração variável. As profundas são pápulas de maiores dimensões e nódulos, levando com frequência à formação de cicatrizes. A lesão predominante determina uma classificação para designar a acne (comedónica, pápulo-pustulosa, nodular); de referir que a doença acneica é “dinâmica”, variando no tempo o tipo de lesão preponderante. (Figuras 2, 3, 4). São descritas as seguintes variantes clínicas: Acne neonatal (pustulose cefálica neonatal): Ocorre em 20% dos recém nascidos saudáveis; surge às 2 semanas e geralmente regride pelos 3 meses de idade. Caracteriza-se por pequenas pápulas inflamatórias agrupadas no dorso do nariz e região malar. A sua patogénese relacionase com a colonização destes folículos pelo Malassezia furfur, pelo que a classificação da acne neonatal está actualmente a ser revista. Responde ao tratamento tópico com cetoconazol creme; trata-se de uma situação de carácter transitório. Acne infantil: Esta designação diz respeito às lesões de acne que surgem entre os 3 e os 6 meses de vida. Apresenta-se com múltiplos comedões que, por vezes, podem induzir cicatrizes punctiformes (Figura 5). A patogénese reflecte o balanço hormonal intrínseco deste estádio de desenvolvimento, desempenhando as hormonas maternas um papel secundário. Tipicamente regride nos primeiros anos de vida. Outras variantes: Acne escoriada, acne iatrogénica, acne cosmética, acne pomada, acne ocupacional, acne mecânica, acne relacionada com alterações hormonais, etc.. FIG. 1 Acne comedónica. FIG. 2 Acne pápulo-pustulosa moderada. Tratamento Medidas gerais Para que um tratamento da acne seja bem sucedi- FIG. 3 Acne pápulo-pustulosa marcadamente inflamatória. 501 502 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA sobre a sua natureza, os objectivos dos medicamentos a utilizar, como os usar, bem como sobre a duração provável do tratamento. De salientar que o método de tratamento deve ser seleccionado em função de cada caso, e nunca padronizado. É igualmente importante esclarecer o paciente sobre um grande número de mitos/falsos conceitos, explicar o carácter instável das lesões, chamar a atenção para o agravamento temporário causado por alguns tratamentos, assim como, elucidar e compensar o desconforto secundário a algumas medicações. FIG. 4 Acne nodular grave Cuidados cosméticos Deverá actuar-se com suavidade, remover o óleo, respeitando o filme hidrolipídico. Para a limpeza de pele utilizam-se sabões supergordos ou surgras que deixam um fino filme lipídico na pele. Trata-se dos chamados sabões anti-seborreia. Nos cuidados complementares incluem-se cremes hidratantes, bases, protectores solares, todos eles devendo cumprir o requisito de serem oil free e portanto não comedogénicos. Terapêutica tópica Está indicada nas acnes ligeiras a moderadas e igualmente acompanha a terapêutica sistémica nas formas graves. Compreende essencialmente queratolíticos anti-seborreicos e, por vezes, antibióticos associados. São utilizados preparados com retinóides tópicos (adapaleno, isotretinoína, tretinoína), antibióticos tópicos (eritomicina e clindamicina), outros (ácido salicílico, peróxido de benzoílo em gel ou creme a 5% ou 10%, ácido azelaico). FIG. 5 Acne infantil (agravada após aplicação tópica de corticóide) do, para além de uma escolha acertada dos agentes terapêuticos, é indispensável que o doente e/ou sua família compreendam a sua patologia e adiram ao esquema proposto. A primeira consulta deverá incluir uma avaliação do impacte psicológico da doença, explicação Terapêutica oral Está indicada nas acnes moderadas a graves, nos doentes com dismorfofobia e quando as cicatrizes são um evento esperado. Inclui: os antibióticos que alteram a função enzimática dos microrganismos patogénicos mais do que o seu número; e a isotretinoína que, em 1992, veio revolucionar a terapêutica da acne. A isotretinoína é a única terapêutica que actua simultaneamente em todos os factores etiopatogénicos da acne: reduz até 90% a secreção sebácea, tem acção comedolítica, actuando na diferenciação das células foliculares, diminui a colonização do P. acnes e, finalmente, CAPÍTULO 97 Dermatite das fraldas tem propriedades anti-inflamatórias ao inibir a quimiotaxia dos neutrófilos. Notas importantes: 1) As formas graves de acne deverão ser encaminhadas para o dermatologista. 2) Os antibióticos por via oral classicamente indicados são os macrólidos e as tetraciclinas (estas últimas a partir da adolescência). 3) A isotretinoína é teratogénica, razão pela qual somente deverá ser prescrita excluindo gravidez. 4) Os retinóides e o peróxido de benzoílo são irritantes, o que implica aplicação gradual e controlada em quantidades reduzidas. 503 97 DERMATITE DAS FRALDAS Teresa Fiadeiro Definição A dermatite das fraldas (ou eritema das fraldas) é uma dermatose exclusivamente localizada (pelo menos, nas fases iniciais) à área que está coberta pela fralda e que só ocorre nos períodos da vida em que a mesma é utilizada. No entanto, múltiplas dermatoses podem afectar a região anogenital das crianças nesta fase da vida, desde as que são causadas directamente pela acção irritativa das fraldas (dermatite de contacto irritativa primária), a doenças raras como a histiocitose de células de Langerhans (doença de Letterer-Siwe), sem qualquer relação com o uso das mesmas. Assim, a dermatite das fraldas é um termo lato que engloba várias patologias de etiologia multifactorial. Destas é, sem dúvida, a dermatite irritativa primária, a situação mais frequente e que, por isso, será a abordada em pormenor. Etiopatogénese A dermatite das fraldas é considerada um protótipo da dermatose irritativa de contacto; esta pode resultar de agressão inespecífica da pele por contacto repetido com diversas substâncias irritantes (dermatite irritativa, mais frequente na idade pediátrica), ou de reacção alérgica por mecanismo de hipersensibilidade retardada. A dermatite irritativa de contacto considerada em geral pode resultar do contacto prolongado ou repetido com várias substâncias tais como saliva, suor , sumo de citrinos, detergentes, sabões, medicamentos, etc.. Durante muito tempo admitiu-se que a amónia, resultante da degradação da ureia urinária era o 504 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA factor causal primordial na génese dermatite das raldas. Hoje sabe-se que o primeiro factor é a perda da integridade da barreira cutânea. Crê-se actualmente que esta perda de integridade se deve ao aumento local da temperatura e humidade resultantes da oclusão pela fralda, a que se alia uma fricção e maceração contínua da mesma pelo tecido da mesma. Secundariamente, o contacto da pele com as fezes, devido à acção de enzimas proteolíticas e lipolíticas destas, determina um acréscimo de irritação e agressão numa pele já alterada; agressão essa, tanto mais acentuada quanto mais elevado for o pH local. Precisamente, quando a criança ingere leite de vaca cujo pH é superior ao do leite materno, o pH local aumenta. Quanto à influência de microrganismos, apenas está demonstrado o papel da Candida albicans que, muito frequentemente, sobreinfecta uma dermatite irritativa primária, determinando a persistência e agravamento da mesma. FIG. 1 Dermatite irritativa afectando superfícies convexas Manifestações clínicas A dermatite irritativa das fraldas caracteriza-se por uma área de eritema brilhante, por vezes semelhante a uma queimadura, que afecta principalmente as superfícies convexas que estão em contacto mais íntimo com a fralda – região glútea, face interna das coxas, púbis, genitais e região abdominal inferior (aspecto em W); poupa, habitualmente, o fundo das pregas (Figura 1). Ocasionalmente pode observar-se descamação das áreas afectadas ou até lesões papulares, erosões e pústulas, estas particularmente evidentes no caso de sobreinfecção por Candida ou Staphylococcus (Figura 2). Se as lesões se verificarem também nas pregas e atingirem a região perianal em continuidade e sem intervalos de pele sã, também há que admitir sobreinfecção por Candida. Uma forma rara que corresponde a um quadro grave de dermatite irritativa é a dermatite erosiva ou doença de Sevestre-Jacquet evidenciando lesões papulares com erosão, dando o aspecto de cratera (Figura 3). Diagnóstico O diagnóstico é geralmente feito com base na FIG. 2 Dermatite irritativa com candidíase secundária FIG. 3 Dermatite erosiva de Sevestre-Jacquet CAPÍTULO 98 Psoríase anamnese e na observação clínica. É de extrema importância o conhecimento das lesões primárias, e a sua relação com as lesões que ocorrem secundariamente; igualmente importante é conhecer a distribuição das lesões iniciais, o que pode permitir diferenciar as diversas entidades. Se a dermatose evoluir sem diagnóstico e tratamento, torna-se difusa e de características inespecíficas. Tratamento São fundamentais medidas de ordem geral, obedecendo à regra: “pouca humidade e muito ar”. A mudança da fralda deve ser efectuada o maior número de vezes possível de modo que o tempo de contacto da fralda suja com a pele seja mínimo. É aconselhável a exposição da zona afectada ao ar havendo condições ambientais de temperatura. Poderá utilizar-se o secador de cabelo na posição de frio. As modernas fraldas descartáveis, com materiais cada vez mais absorventes, nunca deverão ser substituídas pelas antigas fraldas de algodão; com efeito, é errada a ideia de menor agressão das antigas segundo a qual, sendo estas muito menos absorventes, iriam condicionar um agravamento da dermatose. A higiene local e o banho diário devem ser efectuados só com água ou com produtos de acção suave, de preferência, com efeito emoliente, e dispersíveis na água. Não são aconselháveis os toalhetes de limpeza disponíveis no mercado. Em cada muda de fralda deverá ser aplicado em toda a área um creme de barreira contendo óxido de zinco que, para além da acção protectora, exerce uma acção antisséptica e cicatrizante. Não deve ser utilizado pó de talco. Se houver sinais de sobreinfecção por Candida albicans, deverão ser aplicados tópicos com acção anti-fúngica (por exemplo à base de nistatina ou de imidazol). Se o processo inflamatório for muito intenso, poderá recorrer-se ao uso de corticóides tópicos, mas sempre de baixa potência (hidrocortisona a 1%) e em períodos curtos. Efectivamente, havendo uma área significativa de pele lesada em relação à totalidade da superfície corporal da criança, a absorção transcutânea de qualquer tópico aí aplicado, aumenta muito, conduzindo facilmente a ocorrência de efeitos sistémicos que podem ser fatais. 505 98 PSORÍASE Ana Fidalgo Definição e importância do problema A psoríase é uma doença cutânea autoimune inflamatória crónica, de predisposição genética, mediada por linfócitos T, e caracterizada por lesões eritematosas bem delimitadas, com escama prateada. A morfologia, gravidade clínica e duração da doença são muito variáveis. Trata-se de um problema relativamente frequente que afecta cerca de 2 % da população mundial, sendo mais prevalente na raça caucasiana. Existem dois “picos” de incidência: o primeiro entre os 20-30 anos, e o segundo entre os 50-60 anos. A prevalência de psoríase na idade pediátrica é cerca de 0,5 a 1%. Etiopatogénese A etiopatogénese incompletamente compreendida relaciona-se com: acentuação da cinética proliferativa epidérmica; auto-agressão imunitária contra as células córneas; alteração de sistemas de mediação e regulação celular – nucleótidos cíclicos poliaminas e derivados do ácido araquidónico. Na prática são considerados: • Factores genéticos A psoríase é determinada geneticamente, de forma poligénica e multifactorial, sendo fortemente influenciada por factores ambientais. Em aproximadamente um terço dos doentes há antecedentes familiares da doença. Existem diversas associações com alguns fenótipos HLA (HLA-Cw6, HLA-A13 e 17 e HLA-B8) que parecem determinar a data de início e a expressão fenotípica da doença. • Factores desencadeantes O início da psoríase pode estar relacionado com factores desencadeantes, e surgir em qualquer idade. 506 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A acção de factores externos ou internos pode desencadear psoríase em indivíduos geneticamente predispostos. • As infecções estreptocóccicas, em particular faringites, constituindo factores desencadeantes ou agravantes, conduzem a psoríase tipo guttata. • O estresse psicológico pode precipitar ou exacerbar a psoríase. • Factores endócrinos e metabólicos: a gravidez e a hipocalcémia podem induzir psoríase pustulosa. • Fenómeno isomorfo ou de Köbner: ocorre em 25% dos doentes; corresponde à indução de lesões psoriásicas em locais de traumatismo cutâneo. • Os fármacos : lítio, β-bloqueantes, interferão, anti-inflamatórios não esteróides e IECA. Nas crianças os fármacos mais frequentemente implicados são os antimaláricos e os corticóides. • Outros: o consumo elevado de álcool e tabaco tem sido associado à psoríase. Na psoríase surge resposta imune efectora de perfil T helper 1. As lesões cutâneas resultam da activação local do sistema imune, e da acumulação selectiva de linfócitos Th 1 (CD4+ e CD8+) que desencadeiam e mantêm a doença ao libertar citocinas e/ou outras moléculas inflamatórias, induzindo a hiperproliferação e diferenciação anormal de queratinócitos, de células endoteliais, fibroblastos, e mastócitos. Sobressai igualmente inflitrado denso de polimorfonucleres com característico epidermotropismo. A cronicidade resulta da estimulação linfocitária persistente por antigénios de provável origem epidérmica ainda desconhecidos. Manifestações clínicas O quadro clínico na criança é semelhante ao do adulto. A lesão característica é a placa eritematodescamativa, bem delimitada, com escama prateada espessa. O eritema é vermelho vivo e a remoção sucessiva da escama origina pontos hemorrágicos (sinal de Auspitz). As placas localizam-se predominantemente nas superfícies de extensão das extremidades (cotovelos e joelhos), couro cabeludo e na região lombo-sagrada. Nas crianças as lesões tendem a ser menos espessas, descamativas e mais pruriginosas. A face, o couro cabeludo e as pregas são afectados com maior frequência comparativamente ao adulto. As principais formas clínicas da psoríase são as seguintes: • Psoríase guttata: É mais frequente em crianças e adultos jovens. Surge de forma súbita, habitualmente 1-2 semanas após faringite estreptócoccica, sob a forma de pápulas, redondas ou ovais, com escama discreta ou ausente, dispersas de forma grosseiramente simétrica pelo tegumento, mas com predomínio pelo tronco e extremidades proximais. Esta forma persiste 3 a 4 meses e pode ter remissão espontânea e recorrências. • Psoríase em placas: Nesta variante existem placas eritemato-descamativas características nas superfícies de extensão (joelhos e cotovelos) e/ou couro cabeludo e tronco. (Figuras 1 e 2) • Psoríase inversa: Afecta predominante ou exclusivamente as áreas de atrito, em particular a área das fraldas e axilas. As lesões mantêm o eritema vivo e bordo bem definido, mas a escama é reduzida ou ausente. (Figura 3) • Psoríase pustulosa: Variante rara na criança, quer na sua forma generalizada, quer na forma localizada às palmas e plantas onde se observam pústulas. • Psoríase eritrodérmica: É a forma rara, e habitualmente grave, com eritema e esfoliação de quase todo o tegumento. Pode ser congénita. • Psoríase artropática: Surge artrite inflamatória seronegativa similar à artrite reumatóide em 5-30% dos doentes com psoríase. O início pode ocorrer na puberdade, sendo geralmente ulterior ao quadro cutâneo, na forma de artrite assimétrica mono ou oligoarticular. • Alterações ungueais: A alteração mais frequente é o ponteado ungueal (40%); raramente surgem onicólise ou alterações da coloração. Diagnóstico É essencialmente clínico, baseado no aspecto das CAPÍTULO 98 Psoríase 507 lesões, distribuição e evolução. A história familiar e as alterações ungueais apoiam o diagnóstico. O diagnóstico diferencial na infância estabelece-se essencialmente com a dermite da área das fraldas, com o eczema numular, a pitiríase rosada e a epidermofitia. Tratamento FIG. 1 Psoríase em placas FIG. 2 Psoríase em placas no tronco. Deve ser adaptado a cada caso individual, em função da idade do doente, localização e extensão da doença, evolução e resposta a tratamentos anteriores. As medidas gerais incluem banhos com óleos essenciais, aplicação de emolientes, eventualmente com agentes queratolíticos. Na psoríase em placas pode efectuar-se tratamento com corticóides de fraca a moderada potência e análogos da vitamina D, isolados ou em combinação. Para as lesões da face e pregas dispomos actualmente dos novos imunomoduladores tópicos (tacrolimus e pimecrolimus) que são eficazes, bem tolerados, e destituídos de efeitos acessórios (atrofia e metabólicos). A psoríase guttata aguda associada a infecção estreptocóccica deve ser tratada com antibioticoterapia dirigida. A fototerapia com ultravioletas B (UVB) pode ser usada no tratamento da psoríase guttata e psoríase em placas crónica extensa e/ou refractária. A fotoquimioterapia habitualmente não está indicada nas crianças. A helioterapia é benéfica e aconselhada com prudência. Os retinóides sistémicos, em particular a isotretinoína, são eficazes nas psoríases em placas, guttata, eritodérmica e pustulosa. Os seus potenciais efeitos no crescimento ósseo limitam o seu uso na infância. Outras terapêuticas de intervenção (ciclosporina A, metotrexato) são uma alternativa para casos particulares. Prognóstico FIG. 3 Psoríase inversa A psoríase é uma doença crónica com impacte importante na qualidade de vida. Cursa com períodos de remissão e exacerbação. O envolvimento articular na criança habitualmente é de carácter não destrutivo e tem bom prognóstico. 508 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 99 Mancha mãe PITIRÍASE ROSADA (Doença de Gibert) Ana Fidalgo Definição e importância do problema A pitiríase rosada é uma dermatose eritematodescamativa aguda, relativamente frequente, que afecta predominantemente adolescentes e adultos jovens, com curso característico de evolução espontânea para a cura em cerca de 4-6 semanas. Ocorre em indivíduos jovens saudáveis, entre os 10 e 35 anos, com um “pico” de incidência na adolescência, sendo rara antes dos 2 anos e nos idosos. Não existe predilecção racial e os dois sexos são afectados com um ligeiro predomínio no sexo feminino. Nos climas temperados, é mais comum na Primavera e Outono. Etiopatogénese Embora a causa seja ainda desconhecida, a etiologia vírica parece ser a mais provável. Dois vírus do grupo Herpes têm sido implicados: HHV-7, e menos frequentemente, HHV-6. A evidência epidemiológica de mais casos familiares (agregação) e/ou contactos íntimos, de sintomas prodrómicos em alguns doentes, o curso autolimitado e a raridade de recorrências, sugere um processo de defesa imunológica contra um agente infeccioso. Alguns fármacos podem causar erupções cutâneas semelhantes à pitiríase rosada: captopril, β-bloqueantes, isotretinoína, griseofulvina, entre outros. Manifestações clínicas e diagnóstico Em cerca de 80% dos casos a doença segue um curso clínico característico (pitiríase rosada clássica) e de fácil diagnóstico. Numa minoria, e sobretudo em crianças, pode assumir formas atípicas. FIG. 1 Pitiríase Rosada: distribuição das lesões na forma clássica ou típica. • Pitiríase rosada típica ou clássica Inicia-se por mancha ou placa eritematosa ou cor de salmão, descamativa, ovalar, em regra localizada ao tronco e única (“mancha mãe”), de 2 a 5 cm de diâmetro, que aumenta progressivamente (Fig. 1 e 2). A “mancha mãe” é identificável em cerca de 50 a 90 % dos casos; menos frequentemente surge na face, região cervical ou extremidades. Numa minoria dos doentes (5%) pode ocorrer pródromo de mal-estar geral, anorexia, febre, cefaleias e artralgias. Após 5 a 15 dias surge, com carácter súbito, erupção constituída por inúmeras lesões semelhantes mas mais pequenas que a precedente, de dimensões variáveis (0,5-1,5 cm), afectando tronco e extremidades proximais. As lesões são bem delimitadas, rosadas, ovalares, e o seu maior eixo dispõe-se paralelamente à grelha costal (linhas de clivagem de Langer), numa distribuição em “árvore de Natal”, que é mais evidente no dorso. O centro das lesões adquire uma escama fina, enrugada, que progride excentricamente, formando uma franja circular descamativa característica (em “collarete”) (Fig 3). A face, palmas e plantas são habitualmente poupadas. O envolvimento das mucosas é raro. Na raça negra as lesões podem CAPÍTULO 100 Pediculose 509 100 PEDICULOSE Luísa Caldas Lopes FIG. 2 FIG. 3 “Mancha mãe” (Pitiríase rosada). Erupção exantemática típica (Pitiríase rosada). Definição e importância do problema apresentar um aspecto psoriasiforme. A erupção é assintomática ou ligeiramente pruriginosa. Não se acompanha de sintomas sistémicos e evolui espontaneamente para a cura, podendo deixar hipo ou hiperpigmentação. Não recidiva. • Forma atípica As formas atípicas diferem pela distribuição ou aparência das lesões; a mais frequente é uma variante inversa que envolve predominantemente axilas e região inguinal, eventualmente face e pescoço, sendo mais frequente em negros. Outras variantes incluem as formas vesicular, papular, urticariforme, purpúrica e pustulosa. Pediculose é a infestação cutânea causada por piolhos, parasitas hematófagos humanos pertencentes à ordem dos Phthiraptera, na qual se inclui a subordem Anoplura, que compreende as espécies: – Pediculus humanus (corporis): do corpo ou roupa – Pediculus humanus (capitis): do couro cabeludo – Phthirius pubis: da região púbica. A pediculose do corpo e a pediculose púbica atingem preferencialmente adultos com vida precária e sexual activa, pelo que não são abordadas (Quadro 1). Diagnóstico A pediculose da cabeça é uma infestação ubiquitária, verificando-se maior incidência entre os 3 e os 11 anos de idade. É mais frequente no sexo feminino. O contacto interpessoal é a forma mais frequente de transmissão, mas pode verificar-se a disseminação por fómites. Os achados clínicos são limitados ao couro cabeludo, mais frequentemente região occipital e retroauricular. O sintoma clássico é o prurido marcado, ainda que de intensidade variável. Na primeira infestação o prurido pode demorar 2 a 6 semanas até se evidenciar; em infestações futuras desenvolve-se prontamente. Salienta-se, O diagnóstico é essencialmente clínico, baseado na distribuição, morfologia e evolução características da erupção cutânea na ausência de sintomatologia sistémica. A “mancha mãe” e/ou a erupção disseminada secundária podem assemelhar-se à tinha corporis, ao eczema numular ou à psoríase guttata. O diagnóstico diferencial estabele-se essencialmente com as toxidermias. Tratamento A doença é autolimitada com remissão espontânea em 6 a 12 semanas. O tratamento é sintomático com emolientes e, se houver prurido, com anti-histamínicos orais e corticoterapia tópica. Em formas clínicas extensas, muito pruriginosas e/ou persistentes, poderá estar indicada corticoterapia tópica ou sistémica de curta duração. Manifestações clinicas e diagnóstico QUADRO 1 – Formas de Pediculose Parasita (piolho) Pediculus humanus var. capitis Pediculus humanus var. corporis Phthirus pubis Doença Pediculose da cabeça Pediculose do corpo Pediculose púbica 510 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA assim, a possibilidade de ocorrência de surtos epidémicos em creches e escolas. Poderão surgir complicações (piodermites). Alguns indivíduos assintomáticos podem ser considerados “portadores”. O diagnóstico é feito pela identificação do parasita ou pelos ovos (lêndeas, em geral muito numerosas) na haste do pêlo. Ocasionalmente pode existir febre baixa, irritabilidade, linfadenopatia ou infecção bacteriana secundária. 101 ESCABIOSE Luísa Caldas Lopes Tratamento Na pediculose da cabeça são utilizados os seguintes fármacos em alternativa: – Lindano (loção a 1%): aplicação tópica à noite durante 4 minutos com lavagem na manhã seguinte utilizando champô; a lavagem deve ser feita a seguir; a aplicação pode ser repetida 1 semana depois; ou – Malatião (loção a 0,4%): aplicação tópica (com precaução por ser produto inflamável) à noite, removendo com lavagem na manhã seguinte; ou – Piretrinas (champô): aplicação durante 10 minutos, lavando em seguida; pode repetir-se o procedimento no dia seguinte; como precaução há que evitar contacto com os olhos; ou – Permetrina a 1% (creme de lavagem): aplicação em cabelo pouco húmido durante 10 minutos, seguido de lavagem; pode repetir-se 1 semana depois; resistências frequentes. Notas importantes: A escolha terapêutica é baseada na eficácia do fármaco, potencial de toxicidade e padrões de resistência. Em todas as preparações tópicas podem ser realizadas 2 aplicações com 1 semana de intervalo, atendendo à possibilidade de poder haver ainda eclosão larvar depois do primeiro tratamento. É fundamental a remoção mecânica da lêndeas. É aconselhavel corte de cabelo (muito curto) para facilitar, com pente de espaços apertados, a remoção das referidas lêndeas. Há que antender à toxicidade do lindano, o que obrigará a dar prioridade a outros fármacos. Tratando-se de pediculose púbica e/ou axilar pode utilizar-se lindano loção a 1% no púbis e/ou axilas 1vez/semana; ao nivel do pénis e escroto há que preferir creme ou loção não alcoólica. Definição e importância do problema A escabiose (sinónimo: sarna) é uma doença cutânea parasitária provocada por infestação pelo ácaro Sarcoptes scabiei variante hominis, parasita exclusivamente humano, que não infesta animais domésticos ou objectos inanimados. Trata-se duma doença ubiquitária; todas as idades, raças e grupos sócio-económicos são susceptíveis. No entanto, existem vários factores que facilitam a sua disseminação: o atraso do tratamento de casos primários, a falta de alerta para a doença e as más condições socioeconómicas. A disseminação da infestação entre membros da mesma família e contactos próximos é frequente, e um dado que favorece o diagnóstico. A prevalência é maior em crianças, em adultos com vida sexual activa e em idosos ou acamados. Etiopatogénese O Sarcoptes scabiei var. hominis é um ácaro muito pequeno, arredondado e translúcido, cuja fêmea mede cerca de 0.4 mm. Tem 4 pares de patas e reproduz-se pela postura de ovos fecundados. O ácaro fêmea penetra na epiderme onde escava e avança lentamente originando a galeria, na qual põe os ovos e morre ao fim de 6 semanas. A duração do macho é bastante inferior. Cada ovo resulta numa larva de 3 pares de patas e que se vem transformar em ácaro adulto. Este ciclo dura cerca de 2 semanas. Na primeira infestação a sensibilização do sistema imunitário pode demorar duas a seis semanas. As infestações subsequentes são reconhecidas em 24 a 48 horas. CAPÍTULO 101 Escabiose Manifestções clínicas A história epidemiológica, a distribuição das lesões (pápulas, vesículas, nódulos e galerias) e o purido formam a base para o diagnóstico clínico. O prurido intenso tem classicamente exacerbação nocturna ou é acentuado por banhos quentes. As lesões cutâneas têm distribuição característica e simétrica: os locais envolvidos incluem as pregas interdigitais, punhos, axilas, regiões retroauriculares, região periumbilical, pés e regiões maleolares. Nas crianças mais velhas e adolescentes as lesões têm localização semelhante à dos adultos. No homem são frequentes lesões no pénis e escroto. Na mulher, os mamilos e a área genital são frequentemente afectados. Particularmente nas crianças, imunocomprometidos e idosos, todas as superfícies cutâneas são susceptíveis, incluindo couro cabeludo e face. O sinal patognomónico é a presença de galerias correspondendo ao trajecto do ácaro em forma de linha quebrada, com poucos milímetros de comprimento. A restantes lesões cutâneas são pápulas eritematosas, nódulos e lesões secundárias de coceira. As crianças têm tendência a ter maior número de lesões que o adulto. No decurso da evolução de uma sarna não tratada podem surgir nódulos (escabióticos), resultantes da intensificação da reacção inflamatória ao ácaro. Estes nódulos podem atingir mais de 1 cm de diâmetro, são particularmente frequentes em crianças e, quando considerados isoladamente, podem originar problemas diagnósticos. A eczematização e a impetiginização são complicações frequentes. Crianças com atraso psicomotor grave ou incapazes de se coçar podem ser infestadas por milhares de ácaros, produzindo hiperqueratose difusa e liquenificação particularmente proeminente nas mãos, pés e orgãos genitais. Esta forma de escabiose é designada sarna norueguesa ou sarna crostosa. Diagnóstico O prurido com exacerbação nocturna, o quadro clínico típico e a presença de familiares com doença pruriginosa permitem o diagnóstico clíni- 511 co. Se necessário, a confirmação faz-se pela demonstração em exame microscópio directo do ácaro em hidróxido de potássio a 10%. Tratamento O doente e todos os familiares próximos devem ser tratados simultaneamente, uma vez que é relativamente frequente a existência de portadores assintomáticos. É importante ainda recordar que na primeira infestação o prurido só surge 4 a 6 semanas após o contacto. Apesar de o ácaro atingir preferencialmente zonas quentes e húmidas, o escabicida deve ser aplicado em toda a superfície cutânea incluindo face e couro cabeludo, nas crianças com menos de cinco anos. Para reduzir o potencial de reinfestação, a roupa de uso pessoal, a roupa de cama e as toalhas devem ser lavadas no início e no fim do tratamento. Após tratamento eficaz a maioria dos doentes melhora do prurido em 3 dias; contudo, o prurido e as lesões podem persistir 2 a 4 semanas – é o prurido pós-escabiótico. Esta reacção não implica falência terapêutica, mas sim uma reacção imunológica a toxinas ou ácaros mortos. É ainda importante recordar que os escabicidas tópicos determinam sempre um certo grau de irritação cutânea, pelo que a sua aplicação excessiva agrava a dermite que frequentemente coexiste com a escabiose. O medicamento utilizado deve ser aplicado minuciosamente ao deitar. Na idade pediátrica os fármacos utilizados (ectoparasiticidas) são os seguintes: Nas crianças com idade inferior a 2 anos: – Lindano (creme) seguido de banho ao cabo de 6 horas; pode repetir-se a aplicação tópica 1 semana depois. Nas crianças com idade igual ou superior a 2 anos: – Lindano (soluto a 1%), aplicação única ou em 3 noites consecutivas; seguida de banho cerca de 8 horas depois; se aplicação única, deve repetir-se 1 semana depois. Nota: A neurotoxicidade deste produto limita a sua utilização em crianças pequenas (< 2 anos), grávidas e em formas clínicas em que existam muitas abrasões na pele. 512 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA – Benzoato de benzilo (soluto a 30%) com aplicação em 3 noites consecutivas, seguindo-se banho na manhã seguinte à terceira aplicação. Outros fármacos: – Crotamitão formulado a 10% em loção ou creme; não recomendado em idade pediátrica. – Permetrina (creme a 5%); não se encontra comercializado entre nós na concentração referida, salientando-se a sua menor toxicidade e maior eficácia relativamente ao lindano. – Invermectina: é o única fármaco de administração oral. Não se encontra disponível no mercado, apesar de ter utilidade em diversas doenças parasitárias humanas, das quais se destacam as filaríases. O seu uso na sarna é restrito às formas refractárias, sobretudo se associadas a infecção por VIH em crianças com idade superior a 5 anos. 102 MOLUSCO CONTAGIOSO Maria João Paiva Lopes Definição e importância do problema A afecção designada classicamente por molluscum contagiosum ou “molusco contagioso” é uma doença benigna, autolimitada, causada pela infecção de queratinocitos por um vírus DNA da família Poxviridae – o vírus do molusco contagioso – que tem especificidade para células humanas, não sendo possível cultivá-lo em ovo ou culturas de tecidos. O contágio faz-se por contacto cutâneo próximo. Nos adultos frequentemente a transmissão faz-se por via sexual. O período de incubação varia de 2 semanas a 6 meses. A incidência em Portugal é desconhecida, sabendo-se que se trata de uma doença muito comum na infância, a partir do 1º ano de vida. Há surtos associados à frequência de piscinas, sendo estas um local de contágio habitual. Algumas séries apontam para prevalências da ordem dos 30% da população em geral, podendo ultrapassar os 70% na população seropositiva para VIH (vírus de imunodeficiência humana). Manifestações clínicas e diagnóstico Este tipo de infecção cutânea de causa vírica manifesta-se por pequenos módulos procidentes ou pápulas na superfície cutânea, de cor rosada ou branco-pérola, umbilicados e cheias de massa gelatinosa e pegajosa – o corpo do molusco, habitualmente com dimensões entre 1 e 5 mm. Ocasionalmente podem observar-se lesões com cerca de 5-10 mm. Nas crianças as localizações mais frequentes são as áreas de atrito do vestuário, como as regiões cervical, axilar e tronco. A doença pode 513 CAPÍTULO 102 Molusco contagioso também atingir a face, couro cabeludo e membros. O aparecimento eventual de lesões em localização anogenital não implica transmissão sexual, podendo corresponder a auto-inoculação. O diagnóstico clínico é, na maior parte dos casos, bastante simples. Nos doentes seropositivos para o VIH é importante o diagnóstico diferencial com criptococose que assume aspectos clínicos muito semelhantes. Uma manobra útil no diagnóstico diferencial consiste em espremer uma lesão, com pinça: se esta manobra produzir a expulsão de uma massa esbranquiçada, confirmase o diagnóstico de molusco contagioso. A referida massa – o corpo do molusco – é constituída por elementos que distendem as células – (corpo de inclusão citoplásmico, com 20-30µ), os quais são agregados de partículas – vírus. Tratamento sua rápida destruição, antes que estas se multipliquem. A opção pela terapêutica no domicílio, quando exequível, é a mais favorável, evitando-se assim “traumatizar” a criança. BIBLIOGRAFIA GERAL (Parte XV – Dermatologia) Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non-atopic eczema. BMJ 2006; 332: 584-588 Burns T, Brethnach S, Cox N (eds). Rook´s Textbook of Dermatology. Oxford: Blackwell, 2004 Cochito M, Trindade F, Paris FR, et al. Terapêutica Dermatológica em Ambulatório. Lisboa: Lidel, 2007 Darmstad GL, Dinulus JG. Neonatal skin care. Pediatr Clin North Am 2000; 47: 757-482 Eichenfield LF, Frieden IJ, Esterly NB. Textbook of Neonatal Dermatology. Philadelphia: Saunders, 2001 Eichenfield LF, Hanifin JM, Luger TA, et al. Consensus Conference on pediatric atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol 2003; 49: 1088-1095 No que diz respeito ao tratamento, vários autores advogam que não é imperativo tratar estas lesões, uma vez que elas são autolimitadas, ocorrendo remissão espontânea em cerca de 6 a 9 meses, em média. Porém, há casos com evolução arrastada (3-4 anos), sendo frequente que a auto-inoculação produza sementeiras, levando ao desenvolvimento de mais lesões. Assim, parece preferível tentar a terapêutica precoce, enquanto há um número reduzido de lesões. O objectivo é destruir as mesmas. As modalidades possíveis incluem espremer (com aplicação prévia de anestésico tópico) com pinça de bicos finos, curetagem, crioterapia ou aplicação local de produtos como podofilotoxina, cantaridina, verrucidas, tretinoína ou, mais recentemente, imiquimod. Tratando-se de uma doença benigna e autolimitada, é de bom senso escolher uma terapêutica que não seja mais agressiva ou traumatizante para a criança do que a doença em si. A avaliação das particularidades de cada caso (idade, localização e número de lesões) deverá orientar a opção terapêutica, a qual deve ser ponderada em conjunto com a criança e os pais. De notar que é possível e benéfico ensinar os pais a tratar a criança em ambiente doméstico, seja pela aplicação de tópicos, seja pela espressão com pinça com aplicação prévia de anestésico tópico. Deve também ter-se em atenção a vigilância de novas lesões e a Ellis C, Luger T. International Consensus Conference on Atopic Dermatitis II : Chairman’s Introduction and Overview. Br J Dermatol 2003; 148 (S63): 1-2 Esteves JA, Baptista AP, Guerra-Rodrigo F, Gomes MAM – Dermatologia. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1992 Hanifin et al. Guidelines of care for atopic dermatitis. J Am Acad 2004; 50: 391-404 Harper J, Orange A, Prose N (eds). Textbook of Pediatric Dermatology, Oxford: Blackwell Science, 2000 Kasaks EL, Lane AT. Diaper dermatitis. Pediatr Clin North Am 2000; 47: 909-919 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Pinheiro LA, Pinheiro AE. A pele da criança. A cosmética infantil será um mito? Acta Pediatr Port 2007; 38: 200-208 Schachner LA, Hansen RC. Pediatric Dermatology. Philadelphia: Mosby, 2003 Weston WL, Lane AT, Morelli JG. Color Textbook of Pediatric Dermatology. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 PARTE XVI Gastrenterologia e Hepatologia 516 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 103 VÓMITOS esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de passagem. Concomitantemente as contracções sincronizadas dos músculos da parede abdominal, diafragma e intercostais aumentam a pressão intrabdominal e intratorácica com consequente expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e, depois, para o exterior pela boca. Mafalda Paiva e Filipa Santos Manifestações clínicas e diagnóstico Definição Os vómitos, que consistem na expulsão súbita pela boca do conteúdo do estômago, com esforço, são um sintoma muito frequente em idade pediátrica, com múltiplas etiologias. O vómito deve ser diferenciado da regurgitação que consiste na expulsão, sem esforço, do conteúdo gástrico pela boca; esta última situação é frequente nos lactentes até aos três meses, não tendo geralmente repercussões importantes. Fisiopatologia O vómito resulta da resposta a diversos estímulos, coordenados pelo sistema nervoso central em sincronismo com os músculos abdominais e torácicos. Durante o vómito há três fases: a primeira definese como náusea, consistindo na sensação de vómito iminente, em geral associada a outros sinais e sintomas, nomeadamente palidez, sudação, sialorreia, taquicárdia e anorexia; a segunda consiste num movimento espasmódico respiratório contra a epiglote encerrada; e a terceira, (vómito propriamente dito) que consiste na expulsão retrógrada, súbita e com esforço, do conteúdo gástrico através da boca. Embora seja nítida a existência destas três fases, cada uma delas pode surgir independentemente das outras. Nem sempre a sensação de náusea desencadeia o vómito; por outro lado a estimulação faríngea poderá desencadear o vómito sem ser precedida de náusea. Durante o vómito o fundo gástrico relaxa-se e recebe o conteúdo intestinal sob a forma de um bolus após contracção do intestino delgado. A contracção do piloro e do antro gástrico mantém este conteúdo no interior do estômago e o esfíncter A avaliação de uma criança que tem vómitos (Quadro 1) deve iniciar-se com a elaboração da anamenese, caracterizando os vómitos (alimentares, hemáticos, biliosos, com muco), a sua forma de apresentação (agudos, crónicos ou cíclicos), e a repercussão no estado geral (nutricional e na hidratação). É importante analisar a existência de outros sinais e sintomas (febre, tosse, dor abdominal, obstipação, diarreia) e a sua apresentação cronológica, considerando sempre as patologias específicas de cada idade e a existência de contexto epidemiológico. Na maioria das vezes estes dados permitem o diagnóstico. Os exames complementares são orientados de acordo com a suspeita clínica: exames laboratoriais (hemocultura, urinocultura, cultural do liquor) quando há suspeita de infecção; imagiológicos e/ou endoscópicos quando há suspeita de anomalia anatómica/gastrintestinal; e doseamentos específicos quando a suspeita é de doença metabólica ou endócrina. Sendo o vómito um sintoma comum a muitas patologias, o diagnóstico diferencial varia com a idade do doente (Quadro 2). As anomalias congénitas, as doenças genéticas e metabólicas são mais frequentes no período neonatal; as causas pépticas, infecciosas e psicogénicas surgem com maior frequência na criança mais velha. A estenose hipertrófica do piloro surge em cerca de 1/500 nascimentos e resulta de uma hipertrofia muscular das fibras circulares do piloro (oliva pilórica). É mais frequente no sexo masculino e manifesta-se nas primeiras semanas de vida. No caso de estenose hipertrófica do piloro os vómitos surgem após um intervalo livre, em geral 2 a 4 semanas sob a forma de vómitos não biliosos, pós-prandiais, em jacto, sempre cada vez mais frequentes e abundantes. A criança fica agitada 517 CAPÍTULO 103 Vómitos QUADRO 1 – Abordagem do doente com vómitos Doente desidratado ? Hemáticos Sim Não Reidratação:oral /ev Caracterizar os vómitos Biliosos Não hemáticos/Não biliosos Criança/adolescente RN ou lactente Hemorragia digestiva alta? Sépsis Meningite Infecção urinária Causa obstrutiva? Não Letargia ou Alteração do estado de consciência Sim Obstrução? (Rx, Ecografia) Não Tratamento antibiótico Não Sim Causas: endócrina? metabólica? neurológica? Cirurgia Sim Causas: neurológica metabólica endócrina Diarreia ? Febre? Não Sim Doença péptica Causas anatómicas Causas infecciosas Adaptado de C D Rudolph, 2003 com fome, pode ter perda ponderal e ficar desidratada. O abdómen fica distendido após as refeições podendo identificar-se pela inspecção do abdómen ondas peristálticas gástricas da esquerda para a direita. Se não existir distensão abdominal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica. O diagnóstico ecográfico permite a identificação do espessamento e alongamento do canal pilórico; outros exames complementares podem orientar como a radiografia esofagogastroduodenal que demonstra o estômago dilatado com atraso do esvaziamento, e o canal pilórico estreito. O ionograma sérico revela alcalose metabólica hipoclorémica e hipocaliémica. (Capítulo 8, Figura 1) Uma referência a um quadro clínico designado por vómitos cíclicos. Os vómitos surgem de forma recorrente por períodos variáveis podendo eventualmente conduzir a desidratação e alterações do equílibrio hidroelectrolítico e ácido-base. Podem ser acompanhados de dores abdominais e de febre. Em geral desaparecem ou atenuam-se após período de sono e repouso. Estão em geral associados a história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas conseguem descrever associação de cefaleias ao quadro recorrente de vómitos. O diagnóstico diferencial deve fazer-se com situações de obstrução intestinal intermitente (volvo, márotação) e com as doenças metabólicas do ciclo da ureia. Complicações As complicações mais frequentes dos vómitos mantidos são a perda de electrólitos e fluidos podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura da pequena curvatura da junção gastroesofágica (ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de conteúdo gástrico para a via respiratória com consequentemente pneumonia, exposição da mucosa esofágica ao conteúdo ácido do estômago com risco de esofagite, etc.. Tratamento A manutenção do estado de hidratação é fundamental. Quando é identificada a etiologia dos vómitos a terapêutica é específica. A utilização de 518 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial dos vómitos de acordo com a idade de apresentação Causa Infecciosa Recém-nascido Sépsis Meningite Infecção urinária Anatómica Atrésias Duplicações Má-rotação/Volvo Doença de Hirschsprung Ileos meconial Estenose pilórica (<Cl-; <K+) Refluxo gastroesofágico Erro alimentar Pseudobstrução intestinal Gastrintestinal Lactente Gastrenterite Meningite Otite média aguda Infecção respiratória Estenose hipertrófica do piloro Hérnia inguinal Doença de Hirschsprung Invaginação intestinal Criança maior Gastrenterite Otite média aguda Sinusite Adolescente Gastrenterite Sinusite Infecção respiratória Invaginação intestinal Hérnia inguinal Bezoars Hérnia inguinal Bezoar Síndroma de artéria mesentérica superior Refluxo gastroesofágico Esofagite Alergia às proteínas do leite de vaca Gastrite Doença celíaca Refluxo gastroesofágico Gastrite Apendicite Pancreatite Hepatite Enxaqueca Tumor Síndroma de Reye Diabetes mellitus Refluxo gastroesofágico Gastrite Apendicite Pancreatite Hepatite Discinésia biliar Acalásia Enxaqueca Tumor Neurológica Hidrocefalia Hematoma subdural Hematoma subdural Metabólica ou endócrina Galactosémia Defeitos do ciclo da ureia Hipercalcémia Intolorância à frutose Urémia Hiperplasia congénita da supra-renal (>K+) Medicamentos Outras Adaptado de Kliegman RM et al, 2007 fármacos anti-eméticos está contra-indicada na maioria dos lactentes e crianças com vómitos secundários a gastrenterite aguda, anomalias estruturais do tracto gastrintestinal, emergências cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas. Os anti-eméticos estão indicados em situações seleccionadas: pós operatório, quimioterapia, alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e alterações da motilidade gastrintestinal, etc.. Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida Primperam® (antagonista de dopamina) → 0,1-0,2 mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperidona Molitilium® → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3 vezes/dia); 3) Dimen-Hidrinato (Dramamina®) → 1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos com movimento ou em casos de alteração vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista Síndroma de vómitos ciclícos Ingestão de tóxicos Intoxicação alimentar Diabetes mellitus Gravidez Porfiria intermitente Psicogénicos Bulimia da motilina) → 2-4 mg/kg iv ou PO até 3 vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante betaadrenérgico → 0,5 mg - 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia (para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina (Periactin® → 0,25 - 0,5 mg/kg/dia (para os vómitos cíclicos), etc.. BIBLIOGRAFIA Hay W W, Groothuis, Jr J R, Hayward, A R, Levin M J. Current Pediatric Diagnosis & Treatment. Denver: Appleton & Lange, 1997 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS. Practical Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier, 2004 CAPÍTULO 104 Refluxo gastroesofágico Walker W A, Goulet O, Kleinman RE. Pediatric Gastrointestinal Disease. Pathophysiology, Diagnosis, and Management. Ontario: BC Decker, 2004 ; 12: 203-209 Wyllie R, Hyams JS. Pediatric Gastrointestinal Disease. Pathophysiology, Diagnosis, and Management. Philadelphia: WB Saunders Company, 1999 519 104 REFLUXO GASTROESOFÁGICO Gonçalo Cordeiro Ferreira Definição e importância do problema O refluxo gastroesofágico (RGE) consiste na passagem retrógrada do conteúdo gástrico para o esófago sem náusea e sem esforço. Esse conteúdo pode ser alimentar, ácido (ou bilioso quando se acompanha de refluxo duodeno-gástrico) O material refluído pode atingir a boca e ser expelido (situação muito frequente no lactente pequeno) originando episódios de regurgitação, ou pode ser empurrado de novo para o estômago pelo peristaltismo do esófago (episódios de refluxo não regurgitante). Por vezes o conteúdo refluído pode ser aspirado para a via aérea (principalmente nos recém-nascidos pré-termo, recém nascidos e lactentes pequenos ou crianças com lesões neurológicas) originando uma série de sintomas que vão do laringospasmo à apneia, passando por recorrência de sibilância ou pneumonia de aspiração. Se o refluxo for ácido, a permanência desse conteúdo no lume esofágico pode levar a lesão da mucosa (esofagite) ou, através de um mecanismo reflexo (estimulação de receptores vagais), originar também fenómenos de broncospasmo. Se no lactente a quantidade de alimentos regurgitados for muito considerável, poderá surgir insuficiente ganho ponderal e desnutrição. Epidemiologia e história natural O RGE é um fenómeno muito frequente no lactente pequeno e a principal causa de envio, neste grupo etário, a consultas de Gastrenterologia Pediátrica. Na idade pediátrica o RGE pode classificar-se em primário ou secundário; o secundário é ori- 520 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ginado por obstáculo anatómico gástrico (estenose hipertrófica do piloro) ou infragástrico (bridas, má-rotação), ou por uma alteração da motilidade do tubo digestivo superior causada por fenómeno inflamatório crónico de origem infecciosa ou imunológica, mais frequentemente relacionado com intolerância às proteínas do leite de vaca (IPLV). O RGE primário divide-se em: RGE funcional ou não complicado, traduzido apenas por regurgitação; e RGE complicado, também chamado doença de refluxo gastro-esofágico (DRGE) que se acompanha de lesão tecidual e sintomatologia variada do foro digestivo, respiratório ou neurocomportamental. Cinquenta por cento dos lactentes saudáveis apresentam 2 ou mais episódios de regurgitação por dia entre os 2-10 meses de idade, com um máximo no grupo dos 4 meses. Por volta dos 8-9 meses, com a introdução progressiva da alimentação sólida e o adquirir da posição levantada, há uma nítida diminuição dos sintomas com progressivo desaparecimento destes entre os 18 meses(60-80% dos casos) e os 2 anos(98% dos casos). Cerca de 5-9% das crianças apresentam um RGE complicado(contra uma prevalência de DRGE de 4-30% na população adulta). Alguns grupos de doentes apresentam uma incidência superior de DRGE que deve ser sistematicamente investigada: doentes neurológicos, nomeadamente com paralisia cerebral(70-80%), doentes operados a atrésia do esófago(30%) e doentes com fibrose quística (26%). Fisiopatologia O principal mecanismo anti-refluxo , na criança como no adulto, é o tono basal do esfíncter esofágico inferior (EEI) que se quantifica entre 14-34 mmHg, valor bem superior ao gradiente de pressão abdominotorácica de cerca de 6 mmHg. Este tono vai sendo progressivamente adquirido nos primeiros 3 meses de vida e essa hipotonia “fisiológica” reveste-se de importância no RGE do pré-termo mais imaturo. Um outro factor importante para a prevenção dos episódios de refluxo é a localização intraabdominal do EEI em 2/3 do seu comprimento. Assim, um aumento brusco da pressão intra- abdominal irá também reflectir-se na pressão basal do esfíncter e não causará refluxo. Poder-seia, pois, concluir que dois factores, isoladamente ou em conjunto, podem estar na base do RGE: hipotonia do EEI e má-posição esfincteriana (esfíncter intratorácico ou hérnia do hiato). Se é certo que estes factores se encontram frequentemente em crianças com RGE grave e problemas neurológicos, a verdade é que na maioria das crianças com RGE nenhum deles apresenta relevância. Num estudo que efectuámos em 78 crianças com DRGE constatámos, ao analisar o EEI por manometria esofágica, que apenas 12% dos doentes tinham uma incompetência esfincteriana (tono inferior a 5 mmHg) e que só 18% apresentavam um esfíncter totalmente intratorácico, sendo as duas anomalias simultâneas em 6% das crianças. O mecanismo que assume maior relevância na génese dos episódios de refluxo parece ser a relaxação transitória inapropriada (fora da deglutição) de um EEI de tono normal. Esta relaxação surge mediada por mecanismos reflexos (vago-vagais) ligados à excessiva distensão do fundo gástrico, principalmente por líquidos (mecanismo protector), ou a atraso do esvaziamento gástrico para líquidos ou sólidos. Na posição supina forma-se, mesmo no período pós prandial de neutralização ácida, uma bolsa de ácido na porção gástrica da junção gastroesofágica, o que facilita a acidificação do esófago durante os episódios de relaxação transitória do esfíncter que ocorrem naquela posição. A segunda linha de defesa do esófago quando surge um episódio de refluxo é o desencadear de uma onda peristáltica que empurra o conteúdo refluído de novo em direcção ao estômago. A neutralização ácida do esófago é completada pela deglutição da saliva. A gravidade (na posição erecta) actua também, facilitando a limpeza do esófago. Na posição supina (frequente no lactente) perde-se a acção da gravidade e, quando do sono, perde-se também a capacidade de deglutição da saliva, pelo que o RGE surgido nessa ocasião pode assumir maior gravidade. No entanto, a presença de dismotilidade esofágica parece ser o factor decisivo para a manutenção do teor em conteúdo ácido do esófago. Esta dismotilidade pode ser primária (nomeadamente nas situações de paralisia CAPÍTULO 104 Refluxo gastroesofágico cerebral ou atrésia do esófago), ou secundária à existência de esofagite, criando um ciclo vicioso em que o refluxo causa esofagite e esta, através das alterações motoras que condiciona, facilita o aparecimento de mais refluxo com agravamento do processo inflamatório. No estudo anteriormente referido, 58% das crianças com esofagite apresentavam critérios de dismotilidade grave contra 32% de doentes sem esofagite. Finalmente, como terceira linha de defesa, encontra-se a capacidade de resistência ao ácido da mucosa esofágica, o que depende de factores pré-epiteliais, epiteliais e pós epiteliais, e que é variável de indivíduo para indivíduo; tal explica que, para o mesmo grau de exposição ácida, haja diferente gravidade de lesão da mucosa. Manifestações clínicas A constelação de sintomas e sinais do RGE é muito variada e, nalguns casos, relacionada com a idade do doente. De uma forma geral podem classificar-se em 3 tipos: manifestações digestivas; manifestações respiratórias; manifestações neurocomportamentais. 1) Manifestações digestivas A) Lactentes: regurgitação simples, regurgitação com insuficiente ganho ponderal, sintomas /sinais de esofagite; irritabilidade geral ou durante a alimentação (habitualmente com perda de peso); hematemese ou melena; sintomas relacionados com anemia ferropénica. B) Crianças maiores: pirose; disfagia; dor epigástrica ou retro-esternal; hematemese /melena ou anemia ferropénica. 2) Manifestações respiratórias (habitualmente crónicas ou recorrentes) A) Via superior: otite média recorrente; laringite recorrente/crónica; laringospasmo com apneia (lactente pequeno); engasgamento (lactente pequeno). B) Via inferior: sibilância recorrente (em crianças não atópicas); asma mal controlada principalmente nocturna; pneumonia de aspiração. 3) Sintomas neurocomportamentais (principalmente no lactente): irritabilidade; perturbação do sono; Apparent Life Threatening events 521 (ALTE); pseudo convulsões/hipotonia; síndroma de Sandifer (torcicolo secundário ao refluxo). Diagnóstico O diagnóstico do refluxo regurgitante é clínico. Na presença de um lactente com regurgitação, em primeiro lugar é necessário saber se o refluxo é primário ou secundário; e, neste último caso, excluir, nomeadamente, a estenose hipertrófica do piloro. Quando houver relação temporal entre os sintomas e a introdução de uma fórmula adaptada, há que admitir possível IPLV. Na presença de um refluxo primário há que distinguir entre RGE não complicado e DRGE. Para isso é fundamental proceder uma história clínica cuidadosa valorizando os seguintes parâmetros para um diagnóstico afirmativo de RGE funcional (sem necessidade de exames complementares): – Regurgitação mais evidente no período pós prandial imediato, principalmente após refeição abundante; – Regurgitação ligada a um estado de agitação do bébé , principalmente quando acordado; – Regurgitação mais importante com o leite que com sólidos; – Bom ganho ponderal, apesar da regurgitação – Ausência de sintomas ou sinais de esofagite, nomeadamente irritabilidade, recusa alimentar ou anemia; – Ausência de sintomas ou sinais respiratórios ou neurocomportamentais passíveis de serem atribuídos ao refluxo. Quando se suspeita de RGE complicado será necessário recorrer a exames complementares para avaliação de: A) Consequências do RGE (nomeadamente esofagite e estenose péptica) sobretudo no doente com sintomas digestivos: – A endoscopia digestiva alta com realização de biópsias é o melhor exame perante a suspeita de esofagite. Estabelece o diagnóstico, quantifica a esofagite, identifica critérios histológicos implicando maior cuidado (esófago de Barrett) e evidencia a presença de estenose péptica. – A ecografia só tem interesse para exclusão de obstáculo pilórico. 522 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA – O trânsito esófago-gastro-duodenal permite também demonstrar a estenose péptica e a hérnia hiatal sendo particularmente útil para excluir obstáculo infra pilórico. B) Relação de causalidade entre o refluxo e sintomatologia extradigestiva: – A ecografia com pesquisa de RGE pode evidenciar a presença de refluxo associado a patologia respiratória ou neurocomportamental, sobretudo quando não há regurgitações visíveis. É barato e não invasivo , mas a sua sensibilidade é variável (pode atingir 65%) dependendo da experiência do ecografista. No entanto, não quantifica o refluxo , não o relaciona directamente com os sintomas apresentados e limita-se a um curto período pós-prandial em que muitas vezes o RGE é não ácido e fisiológico. – A pH metria de 24 horas é o exame de eleição para avaliar crianças com manifestações extradigestivas e suspeita de RGE. Trata-se dum método estandardizado, quer quanto a indicações, quer quanto a procedimentos, por recomendações recentes da ESPGHAN e NASPGAN. Permite quantificar o refluxo ácido através do estabelecimento de um índice de refluxo (tempo total de pH < 4) que é variável com a idade, sendo considerado patológico se for superior a 12% no 1º ano de vida, e a 6% a partir dessa idade. Permite ainda estabelecer uma relação temporal entre o episódio de refluxo e o aparecimento dos sintomas referidos (tosse, sibilância,apneia etc). Tem, no entanto, limitações já que só avalia episódios de refluxo ácido, não detectando episódios de refluxo alimentar (neutro) que podem estar relacionados com fenómenos de aspiração. Novas técnicas como o método de impedância esofágica poderão contribuir para o estudo dessa situação. – A cintigrafia esofágica tem interesse limitado na avaliação de episódios aspirativos. C) Estudo pré-operatório Nos casos em que se torne necessário recorrer ao tratamento cirúrgico do RGE, o estudo deve ser muito pormenorizado com exames variados: trânsito esofágico, endoscopia digestiva alta, pH metria, manometria esofágica e cintigrafia para avaliação do esvaziamento gástrico. Tratamento O RGE não complicado não necessita de tratamento médico. Os pais devem ser tranquilizados, informando-os de que se trata de uma situação de imaturidade fisiológica que irá melhorar ao longo do tempo. Podem ser tomadas algumas medidas como o espessamento do leite que diminui a regurgitação por ser mais viscoso, e também por aumentar a saciedade do lactente , ficando mais tranquilo após as refeições. A roupa não deve ser apertada. A posição em que o lactente deve ser colocado é controversa . Estudos provam que os lactentes têm um menor índice de refluxo em decúbito ventral. No entanto, pela associação entre essa posição e a morte súbita do lactente, os riscos habitualmente ultrapassam os benefícios, pelo que não deve ser rotineiramente recomendada; pode utilizar-se em alternativa o decúbito lateral esquerdo em colchão duro com elevação da cabeceira. Se os sintomas persistirem, pode ser tentada uma modificação da fórmula para um hidrolisado, para excluir IPLV. A criança deve ser vigiada e reavaliada se os sintomas persistirem para além dos 18-24 meses, ou se se agravarem. O tratamento farmacológico deve estar reservado para o RGE complicado. Neste caso, para além das medidas gerais já descritas, e que na criança maior ou adolescente incluem também a restrição de produtos alimentares como o café, o chocolate e as colas ou o tabaco, (pois todos baixam o tono do EEI), há dois grupos de fármacos que podem ser usados: Os procinéticos e os inibidores da secreção ácida gástrica. Sendo a DRGE uma anomalia primordial da motilidade do andar superior do tubo digestivo, teria lógica usar principalmente os procinéticos no seu tratamento. Dos vários utilizados (metoclopramida, domperidona, cisapride, eritromicina) só o cisapride demonstrou uma acção consistente de redução do número e duração dos episódios de refluxo. No entanto, a associação (se bem que rara em Pediatria) entre este medicamento e arritmia cardíaca grave por prolongamento do intervalo QT, limitou o seu uso a casos muito restritos, sob um estrito protocolo de segurança, e apenas aplicado em unidades especializadas. CAPÍTULO 104 Refluxo gastroesofágico 523 QUADRO 1 – Inibidores da secreção ácida gástrica Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds). Tipo Antagonistas H2 Ranitidina PPI Omeprazol Lansoprazol Omari T, Barnett C, Benninga M et al. Mechanisms of Gastro- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Dose Tomas 2-4 mg/Kg/dia 2xdia oesophageal reflux in preterm and term infants with reflux disease. Gut 2002; 51: 475-479 Rosbe K, Kenna M, Auerbach A. Extraesophageal reflux in 0,7-3 mg/Kg/dia 0,5-1,5 mg/Kg/dia 1xdia 1xdia pediatric patients with upper respiratory symptoms. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2003; 129: 1213-220 Rudolph C, Mazur L, Liptak G, et al. Guidelines for evaluation and treatment of gastroesophageal reflux in infants and Assim, o tratamento do RGE complicado repousa essencialmente nos inibidores da secreção ácida que são de dois tipos: antagonistas dos receptores H2 e inibidores da bomba de protões (PPI). (Quadro 1) Estes últimos, pela sua acção mais eficaz ao longo das 24 horas, são os preferidos, principalmente nos tratamentos a longo prazo. No tratamento da esofagite ou das manifestações extradigestivas ligadas ao RGE , o seu uso deve ser de 6-8 semanas. Muitas vezes, no entanto, o reaparecimento dos sintomas leva à necessidade de terapêutica mais prolongada. O tratamento cirúrgico deve estar reservado aos casos refractários à terapêutica médica bem conduzida, ou com complicações graves como estenose péptica. Os doentes com patologia neurológica e RGE têm frequentemente necessidade de terapêutica cirúrgica. A técnica mais eficaz é a fundoplicatura de Nissen, com ou sem piloroplastia associada, que pode ser efectuada por cirurgia laparoscópica em centros com experiência. Em adultos têm sido realizados procedimentos por via endoscópica, como a gastroplastia endoluminal; contudo, não há ainda experiência suficiente em crianças para avaliar o sucesso a médio prazo desta técnica. BIBLIOGRAFIA Aggett P, Agostoni C, Goulet O et al. Antireflux or antiregurgitation milk products for infants and young children : a commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 34: 496-98 Colletti R, Di Lorenzo C. Overview of pediatric gastroesophageal reflux disease and proton pump inhibitor therapy. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2003 ; 37 (Sup 1) : S7-11 Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS (eds). Practical Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier, 2004 children: Recommendations of the North American Society for Pediatric Gastroenterology and Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2001; 32 (Sup 2): S1-31 Vandenplas Y. Reflux esophagitis in infants and children : a report from the working group on gastro-oesophageal reflux disease of the European Society of Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1994; 18: 413-22 524 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 105 DOR ABDOMINAL RECORRENTE José Cabral Importância do problema Aple, definiu há mais de 40 anos a dor abdominal recorrente (DAR), como 3 ou mais episódios de dor abdominal, suficientemente fortes para interferirem com a actividade diária durante um período não inferior a 3 meses consecutivos. Actualmente e por pressões da sociedade, a maioria dos clínicos considera, erradamente, um período mais curto de 1 a 2 meses para a definição da dor abdominal recorrente (ou crónica). Tem sido descrita uma prevalência de DAR em 10-15% das crianças em idade escolar entre os 5 e os 14 anos, com uma maior prevalência no sexo feminino. Note-se que o termo dor abdominal recorrente se refere a uma descrição sintomática e não a um diagnóstico. Sem ter a possibilidade de recorrer a exames endoscópicos e com limitações nos exames radiológicos, Apley encontrou uma etiologia orgânica somente em 5% dos casos de DAR mas, actualmente, nas Unidades de Gastrenterologia Pediátrica, em 33% dos doentes com dor abdominal recorrente é identificada uma causa orgânica. Assim, na grande maioria dos casos de DAR, os mesmos são classificados como correspondendo a dor abdominal funcional, devendo para tal ser aplicados os critérios diagnósticos de Roma II, adiante explanados. Diagnóstico diferencial As variáveis que apontam para um diagnóstico funcional são um exame físico normal (pode haver dor à palpação profunda abdominal) e a ausência de sinais de alarme relativamente a doença orgânica. Mesmo com exame físico normal, estão indicados exames complementares de diagnóstico se houver sinais de alarme de doença orgânica (Quadro 1) apontando determinados sinais, sintomas, e quadros clínicos e laboratoriais de alarme para probalidade de determinada patologia de base (Quadro 2). No entanto, não há estudos que tenham avaliado o uso de exames laboratoriais de rastreio (Quadro 3) para o diagnóstico diferencial entre dor abdominal orgânica e funcional. Estes exames complementares podem também ser considerados como uma forma de acalmar os pais, doente e médico quando o diagnóstico mais provável é de dor funcional, ou ser necessários se a dor continuar a afectar gravemente o dia a dia do doente. Todavia, os referidos exames complementares devem ser pedidos na expectativa de resultado negativo para que não se crie, no seio da família e da criança, ansiedade pelo receio de doença grave. Critérios para a definição de dor abdominal funcional (critérios de Roma II) Em 1999 um grupo internacional de gastrenterologistas pediátricos chegou a um consenso para o diagnóstico baseado nos sintomas das doenças gastrintestinais funcionais. Estes critérios diaQUADRO 1 – Sinais de alarme: causas orgânicas de DAR Dor bem localizada, longe do umbigo Dor acordando à noite Vómitos Alteração dos hábitos intestinais Diarreia crónica grave Atraso de crescimento Perda de peso Rectorragias, febre, artralgias, exantema Fístula/fissura anal Alterações menstruais Hemorragia oculta Alterações laboratoriais (sangue ou urina) História familiar de doença péptica / DII Idade < 4 anos DAR: Dor Abdominal Recorrente; DII: Doença Inflamatória Intestinal CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente 525 QUADRO 2 – Sinais de alarme e patologia de base provável Sinais de Alarme • Dor: localizada, não periumbilical, com irradiação para o dorso ou ombro • Perda de peso, atraso de crescimento, atraso da puberdade • Alteração dos hábitos intestinais, hemorragia digestiva, sangue oculto nas fezes • Sintomas extra-intestinais: febre, exantema, uveíte, artralgia, disúria, icterícia • Viagem ao estrangeiro, exposição a água ou leite contaminados • História familiar de DII, doença péptica • Imunodeficiência – congénita, adquirida, pós-transplante • Ingestão medicamentosa – AINES • Alterações laboratoriais – anemia, VS↑, parasitas nas fezes Patologia de Base • Úlcera duodenal, coledocolitíase, pancreatite • Doença celíaca, DII da puberdade • DII, doença péptica, doença celíaca • DII, lúpus eritematoso disseminado • Hepatite, giardíase, yersinose • Úlcera péptica, DII • Infecção oportunista • Gastrite • DII, doença celíaca, parasitose DII: Doença Inflamatória Intestinal; VS: Velocidade de Sedimentação; AINES: Anti-Inflamatórios Não-Esteróides gnósticos ficaram conhecidos por critérios de Roma porque a reunião se realizou nessa cidade. Utilizando estes critérios baseados em sintomas, os clínicos ficam capacitados para fazer o diagnóstico na maioria das crianças em idade escolar com dores abdominais, simplesmente colhendo a história clínica e fazendo o exame objectivo (que não revela sinais de doença). Assim, sem utilizar exames complementares, é possível fazer com que os pais fiquem satisfeitos e calmos com um diagnóstico baseado na explicação dos sintomas, com o estabelecimento de um prognóstico e com um plano de tratamento, desde que se garanta disponibilidade para reavaliação se houver determinados dos sintomas. Um estudo recente validou que 72% das crianças com DAR podiam ser classificadas num dos subtipos QUADRO 3 – Rastreio nos casos de dor abdominal funcional Hemograma completo e VS Enzimas hepato-biliares e pancreáticas Exame sumário de urina Urinocultura Exame parasitológico de fezes Pesquisa de sangue oculto nas fezes Ultrassonografia abdominal (a ponderar) Teste do hidrogénio expirado (a ponderar) VS: Velocidade de Sedimentação dos critérios de Roma II para as doenças gastrintestinais pediátricas. Estes critérios dividem a dor abdominal em 5 subtipos: (1) dispepsia funcional (tipo úlcera, tipo dismotilidade, não específica), (2) síndroma do intestino irritável, (3) dor abdominal funcional, (4) enxaqueca abdominal e (5) aerofagia. 1. Dispepsia funcional Chama-se dispepsia à dor ou desconforto localizados ao epigastro. O desconforto caracterizase por enfartamento, saciedade precoce, flatulência, eructações, náuseas ou vómitos. Critérios de diagnóstico História de, pelo menos, 12 semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 meses precedentes, de (1) dor ou desconforto persistente ou recorrente no epigastro, (2) na ausência (após endoscopia alta) de doença orgânica que explique os sintomas e (3) na ausência de alívio exclusivo da dispepsia pela defecação ou da sua associação com alterações do número e consistência das fezes. Na dispepsia tipo úlcera a dor epigástrica é o sintoma predominante. Na dispepsia tipo dismotilidade o desconforto epigástrico é o sintoma predominante. Na dispepsia não específica os sintomas não preenchem nenhum dos 2 subtipos anteriores. Recomendações diagnósticas e clínicas Na anamnese devem ser investigados factores 526 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dietéticos, psicológicos e sociais (familiares com doença péptica ou Helicobacter pylori). Devem os sintomas ser caracterizados em função de poderem corresponder a lesões da mucosa (esofagite, gastrite, úlcera duodenal), devendo estas hipóteses diagnósticas ser excluídas por endoscopia alta. Um episódio anterior de infecção vírica pode sugerir a hipótese de gastroparésia pós-vírica. A suspeita de doença pancreática, hepática ou biliar deve conduzir à realização de ecografia abdominal e doseamentos das enzimas hepatocelulares e pancreáticas (ALT, AST, amilase e lipase). Tratamento Os medicamentos e alimentos que possam agravar os sintomas devem ser interrompidos. Poderão ser utilizados antagonistas dos H2, inibidores da bomba de protões (omeprazol ou lanzoprazol) ou sucralfato. Nos casos em que há enfartamento podem ser utilizados procinéticos (domperidona ou metoclopramida). Nalguns casos poderão ser utilizados antidepressivos tricíclicos em doses baixas (consultar alínea seguinte: 2.). 2. Síndroma do intestino irritável Na síndroma do intestino irritável o desconforto abdominal ou a dor estão associados à defecação ou a alterações dos hábitos intestinais. Critérios de diagnóstico História precisa de dor, pelo menos durante 12 semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 meses precedentes, de (1) desconforto abdominal ou dor acompanhados de 2 de 3 características: (a) alívio com a defecação, e/ou (b) início associado a alteração da frequência das dejecções e/ou (c) início associado a alteração da consistência das fezes; e (2) inexistência de anomalias estruturais ou metabólicas que expliquem os sintomas. Os sintomas seguintes fornecem suporte cumulativo ao diagnóstico: (1) frequência anormal de dejecções (mais de 3 vezes por dia ou menos de 3 vezes por semana); (2) consistência anormal das fezes (duras ou moles/aquosas); (3) defecação anormal (grande esforço, urgência, sensação de evacuação incompleta); (4) passagem de muco; (5) sensação de distensão abdominal. Recomendações clínicas e diagnósticas Avaliação nutricional, avaliação do regime alimentar (ingestão de fibras nos obstipados e ingestão de açúcares como o sorbitol e a frutose naqueles com diarreia). Os sinais de alerta para a possibilidade de doença orgânica são: dor ou diarreia nocturna, perda de peso, rectorragias, febre, artrite, atraso da puberdade e história familiar de doença inflamatória intestinal. Em termos de exames complementares poderão ser realizados hemograma, velocidade de sedimentação, coprocultura e exame parasitológico de fezes (com pesquisa de antigénios para Giardia lamblia no caso de diarreia), teste do hidrogénio expirado, ou prova terapêutica com dieta sem lactose (2 semanas) na suspeita de intolerância à lactose. No caso de suspeita de doença inflamatória intestinal está indicada a realização de colonoscopia com biópsias e/ou exames radiológicos. Tratamento Os objectivos do tratamento são: tranquilizar os pais e o doente, e aliviar os sintomas. Nos doentes com obstipação deve aumentar-se a dose de fibras na dieta (dose recomendada de fibras diária = idade em anos + 5 g), leite de magnésia ou parafinina. Podem utilizar-se antidepressivos tricíclicos (imipramina ou amitriptilina) em doses baixas (0,2 mg/kg ao deitar que podem ser aumentados 0,2 mg/kg por semana até 1 mg/kg ou 50 mg/dia). A amitriptilina, pela forte acção anticolinérgica, é ideal não só para reduzir a dor, mas também para melhorar o sono e a diarreia. Nos doentes com obstipação é preferível o uso da imipramina. 3. Dor abdominal funcional É definida como dor abdominal persistente na ausência de doença e na qual não se reconhece nenhum padrão de dor ou de sintomas acompanhantes. A dor não se relaciona temporalmente com a ingestão de alimentos, defecação ou exercício. São frequentes alguns sintomas extraabdominais como cefaleias, fadiga e dores no corpo. Algumas destas crianças são perfeccionistas enquanto outras têm dificuldades de aprendizagem que os pais não reconhecem. CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente Critérios de diagnóstico Pelo menos 12 semanas de (1) dor abdominal contínua ou quase contínua numa criança em idade escolar ou adolescente; (2) sem nenhuma ou quase nenhuma relação com acontecimentos fisiológicos (por exemplo: alimentação, período menstrual ou defecação); (3) com alguma interferência no dia a dia; (4) com a certeza de a dor não ser fingida (não há simulação de doença); e (5) não haver critérios suficientes para se colocar o diagnóstico de outra doença gastrintestinal funcional explicando os sintomas. Recomendações clínicas e diagnósticas Devem ser investigados factores psicológicos que incluem ansiedade e/ou depressão na criança e família, somatização, fobia à escola, e ansiedade da separação. O exame físico, o crescimento e os resultados dos exames complementares devem ser normais (hemograma, VS, exame sumário de urina, exame parasitológico e sangue oculto nas fezes, exames bioquímicos correntes, ecografia abdominal, teste de hidrogénio expirado). Os exames devem ser realizados de modo criterioso evitando que causem ansiedade na criança e família pelo receio de doença grave de difícil diagnóstico. Tratamento Há que tranquilizar e explicar como ocorrem os sintomas na ausência de alterações nos exames complementares. Deve ser dado suporte psicológico à criança e família. 4. Enxaqueca abdominal É uma doença paroxística afectando cerca de 2% das crianças e caracterizada por dor aguda, incapacitante, não-cólica, localizando-se na região periumbilical, que dura horas e é acompanhada de palidez e anorexia. Na sua manifestação característica há antecedentes pessoais e familiares de cefaleia típica de enxaqueca. Critérios de diagnóstico Consideram-se os seguintes critérios: (1) 3 ou mais episódios paroxísticos de dor abdominal aguda, nos 12 meses precedentes, intensa, periumbilical durando de 2 horas a vários dias com intervalos 527 livres com a duração de semanas a meses, (2) ausência de doença bioquímica ou estrutural metabólica, gastrintestinal ou do sistema nervoso central, e (3) 2 das seguintes características (a) cefaleias durante os episódios, (b) fotofobia durante os episódios, (c) história familiar de enxaqueca, (d) hemicrânia, (e) aura visual, sensorial ou motora. Recomendações clínicas e diagnósticas Quando o quadro de dor abdominal é acompanhado de história típica de enxaqueca, o diagnóstico é simples e imediato, sendo de presunção nos outros casos. Todas as outras causas de dor abdominal grave intermitente devem ser consideradas incluindo a uropatia obstrutiva, a obstrução intestinal intermitente, a pancreatite recorrente, a doença hepatobiliar, lesão intracraniana ocupando espaço, e doenças metabólicas. A doença péptica é muitas vezes considerada no diagnóstico diferencial porque uma das suas formas de apresentação é o aparecimento de dor nocturna ou de manhã cedo; diferencia-se da enxaqueca abdominal porque nesta há períodos livres de dor entre os episódios. O diagnóstico de enxaqueca abdominal pode também ser sustentado pela resposta à medicação profiláctica para a enxaqueca. Tratamento O pizotifen (antagonista dos receptores da serotonina) tem sido utilizado como profiláctico. 5. Aerofagia Consiste na deglutição excessiva de ar conduzindo à distensão abdominal progressiva. O desconforto abdominal daí resultante pode limitar a ingestão de alimentos. Critérios de diagnóstico Constituem critérios a verificação de 2 ou mais dos seguintes sinais e sintomas: (1) deglutição de ar, (2) distensão abdominal por ar intraluminal e (3) erutações ou aumento da emissão de gases, pelo menos durante 12 semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 meses precedentes Recomendações clínicas e diagnósticas. Na sua forma característica a distensão abdominal 528 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Critérios de referência ao Gastrenterologista Se não houver resposta à terapêutica inicial Segunda opinião Avaliação de doenças menos frequentes Para realização de exames: Teste hidrogénio expirado (intolerância à lactose) Endoscopia alta (dispepsia: úlcera péptica, gastrite por Hp) Colonoscopia (diarreia grave ou com sangue: DII) DII: Doença Inflamatória Intestinal; Hp: Helicobacter pylori a infecção parasitária e a gastrenteropatia alérgica; em casos seleccionados poderá estar indicada a endoscopia alta ou baixa. O teste do hidrogénio expirado pode ser necessário para documentar a intolerância à lactose ou distinguir a distensão abdominal da aerofagia que é provocada por contaminação bacteriana intestinal (Quadro 4). BIBLIOGRAFIA Biggs AM, Aziz Q, Tomenson B, Creed F. Effect of childhood adversity on health related quality of life in patients with upper abdominal or chest pain. Gut 2004; 53: 180-186 Faure C, Wieckowska A. Somatic referral of visceral sensations na aerofagia agrava-se ao longo do dia e desaparece durante o sono com a emissão de gases. Por vezes há história de consumo excessivo de pastilhas elásticas e bebidas gaseificadas. É importante averiguar a possibilidade de acontecimentos na família que pudessem ter causado ansiedade, pois esta é uma causa frequente de deglutição excessiva de ar. O crescimento é normal. A aerofagia pode ser confundida: com o refluxo gastro-esofágico (pelos “barulhos” na garganta ouvidos pelos pais); com a pseudoobstrução intestinal crónica; e com a doença de Hirschsprung (pela distensão abdominal). and rectal sensory treshold for pain in children with functional gastrointestinal disorders. J Pediatr 2007; 150: 6671 Hyams JS. Chronic and recurrent abdominal pain. In Hyman PE (ed). Pediatric Functional Gastrointestinal Disorders. New York: Academy Professional Information Services, 1997; 1-21 Hyman PE, Danda CE. Understanding and treating childhood bellyaches. Pediatric Annals 2004, 33:97-104 Kohli R, Li BUK. Differential diagnosis of recurrent abdominal pain: new considerations. Pediatric Annals 2004, 33:113-122 Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, et al. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 (Suppl II): 60-68 Tratamento Há que tranquilizar, e explicar os sintomas, podendo ser necessária psicoterapia. Walker LS, Lipani Ta, Greene JW, et al. Recurrent abdominal Apoio da gastrenterologia pediátrica Zeiter DK, Hyams JS. Recurrent abdominal pain in children. pain: symptoms subtypes based on the Rome II criteria for pediatric functional gastrointestinal disorders. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 38: 187-191. Pediatr Clin North Am. 2002; 49: 53-71 O pediatra e o médico de família devem ser capazes de diagnosticar e tratar a maioria das doenças gastrintestinais funcionais. Como muitos destes problemas são habitualmente crónicos e por vezes não respondem à terapêutica inicial, pode ser necessário pedir uma segunda opinião e prosseguir a avaliação de doenças menos frequentes através do envio da criança a centro especializado. No doente com dispepsia, o diagnóstico de dispepsia funcional só pode ser feito com certeza após a realização de endoscopia digestiva alta. No doente com síndroma do intestino irritável pode ser necessário excluir a doença inflamatória intestinal, a intolerância aos hidratos de carbono, CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori 106 DOENÇA PÉPTICA E HELICOBACTER PYLORI José Cabral Definições e importância do problema O termo gastrite significa inflamação microscópica da mucosa gástrica, não devendo ser utilizado como um diagnóstico clínico, radiológico ou endoscópico. A úlcera péptica é o termo para designar lesões profundas da mucosa que ultrapassam a muscularis mucosa da parede gástrica ou duodenal, enquanto as erosões pépticas não a ultrapassam. Úlcera e erosões pépticas englobam a chamada doença péptica ulcerosa. A gastrite e a doença péptica ulcerosa podem ser subdivididas em primárias e secundárias. A maioria das gastrites primárias são provocadas pelo Helicobacter pylori (Hp); neste capítulo faz-se referência apenas a estas. Dois argumentos implicam o Hp como causa de gastrite crónica na criança: (1) o facto de todas as crianças colonizadas pelo Hp terem gastrite crónica; e (2) o achado de que a erradicação da bactéria da mucosa gástrica conduz à cicatrização da gastrite, tanto na criança como no adulto. Com efeito, o Hp encontra-se na mucosa do antro gástrico em quase 90% das crianças com úlcera duodenal e a sua erradicação leva à cicatrização duradoira da doença ulcerosa duodenal tanto na criança como no adulto. Apectos epidemiológicos A infecção por Helicobacter pylori (Hp) é considerada, no Homem, a infecção crónica mais prevalente no mundo. Nos países em desenvolvimento, 70 a 90% da população está infectada por Hp. Nos países desenvolvidos a prevalência é 529 menor, variando entre 30 e 60%. De um modo geral, a frequência da infecção é mais elevada nos grupos económicos mais desfavorecidos. Em Portugal é cerca de 70 a 90% nos adultos, e 50% nas crianças. Os dados da literatura sugerem que a taxa de aquisição da infecção é muito baixa na idade adulta e que a maioria das infecções é adquirida na infância (geralmente abaixo dos 5 anos), podendo persistir durante toda a vida se não for tratada. O maior factor de risco de aquisição da infecção na infância são as más condições sócioeconómicas. Outros indicadores de pobreza e de precárias condições de higiene como a partilha de camas e um grande número de irmãos constituem factores de risco adicionais. Etiopatogénese O estômago do homem e o de alguns primatas parecem ser os únicos reservatórios do Hp, não sendo conhecido qualquer reservatório ambiental. A fragilidade do Hp em condições laboratoriais sugere que a viabilidade da bactéria fora do hospedeiro é limitada, embora haja evidência sugestiva de que o microrganismo possa sobreviver no ambiente na sua forma cocóide. As unhas com sujidade e a boca são reservatórios importantes de Hp. A transmissão faz-se essencialmente por três vias: fecal-oral, oral-oral, gastro-oral. Como tal, a transmissão interfamiliar e institucional adquire um peso muito importante. De referir igualmente a transmissão através de doentes sujeitos a ressuscitação boca-a-boca e de leite de cabra não pasteurizado. A bactéria já foi detectada nas fezes de crianças malnutridas com trânsito intestinal muito rápido e já foi isolada a partir da placa dentária. A forma gastro-oral parece ser uma via de transmissão frequente entre crianças, ocorrendo particularmente em infantários e escolas, sobretudo através da emissão do conteúdo gástrico (vómito). A transmissão por via endoscópica também foi documentada quando não são cumpridas as regras de desinfecção e esterilização dos endoscópios. A água não tratada e a mosca doméstica poderão ser veículos de transmissão. A taxa de reinfecção em crianças tratadas, com idade superior a 5 anos, é apenas 2%. Associados à 530 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA infecção por Hp estão descritos a gastrite, a úlcera duodenal, a úlcera gástrica, o adenocarcinoma gástrico e o linfoma gástrico. Alguns estudos seroepidemiológicos têm sugerido um aumento de 2 a 6 vezes do risco de cancro gástrico em portadores de Hp. O risco de cancro gástrico é mais elevado em doentes com gastrite predominante no corpo gástrico, atrofia gástrica e metaplasia intestinal. Nos doentes com úlcera duodenal (que têm gastrite predominantemente no antro) não se desenvolve cancro gástrico. O Hp tem sido implicado como factor etiológico do linfoma MALT. A erradicação do Hp conduz à resolução completa de 75% dos linfomas MALT gástricos. Múltiplos estudos fazem referência à eventual acção dos mediadores inflamatórios circulantes consequentes à infecção pelo Hp com responsabilidade variável nas manifestações de algumas doenças extradigestivas (doença isquémica coronária, púrpura de Schönlein Henoch, anemia ferropénica, etc.). Manifestações clínicas da infecção por Helicobacter pylori A maioria das crianças infectadas é assintomática. Não existe nenhum quadro clínico específico que indique a necessidade de rastreio do Hp. Actualmente não está provada uma ligação entre gastrite por Hp e dor abdominal na ausência de úlcera péptica. Considerando que a dor abdominal recorrente ocorre em 15% das crianças em idade escolar, não devem estas crianças ser submetidas a testes não invasivos ou endoscopia para detectar uma infecção por Hp. Não há qualquer ligação entre a dor abdominal recorrente e a infecção por Hp. Diagnóstico Para o diagnóstico podem ser utilizados testes invasivos (que requerem endoscopia com biópsias) e testes não invasivos. 1) Testes invasivos: exame histológico, exame cultural (antibiograma), teste rápido da urease e PCR (reacção em cadeia da polimerase); 2) testes não invasivos: anticorpos no soro e sangue total, anticorpo na saliva, anticorpo na urina, antigénio nas fezes, teste respiratório com ureia marcada com 13C (os quais evidenciam sensibilidade e especificidade de 95% somente após os 5 anos de idade). A biópsia permite não só pôr em evidência as consequências da infecção por Hp (classificando a gastrite ao microscópio óptico), como também visualizar a própria bactéria, cultivá-la (o que parece ser fundamental, pois permite obter um teste de sensibilidade aos antibióticos), e fazer o teste rápido da urease. Nos doentes seguidos na Consulta de Gastrenterogia do Hospital Dona Estefânia tem sido verificada uma taxa de resistências muito alta em relação à claritromicina (44,8%) e ao metronidazol (19%) com 8,4% de resistências a estes 2 antibióticos, o que torna o antibiograma fundamental para a instituição da terapêutica. A detecção do Hp por técnicas de biologia molecular, (das quais a mais divulgada é a reacção de amplificação genética por método da PCR), evidencia elevadas sensibilidade e especificidade, permitindo a tipagem molecular de diferentes estirpes de Hp. Estão disponíveis muitos testes para o sangue total e soro, mas a variabilidade de precisão entre os kits faz com que a sua sensibilidade e especificidade oscile, nos diversos estudos, entre os 60 e os 93%. Por outro lado, a serologia não distingue entre infecção actual e infecção prévia, uma vez que o título de anticorpos desce lentamente após a cura. Portanto, a serologia não é adequada para monitorizar a resposta ao tratamento. Os testes na saliva e urina ainda são menos sensíveis e não podem ser recomendados. A pesquisa de antigénios nas fezes é um teste muito promissor para estudos de investigação epidemiológica, diagnóstico e avaliação do sucesso do tratamento. O teste respiratório, com elevadas sensibilidade e especificidade (>95%), tanto em adultos como em crianças acima dos 5 anos, pode ser influenciado pelo uso de antibióticos e de agentes supressores da acidez. Os resultados em crianças com idades inferiores a 5 anos podem ser influenciados, tanto positiva como negativamente, pela presença de organismos produtores de urease na cavidade oral ou por técnica incorrecta, mas a sua sensibilidade é superior a 90% no grupo dos 2-5 anos. CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori Em resumo, o diagnóstico da infecção por Hp deve basear-se somente na endoscopia com biópsias preferencialmente com exame cultural e teste de sensibilidade aos antibióticos, reservandose o teste respiratório para a avaliação da eficácia terapêutica. Notas importantes Somente se deve investigar infecção por Hp: quando os sintomas de dor abdominal e/ou vómitos forem sugestivos de doença orgânica (úlcera péptica/esofagite) e houver necessidade de endoscopia; se numa endoscopia for observada uma lesão sugestiva de linfoma MALT e após o tratamento de infecção por Hp na doença péptica ulcerosa. Não está indicada a investigação de infecção por Helicobacter pylori em situações de dor abdominal recorrente sem sintomas de dispepsia nas crianças assintomáticas, mesmo com história familiar de cancro gástrico ou com úlcera péptica recorrente familiar. Somente se deve instituir terapêutica antiinfecciosa de erradicação do Hp quando existir úlcera duodenal ou úlcera gástrica (rara), história anterior de úlcera péptica e anemia ferropénica refractária. 531 (2) OAM=O+A+Metronidazol (M) 20 mg/Kg/dia até 500 mg, 2x/dia; (3) OCM=O+C+M. As opções de 2ª linha (tetraciclinas, quinolonas, bismuto coloidal) ficam reservadas para as estirpes de Hp multirresistentes, em esquemas triplos ou quádruplos com duração de 14 dias. Recentemente, em adultos com estirpes multirresistentes, têm sido utilizados tratamentos duplos com doses elevadas de amoxicilina (4x750 mg) e omeprazol (4x40 mg), com taxas de erradicação de 84%. Estão descritos casos de crianças com anemia ferropénica refractária que responderam à terapêutica marcial só após a erradicação do Hp. Nestas crianças, e se não houver queixas de dor ou dispepsia que justifiquem uma endoscopia, poderá ser feito o teste respiratório para rastreio da infecção por Hp. Nos doentes com infecção por Hp, tratados, a resposta à terapêutica deve ser avaliada com teste não invasivo de confiança. O teste respiratório da ureia marcada com 13C é de confiança nas crianças acima dos 5 anos de idade. BIBLIOGRAFIA Cabrita J, Oleastro M, Matos M, et al. Features and trends in Helicobacter pylori antibiotic resistance in Lisbon area, Portugal (1990-1999). Journal of Antimicrobial Chemothe- Não há indicação para tratar uma infecção por Helicobacter pylori nas crianças assintomáticas, mesmo com antecedentes familiares de úlcera péptica ou cancro gástrico, ou nos casos de dor abdominal recorrente não acompanhada de queixas dispépticas, diarreia persistente ou dispepsia não ulcerosa. rapy, 2000; 46: 1029-1031 Czinn SJ. Helicobacter pylori diagnostic tools: Is it in the stool? J Pediatr Gastroenterol Nutr 2005; 146: 164-167 Gold BD, Colletti RB, Abbott M et al. Helicobacter pylori infection in children: recommendations for diagnosis and treatment. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2000; 31: 490-497 Shah R. Dyspepsia and Helicobacter pylori. BMJ 2007; 334: 4143 Esquemas de tratamento da infecção por Helicobacter pylori Opções de 1ª linha (tratamentos com duração de 7 dias com 3 medicamentos e de acordo com o teste de sensibilidade aos antibióticos ou a prevalência de resistência na região): (1) OAC = Omeprazol (O) 1 mg/Kg/dia até 20 mg, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/Kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/Kg/dia até 500 mg, 2x/dia; Sherman P, Czinn S, Drumm B, et al. Helicobacter pylori infection in children and adolescents: working group report of the first world congress of pediatric gastroenterology and nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 35: S128S133 532 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 107 GASTRENTERITE AGUDA Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral Definição e importância do problema A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico resultante da inflamação aguda das mucosas do estômago e do intestino, o qual se traduz por vómito e diarreia. A diarreia é um aumento da excreção fecal de água e electrólitos reflectindo, dum modo geral, alteração do transporte hidro-elecrolítico no intestino delgado e cólon, de causa infecciosa (maioria das vezes), ou em relação com perturbações da motilidade intestinal, menos frequentemente. Trata-se duma patologia muito frequente em idade pediátrica, estimando-se que nos países industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios por ano em cada criança com idade inferior a 5 anos. No Hospital Dona Estefânia cerca de 30% dos internamentos, independentemente da respectiva duração, têm como causa a GEA. Nos países em vias de desenvolvimento a GEA é responsável anualmente por cerca de 5 milhões de óbitos em crianças com menos de 5 anos. Fisiopatologia O transporte de água é um fenómeno passivo e secundário a gradientes osmóticos através da parede intestinal; os referidos gradientes osmóticos podem ser gerados pelo transporte activo de electrólitos, ou pela presença de solutos sem electrólitos, como açúcares e aminoácidos. Em circunstâncias de normalidade existe uma secreção activa que contribui para manter a fluidez do conteúdo intestinal facilitando, designadamente, a eliminação de subtâncias potencialmente citotóxicas. Esta secreção ocorre simultaneamente com uma absorção hidro-electrlítica sendo que o balanço entre absorção e secreção depende de mecanismos hormonais “informando” o intestino sobre a necessidade do organismo em sal e água (aldosterona, VIP, HAD, etc.). Normalmente predomina o processo de absorção; em situações de doença diarreica predomina a secreção. Neste processo o electrólito mais importante é o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a partir do lume intestinal como resultado dum gradiente condicionado, por sua vez, pela saída de Na+ da célula para o meio interno (plasma), processo comparticipado por uma bomba de sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na membrana baso-lateral. A saída activa de Na+ condiciona a electronegatividade necessária para a entrada de Na+ a partir do lume intestinal. Acompanhando a entrada de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos, di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais biliares utilizando, para tal, determinados transportadores que existem na membrana das células de “bordadura em escova”. O Cl- e o K+ também são transportados, entrando para o interior da célula. No processo de secreção tomam parte o hidrogénio, o bicarbonato e, também o cloro. Nos processos de transporte iónico (entrada na célula) participam mediadores intracelulares de regulalção: por ex. AMPc, cálcio, etc.. Na prática, são descritos três grandes mecanismos fisiopatológicos da doença diarreira: osmótico, secretório, e alteração da motilidade intestinal, sendo que poderá haver associações dos mesmos em função do factor etiológico. Na diarreia osmótica a lesão da mucosa intestinal provoca uma diminuição da capacidade digestiva de absorção, fazendo com que os nutrientes não absorvidos no intestino delgado e atingindo intactos o cólon, exerçam uma força osmótica induzindo a saída de água e, consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais grave quanto maior a concentração destes solutos. Como na maior parte dos casos o nutriente em questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir o cólon, é digerido pelas bactérias da flora normal produzindo partículas menores exercendo assim uma maior força osmótica, agravando a diarreia. CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda A diarreia, em geral, não é abundante e melhora quando se suspende a ingestão do nutriente considerado agressor. Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são os resultantes de deficiência (congénita ou adquirida) de dissacaridases (lactose e sucrase – isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose, da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis (sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio). A diarreia secretória é, em geral, provocada por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas formas (adesão/invasão do epitélio, produção de enterotoxinas, citocinas), causando um aumento da secreção das células intestinais (por activação do AMP-C e GMP-C). A diarreia também pode ser motivada por alterações da motilidade do tracto gastrintestinal as quais conduzem secundariamente a alteração no transporte hidro-electrolítico no intestino delgado e no cólon. Embora sejam descritos separadamente estes diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com alteração da absorção e formação de diarreia osmótica; mas, simultaneamente determinada proteína que faz da composição do rotavírus, que actua como enterotoxina, induz aumento de secreção das células intestinais. Nota: A diarreia por alteração da motilidade sem repercussão no transporte hidro-electrolítico enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos, cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episódios de diarrreia aguda com períodos de normalidade) integrando a entidade designada por “diarreia crónica não específica”, abordada no capítulo 111. Factores etiológicos Nos países industrializados a causa mais frequente de GEA é a infecção por rotavírus explicando cerca de 50% dos casos em crianças com menos de 2 anos, sobretudo no Inverno. Outros vírus como o adenovírus, o coronavírus, o calicivírus e os astrovírus têm sido igualmente implicados, embora menos frequentemente. 533 Os agentes bacterianos são menos frequentes nos países industrializados. O Campylobacter jejunii, a causa mais frequente das infecções bacterianas nos países industrializados, está muitas vezes associado a dores abdominais e a fezes com sangue. A Yersinia origina quadro semelhante. A Shigella e algumas espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo disentérico caracterizada por diarreia profusa com sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode igualmente existir febre alta e convulsões. O vibrião colérico e a E. coli com produção de enterotoxinas podem originar diarreia abundante e desidratação grave surgidas de modo agudo. A giardíase provoca na sua forma característica diarreia intermitente e má absorção de gorduras. Manifestações clínicas A apresentação clínica da GEA depende de vários factores, nomeadamente a idade, o estado imunitário e nutricional do hospedeiro, assim como as características do agente infeccioso (Quadro 1) . Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia, assim como as características e duração dos mesmos. No exame objectivo é necessário pesquisar sinais de desidratação: mucosas secas, diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea), depressão da fontanela anterior, olhos encovados, ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso fraco e hipotensão. Se a criança apresentar avidez pela água apesar de desidratação aparentemente ligeira, há que considerar a hipótese de se tratar de desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à custa de soluções hipertónicas. Frequentemente existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as fezes são ácidas, pela presença de hidratos de carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode surgir eritema perianal. O estado nutricional deverá ser avaliado estando o respectivo compromisso em relação com má absorção de proteínas, gordura ou hidratos de carbono. Diagnóstiico diferencial No que respeita à destriça entre GEA de causa QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica Micróbio Rotavírus Transmissão Fecal-oral Respiratória Fecal-oral Água Crustácios Fecal-oral Incubação Duração 2-4d 3-8d Calicivírus (E. coli) EHEC (E. coli) ETEC (E. coli) EIEC (E. coli) EPEC (E. coli) EAEC (E. coli) Salmonella Adenovírus Norwalk 3-10d 1-2d 5-12d 2d 1-4d 5-6d Fecal-oral; água Respiratória possível Carne mal cozida; água Água 12-72h 4-8d 1-8d 3-6d 10h-6d 1-5d Fecal-oral; água; alimentos Igual 10h-6d Igual Ovos, carne; lacticínios; água Igual 6-48h >14d 2-7d Shigella Fecal-oral; alimentos 1-7d 48-72h Dor; febre alta; diarreia com muco e sangue Yersinia Fecal-oral; carne porco; água; leite 4-6d 1-46d Campylobacter Aves; água; leite 1-7d 5-7d Giardia lamblia Fecal-oral; água; alimentos 1-4sem >1sem Vómitos, febre, dor; diarreia com sangue, muco e leucócitos Febre; dor; diarreia com sangue; Dor; flatulência variável variável 2-14d 1-20d 0-5d 30m-8h 5-7d 1-2d TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Astrovírus 534 Clínica Vómitos; febre baixa; diarreia aquosa Diarreia Vómitos Diarreia Vómitos; febre Dor abdominal Vómitos; dor Febre baixa Dor, febre (30%) Diarreia sanguinolenta Vómitos; dor; febre baixa; diarreia aquosa Febre; diarreia com leucócitos Diarreia aquosa grave Clostridium dificille Criptosporidium Vibrio cholerae S. aureus Fecal-oral; piscinas; água Marisco; água Alimentos Igual Vómitos; febre; dor; diarreia sanguinolenta Diarreia com sangue e muco; febre (raro) Vómitos; dor; diarreia aquosa Diarreia profusa Vómitos, dor Predisposição Hospitalização Infantário Época Inverno Idade <2A <4A Hospitalização Infantário Infantário Inverno Complicações Desidratação; intolerância aos HC; excreção crónica Invaginação intestinal <4A <4A SHU; colite hemorrágica; convulsões Viagens Países em desenvolvimento Idem Acloridria; mánutrição; anemia de células falciformes Infantário; viagens; piscinas Infantário Agamaglobuliné mia; acloridria; piscinas; infantário; pancreatite Hospitalização; antibioticoterapia; Infantário; piscinas; imunossupressão Viagens <2A Desidratação <4A Bacteriémia; meningite; osteomielite Verão Outono <5A Inverno <1A Bacteriémia; convulsão; SHU; perfuração; síndroma de Reiter Pseudo-apendicite; perfuração; invaginação; exantema; bacteriémia Bacteriémia; meningite; colecistite; pancreatite Má absorção de gorduras; diarreia crónica ou intermitente Verão Verão Outono Verão Diarreia crónica; portador crónico Diarreia crónica no imussuprimido Desidratação rápida Desidratação CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre diarreia osmótica e secretória Diarreia secretória Substâncias redutoras* (-) Na+ fecal >70 mEq/L pH fecal >6 Volume fecal >200 ml/dia Resposta ao jejum não melhoria Diarreia osmótica (+) <70 mEq/L <5 <200 ml/dia melhoria * A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntarse à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n. vírica e de causa bacteriana apresentam-se as seguintes características como orientação; 1) na GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes; febre mais raramente; 2) na GEA de causa bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente. Relativamente à destrinça entre diarreia secretória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é elucidativo. Tratamento A identificação do agente etiológico na maioria das vezes não é necessária porque a doença é autolimitada e o tratamento é idêntico independentemente da causa. As medidas de suporte consistem em: 1º) Usar soro de hidratação oral para compensar a desidratação estimada (em 3 a 4 horas). 2º) Usar solução hipo-osmolar (60mmol/L de sódio e 75-110mmol/L de glicose) que promove a reabsorção de sódio e água no intestino delgado. Bebidas com excesso de hidratos de carbono (cuja concentração exceda a de sódio em 2/1) agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão no intestino. O chá também não é ideal pois tem uma baixa concentração de sódio e potássio. Sempre que possível tentar a hidratação oral com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo na criança que não aparente sinais de desidratação. Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5ml) em cada 5 minutos; e se houver tolerância pode aumentar-se para 15-30ml em cada 5-10 minutos. 535 Posteriormente, quando a criança se tornar mais cooperante, deverá ingerir doses crescentes durante cerca de 4 horas. 3º) Não interromper o aleitamento materno oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou diluídas não se justifica 4º) Retomar o regime alimentar habitual após as 4 horas de reidratação. Nas crianças com diarreia moderada a grave deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta para minorar os efeitos da deficiência transitória de dissacaridases por lesão das células intestinais, o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após a diarreia.A intolerância à lactose pode ser confirmada pela presença de substâncias redutoras nas fezes. 5º) Prevenção de nova desidratação com suplementos de soluto enquanto existir diarreia (oferecer 10ml/Kg por cada dejecção) e vómitos (2ml/Kg por episódio). 6º) Evitar medicação desnecessária. Os antimuscarínicos (ex: loperamida) alteram a motilidade intestinal, diminuindo a diarreia e a distensão abdominal; no entanto, na infecção por bactérias invasivas ou produtoras de citotoxinas é favorecido o contacto da bactéria com a mucosa intestinal com agravamento do quadro clínico. Por consequência, não estão recomendados nas criança. Os antibióticos devem ser usados em casos específicos para diminuir a duração da doença e a excrecção do microrganismo, sendo necessária uma coprocultura com antibiograma antes de inciar a terapêutica. Nas situações com isolamento de Salmonella a antibioticoterapia pode prolongar o tempo de excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda induzir o aparecimento de estirpes resistentes. Está indicada apenas na febre tifóide ou na gastrenterite acompanhada de sinais de doença sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a três meses, situações com imunodeficiência, doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos estão indicados os seguintes antimicrobianos: ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprimsulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona. Situações com desidratação correspondendo a perda de peso superior a 5%, incapacidade para se 536 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA proceder a reidratação no domicílio, não tolerância a reidratação oral, e agravamento da situação clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm indicação para internamento hospitalar, em geral de curta duração na ausência de complicações. A reidratação e a manutenção da hidratação até que haja resolução da diarreia, assim como o suprimento nutricional adequado, são as pedras fundamentais do tratamento. A reintrodução da alimentação deve fazer-se atempada e imediatamente uma vez conseguida a hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente com leite materno devem manter o aleitamento. As que já tenham iniciado alimentos sólidos devem manter o seu regime habitual. Deve começar-se com alimentos de absorção rápida (arroz, trigo) e banana (suplemento de potássio). A reintrodução da alimentação deve ser fraccionada e em curtos intervalos para garantir melhor absorção. Os alimentos com elevado teor de açúcar não são aconselhados porque podem causar diarreia osmótica. Quanto a medidas gerais em relação à alimentação: evicção de carne mal cozinhada, de leite não pasteurizado, de água não tratada; as pessoas que manuseiam carne crua deverão lavar bem as mãos antes de contactar com uma criança. Em relação à criança viajante para áreas endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo, saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm utilidade no tratamento e prevenção da doença intestinal (Capítulo 54). Prevenção Hoekstra J H. Oral rehydration solution containing a mixture Certas medidas gerais são importantes na prevenção da transmissão de infecções em infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente, a avaliação periódica do estado de saúde e de imunização das crianças e dos prestadores de cuidados. São fundamentais os seguintes procedimentos: regras de limpeza e desinfecção de instalações sanitárias, lavagem das mãos frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e cuidados na confecção dos alimentos, formação em serviço e vigilância do desempenho dos trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção diárias de todos os brinquedos, e comunicação dos surtos de infecção às autoridades de saúde. A exclusão ou isolamento de crianças nestes locais, na maioria dos casos não é necessária uma vez que a transmissão já ocorreu antes do início dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos em que o isolamento é necessário o que é determinado pela autoridade de saúde: diarreia com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli produtora de toxina semelhante à Shigella (incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se verificarem duas coproculturas negativas para cada caso. BIBLIOGRAFIA Freeedman SB, Adler M, Seshadri R, Powell EC. Oral Ondasetron for gastroenteritis in a pediatric emergency department. NEJM 2006; 354: 1698-1705 Guarino A. Persistent diarrhea. In: Walker WA, et al. (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Ontário: B C Decker, 2004: 166-193 of non-digestible carbohydrates in the treatment of acute diarrhea: a multicenter randomized placebo controlled study on behalf of the ESPGHAN working group on intestinal infections. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2001; 39: 239-245 Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea. Current Paediatr 2003; 13: 95-100 O’Ryan M, Diaz J, Mamani N, et al. Impact of rotavirus infections on outpatient clinic visits in Chile. Pediatr Infect Dis J 2007; 26: 41-45 Pickering LK. Approach to patients with gastrointestinal tract infections and food poisoning. In: Chernick V, et al. (eds). Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998: 610-637 Sandhu B K. Practical guidelines for the management of gastroenteritis in children. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2001; 33: S36-S39 CAPÍTULO 108 Diarreia crónica 108 DIARREIA CRÓNICA Gonçalo Cordeiro Ferreira Definição Define-se como crónica toda situação de diarreia com duração superior a 15 dias. As diarreias crónicas podem acompanhar-se, ou não, de síndroma de má absorção. Etiopatogénese O Quadro 1 resume as principais causas de diarreia crónica. A diarreia crónica que se acompanha de síndroma de má absorção pode ser explicada habitualmente por três situações de base: Má-digestão – Como resultado de insuficiência pancreática, ou incapacidade de formação de micelas por défice quantitativo de sais biliares no intestino, ou qualitativo (desconjugação por bactérias no intestino contaminado); nesta situação as fezes são moles, abundantes, gordurosas e fétidas caracterizadas por: esteatorreia intensa (20-30 g de gorduras fecais por dia), creatorreia (superior a 3g de azoto por dia, correspondendo a 20-30 % das proteínas ingeridas) e presença de produtos de fermentação de açúcares não absorvidos (cerca de 30 mmol por dia de ácidos voláteis). Má-absorção – Nestes casos a componente da digestão está preservada, mas há diminuição da capacidade de absorção de nutrientes por redução da superfície de absorção (lesão da mucosa nas enteropatias, ou redução da superfície total intestinal na síndroma do intestino curto). As fezes são moles ou líquidas, raramente gordas, por vezes ácidas (por grande aumento dos ácidos voláteis resultantes da fermentação, dos hidratos de carbono não absorvidos no delgado) e pela flora bacteriana do cólon. A esteatorreia é mo- 537 derada (< 10g por dia), excepto nas situações de défice selectivo da absorção de gorduras, bem como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando há um forte componente de enteropatia exsudativa. Fermentação – Nestas situações predominam os sintomas de má absorção de açúcares, a qual pode ser primária ou secundária (neste caso acompanhando as situações de redução das vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite). Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo ser detectada a presença directa de açúcares fecais pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest® > 1%). Apenas a sacarose não origina directamente substâncias redutoras nas fezes, necessitando de tratamento prévio destas por ácido clorídrico (Capítulo 107). Na diarreia crónica não acompanhada por má absorção podem surgir dois tipos de diarreia: Cólica – Caracterizada por fezes heterogéneas com pequeno volume e frequência aumentada, fétidas, com muco, e ocasionalmente com sangue e/ou pus. A esteatorreia está ausente bem como os ácidos voláteis; mas nas situações de inflamação importante da mucosa (doença inflamatória do intestino) há creatorreia importante por exsudação de proteínas. Estas diarreias são também ricas em sódio por diminuição da sua reabsorção cólica. Não específica – Caracterizada por fezes de volume e consistência muito variáveis, por vezes líquidas, por vezes pastosas, muito frequentemente com lienteria (restos alimentares); habitualmente as primeiras dejecções do dia são de características normais, piorando ao longo do dia; não há defecação durante o sono. Manifestações clínicas A diarreia crónica acompanhada de má absorção traduz-se por restrição do crescimento estaturoponderal e, ao contrário do adulto em que o apetite está aumentado, na criança é acompanhada de anorexia, o que agrava a negatividade do balanço energético-proteico. Há também sintomas e sinais relacionados com a má absorção de micronutrientes como o ferro (ane- 538 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Causas de diarreia crónica Com má-absorção intestinal Defeito da Digestão a) Insuficiência pancreática exócrina: Fibrose quística Síndroma de Schwachmann b) Defeito da micelização dos sais biliares: Colestase Pseudo-obstrução intestinal crónica ou ansa cega intestinal (por desconjugação dos sais biliares pelo crescimento bacteriano intestinal) Defeito da Absorção a) Redução da superfície total de absorção: Síndroma do intestino curto b) Lesão da parede (enteropatia): Doença celíaca Giardíase Intolerância às proteínas do leite de vaca Atrofia microvilositária Enteropatia autoimune Enteropatia eosinofílica c) Defeitos selectivos: 1)Absorção de açúcares Primários: Intolerância à lactose Défice de sucrase isomaltase Má-absorção de glucose-galactose Secundários: Intolerância à lactose (Síndroma pós gastrenterite) 2) Absorção de gorduras Abetalipoproteinemia Doença de Anderson Enteropatia exsudativa Linfangiectasia intestinal mia ferropénica), o cálcio (raquitismo, hipocalcémia), o ácido fólico (anemia macrocítica), as vitaminas lipossolúveis A (baixa da visão nocturna, pele seca), D (raquitismo), E (diminuição dos reflexos osteotendinosos, oftalmoplegia,ataxia), K (alterações da coagulação), e ainda do zinco (alterações cutâneas periorificiais, alterações imunológicas, perda da sensação gustativa). A má absorção proteica pode levar a situações de hipoalbuminémia e edema, enquanto a má absorção dos açúcares origina fermentação cólica com distensão abdominal e eritema perianal causado pelas fezes ácidas. Sem má-absorção intestinal Colite a) Inflamatória Doença inflamatória do intestino b) Infecciosa Salmonella Shigella Yersinia Campylobacter E. coli patogénicas Medicamentos / produtos dietéticos Abuso de laxantes Abuso de sorbitol (pastilhas,sumos de fruta) Antibióticos Funcionais a) Diarreia crónica não específica b) Síndroma do cólon irritável (com predomínio de diarreia) Diagnóstico Perante um quadro de diarreia crónica há que avaliar o impacte sobre o crescimento ponderal e estatural(neste último caso a repercussão é mais tardia). Se se verificar uma desaceleração ou “queda” dos percentis de peso e estatura, há que suspeitar de síndroma de má-absorção; e, para além dos exames destinados a estabelecer um diagnóstico etiológico específico, importa ainda estudar a repercussão funcional que um quadro de má absorção de macro e micronutrientes, pode causar. (Quadro 2). CAPÍTULO 108 Diarreia crónica Tratamento Está dependente do diagnóstico etiológico, podendo ser de evicção dietética (doença celíaca, IPLV, intolerância aos açúcares) transitória ou permanente, ou farmacológica (giardíase, doença inflamatória do intestino) ou suplementação enzimática pancreática (fibrose quística). Nas situações em que a diarreia se acompanha de desnutrição acentuada há que, independentemente do tratamento etiológico, promover a reabilitação nutricional através de técnicas de QUADRO 2 – Exames complementares na diarreia crónica Fezes • Grau de digestão • Gorduras fecais (na suspeita de esteatorreia) • pH e substâncias redutoras (fezes frescas) • Ionograma fecal (suspeita de diarreia secretória) • Alfa 1 antitripsina fecal (enteropatia exsudativa) • Quimiotripsina e Elastase fecal (suspeita de insuficiência pancreática) • Coprocultura • Pesquisa de quistos de Giardia lamblia ou de antigénio de Giardia Sangue • Anticorpos “marcadores” de doença celíaca • IgE específica para proteínas do leite de vaca • Prova da d-xilose (avaliação indirecta da integridade da mucosa) • Hemoglobina, Ferritina • Cálcio, Fósforo, Fosfatase Alcalina • Tempo de Protrombina • Colesterol, Triglicéridos • Albumina • Velocidade de sedimentação (doença inflamatória do intestino) • Doseamento de vitaminas A, E, D e Zinco (mais raramente) Outros • Endoscopia alta com biópsia do intestino proximal (enteropatias) • Colonoscopia (doença inflamatória do intestino, colite alérgica) • Prova do suor (fibrose quística) • Prova de hidrogénio expirado (intolerância primária ou secundária aos açúcares) 539 suporte como alimentação parentérica exclusiva ou com alimentação entérica. As técnicas de suporte nutricional usando a alimentação entérica (quer contínua quer nocturna, por bomba de infusão) são muito eficazes, permitindo incrementar a absorção de nutrientes graças ao emprego de fórmulas semi-elementares, ou mesmo fórmulas com dipéptidos ou aminoácidos livres. São descritas nos capítulos seguintes, com mais pormenor, três situações clínicas frequentes que cursam com diarreia crónica na criança: a doença celíaca, a giardíase e a diarreia crónica inespecífica BIBLIOGRAFIA (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”). 540 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 109 DOENÇA CELÍACA Gonçalo Cordeiro Ferreira Definição A doença celíaca é hoje definida como uma doença autoimune desencadeada pela exposição ao glúten (mais propriamente à sua fracção gliadina) em indivíduos geneticamente susceptíveis (possuidores de antigénios de histocompatibilidade –HLA- de classe II DQ2 e DQ8). O órgão alvo desta doença é o intestino proximal, constituindo-se uma lesão da respectiva mucosa caracterizada por um infiltrado linfoplasmocitário na lâmina própria, infiltrado linfocitário intra-epitelial, hiperplasia das criptas e atrofia das vilosidades. Assim, a forma “clássica” de apresentação desta doença traduz-se por uma síndroma de máabsorção alguns meses após a introdução do glúten no regime alimentar (presente nas farinhas de trigo, centeio ou cevada), com diarreia crónica e/ou vómitos, inflexão nas curvas ponderais e estaturais (primeiro naquelas, depois nestas), distensão abdominal, atrofia das massas musculares e tecido celular subcutâneo, anorexia e alteração do humor (irritabilidade, apatia). (Figura 1) No entanto, e sobretudo nas crianças mais velhas, as manifestações podem ser mais atípicas (paucissintomáticas) ou mesmo predominantemente extraintestinais (Quadro 1) Num estudo recente, em 161 crianças com a doença e seguidas com regularidade nos últimos três anos na Unidade de Gastrenterologia do Hospital Dona Estefânia, 3,7% apresentavam quadros clínicos predominantemente extraintestinais. Aspectos epidemiológicos Rastreios sistemáticos em populações europeias FIG. 1 Lactente com doença celíaca. Distensão abdominal relacionável com meteorismo. (NIHDE) avaliando a presença de marcadores serológicos de doença celíaca demonstraram uma maior prevalência desta (1/140 a 1/300) em relação a anteriores estudos, baseados unicamente em formas sintomáticas (1/1000 a 1/2500). Assim, considera-se hoje que a “condição celíaca” constitui como que um “icebergue”, do qual a doença celíaca sintomática (clássica ou paucissintomática) constitui a ponta visível. Abaixo do limite da visibilidade encontram-se as chamadas formas de doença celíaca silenciosa (sem sintomas, mas com alteração da mucosa demonstradas por biópsia intestinal) e doença celíaca latente em que não há sintomas nem alterações da mucosa intestinal, embora com desenvolvimento, ao longo do tempo, de achados histológicos característicos (como no caso de familiares de 1º grau de doentes celíacos ou em grupos de risco. (Quadro 2) Diagnóstico O índice de suspeita relativamente a doença celíaca deve ser bastante apurado, principalmente para as formas paucissintomáticas ou extraintestinais , bem como para os grupos de risco. O estudo inicial passa pelo estudo dos marcadores serológicos de classe IgA (antigliadina, antiendomísio e anti transglutaminase tecidual). Pela suas mais elevadas especificidade e sensibilidade as recomendações actuais preferem o uso dos marcadores anti transglutaminase tecidual (TGT) em detrimento dos antiendomísio CAPÍTULO 109 Doença celíaca 541 QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da doença celíaca QUADRO 2 – Grupos de risco de doença celíaca (obrigando a rastreio serológico) Dermatológicas • Dermatite herpetiforme, alopécia, vitíligo Hematológicas • Anemia isolada (ferropénica ou macrocítica por défice de ácido fólico) • Anemia hemolítica autoimune, trombocitopenia autoimune • Trombocitose (hipoesplenismo) Familiares de 1º grau Dermatite herpetiforme Diabetes tipo I Tiroidite autoimune Síndroma de Sjögren Endocrinológicas • Diabetes mellitus tipo I, tiroidite autoimune • Atraso estatural isolado, atraso pubertário isolado Neurológicas • Epilepsia (com calcificações occipitais), ataxia Hepáticas • Hipertransaminasemia, hepatite autoimune Orais • Aftas recorrentes • Hipoplasia do esmalte dentário (dentes definitivos) Osteo-articulares • Osteoporose, artralgia/artrite Ginecológicas • Infertilidade, abortos de repetição Psiquiátricas • Ansiedade/depressão (mais caros e não quantificáveis) ou dos antigliadina (AAG) (menos específicos). Em caso de défice de IgA podem ser analisados os AAG de classe IgG. O diagnóstico definitivo deve ser feito pela biópsia jejunal por endoscopia alta ou com cápsula de Watson. As recomendações da ESPGAN de 1970 previam a realização posterior de mais 2 biópsias até ao diagnóstico definitivo da doença: uma segunda biópsia alguns anos após a primeira, com um regime estrito de evicção de glúten e que deveria estar normal, e uma terceira biópsia após período maior ou menor de sobrecarga com glúten, devendo haver critérios de recaída histológica. Estes critérios foram revistos em 1989, indicando que essas 2 biópsias suplementares só estariam indicadas em crianças com menos de 2 anos, em que a dieta foi iniciada sem realização de biópsia, ou com achados da biópsia não Hemossiderose pulmonar Síndroma de Down Nefropatia IgA Artrite reumatóide específicos, ou sem resposta clínica conclusiva à exclusão do glúten. Nos restantes, casos após a primeira biópsia, a monitorização (para além da clínica) deverá ser feita com os marcadores serológicos (normalização com a dieta, reaparecimento com a sobrecarga). Tratamento O tratamento baseia-se na evicção completa do glúten da dieta para toda a vida. Os riscos de abandono da dieta, o que sucede muitas vezes na adolescência, prendem-se com a possibilidade de aparecimento na idade adulta de doenças neoplásicas (adenocarcinoma do delgado, linfoma não Hodgkin do tubo digestivo), ou outras de grande morbilidade (osteoporose, infertilidade ou abortos de repetição, doença neurológica ou psiquiátrica). Nas formas clássicas com desnutrição grave na data do diagnóstico é necessário recorrer a técnicas de suporte nutricional, (usando alimentação entérica contínua, ou alimentação fraccionada) empregando sempre fórmulas sem lactose ou semielementares, para além do suprimento de minerais (principalmente ferro) e de vitaminas deficitários. BIBLIOGRAFIA (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”). 542 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 110 GIARDÍASE do trofozoíto no aspirado duodenal, ou na própria biópsia intestinal (coloração pelo método de Giemsa). A detecção de quistos nas fezes é muito difícil pela excreção descontínua do parasita, pelo que se torna necessário proceder a colheitas sucessivas de amostras. Gonçalo Cordeiro Ferreira Tratamento Aspectos epidemiológicos A infestação intestinal pelo protozoário Giardia lamblia é a causa mais comum de diarreia de causa parasitária nos países desenvolvidos. Pode aparecer em qualquer idade, mas é especialmente prevalente nas crianças mais pequenas, sobretudo quando frequentam creche ou jardim de infância. Nas crianças mais velhas pode associar-se a défice imunitário, nomeadamente de IgA. Após a ingestão da Giardia, 25-50 % das crianças tornam-se sintomáticas, 5-15% tornam-se excretoras assintomáticas (por períodos superiores a 6 meses) e as restantes não evidenciam qualquer alteração. Manifestações clínicas A Giardia lamblia causa uma inflamação focal da mucosa do intestino delgado com atrofia parcial das vilosidades. Estas alterações levam a uma diarreia crónica persistente ou intermitente com anorexia, distensão abdominal, ou dor abdominal na criança mais velha; e, se o diagnóstico se atrasar, perda de peso e anemia. A diarreia pode ter algum teor de gordura, ser fétida, mas não contém habitualmente sangue ou muco. A presença de intolerância secundária à lactose (que pode persistir até algum tempo após a erradicação da Giardia) origina fezes mais líquidas e ácidas. Diagnóstico O diagnóstico faz-se pela demonstração nas fezes de quistos ou antigénio (por ELISA) de Giardia, ou É apenas recomendado para as infestações sintomáticas. Utiliza-se o metronidazol na dose de 15 mg/Kg/dia em 2-3 tomas diárias durante 5 dias ou o tinidazol em dose única de 40 mg/kg. BIBLIOGRAFIA (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”). CAPÍTULO 111 Diarreia crónica não específica 111 DIARREIA CRÓNICA NÃO ESPECÍFICA Gonçalo Cordeiro Ferreira Aspectos epidemiológicos A diarreia crónica não específica é um quadro de causa não orgânica o qual se insere na patologia funcional do tubo digestivo, classificando-se na alínea G 3 dos chamados critérios de Roma II (alterações funcionais gastrintestinais em idade pediátrica). É a causa mais frequente de diarreia crónica na infância, tendo início entre os 6 meses e os 3 anos de idade, desaparecendo entre os 2 anos (nos casos de começo mais precoce) e os 4 anos. Manifestações clínicas A diarreia crónica não específica revela-se muitas vezes após um episódio de diarreia aguda ou de uma infecção respiratória medicada com antibióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia com 5-6 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes com muco ou restos alimentares não digeridos (lienteria). O tipo de dejecções varia ao longo do tempo, com períodos sem diarreia ou até com obstipação. Ao longo do dia, é habitual as primeiras dejecções serem mais formadas, seguindo-se fezes mais líquidas. Não há dejecções durante o sono. Não se encontra eritema do períneo nem distensão abdominal. A criança apresenta um bom estado geral, com humor e vitalidade conservados, sem perda de peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma alimentação muito estrita e com uma dieta “anti diarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar ligeira inflexão da curva ponderal). 543 As causas deste quadro permanecem ainda inexplicadas admitindo-se que possa haver uma alteração da motilidade digestiva levando a uma maior rapidez do trânsito intestinal com a chegada ao cólon de uma maior quantidade de líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia secretória. Esta resposta motora inapropriada pode ser desencadeada pela percepção de determinados estímulos, quer a nível do sistema nervoso central, quer a nível periférico, mediados ou não por fenómenos inflamatórios locais. Os estímulos podem ser de origem luminal, incluindo componentes exógenos da dieta (como o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com consumo exagerado de sumos de fruta industriais), ou factores de tensão emocional relacionados com o ambiente psicossocial. Diagnóstico O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo efectuar-se um mínimo de exames complementares, os quais podem incluir a avaliação do grau de digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um teste de H2 expirado sob regime com lactose para excluir intolerância a este dissacárido (ou uma prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem revestir-se de utilidade. Tratamento Em primeiro lugar, deve tranquilizar-se os pais, explicando-lhes que se trata de uma situação benigna e limitada, a qual não afectará o crescimento da criança. Em segundo lugar, deve retomar-se uma alimentação normal, sem recurso a dietas de exclusão (ditas adstringentes“anti-diarreicas” que só conduzem, pela monotonia, a anorexia). O suprimento de sumos de fruta deve ser limitado, devendo aumentar-se a ingestão de gorduras (azeite) e de fibras solúveis pelo seu efeito de promoção da diminuição da velocidade do trânsito no intestino delgado, com melhoria sintomática. Não está aconselhado o uso de produtos antidiarreicos. 544 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA BIBLIOGRAFIA (Capítulos 108 a 111) Afonso I, Santos F, Cabral J et al. Presentación extraintestinal de la enfermedad celiaca. Pediatrika 2004; 24: 42 Baldassano RN, Liacouras CA. Chronic diarrhea: a practical approach to the pediatrician. Pediatr Clin North Am 1991; 38: 667-86 Barker CC, Mitton C, Jevon G, Mock T. Can tissue transglutaminase antibody titers replace small bowel biopsy to diagnose celiac disease in select pediatric 112 DOENÇA INFLAMATÓRIA DO INTESTINO populations? Pediatrics 2005; 115: 1341-1346 Catassi C, Ratsch IM, Fabiani E. et al. Coeliac disease in the Isabel Afonso year 2000 : exploring the iceberg. Lancet 1994; 343: 200-2033 Cordeiro-Ferreira G, Casella P. Trastornos funcionales de la motilidad intestinal. In : Tojo R. (ed). Tratado de Nutrición Pediátrica. Barcelona : Doyma SL , 2001; 817-24 Definição e importância do problema Heyman MB. Committee on Nutrition. Lactose intolerance in infants, children and adolescents. Pediatrics 2006; 118: 1279-1286 Hill I, Dirks M, Liptak G et al. Guideline for the diagnosis and treatment of celiac disease in children : recommendations of the North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. JPGN 2005; 40: 1-19 Oberhuber G, Kastner N, Stolte M. Giardiasis : a histological analysis of 567 cases. Scand J Gastroenterol 1997 ; 32 : 48-51 Pickering LK, Engelkirk PJ. Giardia lamblia. Pediatr Clin North Am 1988 ; 35 : 565-77 Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S et al. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 (sup 2) II60-118 Vanderhoof JA, Diarrhea In Wyllie R., Hyams JS (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Philadelphia: WB Saunders, 1999; 32-42 Walker-Smith JA, Guandalini S, Schmitz J et al. Revised criteria for diagnosis of coeliac disease. Report of the working group of the European Society of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. Arch Dis Child 1990; 65: 909-11 Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric Gastrointestinal Direase. Hamilton, Ontario, BC: Decker, 2004 A designação “doença inflamatória do intestino” (DII) inclui duas doenças crónicas em que se verifica inflamação do aparelho digestivo: colite ulcerosa e doença de Crohn. Apesar de haver alguns factores comuns a estas doenças, existem características específicas a cada uma delas que permitem distingui-las. Iniciam-se cedo na vida adulta, com apresentação na idade pediátrica em cerca de 20% dos casos. Caracterizam-se por haver, em alternância, períodos de remissão e de recaída, sendo a gravidade muito variável. A etiologia ainda não está bem definida parecendo, no entanto, haver vários factores intervenientes. De acordo com estudos genéticos recentes (2007) demonstrou-se que os genes PHoxeb, NCF4 e ATG16L1 constituem factores de risco de contrair doença de Crohn. Vários estudos sugerem que existe uma predisposição genética importante, admitindo-se o papel de genes dos cromossomas 12 e 16, podendo igualmente estar implicados factores infecciosos e imunológicos. Parece haver maior risco de neoplasias. Estima-se uma prevalência de 100 casos por 100.000 habitantes nos EUA com início dos sintomas em geral entre os 15 e 25 anos, período a que corresponde o pico de incidência. A longevidade não parece estar afectada. Fisiopatologia A inflamação crónica no intestino leva a várias alterações fisiopatológicas que resultam essencial- CAPÍTULO 112 Doença inflamatória do intestino mente em diarreia, enteropatia exsudativa, hemorragia, dor abdominal e estenoses. É importante o papel das citocinas e dos eicosanóides pró-inflamatórios os quais aumentam a permeabilidade vascular e originam vasodilatação, provocando secreção de electrólitos e aumento da contractilidade do músculo liso. O epitélio inflamado leva a perda de proteínas. As citocinas promovem o recrutamento e a actividade de células formadoras de colagénio, levando à proliferação de tecido fibroso com consequente espessamento da parede e formação de estenoses. 1. Doença de Crohn O envolvimento do intestino delgado estabelece o diagnóstico da doença de Crohn. Classicamente, o íleo terminal é o segmento atingido com maior frequência, embora qualquer área do tracto gastrintestinal desde a boca ao ânus incluindo, claro está, o esófago e o estômago, possam estar envolvidos. Os termos sinónimos são ileíte terminal, ileocolite ou enterocolite granulomatosa. O intestino apresenta-se espessado, nodular, muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas sem caseificação são muito característicos. Quando a inflamação, que é transmural, se estende para além da serosa, podem existir fístulas para estruturas adjacentes, como o intestino, bexiga, vagina ou períneo. Esta doença tem características de descontinuidade quanto às áreas afectadas, manifestandose pela alternância de zonas sãs com zonas afectadas. Nas crianças em cerca de 60% dos casos existe doença ileocólica podendo, no entanto, ocorrer envolvimento isolado do cólon nalguns doentes. Calcula-se uma incidência anual de 6 casos por 100.000 habitantes. Manifestações clínicas Discriminam-se as manifestações clínicas mais típicas por ordem decrescente de frequência: – Dor abdominal – Perda de peso – Diarreia – Sangue nas fezes – Lesões perianais – Febre 545 – Restrição do crescimento – Úlceras orais – Artralgia / artrite – Lesões cutâneas 2. Colite ulcerosa Ao contrário da doença de Crohn em que a inflamação é transmural, o processo inflamatório na colite ulcerosa localiza-se apenas na mucosa. Inicia-se praticamente sempre no recto, em continuidade (isto é, sem zonas afectadas intercaladas com zonas não afectadas), atingindo extensões variáveis e diminuindo de gravidade em direcção ao cego. São frequentes os abcessos das criptas, as alterações da arquitectura e a depleção das células caliciais. Calcula-se uma incidência anual de 2 casos/ 100.000 habitantes. Manifestações clínicas As manifestações clínicas por ordem decrescente de frequência são: – Rectorragia – Diarreia – Dor abdominal – Perda de peso – Artralgia / artrite – Febre – Restrição do crescimento Existem várias manifestações extraintestinais da DII que podem, quer preceder os sintomas gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses ou anos após o diagnóstico (Quadro 1). A DII deverá ser sempre admitida como hipótese de diagnóstico nas seguintes situações: dor abdominal crónica, hipocrescimento, diarreia crónica com ou sem sangue, rectorragias, história familiar de DII, anemia inexplicada na criança maior e adolescente, e manifestações extraintestinais, mesmo com manifestações gastrintestinais mínimas. Diagnóstico O diagnóstico da DII é sugerido pela combinação de manifestações clínicas, e confirmado por exa- 546 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da DII Cutâneas • Eritema nodoso • Piodermite gangrenosa • Doença perianal Hepáticas • Colangite esclerosante • Hepatite crónica • Litíase • Cirrose Articulares • Artralgia • Artrite • Espondilite anquilosante • Sacroileíte Oftalmológicas • Uveíte • Episclerite • Cataratas Renais • Litíase • Hidronefrose • Fístula enterovesical Hematológicas • Défice de ferro, folatos e vitamina B12 • Anemia • Trombocitose • Neutropénia Vasculares • Tromboflebite • Vasculite mes laboratoriais, imagiológicos, endoscópicos e histológicos. Os exames laboratoriais habitualmente requeridos para a avaliação global dos casos são essencialmente: hemograma, plaquetas, velocidade de sedimentação, doseamento de proteína C reactiva, de orosomucóide, de ANCA e ASCA. Os exames imagiológicos habitualmente realizados: (trânsito intestinal, ecografia abdominal, TAC, etc.) permitem avaliar as situações com fístulas, abcessos, estenoses, designadamente. A endoscopia (esófago-gastroduodenoscopia e colonoscopia) é particularmente importante, porque pode sugerir de imediato o diagnóstico pelas alterações visíveis, permitindo, por outro lado fazer biópsias para confirmação histológica. Mesmo em zonas de aparência normal se deve proceder à biópsia pela possibilidade de inflamação microscópica e granulomas, que são característicos da doença de Crohn. A técnica utilizando a cápsula endoscópica, embora ainda não muito utilizada em pediatria, é de grande utilidade por permitir avaliar zonas habitualmente não acessíveis à endoscopia. Tratamento Não existe terapêutica médica curativa para a colite ulcerosa ou para a doença de Crohn. Os esquemas terapêuticos destinam-se a combater a inflamação, conseguindo um crescimento adequado e mantendo boa qualidade de vida. A adesão à terapêutica deve ser avaliada com frequência, uma vez que as interrupções da medicação são causa frequente de falência de resultados, principalmente em adolescentes. Existem vários tipos de agentes terapêuticos: – 5 ASA (ácido 5 – amino-salicílico) – Antimicrobianos (mais frequentemente metronidazol, ciprofloxacina) – Corticóides – Imunossupressores (azatioprina, metotrexato, ciclosporina, etc.) – Anticorpos anti-factor necrosante tumoral (Anti – TNF-alfa) e monoclonais (infliximab) Estes fármacos deverão ser utilizados de acordo com as características da doença, gravidade e resposta terapêutica. À terapêutica médica deve sempre associar-se orientação nutricional, apoio psicológico e, quando indicada, terapêutica cirúrgica (em cerca de 60% dos casos na doença de Crohn e em 25 % 40% dos casos de colite ulcerosa situações complicadas). Prognóstico A DII é um processo inflamatório crónico que não pode ser curado por terapêutica médica ou cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo que a criança tenha uma boa qualidade de vida. BIBLIOGRAFIA Altschuler S, Liacouras C. (eds). Clinical Pediatric Gastroente- CAPÍTULO 113 Obstipação rology. London: Churchill Livingstone, 1998 Bayless T, Hanauer S (eds.) Advanced Therapy of Inflammatory Bowel Disease. Hamilton: Decker, 2001 Beattie RM, Croft NM, Fell JM, et al. Inflammatory bowel disease. Arch Dis Child 2006; 91: 426-432 Guandalini S (ed). Textbook of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. London: Taylor & Francis, 2004 547 113 OBSTIPAÇÃO Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, Gonçalo Cordeiro Ferreira 2007 Mamula P, Markowitz JE, Baldassano RN. Inflammatory bowel disease in early childhood and adolescence: special considerations. Gastroenterol Clin North Am 2003; 32: 967- Definições e importância do problema 995 Rutgeerts P, Sandborn WJ, Feagan BG, et al. Infliximab for induction and maintenance therapy for ulcerative colitis. NEJM 2005; 353: 2462-2476 Walker WA, Goulet O, Kleinmam RE, et al. Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton (ontario): Decker, 2004 A obstipação pode ser definida por dois critérios: 1) diminuição da frequência da defecação considerando-se anómalo o caso com menos de três dejecções por semana; ou 2) defecação acompanhada de sintomas sugerindo dor ou desconforto, geralmente associada à passagem de fezes duras, mesmo para uma frequência superior à considerada inicialmente. A encoprese define-se pela expulsão de fezes (voluntária ou involuntária) em local não apropriado, a partir dos 4 anos de idade (normalmente após a aquisição dos mecanismos de controlo esfincteriano). À perda involuntária e repetida de fezes, habitualmente pastosas ou semiformadas, sujando continuada ou frequentemente a roupa interior, dá-se também o nome de “soiling” ou encoprese no sentido estrito. A obstipação é uma situação frequente em idade pediátrica, podendo atingir 3% das queixas que motivam consultas em cuidados primários e até 25% dos doentes enviados às consultas de Gastrenterologia Pediátrica. O conceito de obstipação funcional refere-se às situações em que não se evidencia nenhuma causa orgânica, o que corresponde a 95% dos doentes. Segundo os critérios de Roma – II, a obstipação funcional é subdividida nas seguintes formas: a) Disquézia infantil: situação em lactente saudável com períodos, no mínimo de dez minutos, de esforço e choro antes de conseguir defecar fezes moles. b) Obstipação funcional: situação em lactentes e pré- escolares apresentando fezes duras (cíbalos) na maioria das vezes, ou fezes 548 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA formadas duas ou menos vezes por semana. c) Retenção fecal funcional: situação verificada desde a infância à adolescência, com história de, pelo menos, 12 semanas de evacuação de fezes de grande volume e diâmetro com frequência inferior a duas vezes por semana (podendo acompanhar-se no intervalo de períodos de soiling para maiores de 4 anos), ou postura de retenção, evitando a defecação pela contracção do pavimento pélvico e dos glúteos. d) “Soiling” fecal não retencional: situação em crianças maiores de 4 anos com história de, pelo menos, 12 semanas de defecação em local não apropriado, sem sinais de retenção fecal. As causas orgânicas de obstipação em idade pediátrica resultam essencialmente de perturbações da inervação intrínseca do músculo liso intestinal (de que se destaca a doença de Hirschsprung), de fenómenos inflamatórios ou alérgicos da mucosa (doença celíaca, intolerância ou alergia às proteínas do leite de vaca), ou de alterações endocrinológicas (hipotiroidismo), ou electrolíticas (hipercalcémia). Etiopatogénese Na obstipação funcional do adulto são descritos dois mecanismos: atonia ou hipomotilidade cólica, e aumento da resistência anal à defecação. Na criança está implicado na maioria dos casos este segundo mecanismo. Para perceber as alterações da dinâmica da defecação importa analisar como evolui este processo (simultaneamente maturativo e comportamental) na criança. A presença de uma zona de alta pressão em repouso constituída pela contracção tónica do esfíncter anal interno impede a incontinência fecal. O esfíncter anal externo, constituído por músculo estriado sob controlo voluntário, representa apenas 10-15% dessa pressão em repouso; mas na criança que adquire o controlo da defecação, a sua contracção voluntária quando aumenta a pressão intrabdominal e o relaxamento reflexo do esfíncter anal interno, permite manter a continência e a possibilidade de evacuação em local socialmente adequado. O recto funciona como um compartimento de armazenamento de fezes. A sua distensão pelo bolo fecal ultrapassando certo limite leva a uma sensação de preenchimento e a vontade de defecar. Em simultâneo (se houver integridade da inervação intrínseca) dá-se o reflexo recto anal inibidor (RRAI) que leva ao relaxamento do esfíncter anal interno. A evacuação pode ser impedida nessa ocasião pela contracção voluntária de esfíncter externo. O aumento da pressão intrabdominal pela execução da manobra de Valsalva, o relaxamento reflexo do esfíncter anal interno, e o relaxamento voluntário do esfíncter anal externo ao abolir a zona de alta pressão (resistência) do canal anal, permitem a defecação. Este fenómeno é ainda facilitado pelo simultâneo relaxamento voluntário do músculo puborrectal e pela contracção do levator ani, que rectificam o ângulo recto anal, anulando essa resistência suplementar à passagem das fezes. Na disquézia infantil o lactente não consegue coordenar o aumento da pressão intrabdominal com a relaxação pélvica (daí o esforço e o choro utilizado como manobra de Valsalva incompleta para evacuar fezes moles). Trata-se de uma questão simplesmente maturativa. Os fenómenos de retenção fecal surgem por exacerbação do processo fisiológico ligado aos mecanismos de aquisição da continência fecal que se iniciam pelos 18 meses, estando habitualmente presentes pelos 28 meses. Neste período é normal a criança começar a reter fezes através da contracção voluntária do esfíncter anal externo e músculos pélvicos. A presença de períodos de maior endurecimento fecal (por vezes ligados a episódios de modificação do regime alimentar ou a desidratação) pode levar à constituição de fissuras anais, causando dor à defecação e esforço de retenção para a evitar. Esta retenção leva a um endurecimento ainda maior das fezes, constituindo-se um ciclo vicioso agravado pela acumulação fecal na ampola rectal. Tal circunstância leva a uma menor sensibilidade à distensão rectal, decisiva para iniciar a vontade de defecar. No limite desta situação constituem-se fecalomas na ampola rectal, grande distensão desta e mesmo do cólon a montante (megarrecto e megacólon funcionais). CAPÍTULO 113 Obstipação A tentativa do treino precoce da continência fecal pode ser o estímulo desencadeante do processo de retenção exagerada, com recusa da criança em defecar no bacio, criando-se uma situação de conflito com pais e educadores. O aparecimento de encoprese (“soiling”) surge na sequência desta retenção prolongada das fezes na ampola rectal. Tal retenção causa uma irritação da mucosa com secreção que vai erodindo o fecaloma, havendo, para elevados volumes de distensão, relaxamento reflexo de esfíncter anal interno e insensibilidade da criança a pequenas perdas fecais. Aspectos epidemiológicos Até aos 4 anos a prevalência da obstipação é igual nos dois sexos mas, a partir da idade escolar, o sexo masculino é mais afectado, nomeadamente no que respeita a queixas de encoprese numa razão que pode atingir 6/1. É frequente encontrar-se na família do doente outros casos de obstipação, nomeadamente nos pais e irmãos. No entanto, este facto pode deverse, para além de características genéticas, a aspectos ambientais partilhados como factores alimentares. Dentro destes destaca-se a importância da ingestão de fibra na dieta. Há estudos que demonstram um suprimento reduzido de fibra no regime alimentar de crianças obstipadas em relação a controlos; em tais casos também os respectivos pais, igualmente obstipados, tinham um suprimento médio em fibras inferior ao dos pais de crianças não obstipadas. Há, pois, uma ligação entre factores genéticos e dietéticos nestes doentes. Manifestações clínicas A apresentação clínica varia com a idade. O lactente amamentado pode evidenciar longos períodos sem evacuar, melhorando com a diversificação alimentar. Nos primeiros meses de vida predominam as manifestações ligadas à disquézia infantil: lactentes a fazerem um enorme esforço e chorando muitas vezes para defecar, acabando por evacuar fezes moles espontaneamente ou após estimulação. Na idade pré-escolar evidenciam-se os sinto- 549 mas de dor à defecação, sangue envolvendo as fezes ou sujando o papel higiénico, traduzindo a presença de fissuras; é muito típica a aversão da criança ao sentar-se no bacio para defecar, chorando ou gritando quando sente vontade, tentando reter as fezes através de manobras variadas (contracção dos músculos das ancas e glúteos, extensão das pernas, apoio da região anal encostando-se às paredes). Num grupo de crianças pequenas encontra-se uma associação entre a presença de obstipação crónica e intolerância ou alergia às proteínas do leite de vaca, o que leva à presença de inflamação rectal, eritema perineal e fissuras anais com retenção fecal secundária. A modificação do regime alimentar com exclusão dos produtos lácteos leva a uma resolução da obstipação neste grupo de doentes. Na criança em idade escolar predominam as queixas de dor abdominal ou de encoprese. Muitas vezes os pais não se apercebem de que a criança encoprética é obstipada e atrasam a sua vinda à consulta; por vezes, o motivo desta é a existência de uma falsa diarreia. Um sinal de retenção fecal importante numa criança encoprética é a existência ocasional de defecação muitíssimo volumosa. A anorexia acompanha frequentemente as crianças com obstipação prolongada, melhorando com a aquisição da regularidade da defecação. Também se verifica a coexistência de encoprese com incontinência urinária diurna, enurese nocturna, ou com infecção urinária recorrente principalmente no sexo feminino. Diagnóstico Na recolha da história clínica deve ser averiguado se houve atraso, superior a 24 horas, da eliminação de mecónio. Este achado, bem como uma distensão abdominal significativa no lactente, episódios de enterocolite ou atraso ponderal, devem alertar para a presença de patologia orgânica, nomeadamente doença de Hirschsprung. Na observação das crianças com obstipação deve ser avaliada cuidadosamente a presença de massa fecal abdominal, havendo uma boa relação entre a extensão dessa massa e a intensidade sintomática da obstipação. 550 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA A observação da região anal deve ser cuidadosa para detectar anomalias posicionais (ânus anterior que pode condicionar a obstipação pela maior angulação rectoanal) e a presença de fissuras. O toque rectal avalia a tonicidade do esfíncter anal e a presença de fecalomas na ampola rectal. Uma ampola vazia, na ausência de emissão recente de fezes, é sugestiva de doença de Hirschsprung. Na primeira observação, numa criança que já foi submetida a muitos enemas ou supositórios para evacuar, nem sempre é fácil efectuar-se o toque rectal em condições adequadas. Nesta circunstância deve efectuar-se uma radiografia simples do abdómen em decúbito dorsal para avaliar a extensão do fecaloma, e de pé para avaliar a existência de distensão das ansas ou níveis hidroaéreos, o que sugere causa orgânica. A manometria anorrectal não tem interesse nas formas simples de obstipação que respondem ao tratamento inicial; no entanto, nas formas resistentes, nomeadamente quando da suspeita de uma forma ultracurta da doença de Hirschsprung, é um exame fundamental e de primeira linha. Os achados manométricos mais frequentes na obstipação funcional são a presença de RRAI para volumes altos de distensão, diminuição da sensibilidade à distensão rectal traduzindo a presença de uma mega-ampola e, por vezes, contracção paradoxal do esfíncter anal externo durante a tentativa de defecação. Por outro lado, os achados manométricos nas formas com ou sem encoprese são sobreponíveis. Tratamento Na situação de encoprese com retenção fecal é necessário um prévio esvaziamento da matéria fecal acumulada no recto e cólon. Nos raros casos de “soiling” fecal não retencional não é necessário (ou até é contraproducente) usar terapêutica laxante; por isso, a intervenção deverá ser centrada na reeducação do comportamento relacionado com os hábitos da defecação. O tratamento da obstipação sem encoprese assenta essencialmente em quatro vertentes: esvaziamento intestinal, medidas dietéticas, medidas farmacológicas e educação. Esvaziamento intestinal Esta fase do tratamento tem por finalidade evacuar os fecalomas de modo a permitir recuperar a sensibilidade defecatória à distensão rectal e diminuir as perdas fecais involuntárias. O uso de enemas de fosfato hipertónico na dose de 30 ml/5 Kg de peso ou 135 ml acima dos 20 Kg, uma vez por dia durante um ou dois dias, complementado com o uso de enemas salinos (até ao máximo de 500 ml), a que se pode associar 1020 ml de óleo mineral (parafina líquida), é habitualmente suficiente para libertar um fecaloma rectal. No entanto, em casos de grande retenção estercoral é necessário complementar o uso destes enemas com o de soluções de limpeza intestinal (à base de polietileno glicol e electrólitos) administradas em meio hospitalar, oralmente ou por sonda nasogástrica. Considera-se limpo o intestino quando há saída pelo ânus de líquido claro, ficando a ampola rectal vazia, e se verifica presença de ar na bacia na radiografia simples do abdómen. Medidas dietéticas A dieta deve ser menos rica em alimentos adstringentes (arroz, massas, leguminosos secos) e o consumo de água aumentado, para evitar a dureza excessiva das fezes. O suprimento diário em fibras deve ser incrementado, visto as mesmas promoverem a evacuação por um mecanismo duplo: as fibras não solúveis (celulose e hemicelulose, etc.), aceleram o trânsito cólico por um efeito mecânico e amolecem as fezes por fixarem água, enquanto as fibras solúveis, mais fermentáveis como as pectinas, aumentam o bolo fecal por incrementarem a massa bacteriana das fezes. O uso de produtos naturalmente ricos em fibras deve ser encorajado: (legumes verdes na sopa ou saladas, fruta com casca, pão ou cereais integrais). Somente na impossibilidade de a criança os aceitar, deverão ser adicionados preparados de fibra purificada (farelo, por exemplo) aos alimentos (sopas, iogurtes). Nos lactentes em que a obstipação pode ser considerada secundária a intolerância às proteínas do leite de vaca, há que substituir esses alimentos por fórmulas com hidrolisado extenso ou de soja, seguindo os procedimentos habituais de exclusão, provocação e reintrodução dos produtos lácteos. CAPÍTULO 113 Obstipação Medidas farmacológicas O uso de laxantes tem por finalidade amolecer as fezes e aumentar a motilidade intestinal. O uso de laxantes osmóticos contribui para aumentar a hidratação das fezes. Dividem-se em 2 grupos: hidratos de carbono não absorvíveis como a lactulose ou o lactitol, fermentáveis pelas bactérias do cólon; ou moléculas inertes como o polietileno glicol com ou sem electrólitos. O uso de óleo mineral (parafina líquida) tem uma acção emoliente sobre as fezes e pode induzir secreção hidro-electrolítica no cólon ao ser convertido pela flora bacteriana em ácidos gordos hidroxilados. Não deve ser administrado em crianças com distúrbios da deglutição para evitar fenómenos aspirativos; se se utilizar, deve ser dado fora das refeições para obviar a possível má absorção de vitaminas lipossolúveis. Aos agentes osmóticos pode ser necessário adicionar fármacos que promovam a motilidade do cólon, principalmente nas situações em que uma grande distensão leva à hipomotilidade cólica. O sene tem sido dos agentes mais usados em idade pediátrica com bons resultados, devendo ser evitado por períodos muito prolongados. As fissuras anais devem ser tratadas com antiinflamatórios e cicatrizantes tópicos. O tratamento da obstipação deve ser ajustado 551 individualmente com aumento ou redução das doses, mas sempre por um período inicial nunca inferior a 3 meses. Posteriormente, deve ser feito o desmame lento e progressivo do(s) laxante(s), sempre com o objectivo de obter defecações sem esforço e ausência de perdas fecais. (Quadros 1 e 2). Educação Após o estabelecimento de um diagnóstico de obstipação funcional deve ser explicado aos pais e doentes de acordo com a idade que a situação clínica não é grave mas necessita de um acompanhamento cuidadoso, com o cumprimento estrito de medidas dietéticas e terapêuticas para promover a evacuação intestinal. Também deverá ser explicado que a encoprese é consequência da obstipação, que a criança não é propositadamente preguiçosa ou desmazelada, e que a melhoria da situação de base levará ao desaparecimento daquela. Por outro lado, deve ser reforçada junto dos pais a necessidade de não se estabelecer um treino coercivo nas crianças que até aos 3 anos se recusam a evacuar no bacio; pelo contrário, deverse-á deixar manter as fraldas. O treino da defecação deve ser estimulado na criança mais velha, aconselhando-a a frequentar regularmente a casa de banho, nomeadamente após as refeições. A posição ideal da defecação, sentada nos sanitários QUADRO 1 – Fármacos usados na obstipação funcional Lactulose 1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação ligeira Lactitol 1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira ou moderada Leite de magnésia 1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira Idade > 6 meses Parafina líquida 1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação moderada Idade > 12 meses Máximo: 2 doses diárias Obstipação moderada Evitar uso prolongado Sene 1 - 5 anos: 5ml/dose 5 - 10 anos: 10ml/dose Solução de lavagem intestinal 14-40 ml/Kg/hora até saída Em meio hospitalar Esvaziamento em obstipação de líquido pelo ânus (oral ou por sonda nasogástrica) grave com encoprese PEG* com ou sem electrólitos 0,26 - 0,84g/kg/dia 1 dose/dia em 100 ml de água Obstipação moderada ou grave * Poli – Etileno – Glicol Idade > 2 anos 552 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Esquema de tratamento da obstipação funcional Obstipação ligeira Medidas dietéticas Obstipação moderada Medidas dietéticas Obstipação grave Medidas dietéticas Obstipação + encoprese Limpeza intestinal: (enemas de fosfato e salinos) e/ou solução de lavagem intestinal Lactulose ou Lactitol Lactitol + Parafina líquida+ Sene Evitar uso prolongado de Sene PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene com os pés bem apoiados para aumentar a pressão intrabdominal, deve ser explicada a crianças e pais. A presença de frequentes recaídas nestas situações deve também ser abordada, pelo que o cumprimento do plano deve ser rigoroso e prolongado, sem abandonos causados pela euforia de melhorias rápidas, ou pelo desânimo da persistência dos sintomas. Outras medidas Pode haver necessidade de acompanhamento psicológico das crianças com encoprese quando esta se acompanha de baixa auto-estima, dada a probabilidade de desenvolvimento de estigmas depressivos. BIBLIOGRAFIA Benninga MA, Voskuijl W., Taminiau JM. Childhood constipation: is there new light in the tunnel? J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 39: 448-60 Brooks RC, Copen RM, Cox DJ, et al. Review of the treatment literature for encopresis, functional constipation and stool toileting refusal. Ann Behav Med 2000; 22: 260-26 Iacono G, Cavataio F, Montalto G et al. Intolerance of cow’s milk and chronic constipation in children. New Engl J Med 1998; 339: 110-114 Loening-Baucke V. Functional faecal retention with encopresis in childhood. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 38: 79-84 Rasquin-Weber A, Hyman P.E., Cucchiara S, et al. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 (supp 2): 60-68 Roma E, Adamidis D, Nikolara R, et al. Diet and chronic constipation in children: the role of fiber. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1999; 28: 169-174 Santos F, Leite M, Cordeiro Ferreira G. Obstipação funcional e encoprese – estudo clínico e manométrico. Acta Pediatr Por 2003; 34: 95-99 Youssef NN, Dilorenzo C. Childhood constipation: evaluation and treatment. J Clin Gastroenterol 2001; 33: 199-205 CAPÍTULO 14 Doença de Hirschsprung 114 DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG Rui Alves Definição A doença de Hirschsprung (DH) ou megacólon aganglionar congénito é caracterizada pela ausência de células ganglionares na porção mais distal do cólon e recto, característica anatomopatológica que se pode estender proximalmente de modo variável. Tal afecção é uma causa frequente de obstrução intestinal no recém-nascido (RN) e na primeira infância. A doença de Hirschsprung é classificada como clássica (envolvimento recto-sigmóide: 75% dos casos); longa (envolvimento até ao cólon transverso: 17% dos casos), e extralonga (envolvimento até à válvula íleocecal com possível compromisso do íleo terminal: 8% dos casos). A aganglionose intestinal total, a forma mais grave de doença, é extremamente rara. A DH surge com uma incidência de cerca de 1/5000 nascimentos, sendo mais frequente no sexo masculino (4/1). Tem uma incidência familiar entre 4% e 7%. Etiopatogénese As células ganglionares entéricas são originárias da crista neural. Estas células estão presentes no intestino anterior à 4ª semana de gestação e iniciam a sua migração na direcção crânio-caudal entre a 5ª e a 12ª semana. Após a 12ª semana de gestação é iniciada a migração transmural das células para se formarem os plexos mientéricos e os plexos submucosos, processo que termina cerca da 16ª semana. Há estudos que pretendem demonstrar a natureza dual da migração dos neuroblastos. Esse 553 segundo ponto de início de migração surge do centro sagrado da crista neural, mas o processo de migração transmural é similar ao descrito anteriormente. A causa da ausência de células neurais na parede intestinal deriva de vários factores, como: interrupção da migração crânio-caudal; falência de diferenciação celular após a migração completa devido a alterações da matriz extracelular onde neuroblastos se fixam e se diferenciam; e mecanismo imunogénico mediado pelo “complexo major de histocompatibilidade”, responsável por formação de anticorpos antineuroblastos. Os factores genéticos têm hoje uma importância fulcral na patogénese da doença de Hirschsprung, nomeadamente após a identificação da variação genética responsável pela supressão da expressão celular das células pluripotenciais da crista neural. Assim, a doença de Hirschsprung é englobada no grupo das neurocristopatias, estando intimamente associada a outra doenças ou síndromas que partilham a mesma natureza genética como a síndroma de Waardenburg, a síndroma de Von Recklinghausen, a síndroma de Smith-Lemi-Opitz, etc.. Aproximadamente 8% a 16% dos casos de DH têm concomitantemente síndroma de Down. O aspecto fisiopatólogico básico desta doença é a ausência de coordenação celular da actividade motora das fibras colinérgicas pré-ganglionares, e do efeito inibitório das fibras adrenérgicas pósganglionares. Assim, desenvolve-se hiperplasia nervosa colinérgica com aumento de produção não inibida de acetilcolina pelos neurónios colinérgicos, e aumento de sensibilidade do músculo liso a esta substância; tal se explica pela ausência de receptores alfa-2 da mediação noradrenérgica, o que impede a contractilidade do segmento agangliónico. O aspecto patológico macroscópico característico deste problema é a dilatação e hipertrofia do cólon proximal, com abrupta ou gradual transição (cone de transição), para a porção distal, de dimensão normal ou diminuída. Anatomia patológica O aspecto histológico é caracterizado por uma ausência de células ganglionares nos plexos mientérico e subcutâneo, e a presença de troncos 554 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA nervosos não mielinizados hipertrofiados no espaço normalmente ocupado pelas células ganglionares. Manifestações clínicas e diagnóstico Em cerca de noventa por cento dos doentes com doença de Hirschsprung o diagnóstico é feito durante o período neonatal. O atraso na emissão de mecónio é o sinal clínico neonatal cardinal desta doença. Cerca de 90% dos recém-nascidos (RN) com DH eliminam mecónio após as 24 h de vida. Este sinal clínico é seguido por obstipação, vómitos e distensão abdominal nos primeiros dias de vida. O exame rectal apresenta, classicamente, uma ampola rectal vazia de fezes com uma posterior descarga de fezes líquidas e semi-líquidas de cheiro fétido. A estimulação rectal, o uso de clisteres de limpeza, de laxantes e de emolientes pode fazer regredir o quadro clínico temporariamente. Nesses casos a doença reveste-se de uma forma crónica com períodos de agudização e, manifesta-se clinicamente como um quadro de obstipação crónica com ou sem distensão abdominal apreciável. Em cerca de um terço destes doentes surge como episódio inaugural um quadro de diarreia aguda profusa. Este sinal clínico é indicativo da possibilidade de desenvolvimento de enterocolite grave que permanece como a principal causa de morte do RN com DH. Nos casos mais graves é caracterizada por distensão súbita, vómito bilioso, febre, sinais de desidratação grave, diarreia sanguinolenta, sépsis e falência multiorgânica. O diagnóstico da DH depende da conjugação da clínica com o estudo imagiológico, o estudo manométrico e, por fim, o estudo histológico. Os sinais radiológicos característicos em radiologia convencional são a presença de distensão gasosa de ansas, níveis hidroaéreos e ausência de conteúdo gasoso na região pélvica (cut-off sign) (Figura 1). Nos casos de enterocolite, a distensão gasosa de ansas é muito volumosa, existindo edema da parede, modelagem e irregularidade mucosa identificável. O pneumoperitoneu pode estar presente por necrose transmural e perfuração da parede de ansa. O exame radiológico considerado de excelência para o diagnóstico da doença é o clister FIG. 1 Sinais radiológicos de oclusão intestinal no RN no contexto de DH: distensão abdominal e níveis hidroaéreos. (NIHDE) opaco. Este exame permite identificar a zona de espasmo rectosigmóide ou cólico e também a zona de transição (cone de transição) existente entre a zona de espasmo e a zona de dilatação intestinal. A retenção de contraste endoluminal por mais de vinte e quatro horas é muito sugestiva desta patologia, podendo tornar evidente uma zona de transição não imediatamente identificável no início da realização do exame. A manometria ano-rectal (MAR), baseia-se no princípio da ausência de relaxamento do esfíncter interno após a estimulação por aumento de pressão endoluminal pelo balão da sonda. Este fenómeno é característico do segmento aganglionar e, por isso, pode servir como exame de rastreio da doença. O exame histológico permite o diagnóstico definitivo. A biópsia pode ser realizada por meio de acesso laparoscópico (“mapeamento” cólico) ou, mais simplesmente, por meio de biópsia rectal. A biópsia rectal pode ser bem sucedida utilizando uma pinça de sucção, ou por secção cirúrgica. O estudo histológico permite, por análise imunohistoquímica, identificar a existência, a natureza e CAPÍTULO 14 Doença de Hirschsprung maturidade das células ganglionares, assim como a presença de hipertrofia dos troncos nervosos. Indicação operatória A DH tem sempre indicação operatória. O princípio geral da terapêutica cirúrgica da DH é a ressecção segmentar do porção recto-sigmóidecólica aganglionar e o abaixamento do cólon normal gangliónico até à margem do ânus. Até à realização da cirurgia definitiva o RN é mantido num programa de descompressão cólica por meio de clisteres de limpeza denominado classicamente “nursing”. Complicações pós-operatórias 555 Todas as complicações decorrentes do quadro de retenção fecal, estase fecal, proliferação bacteriana e má-absorção, podem ser ultrapassadas com a resolução cirúrgica da doença. Prognóstico Na ausência de complicações mecânicas e funcionais, e de episódio ou episódios de enterocolite pós-operatória, o prognóstico final da DH é bom, com resultados de cerca de 90% de cura. BIBLIOGRAFIA De Lorijn F, Reitsma JB, Voskuijl WP, et al. Diagnosis of Hirschsprung’s Disease: A prospective comparative accuracy study of common tests. J Pediatr 2005; 146: 787792 As complicações pós-operatórios na DH são decorrentes de dois aspectos fundamentais: por um lado, complicações associadas ao abaixamento cólico e da anastomose colo-rectal: infecção local, deiscência e isquémia do segmento cólico mobilizado e estenose da anastomose colo-rectal; por outro, pode surgir uma complicação funcional – as células ganglionares embora presentes, têm uma disposição anómala e displástica condicionando obstrução funcional cólica distal. A complicação mais grave é a enterocolite pósoperatória. É caracterizada por distensão abdominal extrema, hipertermia, diarreia paradoxal profusa e hemática, e por síndroma séptica. Esta situação obriga a descompressão intestinal de urgência por sonda de enteroclise e instituição de antibioticoterapia de largo espectro e de pausa alimentar. A enterocolite pós-operatória, que pode ocorrer em cerca de 20% dos casos, constitui a primeira causa de morte pós-operatória nestes doentes. Seguimento O seguimento dos doentes com DH deve ter em conta, não só a evolução pós-operatória, como também o status funcional intestinal e o desenvolvimento geral da criança. Numa situação de boa evolução cirúrgica, com um bom funcionamento do segmento cólico mobilizado é provável a ausência de obstipação grave pós-operatória e boa evolução estaturoponderal associada. Fujimoto T, Puri P. Persistent enterocolitis following diversion fecal stream in HD: a study in mucosal defense mecanisms. Ped Surg Int 1998; 3: 141-114 Fujimoto T, Reen D, Puri P Immunohistochemical characterisation of abnormal innervation of colon in HD. J Ped Surg 1987; 22: 246-249 Puri P. Hirschsprung disease: clinical and experimental observations. World J Surg 1993; 17: 374-377 Skinner M. Hirschsprung’s disease. Curr Prob Surg 1996; 33:389-392 Teitelbaum DH, Coran AG. Reoperative surgery for hirschsprung’s disease. Sem Pediatr Surg 2003; 12: 124-131 Walker WA, Gouleto, Kleinman RE, et al (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 556 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 115 SÍNDROMA DO INTESTINO CURTO Sara Silva e Raul Silva Definição e importância do problema A síndroma do intestino curto (SIC) é uma situação clínica caracterizada pela perda superior a 50% do comprimento do intestino delgado, com ou sem uma parcela do intestino grosso, do que resultam aceleração do trânsito intestinal, má absorção de macro e de micronutrientes, vitaminas, minerais e, consequentemente, má nutrição. Os cirurgiões geralmente consideram uma pequena ressecção se o comprimento do intestino delgado residual (abaixo do ângulo de Treitz, até à válvula íleo-cecal) medir 100-150 cm, uma grande ressecção se medir entre 40-100 cm, e ressecção maciça (intestino ultracurto) se menos de 40 cm. Até aos anos 70, a grande maioria dos recémnascidos com SIC não sobrevivia à perda de mais de 15% da área do intestino delgado. Tem-se assistido, no entanto, a uma melhoria significativa do prognóstico desta situação que se deve essencialmente ao desenvolvimento das técnicas de nutrição parentérica, a melhores conhecimentos sobre estratégias de suporte nutricional e fisiologia intestinal e, mais recentemente, à possibilidade de realização de transplantação intestinal. Efectivamente, hoje em dia existe possibilidade de sobrevivência com 15 cm de intestino delgado com válvula íleo-cecal, e com 20 cm sem a referida válvula havendo suporte nutricional parentérico e normalidade do funcionamento do restante intestino. De referir igualmente que a ressecção intestinal em idade pediátrica (sobretudo nos casos de prematuridade e, dum modo geral até ao 1 ano) tem melhor prognóstico do que no adulto dada a potencialidade do crescimento intestinal no primeiro caso. Factores etiológicos Na maioria dos doentes pediátricos com SIC, a situação decorre de problemas que têm a sua génese no período perinatal. As causas mais comuns são: enterocolite necrosante (ECN), atrésia jejunal ou ileal, gastrosquise, doença de Hirschsprung total e anomalias vasculares congénitas. O Quadro 1 resume as causas. Numa das Unidades de Pediatria Médica do Hospital de Dona Estefânia, entre 2000 e 2004, em 10 casos de SIC, 3 foram devidas a atrésia intestinal, 3 a volvo do intestino médio, 2 a gastrosquise com atrésia intestinal, 1 a ECN e 1 devida a isquémia mesentérica. Todos os casos foram submetidos a nutrição parentérica total (NPT). Fisiopatologia e manifestações clínicas A perda de uma quantidade significativa de intestino dá origem a um conjunto de alterações fisiológicas, cujas manifestações clínicas, terapêutica e prognóstico dependem de vários factores: comprimento e segmento do intestino ressecado; presença ou ausência de válvula íleocecal; capacidade funcional e adaptativa do intestino residual, e estado funcional dos órgãos que participam no processo de digestão e absorção. QUADRO 1 – Causas de Síndroma do Intestino Curto Enterocolite necrosante (ECN) Atrésia intestinal Gastrosquise Volvo do intestino delgado Pseudo-obstrução intestinal Aganglionose intestinal total Malformações vasculares congénitas Doença inflamatória intestinal * Tumores* Enterite da radiação* *Causas raras CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto Factor Intrínseco HCI Pepsina Estômago no ode Du Jejuno Ferro Cálcio Magnésio Folato Nutrientes (Glucose) Vitaminas hidrossolúveis (Tiamina, vitamina C) Secretina Colecistocinina Nutrientes (Aminoácidos) Nutrientes (Gorduras) Enteroglucagina Ileo Zinco Fósforo Ácidos Biliares Sais biliares conjugados Vitamina B12 – Factor Intrínseco Vitaminas A, D, E, K Colesterol Cólo direitn o Cólo esquern do O comprimento do intestino delgado no recém-nascido (RN) é 217 ± 24 cm às 27-35 semanas de idade gestacional, 304 ± 44 cm após as 35 semanas. No RN de termo é 250 a 300 cm, crescendo mais 2 a 3 metros até à idade adulta. O intestino grosso mede 40 a 60 cm no RN de termo, crescendo até 1.5 a 2 metros na idade adulta. A perda de um segmento intestinal pode limitar a digestão ao diminuir a exposição dos nutrientes às enzimas hidrolíticas da mucosa intestinal, assim como às secreções pancreáticas e biliares. Cada segmento intestinal tem diferentes funções de absorção: – Duodeno: glucose, ferro, folato, cálcio, magnésio e vitaminas hidrossolúveis. – Jejuno: lípidos e aminoácidos. – Íleo: ácidos biliares, sais biliares conjugados, vitamina B12, factor intrínseco, vitaminas lipossolúveis, zinco, fósforo. Deste modo, o quadro de má-absorção dependerá do segmento intestinal ressecado e da sua extensão. Será mais importante quando a ressecção envolver o jejuno, uma vez que no indivíduo saudável quase toda a digestão e absorção se completam nos primeiros 100 a 150 cm de intestino. O íleo, para além das suas funções de absorção únicas – vitamina B12 e sais biliares – tem outras funções, nomeadamente secreção de substâncias hormonais, e maior capacidade de adaptação designadamente para substituir o jejuno nas suas funções essenciais. A válvula íleo-cecal tem duas funções principais: regulação do trânsito intestinal e prevenção do refluxo bacteriano do cólon para o intestino delgado. A sua ausência diminui o tempo do trânsito intestinal (com exacerbação das perdas de líquidos e nutrientes) e aumenta o risco de crescimento bacteriano no intestino delgado. A colonização bacteriana do intestino delgado pode provocar desconjugação dos ácidos biliares alterando a formação de micelas, o que poderá agravar a esteatorreia. A presença do cólon é importante para a absorção dos ácidos gordos de cadeia curta, água e electrólitos. Este segmento intestinal tem a capacidade de aumentar até 5 vezes a absorção de água e electrólitos; por outro lado, pode fornecer 557 H2O HCO3K+ Na+ Oxalato Secreção/Excreção Absorção FIG. 1 Locais de absorção e secreção/excreção no tracto gastrintestinal (Adaptado de Hwang ST et al). energia suplementar através da absorção de ácidos gordos de cadeia curta que são produzidos pela fermentação dos hidratos de carbono dependente das bactérias no cólon. (Figura 1) Após ressecção intestinal extensa, o intestino restante tem a capacidade de se adaptar anatómica e funcionalmente, de modo a aumentar as suas funções de digestão e absorção. Estas alterações iniciam-se nas primeiras 24 a 48 horas após a ressecção e podem prolongar-se para além de um ano. Vários factores parecem mediar estes efeitos; o mais importante parece ser a presença de nutrição entérica que leva a um aumento de nutrientes não digeridos a nível distal, provo- 558 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA cando um aumento na libertação de hormonas intestinais (péptido YY, substância P, CCK, glucagonlike peptide 2). As alterações de adaptação traduzem-se essencialmente em: aumento do diâmetro, espessura e comprimento intestinais, aumento da altura das vilosidades, da profundidade das criptas, e mais intensa proliferação e migração celulares para a extremidade das vilosidades. Esta resposta adaptativa, que é mais acentuada nas crianças, verifica-se sobretudo no íleo em relação ao jejuno. Nos doentes com SIC, a colestase e disfunção hepática são complicações frequentes que alteram a capacidade de absorção e utilização de nutrientes. A colestase nestas situações é geralmente multifactorial, sendo a sépsis, atrofia da mucosa e o hipercrescimento bacteriano factores predisponentes importantes. Tratamento Actualmente, mais de 90% dos doentes com SIC sobrevivem, recorrendo à NPT. O tratamento é complexo e requer uma abordagem multidisciplinar em centro especializado. Diz respeito essencialmente ao suporte nutricional, cujo objectivo é manter o crescimento da criança dentro dos parâmetros normais, promover a adaptação intestinal e evitar as complicações resultantes da ressecção intestinal e da referida NPT (soluções preparadas pelo serviço farmacêutico em condições de assépsia em câmara de fluxo laminar). A primeira etapa inicia-se com a intervenção cirúrgica cujo objectivo é salvar a vida e preservar a maior extensão possível de intestino viável. Geralmente dura 1 a 3 semanas após ressecção cirúrgica, sendo caracterizada pelo início da NPT, com especial atenção ao equilíbrio hidro-electrolítico e à hipergastrinémia. Na segunda fase procede-se ao início da nutrição entérica contínua, com redução progressiva da NPT. A terceira fase corresponde à adaptação à nutrição entérica e ao início da nutrição oral. A transição de uma fase para outra é variável de doente para doente, dependendo da evolução clínica e da eficiência e qualidade do crescimento. Pode durar meses ou anos. Sintetizam-se, a seguir, os procedimentos a seguir nas fases de nutrição parentérica /entérica e introdução de alimentos sólidos. Fase 1: Nutrição parentérica (NP) A nutrição parentérica é administrada por cateter venoso central e deve ser constituída por uma mistura equilibrada de glúcidos, proteínas, lípidos, electrólitos, vitaminas, minerais e oligoelementos de modo a promover o crescimento adequado. Calculadas as necessidades de fluidos em função do peso e idade, as necessidades calóricas são aumentadas progressivamente, até se atingir 100 Kcal/Kg/dia. A glicose deve ser iniciada ao ritmo de 5-7 mg/Kg/min, com incrementos de 1-3 mg/Kg/min até se atingir 12-14 mg/Kg/min, evitando hiperglicémia e glicosúria. Os aminoácidos são iniciados na dose de 1 g/Kg/dia, e aumentados até 3 mg/Kg/dia, em 23 dias. Os lípidos iniciam-se na dose de 1 g/Kg/dia com incrementos de 1 g/Kg/dia até 3 g/Kg/dia, em crianças até ao 1 ano de idade, e até 2 g/Kg/dia em crianças acima de 1 ano. Não devem exceder 30-40% do valor calórico total, de modo a prevenir a hiperlipidémia. Os sais minerais e as vitaminas devem ser fornecidos de acordo com as necessidade diárias e grupo etário. Na fase inicial (primeiras 3 semanas) deve terse em especial atenção os electrólitos, em particular o sódio, sendo por vezes necessário fornecer soluções com sódio (8-10 mEq / litro da solução) dependendo das perdas pelo estoma ou do grau de diarreia. Também nesta fase, por haver hipergastrinémia, inicia-se terapêutica com ranitidina (0.75-1.5 mg/Kg/dia, por via endovenosa de 6/6h ou 8/8h). Esta fase prolonga-se por cerca de 1 ano, pelo que se deve manter a terapêutica. Pode também ser administrado o omeprazol. Durante a fase de nutrição parentérica, após estabilização clínica, é importante a vigilância laboratorial (Quadro 2). Fase 2: Nutrição entérica (NE) A segunda da fase caracteriza-se pelo início da nutrição entérica, fundamental para estimular a adaptação intestinal uma vez garantida a estabi- CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto QUADRO 2 – Esquema de monitorização de doentes submetidos a NTP Parâmetros Diário Semanal* Periódico* Peso x Balanço hídrico x Sinais vitais x Glicose/acetona urinários x Cateter (local e função) x Exames laboratorais (sangue) Sódio, potássio, cloro x Bicarbonato x Glicose x Ureia e creatinina x Triglicéridos x Cálcio, fósforo e mágnésio x Proteínas totais x Albumina e pré-albumina x ALT x Fosfatase alcalina x Bilirrubina (total e directa) x Selénio x Cobre x Zinco x Ferro x 559 A progressão deste esquema de alimentação deve ser regulada pelo número de dejecções/dia, pelas perdas pelos estomas, pelo pH, identificação de substâncias redutoras fecais, pelo resíduo gástrico e pelos sinais de desidratação (Quadro 3). Fase 3: Introdução de alimentos sólidos Por volta dos 4-6 meses de idade, se o crescimento se tiver processado com regularidade, podem ser introduzidos os alimentos sólidos. Começa-se com a carne, porque é bem tolerada; os alimentos ricos em hidratos de carbono, como os cereais, vegetais e frutas devem ser evitados uma vez que causam sobrecarga osmótica no intestino delgado, aumenQUADRO 3 – Esquema de progressão da nutrição entérica A. Dejecções 1. Se < 10 g/Kg/dia ou < 10 dejecções/dia, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d 2. Se 10-20 g/Kg/dia ou 10-20 dejecções/dia, não alterar 3. Se > 20 g/Kg/dia ou > 20 dejecções/dia, reduzir ou suspender alimentação* * Eventualmente com maior frequência de acordo com a evolução lidade hidro-electrolítica. É fornecida por sonda nasogástrica em débito contínuo devendo ser iniciada logo que ultrapassado o íleos pósoperatório. Habitualmente são utilizadas fórmulas semi-elementares ou elementares, com o volume inicial de 10-20 ml/Kg/dia e concentração de 0.20 Kcal/ml, que se aumenta (conforme a tolerância) até 0.67 Kcal/ml, em crianças até um ano, e até 1 Kcal/ml acima dessa idade. Quando atingida essa concentração, procede-se ao incremento do volume (10-20 ml/Kg/dia, com intervalos de 1-3 dias) até atingir 130-200 ml/Kg/dia com 100-140 Kcal/Kg/dia, com diminuição isocalórica simultânea do suprimento através da NPT. Quando 20% do valor calórico for fornecido por via entérica, a NP contínua pode passar a cíclica, sendo reduzida progressivamente até 12 horas/dia. Cerca do 5º dia após o início da nutrição entérica contínua, devem ser fornecidos 3-4 biberões/dia, com volume correspondente ao suprimento em 1 hora da nutrição entérica contínua, a qual é suspensa nesses períodos. B. Perdas pelos estomas 1. Se < 2 g/Kg/h, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d 2. Se 2-3 g/Kg/h, não alterar 3. Se >3 g/Kg/h, reduzir ou suspender NE* C. Substâncias redutoras nas fezes 1. Se < 1%, aumentar ritmo de acordo com débito das dejecções ou dos estomas 2. Se = 1%, não alterar 3. Se > 1%, reduzir ou suspender NE* D. Sinais de desidratação 1. Se ausentes, aumentar NE de acordo com débito das dejecções ou estomas 2. Se presentes, reduzir ou suspender NE*, e providenciar reidratação E. Aspirado gástrico (2x/dia) 1. Se < 4x o volume da perfusão/hora, aumentar NE 2. Se > 4x o volume da perfusão/hora, reduzir ou suspender NE* *suspender NE durante 8 horas e retomá-la com 3/4 do ritmo anterior Adaptado de Walker WA, et al, 2004. 560 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Monitorização laboratorial (vitaminas e oligoelementos) nos doentes com SIC, após suspensão da NPT Parâmetros Vitamina B12 e folato Zinco, crómio, cobre, magnésio, selénio, manganês Vitaminas A, E, D Frequência 3/3 meses, nos primeros 6 meses; depois, de 6/6 meses 6/6 meses 3 meses após suspensão da NPT; depois de 6/6 meses tando as perdas, sobretudo nos doentes com ressecção ileal. Geralmente, após 2 anos, fase em que os doentes já toleram fórmulas complexas, estes alimentos podem ser fornecidos em maior quantidade. Nos doentes sem íleo, mas com cólon intacto, devem ser evitados alimentos ricos em oxalatos, tais como chá, colas, chocolate, vegetais de folha verde, aipo, morangos, para prevenir o aparecimento de cálculos renais de oxalato de cálcio. À medida que a NE vai substituindo a NP, deve ter-se particular atenção aos défices de vitaminas lipossolúveis – A, D, E e K – fornecendo-as sob forma hidrossolúvel: ADEK® 1ml/dia dos 0-1 ano, 2ml/dia dos 1-3 anos, 3-4 ml/dia após os 4 anos. Deve também proceder-se aos doseamentos séricos dos oligoelementos e da vitamina B12, tendo em atenção as manifestações clínicas dos respectivos défices para tratamento correcto e atempado (Quadros 4 e 5). Tratamento das complicações mais comuns 1. Proliferação bacteriana no intestino delgado Trata-se duma complicação frequente que provoca lesão da mucosa, má-absorção e translocação bacteriana. Define-se pela presença no intestino delgado de bactérias do cólon em número igual ou superior a 105/ml. Clinicamente manifesta-se por anorexia, vómitos, distensão abdominal, hematoquesia, dificuldade em tolerar a NE e perda de peso. Por vezes pode ocorrer um quadro neurológico caracterizado por alteração do estado de consciência (incluindo coma), hiperventilação, acidose metabólica com hiato aniónico elevado, resultante da acumulação de ácido D-láctico, (substância não metabolizável na espécie humana), resultante da fermentação bacteriana dos hidratos de carbono da alimentação. O diagnóstico é feito pela determinação sérica do D-lactato, e não do lactato total. Deve suspeitar-se de proliferação bacteriana no intestino delgado em doentes sem válvula íleocecal, e ou com dismotilidade, ou com segmentos intestinais dilatados. O diagnóstico é difícil, podendo ser confirmado por cultura de líquido duodenal, coprocultura e pelo teste do hidrogénio expirado. QUADRO 5 – Clínica e terapêutica das deficiências em micronutrientes Nutriente Vitamina B12 Zinco Ferro Cálcio Magnésio Sinais/sintomas Astenia, anemia megaloblástica Alopécia, lesões eczematosas, diarreia, anorexia Anemia Depressão, espasmos musculares, arritmia Letargia, tetania Doses 0,3-2 mcg/dia 0.5-2mg/Kg/dia, oral (zinco – elemento) 300 mcg/Kg/dia, via endovenosa (ev) (zinco-elemento) 1-2 mg/Kg/dia, oral (ferro – elemento) Dose inicial: Gluconato de cálcio a 10% (9,4 mg de Ca elemento/ml ou 102 mg de gluconato de Ca/ml): 200 mg/kg de gluconato (2 ml/kg) em 10 minutos via endovenosa Dose de manutenção: 700-800 mg de gluconato de Ca/Kg/dia Dose inicial: MgSO4 a 50% (49,3 mg de Mg elemento/ml ou 500 mg de MgSO4/ml): 5-10 mg/Kg de Mg elemento ou 50100 mg/Kg de MgSO4 via intra-muscular ou endovenosa em 60 minutos Dose de manutenção: 0,4-0,8 ml/Kg/dia (4 doses, via oral) CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto Dos vários esquemas terapêuticos pode utilizarse por via oral: metronidazol (15 mg/Kg/dia, 8/8h) isolado ou associado ao cotrimoxazol (40-50 mg/Kg/dia, 12/12h); ou gentamicina (5 mg/Kg/ dia), durante 5 dias; deve, entretanto, reduzir-se a NE e suspender-se os antiácidos. Esta situação pode ser prevenida, nos doentes de risco, administrando nos primeiros 5 dias de cada mês um dos antibióticos acima referidos, alternando-os para evitar resistências bacterianas. Em casos de dilatação intestinal acentuada pode ser necessário proceder a intervenção cirúrgica – ressecção, modelagem ou alongamento intestinal – para resolução desta complicação. Tem-se demonstrado que os probióticos têm efeito na redução da necessidade de antibióticos e no controlo de sintomas relacionados com a proliferação bacteriana intestinal. 2. Colestase relacionada com NPT É uma situação frequente nos doentes com SIC e, juntamente com a sépsis, uma das principais causas de morte. Admite-se que a causa é multifactorial, sendo determinantes a ausência de NE, a presença de endotoxinas bacterianas e a hepatotoxicidade directa associada aos componentes da NPT. Manifesta-se por icterícia e hepatomegália, associadas a elevação das transaminases, fosfatase alcalina e bilirrubina conjugada. A melhor actuação consiste na introdução progressiva de NE, se possível; em geral a colestase resolve-se com a suspensão da NPT. Deve prevenir-se a proliferação bacteriana intestinal e a sépsis, garantir uma mistura adequada de glicose, proteínas, lípidos e oligoelementos na NPT e realizar esta última de modo cíclico. Como terapêutica dirigida utiliza-se o ácido ursodesoxicólico (15-30mg/Kg/dia, 12/12h, por via oral). 3. Sépsis É uma complicação comum que põe em risco a vida dos doentes com SIC. São considerados factores etiológicos importantes a contaminação externa dos cateteres e a migração bacteriana intestinal. Os agentes etiológicos são geralmente o Staphylococcus aureus e as enterobactérias. Por vezes são isolados fungos como a Candida albicans, que devem ser sempre considerados como hipótese etiológica em doentes que terminaram recentemente antibioticoterapia. Qualquer doente com SIC, com cateter central, em que se inicie febre, letargia ou outros 561 sinais de infecção, deve ser considerado como tendo sépsis, até prova em contrário. Deve proceder-se a culturas de sangue colhido de dois locais simultaneamente (cateter central e veia periférica) e iniciar antibioticoterapia de largo espectro, mantendo-a até conhecimento do resultado das hemoculturas. Se a infecção for fúngica está indicada anfotericina B lipossómica, removendo-se o cateter. Nas infecções bacterianas não há, em princípio, necessidade de remover o cateter, a não ser em situações de recorrência de sépsis, choque séptico ou persistência de hemocultura positiva. Perspectivas terapêuticas 1. Factores tróficos: o uso de factores tróficos, nomeadamente glutamina combinada com hormona de crescimento, associados à NE, parece ter efeitos positivos na adaptação intestinal. Em fase de investigação, a sua utilização é ainda controversa, parecendo, no entanto, ser promissora quanto ao prognóstico da situação em análise. 2. Transplantação intestinal: a transplantação intestinal tornou-se uma opção terapêutica para os doentes com insuficiência intestinal permanente em que o crescimento fica na dependência da NPT. A decisão de indicar o transplante deve ser extremamente bem ponderada, após esgotar todas as opções terapêuticas, nomeadamente a NPT, o uso de factores tróficos, e as terapêuticas cirúrgicas alternativas, devido aos riscos e à qualidade de vida associada ao transplante intestinal. A Associação Americana de Transplantação considera como indicações para transplantação intestinal na criança: doença hepática irreversível associada à NPT (hiperbilirrubinémia com bilirrubina conjugada superior a 3mg/dl persistindo para além de 3-4 meses acompanhada de sinais de hipertensão portal tais como esplenomegália, trombocitopénia ou circulação venosa superficial colateral marcada), sépsis recorrente e falta de acessos venosos centrais. Na situação de doença hepática irreversível, poderá estar indicada a transplantação hepática e intestinal combinada. Prognóstico O prognóstico após ressecção intestinal depende da respectiva extensão, da função e capacidade 562 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA adaptativa do intestino residual, das complicações, nomeadamente da doença hepática associada a NPT, da proliferação bacteriana intestinal, e do número de episódios de sépsis. Considera-se de bom prognóstico a situação em que se verifica crescimento adequado, não dependente da NPT. Em geral, o melhor prognóstico verifica-se em casos de SIC com 40-80 cm de intestino delgado residual e com válvula íleocecal intacta; nestes, a independência da NPT durante 1 ano é atingida em 80% dos casos; os doentes com menos de 40 cm de intestino residual e sem válvula íleo-cecal permanecem dependentes da NPT para além dos 8 anos. No entanto, há casos descritos de SIC com menos de 15 cm de intestino residual que se tornaram independentes da NPT. O crescimento e o desenvolvimento dos doentes com SIC são adequados na generalidade, embora na sua grande maioria se verifique menor estatura comparativamente à população geral; verifica-se ainda: maior número de dejecções diárias (com válvula íleo-cecal, cerca de 2 dejecções/dia; sem vávula, 2-10 dejecções/dia). São comuns a dificuldade de digestão e absorção de hidratos de carbono, bem como a intolerância ao leite e a alimentos condimentados. Existe risco aumentado de colelitíase, sobretudo nos casos submetidos a ressecção ileal importante. A hiperoxalúria e os cálculos renais são mais frequentes nos adultos. Em suma, os importantes avanços conseguidos com a terapêutica nutricional, a terapêutica médicocirúrgica e o transplante intestinal contribuiram decisivamente para melhorar as perspectivas dos doentes com síndroma do intestino curto. BIBLIOGRAFIA Abad-Siden A, Sutphen I. Nutritional management of pediatric short bowel syndrome. Pratical Gastroenterol 2003; 27: 28-48 Dibaise JK, Young RJ, Vanderhoof JA, Intestinal rehabilitation and the short bowel syndrome: (Part 2). Am J Gastroenterol 2004; 99: 1823-1832 Fisbein TM, Matsumoto CS. Intestinal replacement therapy: Timing and indications for referral of patients to an intestinal rehabilitation and transplant program. Gastroenterology 2006; 130: 5147-51-51 Goulet O, Ruemmele F, Lacaille F, Colomb V. Irreversible intestinal failure. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 38: 250-269 Hwang ST, Shulman RJ, Update on management and treat- ment of short gut. Clin Perinatol 2002; 29: 181-194 Kauffman SS, Atkinson JB, Bianchi A, et al. Indications for pediatric intestinal transplantation: A position paper of the American Society of Transplantation. Pediatr Transplant 2001; 5: 80-87 Sigalet DL. Short bowel syndrome in infants and children: An overview. Semin Pediatr Surg 2001; 10: 49-55 Vanderhoof JA, Young RJ. Enteral nutrition in short bowel syndrome, Semin Pediatr Surg 2001; 10: 65-71 Vanderhoof JA, Young RJ, Thompson JS. New and emerging therapies for short bowel syndrome in children. Paediatr Drugs 2003; 5: 525-531 Walker WA, Goulet O, Kleinman RE, et al (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 116 563 Os agentes víricos hepatotrópicos causadores de hepatite aguda são os designados por vírus A (VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de referir que apenas os vírus B,C e D causam hepatite crónica. (Quadro 1) São também agentes de hepatite aguda, no contexto de compromisso multiorgânico, os vírus de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex 1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramyxovírus. HEPATITE VÍRICA Gonçalo Cordeiro Ferreira 1. Hepatite A Formas de apresentação e agentes etiológicos Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob duas formas: Hepatites agudas em que, após o período de maior ou menor grau de lesão hepática, há uma recuperação funcional completa (excepto quando evoluem para hepatite fulminante, situação que acarreta uma alta morbilidade); Hepatites crónicas a que corresponde processo de inflamação hepática que persiste após a infecção inicial e se mantém por um período superior a 6 meses. Epidemiologia São considerados 3 padrões epidemiológicos de acordo com as condições socioeconómicas e sanitárias de regiões e países: Endemicidade elevada: países em desenvolvimento (Ásia, África, América do Sul e Central). A exposição ao VHA produz-se na infância, estando a população adulta imune. A infecção é, na maioria dos casos, assintomática e causada por contacto interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o elevado grau de protecção da população que atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras; Endemicidade intermédia: observa-se nos países QUADRO 1 – Vírus Hepatotrópicos: características Nome VHA Tipo RNA VHB DNA VHC RNA VHD RNA VHE VHG RNA RNA Transmissão Fecal-oral, raramente transfusional Sexual, parentérica, intrafamiliar, vertical Parentérica, sexual, (menos frequente) vertical Sexual , parentérica Fecal-oral Vertical, parentérica Período de incubação 28 dias (15-50 dias) Imunização activa Vacina Imunização passiva Imunoglobulina “standard” 40-160 dias Vacina Imunoglobulina específica 20-60 dias ––– ––– 40-160 dias Utilizada a vacina da Hepatite B Imunoglobulina específica anti VHB 30-40 dias Raramente doença hepática; muitas vezes coinfecção ––– ––– ––– ––– 564 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA com melhoria das condições sanitárias nos últmos anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes casos a exposição produz-se na adolescência ou no adulto jovem, podendo surgir surtos epidémicos relacionados com transmissão pessoal ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm marcadores de seroconversão; Endemicidade baixa: nos países muito desenvolvidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão, América do Norte) em que há uma baixa taxa de seroconversão mesmo nos adultos, havendo susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou alimentos contaminados, ou por viagens a países menos desenvolvidos. Portugal passou, nas últimas décadas, de um padrão de endemicidade alta para um de endemicidade intermédia, e mesmo, nalguns grupos socioeconómicos (estudo em estudantes com idade média de 20 anos), de endemicidade baixa (Quadro 2) Manifestações clínicas Em crianças com idade inferior a 6 anos verifica-se cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas ou paucissintomáticas com clínica semelhante a gastrenterite aguda). Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos surgem formas sintomáticas. Estas caracterizamse por dois períodos: pré-ictérico com sintomas gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia, náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima contagiosidade. Subsequentemente surge o período ictérico com colúria em apenas 5 % das crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há, então, melhoria franca da sintomatologia geral e redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas), seguindo-se um período de convalescença com melhoria da icterícia e diminuição das alterações das enzimas hepáticas. Ocasionalmente podem surgir formas colestáticas em que predominam sintomas como acolia e prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge novamente agravamento, mas de menor duração. Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por VHA na criança pode evoluir para um quadro de insuficiência hepatocelular aguda – hepatite fulminante – com alta mortalidade e necessidade frequente de transplante hepático. São sinais indicativos desta evolução a manutenção e agravamento dos sintomas gerais; e, no período ictérico, a intensificação da icterícia, o aparecimento de alterações comportamentais (irritabilidade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e de alterações clínicas da coagulação (discrasia hemorrágica). Diagnóstico O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda faz-se se se verificar elevação das enzimas de citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos valores são habitualmente 10 vezes superiores aos valores normais, mas podem ser 100 vezes superiores (geralmente entre a terceira e sexta semana de doença), sem que haja alguma relação com o prognóstico final. A sua normalização costuma indicar o final da doença (pela oitava semana de doença); contudo a sua queda abrupta na presença de icterícia agravada pode ser sugestiva de evolução para hepatite fulminante. A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por vezes a directa e a indirecta) encontra-se moderadamente aumentada na fase ictérica da doença bem como as enzimas de colestase (gama - glutamil – transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas nas formas colestáticas da infecção. A síntese proteica (albumina e factores da coa- QUADRO 2 – Taxa de IgG anti VHA na população portuguesa Idade (anos) 1-4 10-14 20-29 1981 Lecour e colaboradores 23,9% 76,4% 96,5% 1992 Marinho e colaboradores 1996 Lecour e colaboradores 35,3% 29,7% 76,1% CAPÍTULO 116 Hepatite vírica gulação) não está geralmente afectada, podendo, no entanto, haver um ligeiro aumento do tempo de protrombina. O metabolismo dos hidratos de carbono também não está alterado (normoglicémia). O diagnóstico etiológico faz-se pela demonstração da presença de anticorpos anti VHA da classe IgM. Estes surgem entre 25 a 30 dias após o contacto com o vírus e persistem durante cerca de 2 a 3 meses. Os anticorpos de classe IgG surgem após 40 dias e persistem indefinidamente. Tratamento O tratamento é de suporte, incluindo hidratação e nutrição adequadas, nomeadamente com suprimento de hidratos de carbono de absorção rápida (açúcares). Não há necessidade de repouso forçado ou de dietas restritivas. Profilaxia É realizada através de imunoterapia passiva e da vacina: – Imunoterapia passiva: para contactos com menos de 40 anos (a partir dessa idade já existem em geral anticorpos) de preferência antes de 2 semanas após a exposição; administra-se imunoglobulina “standard” (polivalente) por via intramuscular: 0,02 ml/Kg em dose única (máximo: 3 ml em lactentes e 5 ml em crianças maiores). – Vacina: é produzida a partir de vírus inactivados sendo muito eficaz. Induz imunidade prolongada e seroconversão rápida (94,6% após a 1ª toma, 100% após a segunda que deve ser administrada 6 meses depois da primeira). Em Portugal encontra-se comercializada a vacina Havrix®, estando a forma Havrix 720 (Junior) indicada para menores de 15 anos de idade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a vacinação em larga escala nas crianças que habitam países de endemicidade intermédia. A Associação Espanhola de Pediatria (AEP) recomenda a vacinação a todas as crianças de mais de um ano que frequentem creches ou jardim-escolas. As recomendações devem incluir, na idade pediátrica, crianças que viajem para países de elevada endemicidade ou portadoras de doença hepática crónica ou de patologia hematológica que necessitem de administração repetida de sangue ou derivados. 565 2. Hepatite B Epidemiologia O VHB pertence à família dos Hepadnavirus (vírus com tropismo hepático). A infecção por este vírus tem enorme relevância a nível mundial, estimando-se que existam 350 milhões de infectados em todo o mundo. Consideram-se três padrões epidemiológicos : – Áreas geográficas de alta endemicidade (prevalência de portadores do VHB superior a 8%) na China, Sudeste Asiático, África negra, bacia do Amazonas e Alasca; – Áreas de endemicidade intermédia (2-7% de portadores) na América do Sul, bacia do Mediterrâneo, Europa de Leste e Próximo Oriente; – Áreas de baixa endemicidade (prevalência de portadores inferior a 2%) na Europa Ocidental, América do Norte e Austrália. Globalmente Portugal é considerado um país de endemicidade baixa, mas nos grandes centros urbanos a prevalência corresponde a endemicidade intermédia. A transmissão vírica na idade pediátrica pode ser: perinatal(vertical através de mãe infectada); intrafamiliar (horizontal), a de maior significado no nosso país; ou na adolescência (parenteral relacionada com a toxicodependência ou sexual). A infecção pode originar um quadro de hepatite aguda ou crónica (com alteração das provas hepáticas) ou de “portador assintomático” (sem alteração das provas hepáticas e com uma actividade necroinflamatória hepática mínima). Manifestações clínicas Descrevem-se essencialmente duas formas clínicas: Hepatite aguda: o quadro clínico da hepatite B aguda é semelhante ao da hepatite A sendo, no entanto, mais frequente o aparecimento de sintomas extra-hepáticos: artralgias, renais (glomerulopatias), cutâneos (acrodermatite papular constituindo a síndroma de Gianotti-Crosti) ou síndroma tipo mononucleose. Por outro lado, o risco de evolução para hepatite fulminante é mais elevado (1%). Hepatite crónica: é, na grande maioria dos casos, clinicamente silenciosa, sendo revelada quando se realizam rastreios analíticos em crianças familiares de doentes ou de portadores do 566 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA VHB, institucionalizadas ou provenientes de países endémicos. Diagnóstico Para o diagnóstico laboratorial da hepatite B (Quadro 3) são utilizados os seguintes marcadores: Ag = (antigénio) Ac = (anticorpo) Ag HBs: Marcador de infecção actual. Ag HBe: Marcador de replicação vírica elevada e de alta contagiosidade. Ac HBc: Marcador de infecção passada ou actual (interesse em estudos epidemiológicos) Ac HBc de classe Ig M: Marcador de infecção recente. Ac HBe: Marcador do fim da replicação vírica activa. Ac HBs: Marcador da seroconversão natural ou de resposta vacinal. DNA VHB: Marcador da replicação vírica e infecciosidade, podendo ser quantificada a carga vírica. (Quadro 3) A hepatite aguda diagnostica-se por elevação das transaminases, associando-se à presença de Ag HBs e de Ac HBc de classe IgM. A hepatite crónica define-se pela presença de Ag HBs por um período superior a 6 meses. Pode ser acompanhada de inflamação hepática traduzi- da por elevação das transaminases, habitualmente no contexto de replicação vírica activa, ou pode cursar com transaminases normais, geralmente sem replicação vírica a que corresponde a situação de portador assintomático. História natural da infecção pelo VHB A infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) adquirida no período perinatal (transmissão vertical) evolui para a cronicidade em mais de 90% das crianças. A infecção adquirida nos primeiros 5 anos de vida, habitualmente por transmissão intrafamiliar (horizontal), evolui para a cronicidade em 20-30% dos casos. As crianças infectadas no período perinatal apresentam um padrão de “tolerância imune” ao VHB, com replicação vírica activa, presença de Ag HBe, DNA VHB muito elevado no soro e transaminases normais. Ulteriormente muitas delas , tal como as que foram infectadas mais tardiamente, irão apresentar um padrão diferente com elevação das transaminases, presença de Ag HBe e DNA VHB, e manifestações necroinflamatórias demonstradas na histologia hepática. Cerca de 80% destas crianças irão apresentar seroconversão anti HBe perto da puberdade, com normalização das transaminases, níveis indectetáveis de DNA VHB (excepto pela técnica de reacção em cadeia da polimerase ou PCR) e ausência ou presença QUADRO 3 - Diagnóstico laboratorial do estádio da infecção pelo VHB Transaminases Marcadores Elevadas AgHBs + Ac HBc IgM + Hepatite crónica Elevadas AgHBs + “activa” AgHBe + AcHBc IgM “Portador” crónico Normais AgHBs + Ac HBe + AcHBc IgM Seroconversão natural Normais AgHBs – AcHBc + AcHBs + Contacto antigo Normais AcHBc + com o vírus Restantes negativos Estado pós vacinal Ac HBs + Restantes negativos Hepatite aguda Replicação vírica Comentários Elevada Elevada Na infecção perinatal os RN têm transaminases normais Baixa Nula Nula Nula Útil em estudos epidemiológicos como indicador de contacto com o VHB CAPÍTULO 116 Hepatite vírica mínima de actividade inflamatória demonstrada por histologia hepática. A taxa de diminuição progressiva ou de depuração do Ag HBe é muito baixa nos primeiros 3 anos de vida (2-10%), aumentando subsequentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração espontânea do VHB com seroconversão anti HBs é muito baixa(6% num seguimento de 20 anos). Apesar da aparente benignidade da evolução da HB na criança, há casos descritos de cirrose precoce com risco acrescido de carcinoma hepato celular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluindo com depuração do Ag HBe pode apresentar reactivação ou manutenção das alterações hepáticas, comportando risco de evolução na idade adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular. A experiência portuguesa é semelhante à das séries europeias, predominando as formas adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo efectuado no Hospital Dona Estefânia compreendendo 187 crianças infectadas comprovou-se que em 42,7% dos casos a transmissão fôra horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical. O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas, administrando imunoglobulina e vacinando os seus recém nascidos, e a introdução da vacinação contra a HB, (inicialmente nos pré-adolescentes e actualmente desde o nascimento), levaram a uma redução dos novos casos (redução de 80% dos casos até aos 14 anos comunicados à Direcção Geral da Saúde - DGS entre 1995-1999). Assim, para além das crianças infectadas antes destas mudanças nas normas de actuação, os novos casos recebidos nos centros pediátricos correspondem fundamentalmente a crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, nomeadamente das ex colónias africanas. Tratamento O tratamento de um agente infeccioso deverá ter como objectivo a sua eliminação do organismo.No entanto, a constatada impossibilidade de qualquer pauta terapêutica utilizada levar consistentemente à eliminação do VHB com seroconversão anti HBs torna os objectivos terapêuticos mais limitados. O tratamento de crianças com HB crónica tem 567 como finalidade a diminuição da actividade necroinflamatória hepática através da eliminação da replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag HBe (com ou sem seroconversão anti e), e desaparecimento dos níveis séricos detectáveis do DNA VHB (resposta virológica). Adicionalmente procura-se a normalização das transaminases (resposta bioquímica). Desta forma, obvia-se a progressão da lesão hepática para cirrose e risco de carcinoma hepatocelular (CHC). No entanto, sabendo-se que, mesmo na ausência de cirrose e de replicação vírica activa, a infecção crónica pelo VHB pode a longo prazo originar o CHC (provavelmente após a integração do genoma do vírus no DNA do hepatocito), será necessário analisar a mais longo prazo os efeitos desta terapêutica limitada para avaliar os seus reais benefícios. Os fármacos mais utilizados nos últimos anos no tratamento da HB crónica da criança são o interferão alfa e a lamivudina. (Quadro 4) Os efeitos secundários com o interferão são mais acentuados, tais como síndroma gripal após a administração, diminuição do número dos neutrófilos (reversível com a diminuição da dose), sintomas depressivos na adolescência, perda do apetite e do cabelo, fenómenos autoimunes (anemia hemolítica, tiroidite), etc.. Não têm sido descritos efeitos adversos significativos com a lamivudina Em fase experimental encontram-se estudos combinando interferão com lamivudina, uso de interferão peguilado (uma só injecção semanal) e uso de outro análogo dos nucleótidos (adefovir) que não induz mutantes resistentes como a lamivudina. Os resultados da terapêutica com interferão ou com lamivudina são semelhantes e apresentam a curto prazo efeitos positivos em relação ao curso natural da doença, sendo necessários estudos de maior duração para comprovar esses benefícios a longo prazo. Tal como noutras séries europeias, a casuística do Hospital Dona Estefânia mostra que, a longo prazo, a seroconversão AgHBs-AcHBs é semelhante nas crianças tratadas e não tratadas, mas que, a curto prazo, há uma resposta virológica mais precoce no grupo tratado. A lamivudina apresenta menos efeitos secundários, menos custos e é de mais cómoda 568 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 4 – Tratamento da HB Fármaco Interferão alfa Lamivudina Critérios terapêuticos AgHBe + DNA VHB > 105/ml Transaminases > 2x Sem lesão hepática descompensada AgHBe + (ou –) com replicação vírica (DNA VHB +) Transaminases > 2x Pode haver lesão hepática descompensada Dose 5-6 MU/m2 via subcutânea 3 x semana Duração 6 meses 3 mg/Kg/dia 1xdia per os (máximo : 100 mg) 12 meses, podendo prolongar-se para 18-24 meses se não houver resposta Risco de indução de mutantes resistentes (YMDD) administração que o interferão; poder-se-á, por isso, considerar o tratamento de primeira escolha na HB crónica na criança. No entanto, não se conhece ainda bem o tempo necessário para manter o tratamento com este fármaco, sabendo-se que a emergência cumulativa de mutantes YMDD ao longo do tempo limita necessariamente o uso de esquemas terapêuticos de longa duração. Em suma, os resultados globalmente decepcionantes da terapêutica da HB crónica na criança, apontam para a importância de prevenção. Profilaxia A profilaxia tem duas componentes fundamentais: – Imunoterapia passiva: a gamaglobulina específica hiperimune (HBIG) utiliza-se nos RN filhos de mães portadoras do VHB (em simultâneo com o início da vacina) nas primeiras 812 horas de vida, na dose de 0,5 ml. Nos contactos acidentais com material potencialmente contaminado (agulhas com sangue) em crianças não vacinadas, deve ser administrada na dose de 0,06 ml/Kg (máximo 5 ml), seguindo-se esquema vacinal rápido (0-1-2-12 meses). – Imunoterapia activa: em Portugal já tem lugar a vacinação universal dos RN segundo o esquema 0-1-6 meses. As crianças ainda não abrangidas por este plano são vacinadas entre os 11-13 anos. Em qualquer dos casos não são necessárias doses de reforço para além das 3 doses da primovacinação. 3. Hepatite C Epidemiologia A infecção pelo VHC atingindo mais de 170 milhões de pessoas em todo o mundo é a causa mais importante de hepatite vírica crónica nos países desenvolvidos. A transmissão ocore fundamentalmente por via parentérica (hemoderivados contaminados até ao início dos anos 90, data a partir da qual passou a ser feito o rastreio serológico sistemático dos dadores e dos toxicodependentes). A via sexual é também possível, mas com muito menor frequência que a hepatite B. Na idade pediátrica o principal meio de transmissão é o materno-fetal (vertical) com um risco de transmissão que oscila entre 3-5%, atingindo 30% quando as mães estão infectadas em simultâneo pelo VHC e pelo vírus de imunodeficiência humana (a virémia do VHC é muito intensa nestes casos). Num estudo prospectivo que efectuámos no Hospital Fernando Fonseca e que compreendeu 43 pares mãe-filho seguidos desde o nascimento até aos 18-24 meses verificou-se uma baixa taxa de infecção (2,2%). A excreção do vírus no leite materno não foi demonstrada, pelo que o aleitamento por mães VHC + (desde que VIH -) não está contraindicado. A estrutura genética do VHC não é uniforme, descrevendo-se 6 genotipos (1-6), sendo o genotipo 1 o mais frequente na Europa e EUA. CAPÍTULO 116 Hepatite vírica Manifestações clínicas e história natural A infecção pelo VHC na idade pediátrica é geralmente assintomática, havendo uma evolução para a cronicidade em 70-85% dos infectados. Os estudos em crianças com infecção vertical mostram ausência de sintomas ou sinais (como icterícia ou hepatomegália), mas elevação de transaminases em 90% dos casos no 1º ano de vida (dos quais 30% com aumento até 5 vezes o normal); 23% dessas crianças infectadas evidenciaram sinais de cura aos 3 anos de vida evoluindo 77% para a cronicidade. Ao contrário da infecção no adulto, na criança não há associação habitual a outras doenças extrahepáticas autoimunes podendo, no entanto, em 7% dos doentes haver associação com anticorpo LKM-1. Diagnóstico O diagnóstico da infecção pelo VHC baseia-se na presença do Ac VHC, confirmada por técnicas de 3ª geração (RIBA 3) e na demonstração da virémia (positividade para RNA-VHC por PCR). A virémia pode ser intermitente, pelo que uma determinação negativa não exclui o diagnóstico. As alterações das transaminases ocorrem segundo 3 padrões: disfunção persistente (a mais frequente na data do diagnóstico); alteração flutuante (alternando com períodos de normalidade); normalidade continuada (mesmo na presença de virémia). O diagnóstico de cronicidade baseia-se na demonstração do RNA-VHC, pelo menos 3 anos após o contacto conhecido (nomeadamente após o parto). Nestes casos há também presença do Ac VHC no soro, excepto nos imunodeficientes. No doente com infecção crónica deve ser avaliado o genotipo, o qual permite prever a resposta terapêutica. Tratamento A infecção pelo VHC nas crianças tem um curso habitualmente muito ligeiro ou moderado (75% dos casos com inflamação hepática leve e 22% moderada de acordo com dados da biópsia), apenas apresentando cirrose 2% (ao contrário dos adultos em que na segunda década da infecção há progressão para cirrose em percentagem dez vezes superior). 569 A decisão de iniciar terapêutica só deve ser tomada em crianças de idade superior a 3 anos com elevação continuada ou intermitente das transaminases. Os esquemas mais utilizados associam o interferão alfa (na dose de 3-5 MU/m2, via subcutânea, 3 vezes por semana) ou o Peg Interferão alfa 2b (na dose de 1 micrograma/Kg, 1 vez por semana) em combinação com a ribavirina oral na dose de 15 mg/Kg/dia. O tratamento deverá ter uma duração de 48 semanas para doentes com genotipo 1 e de 24 semanas para doentes com genotipos 2 e 3. Profilaxia No que respeita à profilaxia passiva, de referir que as imunoglobulinas “standard” não são eficazes na prevenção da infecção Quanto à activa, pela variabilidade genómica do vírus, não estão ainda disponíveis vacinas eficazes. 4. Hepatite D Resulta dum vírus RNA incompleto que, para se manter infectante, necessita de uma cobertura exterior, assegurada pelo Ag HBs. Como tal, a infecção por este vírus só acontece no contexto de uma coinfecção com o VHB, ou de uma sobreinfecção de um doente com VHB, crónico. Trata-se duma infecção rara na idade pediátrica. A sobreinfecção nos doentes com hepatite B crónica aumenta a gravidade desta. O tratamento e prevenção são os aplicáveis à hepatite B. 5. Hepatite E Trata-se duma hepatite por vírus com uma transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, sendo frequente a existência de surtos epidémicos em países da América Central, Índia e África do Norte; esta infecção é rara entre nós. Não apresenta evolução para a cronicidade, sendo a incidência maior entre adolescentes e adultos jovens. Na grávida, principalmente no último trimestre, tem uma alta mortalidade (até 20%). Não há imunoglobulina específica ou vacina disponíveis. 570 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 6. Hepatite G Este vírus pertence à família do VHC com um mecanismo de transmissão fundamentalmente parentérica; no entanto poderá haver transmissão vertical. É factor de coinfecção com outros vírus hepatotrópicos, mas há dúvidas de que, isoladamente, possa causar algum tipo de infecção hepática relevante, aguda, fulminante ou crónica. 117 HEPATITE AUTOIMUNE Inês Pó BIBLIOGRAFIA Cordeiro- Ferreira G. Tratamento da hepatite B crónica em Pediatria. J Port Gastrenterol 2004; 11 82): S 48-51 Definição e importância do problema D’ Antiga L, Aw M, Mieli-Vergani G, et al. Combined lamivudine/interferon alpha treatment in children perinatally infected with hepatitis B: A pilot study. J Pediatr 2006; 148: 228-233 Jara P, Resti M, Hierro L et al. Chronic hepatitis C virus infection in childhood : clinical patterns and evolution in 224 white children. Clin Infect Dis 2003 ; 36 : 275-280 Jara P, Bortolotti F. Interferon-alpha treatment of chronic hepatitis B in childhood: consensus advice based on experience in european children. JPGN 1999; 29: 163-170 Jonas MM, Kelley DA, Miserski J, et al. Clinical trial of Lamivudine in children with chronic hepatitis B. NEJM 2002; 346: 1706-13 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Marinho RT, Valente AR, Ramalho FJ, et al. The changing A hepatite autoimune (HAI) é uma doença inflamatória crónica grave do fígado, progressiva e rara, que evolui para cirrose e insuficiência hepática e é acompanhada de elevação do teor sérico de aminotransferase, presença de auto-anticorpos associados ao fígado e de hipergamaglobulinémia. Caracteriza-se histologicamente por infiltrado intenso de células mononucleares nos espaços porta. De acordo com as características dos autoanticorpos encontrados na data do diagnóstico, a hepatite autoimune classifica-se em 2 tipos: tipo 1 (com auto-anticorpo, anti-músculo liso); tipo 2 (com auto-anticorpos, anti-fígado-rim microssoma). Etiopatogénese epidemiological patterns of hepatitis A in Lisbon, Portugal. Eur J Gastroenterol Hepatol 1997; 9: 795-797 Resti M, Jara P, Hierro L et al. Clinical features and progression of perinatally acquired hepatitis C infection. J Med Virol 2003; 70: 373-377 Schiff ER. Presention of mortality from hepatitis B and hepatitis C. Lancet 2006; 368: 896-897 Sokal EM. Viral hepatitis throughout infancy to adulthood. Acta Gastroenterol Belg 1998; 61: 170-174 Vento S, Nobili V, Cainelli F. Clinical course of infection with hepatitis C. BMJ 2006; 332: 374-375 Wirth S, Gehring S, Lang T et al . Recombinant alfa- Interferon plus ribavirin therapy in children and adolescents with chronic hepatitis C. Hepatology 2002; 36:1280-284 O mecanismo etiopatogénico na HAI é idêntico ao de todas as doenças autoimunes: aparecimento duma resposta imunológica exagerada contra os próprios antigénios, neste caso hepáticos. A predisposição genética é sugerida pelo aumento da frequência dos haplotipos HLA B8/DR3, dos dos alotipos DR3 e DR4, e pela coexistência de outras manifestações autoimunes. A HAI está também associada a outros autoanticorpos séricos, para além dos referidos atrás, importantes para o diagnóstico, embora com papel desconhecido na etiopatogénese da entidade. (Quadro 1). Manifestações clínicas A doença pode manifestar-se de modo muito diversificado, desde a detecção de hepatomegália CAPÍTULO 117 Hepatite autoimune QUADRO 1 – Auto-anticorpos séricos na HAI Anticorpos anti-fígado/rim microssoma (LKM) Anticorpos anti-fígado/citosol (LCA) Anticorpos anti-músculo liso (SMA) Anticorpos anti-nucleares (ANA) Anticorpos anti-fígado/membrana (LMA) Anticorpos anti-proteína específica do fígado (LSP) assintomática numa observação de rotina, ao aparecimento de insuficiência hepática. Em ambos os tipos de HAI (1 e 2) a doença predomina no sexo feminino. São frequentes outras manifestações autoimunes, tanto nos doentes como nos familiares. Na HAI do tipo 1, as doenças autoimunes mais frequentes são a síndroma nefrótica, a colangite esclerosante, a colite ulcerosa, a trombocitopénia autoimune, a anemia hemolítica autoimune, a doença de Behcet, etc.. À HAI do tipo 2, associam-se tiroidite, vitíligo, hipoparatiroidismo, doença de Addison e diabetes insulinodependente. Em cerca de 50% dos casos o quadro surge insidiosamente com cansaço progressivo e icterícia. Em menor percentagem as manifestações são idênticas às da hepatite aguda, por vezes com insuficiência hepática que pode ser fulminante. Em 15% dos casos o diagnóstico é feito no âmbito da avaliação duma esplenomegália, ou hepatomegália, ou de situações com função hepática alterada. Numa minoria de casos a doença hepática não é muito relevante quando é feito o diagnóstico, predominando sinais de compromisso extra-hepático. No entanto, em todos os casos há sempre hepatomegália e transaminases (ALT e AST) elevadas desde o início da doença. A doença deve ser sempre admitida como hipótese em todos os doentes com sinais e sintomas de doença hepática prolongada ou grave. Diagnóstico O padrão histológico é fundamental para confirmar o diagnóstico. No entanto, o estado geral precário muitas vezes não permite a realização da biópsia hepática. A ausência de detecção dos auto-anticorpos, 571 não deverá inicialmente excluir o diagnóstico, pois os mesmos poderão surgir somente com a evolução da doença. Os critérios de diagnóstico habitualmente aceites são discriminados no Quadro 2. Na avaliação destes doentes é importante: 1) proceder a endoscopia digestiva alta para detecção de sinais hipertensão portal; 2) avaliar a função hepática com a determinação do tempo de protrombina e da albumina sérica. Tratamento Se a HAI se manifestou desde o início por insuficiência hepática aguda/fulminante, o tratamento indicado é o transplante hepático urgente. Nos outros casos a terapêutica indicada é a imunossupressão. O tratamento deve ser iniciado com prednisolona na dose de 2mg/kg/dia (dose máxima de 60 mg), que se vai diminuindo progressivamente se houver redução do valor das transaminases. O objectivo é manter uma dose mínima, habitualmente 5 mg/dia, suficiente para manter as transaminases normais. Nas primeiras 8 semanas de tratamento a avaliação das transaminases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes necessários da dose de corticóide. O tratamento deve ser iniciado imediatamente, não se esperando pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas. Se não houver normalização das transaminases ou se a evolução não permitir reduzir a dose de corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de 0,5-2mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais baixa. Apesar de, na maior parte dos casos, as transaminases começarem a baixar logo que se inicia a terapêutica, a sua completa normalização poderá surgir somente ao cabo de alguns meses. As recidivas são frequentes obrigando a novos acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para cirrose depende também dos achados iniciais da biópsia: se na data do diagnóstico já forem evidentes os quadros morfológigicos de “bridging” e da chamada “piecemeal necrosis”, é provável que, apesar do tratamento, se verifique tal evolução. A eficácia da terapêutica é determinada pelo valor das transaminases e gamaglobulinas, e não pelo título dos auto-anticorpos. 572 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 2 – Critérios para o diagnóstico de hepatite autoimune Histologia Hepatite de interface (ou de actividade necroinflamatória periportal com infiltração celular ultrapassando o espaço porta) moderada a grave; hepatite lobular ou necrose“bridging”* portal central sem lesões biliares ou granulomas bem definidos e sem alterações sugerindo outra etiologia Bioquímica Alteração das transaminases, especialmente se a fosfatase alcalina estiver pouco elevada Alfa-1-antitripsina, cobre e ceruloplasmina séricos normais Imunoglobulinas séricas Globulinas séricas totais ou gamaglobulinas ou IgG elevada (1,5 vezes acima do valor normal) Autoanticorpos séricos ANA/SMA ou Anti-LKM com títulos > 1:80 Marcadores víricos Serologia negativa para hepatite A,B,C Outros factores etiológicos Consumo de álcool <25g/dia Ausência de uso recente de drogas hepatotóxicas *Bridging: processo de fibrose entre dois espaços porta (International Autoimmune Hepatitis Group Report: Adaptado de Alvarez e colaboradores, 1999). Nos casos que não respondem a esta imunossupressão poderão ser tentadas outras drogas imunossupressoras (ciclosporina, tacrolimus). A maior parte dos autores recomenda actualmente que o tratamento se mantenha, pelo menos, 5 anos após a normalização das transaminases. Após suspensão da terapêutica há que manter uma vigilância rigorosa das transaminases pelo perigo de recidiva. Há autores que recomendam nas hepatites auto-imunes LKM positivas, manutenção da terapêutica durante toda a vida. Está indicada transplantação hepática se surgir insuficiência hepática fulminante, complicações da cirrose hepática, falência da terapêutica médica, ou aparecimento de efeitos secundários intoleráveis da medicação. Estes doentes devem ser sempre seguidos em centros especializados. BIBLIOGRAFIA Alvarez F. Autoimmune hepatitis In: Suchy FJ, Sokol RJ, Balistreri WF, (eds). Liver Diseases in Children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins, 2001;187-194 Czaja AJ, Bianchi FB, Carpenter HA, et al. Treatment challenges and investigational opportunities in autoimmune hepatitis. Hepatology 2005; 41: 207-215 Davidson S. Chronic hepatitis. In: Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in Children. Oxford: Blackwell Publishing 2004; 142-148 Maggiore G, Alvarez F, Bernard O. Autoimune hepatitis. In: Buts J-P, Sokal E (eds). Management of Digestive and Liver Disorders in Infants and Children. Paris: Elsevier, 1999;567575 Oettinger R, Brunnberg A, Gerner P, et al. Clinical features and biochemical data of Caucasian children at diagnosis of autoimmune hepatitis. J Autoimmun 2005; 24: 79-84 Poley R. Chronic hepatitis. In Gracey M, Burke V (eds). Pediatric Gastroenterology and Hepatology. London: Blackwell, 1993; 684-695 CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente 118 COLESTASE DO RECÉM-NASCIDO E LACTENTE 573 uterino – síndroma de Alagille, doença metabólica, infecção intra-uterina; • Sinais dismórficos – síndroma de Alagille, cromossomopatias, síndroma de Zellweger; • Hipoglicémia – doença metabólica, hipopituitarismo, insuficiência hepática; • Sopro cardíaco ou manifestações neurológicas – sindromas congénitas específicas. Diagnóstico Inês Pó Definição A colestase do recém-nascido e lactente define-se como a redução do fluxo biliar, com consequente acumulação de pigmentos biliares nos hepatócitos e canais biliares e aumento da concentração sérica dos produtos que são excretados em circunstâncias normais pela bílis como bilirrubina, ácidos biliares, colesterol, etc.; tal processo traduz-se essencialmente por hiperbilirrubinémia conjugada desde o período neonatal (primeiras 4 semanas de vida) e prolongando-se nos primeiros meses de vida. Factores etiológicos e classificação O Quadro 1 sintetiza os principais factores etiológicos implicados na colestase do recém-nascido e lactente os quais permitem uma classificação. Dum modo geral podem estar em causa agentes exógenos e condições patológicas congénitas específicas. Manifestações clínicas Apesar de serem inúmeras as causas de colestase, a apresentação clínica é semelhante, reflectindo sempre a diminuição do fluxo biliar. Os lactentes com colestase evidenciam icterícia de intensidade variável, urina escura, fezes claras e hepatomegália, associando-se em geral sinais de disfunção de síntese e de necrose hepatocelular. No exame objectivo alguns aspectos podem orientar para determinadas etiologias: • Lactentes com restrição de crescimento intra- A avaliação do recém-nascido e lactente com colestase deve ser feita de modo sistematizado. De tal metodologia vai depender, em grande parte, a sua evolução, pelo que se aconselha o envio destas crianças a centros especializados com experiência neste tipo de patologia. É, de facto, imperativo reconhecer atempadamente situações com indicação de tratamento médico (galactosémia, tirosinémia, sépsis) ou de tratamento cirúrgico que não poderão ser diferidos sob pena de aparecimento complicações e sequelas (por exemplo, atrésia das vias biliares extra-hepáticas, que deverá ser operada até às 6 semanas). Todo o aumento sérico da bilirrubina conjugada, superior a 15-20% da bilirrubina total, é patológico e deve ser sempre investigado. Em todo o recém-nascido com icterícia prolongada (mais de 15 dias) sobretudo se não estiver a ser alimentado ao peito, é fundamental excluir colestase determinando o valor da bilirrubina total e conjugada. Durante a avaliação as fezes devem ser examinadas diariamente durante pelo menos 10 dias, dejecção a dejecção, para determinar se há acolia contínua ou intermitente. A persistência de acolia durante 10 dias ou mais sugere atrésia das vias biliares. A avaliação de parâmetros bioquímicos que fundamentam a colestase deve ser feita por etapas. Numa primeira fase avalia-se a função hepática (incluindo o estudo da coagulação), começando por se excluir as situações mais frequentes. Numa segunda fase, há que proceder ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é facilitado pelo algoritmo apresentado. (Quadro 3). Não há nenhuma análise bioquímica que seja patognomónica. Durante muito tempo usou-se a elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de 574 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Colestase do recém-nascido e lactente: factores etiológicos e classificação Hepatite neonatal Idiopática Infecções víricas Citomegalovírus Vírus herpes Rubéola Reovírus tipo 3 Adenovírus Enterovírus Parvovírus B19 Vírus da hepatite B VIH (vírus da imunodeficiência humana) Infecções bacterianas e parasitárias Sépsis bacteriana e endotoxémia (infecção urinária,gastrenterite) Listeriose Sífilis Tuberculose Toxoplasmose Malária Obstrução das vias biliares Colangiopatias Atrésia das vias biliares Quisto do colédoco Hipoplasia biliar não sindromática Síndroma de Alagille Colangite esclerosante neonatal Perfuração espontânea da via biliar Doença de Caroli Fibrose hepática congénita Estenose da via biliar Outras Bílis espessa Colelitíase Tumores/massas (intrínsecas e extrínsecas) Sindromas colestáticas Colestase intra-hepática familiar progressiva causada por defeitos de transporte tipo 1 (doença de Byler), tipo 2 e tipo 3 Colestase hereditária com linfedema (sindroma de Aagenaes) Colestase dos Índios Norte Americanos Sindroma de Nielsen ( Esquimós da Groenlândia) Colestase recorrente benigna (defeito no mesmo gene da colestase familiar progressiva do tipo 1) Sindroma de Dubin-Johnson neonatal atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A grande variabilidade dos resultados tornou o seu uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar Doenças metabólicas Deficiência de alfa 1 antitripsina Fibrose quística Hemocromatose neonatal Endocrinopatias Hipopituitarismo (displasia septo-óptica) Hipotiroidismo Alteração do metabolismo dos aminoácidos Tirosinémia Hipermetioninémia Alteração do metabolismo dos lípidos Doença de Nieman-Pick Doença de Gaucher Doença de Wolman Doença do armazenamento do colesterol Doenças do ciclo da ureia (deficiência de arginase) Alterações do metablismo dos hidratos de carbono Galactosémia Frutosémia Glicogenose do tipo IV Doenças mitocondriais (cadeia respiratória) Doenças dos peroxizomas Sindroma de Zellweger Doença de Refsum infantil Outras enzimopatias Defeitos de síntese dos ácidos biliares Tóxicos Drogas Nutrição parentérica Alumínio Outras Choque/hipoperfusão Histiocitose X Lúpus eritematoso neonatal Cromossomopatias Trissomia 18,21 (síndroma de Down) Linfo-histiocitose eritrofagocítica Doença venoclusiva Síndroma de Donahue (leprechaunismo) Eritroblastose fetal Défice congénito de glicosilação Adaptado de Suchy FJ,2001 valores normais e a fosfatase alcalina estiver elevada, poderá tratar-se em presença de colestase intracelular. CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase neonatal 1ª fase História clínica Exame objectivo Avaliação diária do aspecto macroscópica das fezes (dejecção a dejecção) Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase alcalina; LDH, amónia, glicemia, alfafetoproteína, colesterol, triglicéridos, siderémia, ferritina, ácidos biliares, fenotipo de alfa-1-antitripsina, serologia TORCHES, vírus da hepatite B, hemoculturas Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras, succinil-acetona Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia do esqueleto Histologia: biópsia hepática Outros: paracentese (se ascite) LDH: Desidrogenase láctica) 575 A biópsia hepática é o exame mais importante na avaliação dum lactente com colestase. Nas crianças com menos de 6 semanas de vida os achados histológicos característicos de atrésia das vias biliares (proliferação ductular, alargamento dos espaço porta com escasso infiltrado inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e estase biliar) poderão ainda não estar presentes, sendo então necessário repetir a biópsia hepática após algumas semanas. A biópsia pode também sugerir doenças metabólicas ou de depósito (tesaurismoses) como causa da colestase. Nos casos em que não é possível estabelecer o diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares, deve ser feita uma laparatomia exploradora com colangiografia intraoperatória. Este procedimento deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com experiência deste tipo de patologia. Recentemente tem-se usado a colangiorressonância que, apesar de necessitar de anestesia, é uma técnica menos invasiva que a anterior. TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis 2ª fase Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia, aminoácidos, galactose-1-fosfato, uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH, lactato, piruvato, CDT (transferrina deficiente em hidratos carbono), estudos genéticos Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos Imagem: CPRE, colangiorressonância Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele), fígado, músculo, medula óssea. A ecografia é importante para o diagnóstico de defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia das vias biliares sendo de salientar que a importância deste método depende muito da experiência do imagiologista. A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marcado por análogos do ácido iminodiacético pode dar contributo para estabelecer a destrinça entre a atrésia das vias biliares e colestase não obstrutivas. Para aumentar a excreção biliar do isótopo e aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a administração prévia de fenobarbital na dose de 5 mg/Kg/dia durante 5 dias. Tratamento O tratamento das síndromas colestáticas do recémnascido e lactente depende do diagnóstico e da data em que o mesmo é realizado. Os doentes com atrésia das vias biliares extrahepáticas devem ser operados até às 6 semanas de vida. Depois dos 3 meses de idade há que ponderar a indicação operatória, pois estes doentes necessitarão de transplante hepático precoce. Algumas doenças metabólicas também têm indicação para transplante hepático (deficiência de alfa-1-antitripsina, doença de Byler, tirosinémia), dependendo da evolução de cada caso. (capítulo 123) Os restantes doentes necessitam habitualmente de tratamento médico. Usa-se o ácido ursodesoxicólico nos casos de obstrução incompleta e nas colestases não obstrutivas, na dose de 10-40 mg/kg/dia, além doutras medidas de suporte. BIBLIOGRAFIA Buts JP, Sokal E (eds). Management of Digestive and Liver Disorders in Infants and Children. Paris: Elsevier, 1999 Balistreri WF, Bezerra JA, Jansen P, et al. Intrahepatic cholestasis. Hepatology 2005; 42: 222-235 Jansen PLM, Sturm E. Pediatric cholestasis: Is villin the villain. Lancet 2003; 362: 1090-1091 576 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 3 – Algoritmo para o estudo da colestase neonatal Icterícia neonatal Hiperbilirrubinemia indirecta Hiperbilirrubinemia directa Aleitamento materno Hemólise Sépsis Hipotiroidismo Estenose hipertrófica do piloro ↑BT / ↑BD Bilirrubina (+) urina Acolia e colúria Colestase Anamnese Exame físico Ecografia Função hepática BT/BD, AST, ALT, FA Insuficiência hepática Patente GGT Normal Vesícula biliar e via biliar extra-hepática Ausente Gamagrafia hepática Colangiografia trans-hepática Colangiorressonância Elevada Biópsia hepática Ácidos biliares séricos Elevados Colestases genéticas Diminuídos ou normais Patente Biópsia hepática Hepatite neonatal Anomalia do metabolismo dos ácidos biliares ABREVIATURAS: AST – Aspartato amino transferase (transaminase glutâmico – oxalacética ou SGOT) ALT – Alanina amino transferase (transaminase glutâmico – piróvica ou SGPT) GGT – Gama glutamil transpeptidase FA – Fosfatase alcalina AVBIH – Atrésia das vias biliares intra-hepáticas AVBEH – Atrésia das vias biliares extra-hepáticas BT – Bilirrubina total BD – Bilirrubina directa (conjugada) S – Síndroma Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in Children. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2004; 35-73 Lopez-Manzanares J M, Medina-Benitez E. Colestasis en el recién nascido y lactante. Orientación diagnóstica. An Pediatr 2003; 58: 162-167 Suchy FJ, Sokol RJ, Balistreri WF (eds). Liver Diseases in Ausente AVBIH AVBEH S. Alagille Não sindromática (Adaptado de Manzanares & Benitez, 2003) children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins, 2001; 187-194 CAPÍTULO 119 Doença de Wilson 119 DOENÇA DE WILSON Isabel Afonso Definição e importância do problema A doença de Wilson (ou degenerencência hepatolenticular) é uma alteração rara do metabolismo do cobre, de transmissão autossómica recessiva, que se caracteriza por acumulação excessiva de cobre no sistema nervoso central, fígado, rins, córnea, esqueleto e outros órgãos. A incidência é calculada entre 1/100.000 a 1/500.000. Esta doença pode permanecer não diagnosticada até à vida adulta, embora as manifestações se possam iniciar na infância. Etiopatogénese O gene da doença de Wilson (de que se conhecem mais de 250 mutações) codifica uma ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa principalmente (mas não exclusivamente) nos hepatócitos e que se admite ter papel crucial na excreção biliar do cobre e na incorporação deste na ceruloplasmina. As alterações do funcionamento dos órgãos ocorrem por depósito anormal de cobre nos lisossomas devido a excreção biliar inadequada. Tal resulta de incorporação anormal do cobre em proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina. Na doença de Wilson a acumulação de cobre ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª década de vida. O cobre é libertado do fígado quando a capacidade de acumulação é excedida, sendo então depositado noutros tecidos. A peroxidação lipídica das mitocôndrias como resultado da sobrecarga em cobre conduz a alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo diversos processos enzimáticos. O gene anormal ligado à doença de Wilson 577 localiza-se no braço longo do cromossoma 13 (13q14.3). Manifestações clínicas As manifestações clínicas relacionam-se com o depósito de cobre em órgãos específicos, mais frequentemente no fígado e no sistema nervoso central. A forma de apresentação é variável nas crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As manifestações hepáticas precedem habitualmente as manifestações neurológicas durante vários anos. A doença hepática manifesta-se habitualmente por icterícia recorrente, hepatite aguda autolimitada, hepatite autoimune, falência hepática aguda ou doença hepática crónica. As lesões neurológicas manifestam-se por alterações do movimento (tremores, incoordenação motora, perda de controlo da motricidade fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida (rigidez, alterações da marcha e compromisso pseudobulbar). As alterações psiquiátricas manifestam-se habitualmente por depressão, comportamentos neuróticos, alterações da personalidade e, ocasionalmente, deterioração intelectual. (Quadro 1) Diagnóstico Pode ser difícil, uma vez que não existe um único exame complementar que confirme a doença. O melhor rastreio consiste em determinar o valor da ceruloplasmina: na maioria dos casos de doença de Wilson está diminuída. Numa fase precoce o cobre sérico está elevado e a sua excreção urinária (normalmente inferior a 40 mcg/dia) elevada (100-1000 mcg/dia). Se estiver presente a tríade clássica de doença hepática, manifestações neurológicas e anel de KayserFleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil. Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna necessário um elevado índice de suspeita decorrente da anamnese e do do exame objectivo. A suspeita clínica implica o encaminhamento para centros especializados para a realização dum conjunto de exames complementares tais como hemograma, provas da função hepática, doseamentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre, 578 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Manifestações clínicas da doença de Wilson Fígado Hepatite aguda Sistema nervoso central Neurológicas Oftalmológicas Anel de Kayser-Fleischer na córnea Outras Renais Hepatite crónica activa Psiquiátricas Cataratas Esqueléticas Cirrose Cardíacas Insuficiência hepática fulminante Anemia hemolítica Litíase biliar ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urina de 24 horas, e no tecido hepático (biópsia). Os dados histológicos obtidos por biópsia hepática são sobreponíveis aos encontrados na hepatite crónica activa: degenerência gorda, hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e células de Küpfer de maiores dimensões. A microscopia electrónica permite identificar grandes mitocôndrias. Na doença de Wilson o conteúdo do cobre hepático excede 250 mcg/grama. Nas formas heterozigóticas os valores são inferiores. A análise da mutação do gene ATP7B é particularmente útil quando as alterações clínicas e bioquímicas não são específicas. O diagnóstico diferencial das alterações hepáticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e outras formas de hepatite crónica e cirrose criptogénica. As manifestações neurológicas podem simular esclerose múltipla e diversas alterações psiquiátricas. à penicilamina, a trientina (0,5-2 gramas/dia) pode ser usada (di-hidrocloreto de trietileno tetramida). Deverão ser evitados o chocolate, mariscos e nozes pelo elevado teor em cobre. A transplantação hepática poderá estar indicada se ocorrer insuficiência hepática fulminante. Tratamento Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Prognóstico Sem terapêutica esta doença é fatal. No entanto, com terapêutica médica adequada e o regime alimentar com restrições de cobre (inferior a 1mg/dia) durante toda a vida, a evolução pode ser considerada favorável. BIBLIOGRAFIA Ala A, Walker AP, Ashkan K, et al. Wilson’s Disease. Lancet 2007; 369: 397-408 Altschuler S, Liacouras C (ed). Clinical Pediatric Gastroenterology London: Churchill Livingstone, 2003 Kelly DA (ed). Diseases of Liver and Biliary System in Children. London: Blackwell Science, 1999 Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, Agentes quelantes do cobre ou zinco podem prevenir o desenvolvimento das alterações hepáticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos assintomáticos afectados, e reduzir as manifestações em indivíduos sintomáticos. A D-penicilamina (0,5-0,75 gramas/dia) é a droga mais segura e eficaz (associada a suplemento de vitamina B6 por se tratar do antimetabolito desta vitamina). É tomada oralmente e geralmente bem tolerada. Em doentes com hipersensibilidade 2007 Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 CAPÍTULO 120 Cirrose hepática 120 CIRROSE HEPÁTICA Maria de Lurdes Torre Definição e importância do problema A cirrose hepática, o estádio final de muitas doenças hepáticas, é um processo de fibrose difusa em bandas ligando áreas centrais e portais, conduzindo à formação de nódulos parenquimatosos com consequente distorção da arquitectura hepática, alteração das estruturas vasculares, desenvolvimento de hipertensão portal e suas consequências. Etiopatogénese São várias as doenças hepáticas, discriminadas no Quadro 1, que podem progredir para cirrose. A identificação da causa da lesão inicial influencia a gravidade e a evolução da doença. Quando é possível a sua remoção, o prognóstico é em geral favorável. A cirrose pode classificar-se em pós-hepatite (na sequência de hepatite aguda, e crónica), pósnecrótica (secundária a lesão toxica), ou biliar (secundária a obstrução biliar crónica. Pode também ser do tipo macronodular com nódulos de tamanhos variáveis (até 5cm), separados por largos septos, ou de tipo micronodular, com nódulos de tamanho uniforme (<1 cm), separados por septos finos. Pode haver formas mistas (macro e micromodulares). O processo fibrótico progressivo conduz a alteração do débito snguíneo em geral, do que resulta disfunção hepática e aumento da resistência intra-hépatica ao débito sanguíneo que provém da veia porta. Manifestações clínicas Na cirrose hepática compensada a criança pode 579 QUADRO 1 – Causas de cirrose hepática Doenças biliares Atrésia das vias biliares Quisto do colédoco Síndroma de Allagile, hiplopasia biliar Colestase intra-hepática familiar Colangite esclerosante Doenças hepáticas ou pós-necróticas Hepatite neonatal Hepatite B Hepatite C Hepatite D Hepatite autoimune Drogas e tóxicos Doenças metabólicas Défice de Alfa-1 antitripsina Doença de Wilson Hemocromatose Galactosémia, frutosémia, doenças de armazenamento de glicogénio Tirosinémia, doenças do ciclo de ureia Doença de Gaucher, Niemann-Pick tipo C, síndroma de Zellweger Vascular Trombose da veia porta, síndroma de Budd-Chiari Doença veno - oclusiva Doenças cardíacas encontrar-se assintomática, anictérica e evidenciar provas de função hepática normais A primeira indicação de doença hepática pode ser o achado acidental de uma hepato-esplenomegália ou esplenomegália isolada, ou apenas alteração das transaminases ou da fosfatase alcalina. Em geral suspeita-se de doença hepática crónica pelas manifestações clínicas das suas complicações tais como ascite, hemorragia gastrintestinal ou encefalopatia hepática. Mal-estar geral, anorexia, náuseas ou restrição de crescimento são sintomas frequentes, mas inespecíficos. A icterícia pode estar presente ou ausente. Os sinais físicos incluem eritema palmar e plantar, aranhas vasculares, dedos em baqueta de tambor e dilatação das veias da parede abdominal. Por vezes o fígado é pequeno e não palpável. Noutros casos está aumentado, é duro e nodular à palpação. 580 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Diagnóstico A confirmação do diagnóstico depende da interpretação da biópsia hepática, a qual confirma o tipo e grau de actividade da cirrose e contribui para o diagnóstico etiológico da mesma. No entanto, as investigações laboratoriais e imagiológicas devem ser efectuadas antes da biópsia hepática no intuito da avaliação global da função hepática e do esclarecimento etiológico. Nalguns casos de cirrose moderada ou grave, os resultados da avaliação laboratorial são normais. Em geral existe elevação moderada das aminotransferases e da gama-glutamil-transpeptidase (GGT) com hipoalbuminémia. O tempo de protrombina encontra-se elevado e não responde à vitamina K. Em caso de hiperesplenismo existe anemia, leucopénia e trombocitopénia. A ecografia abdominal permite identificar a textura e a presença de nódulos hepáticos, a existência ou não de esplenomegália, e o fluxo no sistema porta. (Quadro 2) QUADRO 2 – Exames complementares Investigação geral Exames laboratoriais Hemograma Bilirrubina total e conjugada Fosfase alcalina Gama-glutamiltranferase Aminotransferases Desidrogenase láctica Albumina Tempo de protrombina Colesterol total Alfafetoproteína Outros exames Ecografia hepática Endoscopia digestiva alta Biópsia hepática Investigação etiológica específica Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes causas (De acordo com as possíveis causas de cirrose hepática – Quadro 1.) QUADRO 3 – Complicações de cirrose na idade pediátrica Má-nutrição e restrição de crescimento Hipertensão portal e hemorragia de varizes esofágicas Hiperesplenismo Ascite Encefalopatia Coagulopatia Síndroma hepatopulmonar Infecções bacterianas, peritonite bacteriana Carcinoma hepatocelular Complicações As complicações de doença hepática crónica são devidas primariamente à deterioração da função hepática e da colestase. As complicações mais frequentes são as alterações progressivas da nutrição e as manifestações de hipertensão portal. O carcinoma hepatocelular pode complicar qualquer forma de cirrose, em particular nos doentes com tirosinémia do tipo 1 e hepatites B e C crónicas. (Quadro 3) Tratamento O tratamento pretende evitar a progressão da doença hepática e prevenir as suas complicações. É necessário avaliar o prognóstico de modo a programar uma terapêutica definitiva através da transplantação hepática. Actualmente não existe tratamento eficaz para a cirrose mas, quando existe patologia tratável (ex. doença de Wilson, galactosémia ) ou possibilidade de ser eliminada (fármacos, VHC, VHB), o curso da doença pode ser alterado com a remissão da fibrose. O transplante hepático está indicado nos doentes com cirrose progressiva ou nas complicações não controláveis. Prognóstico A transplantação hepática e a terapêutica específica para muitas das causas de doença hepática crónica aumentaram a sobrevivência a longo prazo. CAPÍTULO 121 Hipertensão portal A cirrose pós-necrótica tem uma evolução imprevisível. Sem transplante, a morte ocorre por insuficiência hepática num período de 10 a 15 anos. Nos doentes com cirrose biliar o prognóstico é semelhante, excepto nos casos cuja correcção cirúrgica leva à regressão ou à estabilização da doença. Quando surgem complicações como ascite, hemorragia gastrintestinal e insuficiência renal, a sobrevivência é muito curta. BIBLIOGRAFIA Balistreri WF. Pediatric Hepatology. A half century of progress. 581 121 HIPERTENSÃO PORTAL Maria de Lurdes Torre Definição Clin Liver Dis 2000;4: 191-210 Diniz de Freitas (ed.) Doenças do Aparelho Digestivo. Lisboa: AstraZeneca, 2002; 537-49 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Lissauer T, Clayden G (eds). Illustrated Textbook of Paedriatrics. London: Mosby, 2007 Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 É definida como a elevação persistente da pressão venosa portal > 10-12 mmHg (normal entre 5-10 mmHg). Efectivamente, as complicações de hipertensão portal não ocorrem até que o gradiente de pressão portal (gradiente entre a veia porta e a veia cava inferior) exceda os 12 mmHg. O aumento da resistência ao débito do sangue portal – a anomalia hemodinâmica primária – origina esplenomegália e desenvolvimento de vasos colaterais porta-sistémicos em vários locais (varizes no esófago distal, gástricas, ano-rectais, umbilicais e da parede abdominal). Etiopatogénese As causas de hipertensão portal podem ser classificadas de acordo com o nível em que ocorre a obstrução ao fluxo sanguíneo em: – Pré-hepáticas – Intra-hepáticas – Pós hepáticas. (Quadro 1) A causa mais frequente de hipertensão portal é a cirrose hepática. A trombose da veia porta, a causa mais frequente de obstrução extra-hepática, pode ser secundária a cateterismo da veia umbilical (30% dos casos), a onfalite, a anomalias congénitas ou a sépsis. A doença venoclusiva é relativamente rara e ocorre após transplante medular ou em doentes imunodeficientes. A síndroma de Budd-Chiari surge geralmente em adultos jovens e ocorre quando os trombos desenvolvidos na veia hepática entram na veia cava inferior. Está relacionada com síndromas mieloproliferativas ou estados tromboembólicos. 582 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal Pré-hepáticas Trombose da veia porta Trombose da veia esplénica Intra-hepáticas Pré sinusoidal Esquistossomíase Fibrose hepática congénita Neoplasias Quistos hepáticos Sinusoidal Cirrose/doença hepática crónica Pós sinusoidal Doença venoclusiva Pós-hepáticas Trombose da veia hepática (síndroma de Budd-Chiari) Insuficiência cardíaca direita Pericardite constritiva Muitas das complicações podem ser explicadas pelo desenvolvimento de circulação colateral relevante em áreas em que o epitélio da absorção se junta ao epitélio estratificado (sobretudo esófago e região ano-rectal. Ao nível do estômago verifica-se ectasia vascular que origina o quadro designado por gastropatia congestiva. Manifestações clínicas Existem quatro manifestações clínicas principais: – Hemorragia gastrintestinal – Esplenomegália – Ascite – Encefalopatia porta-cava. A hemorragia gastrintestinal é a forma de apresentação mais comum (50-90% dos casos). Na maioria dos episódios surge por ruptura de varizes esofágicas, mas o sangramento pode ter origem noutros locais do tubo digestivo; tal implica a necessidade emergente de identificar o local de lesão. As hematemeses são abundantes ou moderadas, surgindo geralmente após um episódio de dor abdominal associada a palidez cutânea. As melenas surgem simultaneamente ou QUADRO 2 – Diagnóstico de hipertensão portal Exame físico Esplenomegália Vasos abdominais proeminentes Ascite Hemorróidas Sinais de doença hepática crónica Exames laboratoriais Hemograma Bilirrubina total e fraccionada Fosfatase alcalina Gama-glutamiltranspeptidase Aminotransferases Desidrogenase láctica Albumina Tempo de protombina Ionograma sérico Outros exames Ecografia e eco doppler abdominal Endoscopia gastrintestinal Angiografia depois. Por vezes constituem a manifestação isolada da hemorragia intestinal. A esplenomegália moderada é o sinal físico mais frequente e a forma de apresentação em 25% dos casos. O baço tem consistência firme ou dura, dependendo da duração da hipertensão portal. O hiperesplenismo está associado a anemia, trombocitopénia e ou leucopénia. A ascite esta associada à hipertensão de causa sinusoidal ou pós-sinusoidal. É rara na forma présinusoidal. A encefalopatia porta-cava é dificilmente diagnosticada na criança. Os sinais e sintomas são mal definidos e incaracterísticos: perda de capacidades intelectuais; alterações de consciência e sinais neuromusculares como ataxia e tremor. Esta situação ocorre nos doentes com doença hepática grave com derivações portasistémicas. Outra manifestação frequente é a vascularização abdominal proeminente devida ao desenvolvimento de colaterais; denomina-se “cabeça de medusa” quando estes vasos irradiam do umbigo. CAPÍTULO 121 Hipertensão portal 583 QUADRO 3 – Tratamento da hipertensão portal Complicação Hemorragia por varizes esofágicas Tratamento Octreotido intravenoso. Tamponamento com balão para controlar hemorragia activa. O propranolol pode ser útil na prevenção de hemorragias recorrentes. Escleroterapia ou laqueação de varizes. Ascite Restrição salina, espironolactona, furosemido, albumina, paracentese, derivação, porta-sistémica, transplantação hepática. Encefalopatia hepática Restrição proteica, glucose endovenosa, neomicina, lactulose, plasmaferese, transplantação hepática. Hiperesplenismo Sem intervenção, embolização esplénica parcial, derivação portasistémica, transplantação hepática. Diagnóstico Frequentemente o diagnóstico é efectuado através da anamnese e exame físico; podem, no entanto, ser realizados vários exames complementares. A ecografia abdominal permite confirmar e dimensionar a esplenomegália, a existência de colaterais vasculares e o seu diâmetro. A utilização de ecografia doppler dá informação quanto a velocidade e direcção do fluxo sanguíneo na veia porta, veias hepáticas e veia cava. A endoscopia digestiva é usada para detectar e avaliar varizes gastro-esofágicas e ano-rectais. A angio-ressonância tem sido utilizada como alternativa não invasiva à angiografia convencional. A angiografia é importante antes da realização da derivação cirúrgica porta-sistémica e de transplante hepático. (Quadro 2) Complicações As quatro complicações major podem considerarse simultaneamente as principais manifestações clínicas: – Varizes com hemorragia – Ascite – Encefalopatia – Esplenomegália Tratamento A actuação terapêutica na hipertensão portal, sintetizada no Quadro 3, pode ser dividida em tratamento de emergência da hemorragia aguda com risco vital, e profilaxia dirigida à prevenção de hemorragia inicial ou subsequente. Nos casos de hemorragia aguda por ruptura de varizes está indicada a ressucitação com fluidoterapia (inicialmente cristalóides IV seguindo-se transfusão de concentrado eritrocitário). Igualmente: correcção da coagulopatia com administração de vitamina K, transfusão de concentrado de plaquetas, plasma fresco congelado, ou terapêuticas associadas. Ao doente deverá ser aplicada sonda nasogástrica para documentar eventual hemorragia gastrica. Para reduzir o risco da hemorragia gástrica, está indicada a administração de bloqueantes de receptores H2 por via IV (por ex. ranitidina). Nos casos de hemorragia mantida está indicada a administração de vasopressina ou de análogos, com objectivo de aumentar o tono vascular esplâncnico e, consequentemente, o débito sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minutos, seguido por administração IV contínua (0,2U/1,73m2/minuto). Com idêntica acção farmacológica pode utilizar-se o octreotido (análogo da somatostatina) IV na dose de 1-5 mcg/kg/hora. Outra medida emergente á aplicação do tubo com balão para tamporamento (tubo de Sengstaken-Blakemore). Outras medidas são referidas no mesmo quadro, salientando-se que este tipo de problema deverá ser tratado num centro especializado. 584 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA BIBLIOGRAFIA Botha JF, Campos BD, Grant WJ, et al. Portosystemic shunts in children’s 15 year experience. J Am Coll Surg 2004; 199: 179185. Freitas D. Doenças do Aparelho Digestivo. Lisboa: AstraZeneca, 2002. Gauthier-Villars M, Franchi S, Gauthier F, et al. Cholestasis in children with portal vein obstruction. J Pediatr 2005;146: 568-573 122 INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA AGUDA Kelly A (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in children. London: Blackwell Publishing, 2004 Maria de Lurdes Torre Lissauer T, Clayden G (eds). Illustrated Textbook of Pediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007 Narayann-menon KV, Shah V, Kamath PS. The Budd Chiari syndrome. NEJM 2004; 350: 578-584 Definição e importância do problema Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 A insuficiência hepática aguda é definida como doença multissistémica com alteração grave da função hepática, com ou sem encefalopatia, que ocorre em associação a necrose hepatocelular num doente sem doença hepática crónica prévia. Pela definição mais comum utilizada em medicina dos adultos considera-se fundamental para a definição de insuficiência hepática aguda o aparecimento precoce de encefalopatia (difícil de detectar em crianças e lactentes); e coagulopatia até 8 semanas após o início de doença hepática na ausência de patologia hepática anterior. Trata-se duma situação rara em idade pediátrica com uma mortalidade elevada (80% nos casos não submetidos a transplantação hepática). A frequência varia com o grupo etário e a distribuição geográfica. Etiopatogénese O Quadro 1 discrimina as principais causas de insuficiência hepatica aguda. Salienta-se que as hepatites por vírus C e E são causas raras de insuficiência hepática fulminante na maioria das séries publicadas. No que respeita a outros vírus incluem-se: VEB, herpes simples, adenovírus, enterovírus, CMV, parvovírus B19, varicela-zoster. De referir ainda as formas ditas idiopáticas que explicam cerca de 40-50% dos casos pediátricos. O mecanismo que conduz à insuficiência hepática fulminante não está completamente esclarecido, desconhecendo-se designadamente a CAPÍTULO 122 Insuficiência hepática aguda QUADRO 1 – Causas de insuficiência hepática aguda Período neonatal Infecciosa Herpes vírus Echovírus Adenovírus Metabólica Hemocromatose neonatal Galactosémia Doenças mitocrondriais Isquémia Doença cardíaca congénita Miocardite Asfixia grave Período pós-neonatal Infecciosa Hepatites víricas (A, B, D, E, B+D associadas); outros vírus Fármacos Paracetamol Valproato Isoniazida Tóxicos Amanita phalloides Metabólica Doença de Wilson Autoimune Hepatite Isquémia Doença cardíaca congénita Miocardite Síndroma de Budd-Chiari razão pela qual somente em cerca de 1-2 % de doentes com hepatite vírica surge o referido quadro. A destruição maciça dos hepatocitos pode ser explicada, quer por efeito citotóxico directo, quer por resposta autoimune hiperimune aos antigénios víricos. Outros factores associados à lesão do hepatócito incluem: alteração do processo de regeneração, hipoperfusão sanguínea do parênquima, endotoxémia, e depressão da função do SRE. O mecanismo da encefalopatia pode relacionar-se com a hiperamoniémia, incremento da 585 actividade dos receptores de GABA e incremento de nivéis circulantes de compostos endógenos formados, semelhantes a benzodiazepinas; todos estes produtos têm o seu processo de depuração hepática comprometida, num ciclo vicioso. Existem dois tipos de lesões básicas: – Necrose hepática extensa com colapso da arquitectura lobular. É mais frequente nos casos provocados por vírus hepatotrópicos, intoxicação por paracetamol e intoxicação por cogumelos. – Degenerescência hepatocelular com esteatose maciça. Indica infiltração gorda difusa com necrose hepática pouco extensa. Está associada a doenças metabólicas e a intoxicação por ácido acetil-salicílico e ácido valpróico. A hepatite fulminante conduz a uma falência multiorgânica que afecta em particular o cérebro e o rim. O processo de lesão hepática depende de três factores: – Susceptibilidade do hospedeiro (exemplo: recém-nascido no qual se desenvolve hepatite fulminante pelo vírus da hepatite B); – Natureza do agente agressor (exemplo: dose de paracetamol); – Capacidade de regeneração hepática deprimida a qual constitui um factor crucial para a sobrevivência. Manifestações clínicas A apresentação clínica varia com a etiologia. É frequente um quadro de coagulopatia (hematomas fáceis, hemorragia abundante de feridas, espistaxe), encefalopatia (alteração de personalidade, comportamentos bizarros) e hipoglicémia. Por definição a encefalopatia ocorre em 100% dos doentes, (mas de detecção mais difícil em lactentes, como foi referido atrás). A icterícia é comum, mas pode não estar presente nos estádios iniciais. O agravamento da função renal com oligoanúria é outro achado frequente. O prolongamento súbito do tempo de protrombina > 15 segundos sugere falência hepática. Existem dois tipos de apresentação: – Forma fulminante com evolução rápida para o coma. – Forma de hepatite benigna com agravamen- 586 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA to súbito na segunda semana de doença, com aparecimento de febre, anorexia, vómitos, alteração do sensório, hemorragias generalizadas e deterioração da função hepática. Diagnóstico É baseado nos achados de coagulopatia e encefalopatia em associação a doença hepática de início recente (< 8 semanas). O Quadro 2 integra o conjunto de exames laboratoriais, imagiológicos e neurofisiológicos a realizar em função dos antecedentes e da doença actual. Essencialmente, as alterações laboratoriais incluem elevação da bilirrubina sérica, elevação dos aminotransferases (> 3000 UI/l) as quais descrescem na fase em que a função hepática se agrava. Existe ainda hipoalbuminémia, hipoglicémia, prolongamento do tempo de protrombina e elevação da amoniémia. QUADRO 2 – Avaliação da insuficiência hepática aguda Investigação geral Exames Laboratoriais (sangue) Hemograma Tempo de protrombina e de tromboplastina parcial Doseamento do Factor V Bilirrubina total e fraccionada Aminotransferases Fosfatase alcalina Gama-glutamiltranspeptidase Proteínas totais e albumina Amónia Glicose Ureia e creatinina Ionograma Exames imagiólogicos Radiografia do tórax Ecografia abdominal Tomografia axial computadorizada Ressonância magnética crânio-encefálica Exame neurofisiológico EEG Investigação etiológica Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes causas (Quadro 1) Tratamento Não existe tratamento específico para a insuficiência hepática excepto a transplantação hepática. O tratamento com a aplicação de medidas gerais tem por objectivo a prevenção e tratamento das complicações enquanto o doente aguarda a recuperação espontânea, ou um dador compatível para a referida transplantação hepática. Estes doentes devem ser internados em unidades de cuidados intensivos e encaminhados precocemente para centros especializados. Prognóstico O prognóstico em geral é grave se não for efectuada transplantação hepática. As crianças com idade inferior a 10 anos têm pior prognóstico. Os doentes com intoxicação por paracetamol têm melhor recuperação do que aquela com outros fármacos hepatotóxicos (53% vs 12%). A insuficiência hepática por hepatite A tem uma sobrevivência de 68% enquanto nas outras hepatites a sobrevivência é cerca de 20%. Os indicadores de pior prognóstico são a encefalopatia grave, tempo de protrombina superior a 50 segundos e bilirrubinémia > 17,5 mg/dl. Na intoxicação por paracetamol são indicadores de má evolução o pH <7,3 e a creatinina superior a 3,4 mg/dl. É importante a avaliação de factores de prognóstico de modo a definir a data mais adequada para a transplantação hepática. BIBLIOGRAFIA Dhawan A, Cheeseman P, Mieli-vergan IG. Apppoaches to acute liver failure, in children. Pediatr Transplant 2004; 8: 584-588 Freitas D. Doenças do Aparelho Digestivo. Lisboa: Astra Zeneca, 2002. Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in Children. London: Blackwell Publishing, 1999 Shawcross D, Jallan R. Dispelling Myths in the treatment of hepatic encaphalopathy. Lancet 2005; 265:431-433. Walker WA, Goulet O, Kleinman RE, et al. Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004. CAPÍTULO 123 Transplantação hepática 123 TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA Isabel Gonçalves Definição e importância do problema A transplantação (ou transplante) é a intervenção pela qual se opera a transferência de um tecido ou de um órgão para uma outra parte do mesmo indivíduo (autotransplante), ou para um indíviduo diferente (heterotransplante). A transplantação hepática (TH) mudou dramaticamente o prognóstico dos doentes com hepatopatia crónica (antes invariavelmente fatal). Tal técnica foi sonhada desde o início do século e tentada pela primeira vez em 1963, em Denver, Boston e Paris, sem sucesso. Nessa altura a imunossupressão disponível incluia apenas azatioprina e soro anti-linfócito. De 1967 a 1978 a sobrevida em adultos e crianças que tinham um dador anatomicamente compatível não ultrapassava 40% e a transplantação era encarada como terapia experimental. Em 1978 R. Calne introduziu na prática da transplantação a ciclosporina associada aos corticóides em altas doses e, na década seguinte, a sobrevida dos doentes atingiu 80%. Assim, o interesse pela TH ressurgiu simultaneamente em vários centros Europeus e dos EUA. De facto, as crianças só vieram a beneficiar deste procedimento na década de 90, quando alguns cirurgiões conseguiram de forma verdadeiramente inovadora reduzir fígados de dadores adultos, de modo a obter um enxerto de dimensões adaptáveis a crianças, mesmo para as que tinham peso inferior a 10 Kg e que até aí eram praticamente excluídas da transplantação. Este primeiro marco na história da transplantação pediátrica permitiu reduzir a mortalidade em lista de espera de 60% para menos de 20% na maioria dos centros de TH. Contudo, esta percentagem 587 continuava ainda a ser inaceitável; novas técnicas começaram a ser divulgadas como o Split Liver, bipartição do enxerto em 2 fragmentos (geralmente lobo esquerdo), ou segmentos do lobo esquerdo, implantados numa criança; e lobo direito a ser implantado num segundo tempo (ou por outra equipa em paralelo), num receptor adulto. Esta modalidade de TH, embora eficaz na redução do tempo de espera e da mortalidade em lista, implicou um aumento da morbilidade (maior número de complicações biliares e vasculares) pós-TH, sobretudo no receptor adulto, cujo enxerto é submetido a um tempo de isquémia elevado (média de 20 horas). Figado auxiliar Uma modalidade de transplante, exclusiva de Centros de Transplante Pediátrico de referência é o TH com “fígado auxiliar”. Tecnicamente mais complexo, é aplicável a 2 tipos de situação: 1 – Hepatites fulminantes, permitindo recuperar a catástrofe metabólica instalada na insuficiência hepática e substituir o fígado nativo até que este recupere totalmente. Em 60 % dos doentes com falência hepática aguda o TH com “fígado auxiliar” permitiu, ao fim de um ano, abandonar a imunossupressão face à regeneração do fígado nativo. O enxerto sofre processo de atrofia e não necessita de ser removido. 2 – Doenças metabólicas, em que o défice enzimático no fígado provoca lesões graves extra-hepáticas, mas não há lesão hepática progressiva. O fígado auxiliar substitui a enzima deficiente e permite reter o fígado nativo até surgir a cura pela terapia génica (por exemplo: síndroma de Crigler- Najjar 1, acidémia propiónica, etc.). Dador vivo Na última década o TH de crianças a partir de dador vivo (DV) parental tornou-se a variante técnica mais promissora, com maior sobrevida e menor lesão do enxerto. Curiosamente, a incidência de rejeição celular aguda não diminuiu, como seria de esperar, dada a maior proximidade imunológica do dador e receptor. 588 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Um programa de DV envolve custos mais elevados , risco de morte do dador que é mínimo (5 /10000), e morbilidade inferior a 15%. Inicialmente foi aceite pelas Comissões de Ética como um procedimento a efectuar em crianças com doença crónica e relativamente electivas para permitir uma decisão do dador mais amadurecida, sem as pressões inerentes às situações de morte iminente. Progressivamente foi alargada a estas situações (hepatites fulminantes ou falência aguda em contexto de hepatopatia crónica). Nalguns centros o uso de DV em situação aguda ainda é alvo de polémica. Com efeito, o uso de dadores vivos contraria um princípio ético básico em Medicina – primum non nocere, já que constitui uma mutilação induzida em pessoa saudável com risco de morte. Eticamente a transplantação com DV é aceitável se: – o TH for a única opção terapêutica; – a possibilidade de obter um dador cadáver em tempo útil for baixa (esta é infelizmente a realidade na maioria dos países europeus incluindo Portugal, porque a política de distribuição de órgãos é penalizante para as crianças); – o receptor tiver uma probabilidade elevada de sobreviver ao TH, com qualidade de vida; – o risco de morte para o dador for inferior a 1% e a morbilidade previsível inferior 10%. Nenhum tipo de pressão deve ser exercida sobre o potencial dador nos diálogos de decisão (o que na pratica é utópico). De facto, há que considerar a superioridade da sobrevida e a menor morbilidade conseguidas com a TH de DV. TH em Portugal na idade pediátrica Em Portugal o TH pediátrico com DC foi iniciado em 1994 em Coimbra pela equipa de Transplantação dos Hospitais da Universidade de Coimbra, chefiada por A.Linhares Furtado. Foram transplantadas até 2008, 135 crianças, correspondendo a 15 a casos com DV. A sobrevida actual é cerca de 98%. Transplante de hepatócitos A mais recente e ainda experimental técnica de transplante destina-se essencialmente ao grupo de doenças metabólicas cujo defeito enzimático é predominatemente hepático não determinando cirrose avançada. Embora teoricamente possa ser usada em todas as doenças hepáticas, na prática os doentes com cirrose e hipertensão portal estabelecida obterão apenas, com este procedimento uma “ponte” para o transplante definitivo. Até à data foram efectuados transplantes de hepatócitos num número reduzido de doentes pediátricos com as seguintes patologias: doença de Criggler-Najjar, acidémias orgânicas e hepatites fulminantes. Tecnicamente é um procedimento simples, seguro e pouco invasivo para o doente, já que é apenas necessário inserir um cateter na veia porta para injecção diária de uma suspensão de hepatócitos (máximo 1x108 células / kg); o fundamento é a verificação de que em poucos dias se verifica uma fixação permanente dos hepatócitos injectados no fígado receptor, passando estes a proliferar e a predominar sobre os hepatócitos doentes, assumindo as funções metabólicas deficitárias. Tal como no transplante clássico, é necessário usar imunossupressão em esquemas sobreponíveis. De referir que a procura de fígados para obter hepatócitos viáveis enferma dos problemas da TH clássica, embora permita poupar alguns segmentos de parêquima que seriam eliminados por anomalias biliares ou vasculares. No transplante de hepatócitos o laboratório de células é uma estrutura fundamental e o maior investimento a ter em conta quando se opta pelo arranque da técnica em determinada instituição. Por este motivo, raros centros na Europa a iniciaram, mantendo uma actividade clínica e de investigação nesta área. Indicações e contraindicações A atrésia das vias biliares extra-hepáticas constitui 40 – 50 % das indicações para TH em idade pediátrica (80% se considerarmos a faixa etária abaixo dos 2 anos). A falência hepatica aguda representa 10-15%, e o grupo das doenças metabólicas, cerca de 20%. Os restantes 20% englobam várias situações como colestases progressivas intra-hepáticas, tumores, hepatites víricas, hepatites autoimunes, etc.). CAPÍTULO 123 Transplantação hepática As contraindicações absolutas têm vindo a diminuir ao longo do tempo e actualmente resumem-se às seguintes situações: coexistência de sépsis e falência multiorgão, disseminação metastática tumoral, lesão neurológica grave associada, doenças com repercussão multissistémica, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) (assunto controverso), síndroma hepatopulmonar (shunts pulmonares que provocam hipoxémia grave no contexto de doença hepática crónica), etc.. A avaliação pré-TH A avaliação pré-TH pressupõe um diálogo dinâmico entre a instituição que refere a criança e o centro que procede à transplantação, tentando prever em cada doente um ponto em que o risco do referido problema é inferior ao da espera em lista, a identificação de possíveis contraindicações e a avaliação psicossocial da família . O estado nutricional dos receptores condiciona grande parte da morbilidade e mortalidade pósTH , sendo fundamental o internamento nesta área enquanto se aguarda a cirurgia. Esta é, em regra, prolongada (12-15 horas), inevitavelmente invasiva e seguida de várias complicações, com um padrão previsível no tempo. Complicações Poderão surgir as seguintes complicações, classicamente divididos em precoces (<3 meses) e tardias ≥ 3meses): Precoces – Estas podem ainda subdividir-se em 2 períodos: A- da fase de estadia em UCI (unidade de cuidados intensivos), na primeira semana, reflectindo o grau de função do enxerto, avaliada em termos de recuperação neurológica, valor de protrombinémia, alcalose ou acidose. Podem ainda ocorrer insuficiência renal, hipertensão arterial grave, sépsis e falência multiórgão. B – da fase pós-UCI- (até 3 meses): 40-50% dos doentes são reoperados por: problemas vasculares (4 a 20%), biliares (15 a 30%), perfuração intestinal e peritonite ou drenagem de colecções ou hematomas. 589 Infecções com ponto de partida abdominal ou relacionadas com cateteres centrais são também muito frequentes (pelo menos um episódio em 60% dos doentes), apesar da antibioticoterapia de largo espectro instituída profilacticamente na primeira semana. A rejeição celular aguda tem uma incidência de 50% no primeiro mês, mas só em menos de 15% dos casos será difícil de reverter após 3 bolus de 10 mg/kg de prednisolona. Um imunossupressor mais potente que a ciclosporina, (tacrolimus ou FK506) recupera 80% dos enxertos com rejeição persistente e possibilidade de evolução para rejeição crónica. Esta ocorre geralmente entre os 6 meses e 1 ano pós-TH em 2 - 8% dos doentes. Caracteriza-se histologicamente por ductopenia (< 50% dos espaços porta não têm ducto biliar) e, clinicamente, por anorexia, prurido e colestase progressiva. O retransplante torna-se necessário em 2/3 dos casos. No restante 1/3 os doentes mentêm-se estáveis sob imunossupressão reforçada embora com disfunção crónica do enxerto (DCE). Tardias – Para além da rejeição há outros problemas a registar como – infecções víricas de que se destacam o citomegalovírus (CMV) e o vírus de Epstein-Barr (VEB). Enquanto o primeiro tem uma morbilidade insignificante e um tratamento eficaz (ganciclovir, valgancinclovir), o segundo pode induzir, sobretudo nas crianças com menos de 5 anos, a síndroma de proliferação desregulada de linfócitos B, ou síndroma linfoproliferativa. Com uma incidência de 4 a 10%, a mortalidade era superior a 60 % no inicio da década. Investigações recentes demonstraram que o diagnóstico precoce, a suspensão total da imunossupressão e, em casos seleccionados, o uso de quimioterapia agressiva, podem conduzir à cura da totalidade dos casos. Em 4% dos doentes pode surgir no 2º ano pós TH um tipo de DCE, similar serológica e histologicamente à hepatite autoimune. Designase como autoimune de novo embora na verdade seja um processo aloimune. Pouco se sabe ainda da sua fisiopatologia, sendo o seu tratamento sobreponível ao usado na hepatite autoimune (essencialmente reforço da corticoterápia e reintrodução da azatioprina). 590 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Seguimento Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2007 Em ambulatório as crianças são observadas semanalmente nos primeiros 3 meses. Depois, com menor periodicidade. As avaliações clínicas e laboratoriais efectuam-se de 3 - 3 meses a partir do 1º ano pós-cirurgia. Uma larga maioria (> 80%) tem uma vida activa e “quase normal” abstraindo que se mantém a doença crónica, nomeadamente o “fantasma” da rejeição ou da disfunção crónica do enxerto. As famílias têm muitas vezes muito receio da integração escolar e social dos pequenos transplantados. Tratando-se de crianças imunodeprimidas, o que é facto é que as banais infecções da comunidade, não têm nelas maior incidência. As vacinas de vírus vivo e vivo atenuado têm sido contraindicadas. Há que sublinhar que a maioria dos doentes tem, ao cabo de um ano pósTH, uma imunossupressão mínima e, em 40 % dos casos, poderão mesmo ser suspensos os corticóides passando-se a monoterapia. Naturalmente que o ideal seria a suspensão de todos os fármacos; embora o avanço nesta área tenha sido enorme nos últimos 8 anos, ainda se continua a aguardar fármacos que, administrados por um curto período no pós-TH imediato, induzam uma tolerância imunológica definitiva . Este será, sem dúvida, o futuro da transplantação; refira-se que, por enquanto, o TH é uma terapia curativa para mais de 80 % das crianças com diversas hepatopatias e, simultaneamente, uma nova doença crónica com inúmeras complicações. Conseguese, apesar de tudo, uma sobrevida de 90% no 1º ano com um acréscimo de mortalidade /ano de 0,5 % nos anos subsequentes de acordo Registo Europeu de TH. BIBLIOGRAFIA Garcia S; Ruza F, et al Evolution and complications in the immediate postoperative period after pediatric liver transplantation: our experience with 176 transplantations. Transplant Proc 1999; 31: 1691-1695 Hurwitz M, Desai DM, Cox KL, et al. Complete immunosuppressive drug withdrawl as a uniform approach to post. Transplant lymphoproliferative disease in pediatric liver trasplantation. Pediatr Transplant 2004; 8: 267-272 Kelly DA (ed). Diseases of Liver and Biliary System in Children. London: Blackwell Science, 1999 Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Lacaille F, Sokal EM. Living related liver transplantation. JPGN 2001; 33: 431-438 Smets F, Sokal EM. Characteristics of Epstein-Barr virus primary infection in pediatric liver transplant recipients. J Hepatol 2000; 32:100-104 Sokal EM, Smets F, Soriano HE et al. Hepatocyte transplantation in a 4-year-old girl with peroxisomal biogenesis disease: technique, safety, and metabolic followup. Transplantation. 2003; 27:735-8. Superina RA et al. Ethical issues in pediatric liver transplantation. Transplant Proc 1999; 31:1342-1344 van Hoek B, de Boer J, Boudjema K, Williams R, Corsmit O, Terpstra OT. Auxiliary versus orthotopic liver transplantation for acute liver failure. EURALT Study Group. European Auxiliary Liver Transplant Registry. J Hepatol 1999; 30:699-705. CAPÍTULO 124 Pancreatite 124 PANCREATITE Helena Flores Definição e importância do problema A pancreatite (processo inflamatório do pâncreas) é uma doença que afecta todas as idades, sem predomínio de sexo. Por ser pouco frequente em idade pediátrica é muitas vezes esquecida e subdiagnosticada. A noção actual de que o trauma e a doença multissistémica podem causar pancreatite, bem como o reconhecimento crescente desta efecção como causa de dor abdominal e vómitos, tem aumentado a frequência do diagnóstico. De referir que mais de 50% dos casos de pancreatite são de origem traumática ou surgem em concomitância com a parotidite. Classificação A Classificação de Marselha-Roma, baseada em critérios anatómicos, considera dois grandes grupos de pancreatites: agudas e crónicas. A pancreatite aguda (PA) é um processo inflamatório agudo da glândula pancreática e do tecido peripancreático. A pancreatite crónica, rara na criança, é definida pela presença de lesões inflamatórias crónicas caracterizadas pela destruição do tecido exócrino, presença de fibrose e, num estado avançado da doença, lesão do tecido endócrino. A chamada PA recorrente é observada em cerca de 10% das crianças após um primeiro episódio de PA sendo mais frequente em crianças com alterações estruturais, ou associada a doença sistémica (lúpus eritematoso, fibrose quística) ou ainda a pancreatite familiar. Estão descritos casos idiopáticos; Neste capítulo é abordada apenas a PA. 591 Etiopatogénese Na pancreatite a “autodigestão” da glândula pelas suas próprias enzimas é um dos mecanismos essenciais. Normalmente o pâncreas está protegido deste fenómeno por: 1 - armazenamento das enzimas em grânulos de zimogénio; 2 - secreção da maior parte das enzimas em forma de precursores que se activam exclusivamente a nível duodenal; 3 co-secreção de inibidores das proteases. A ruptura de um destes mecanismos de protecção leva a activação prematura das enzimas no próprio pâncreas, estando demonstrado experimentalmente que as enzimas activadas provocam: destruição proteolítica do tecido pancreático, necrose dos vasos sanguíneos com consequente hemorragia, necrose gorda pelas enzimas lipolíticas, e reacção inflamatória. Estas alterações ocorrem de modo diverso, desde a doença ligeira (necrose gorda peripancreática e edema intersticial) à doença grave (necrose gorda peri e intrapancreática, necrose do parênquima e hemorragia). O envolvimento pancreático pode ainda ser localizado ou difuso, com consequentes alterações, quer da função exócrina, quer da endócrina. Ao contrário dos adultos em que 80% dos casos de PA estão associados ao alcoolismo e a QUADRO 1 – Causas de pancreatite aguda na criança Causa Idiopática Sistémica Traumática Estrutural Fármacos Infecciosa (vírus) Litíase Familiar Pós-CPRE * Hipercalcémia Diabetes Hipertrigliceridémia Fibrose quística (Adaptado de Walker WA et al, 2004) * CPRE: Colangiopancreatografia retrógada endoscópica Incidência (%) 22.2% 20.8% 18.6% 10.6% 10.2% 7.7% 3.1% 2.4% 1.2% 0.9% 0.9% 0.8% 0.6% 592 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA doença do tracto biliar, na criança, a etiologia é variada (Quadro 1). Nas várias séries publicadas nos últimos anos, os casos de PA associada a doenças multissistémicas graves têm aumentado. Destas, a síndroma hemolítica urémica é a principal responsável, sendo que o mecanismo da pancreatite é desconhecido e provavelmente multifactorial. O trauma é também uma causa comum de PA na criança. Na maioria dos casos trata-se de situação acidental (por exemplo queda sobre o guiador da bicicleta); no entanto, os casos descritos resultantes de maus tratos são cada vez mais frequentes. As anomalias estruturais do pâncreas constituem um factor predisponente, aumentando o risco de PA. A mais frequente é o pâncreas divisum; porém, as anomalias dos ductos pancreático ou biliar comum como os quistos do colédoco, os coledococelos e pâncreas divisum parcial, são também responsáveis por um considerável número de casos. A litíase constitui igualmente importante factor etiológico desta doença. Os vírus são os agentes infecciosos que mais fequentemente causam PA na idade pediátrica. Destes, os mais comuns são: os da parotidite, enterovírus, vírus de Epstein-Barr (VEB), da hepatite A, citomegalovírus (CMV), da rubéola, coxsackie, da varicela-zoster, do sarampo e influenza. Nos países do terceiro mundo e nas regiões tropicais, a obstrução do canal de Wirsung pelo parasita Ascaris lumbricoides tem sido associada a casos de PA. Uma grande diversidade de fármacos pode provocar PA na criança, sendo os mais frequentemente implicados o valproato de sódio e os corticóides. A chamada pancreatite familiar inclui a forma hereditária e outras formas de pancreatite que ocorrem em famílias com uma incidência de PA superior à da população em geral. Nos últimos anos alguns factores genéticos tais como mutações no gene do tripsinogénio catiónico (PRSS1), mutações do CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), e mutações no inibidor da tripsina pancreática (serine protease inhibitor, Kazal type 1- SPINK1) foram identificados como importantes na génese da pancreatite. Apesar de a pancreatite idiopática ser ainda a pancreatite mais frequente, à medida que, cada vez mais, exames genéticos estejam disponíveis, a percentagem de crianças com pancreatite familiar ou associadas a mutações genéticas irá seguramente aumentar. Manifestações clínicas A dor abdominal é o sintoma mais frequente. Geralmente de início súbito, intensa e localizada ao epigastro pode, contudo, ser gradual, constante ou intermitente, difusa ou localizada noutros quadrantes. A irradiação típica para o dorso referida nos adultos é observada em apenas 10% a 30 % das crianças. Os sintomas acompanhantes mais comuns são os vómitos, as náuseas e a anorexia. As refeições são um factor agravante da dor e dos vómitos. Na observação o achado mais frequente é a dor à palpação do epigastro. O abdómen pode estar distendido, com diminuição dos ruídos hidroaéreos. A criança assume muitas vezes uma posição anti-álgica, com flexão dos joelhos e das ancas. Febre baixa, taquicárdia, hipotensão e icterícia, podem estar presentes. Equimoses nos flancos (sinal de Grey Turner) ou na região periumbilical (sinal de Cullen), são raramente observadas nas pancreatites hemorrágicas graves. Diagnóstico O diagnóstico de PA é clínico, laboratorial e imagiológico. Na ausência de um exame complementar específico que confirme o diagnóstico, a elevação da amilase ou da lipase séricas (pelo menos 3 vezes o limite superior do normal), constitui ainda o parâmetro biológico mais clássico. No entanto, ambas as enzimas podem estar em níveis normais nalguns casos com evidência clínica e radiológica de PA. De referir que valores mais elevados não estão relacionados com a etiologia, gravidade ou prognóstico da doença. A amilasémia está elevada quando surgem os primeiros sintomas e assim permanece na maioria dos casos durante 5 a 10 dias. Por sua vez, o doseamento urinário da amilase está aumentado em todas as situações de hiperamilasémia, mas tal aumento é mais tardio. CAPÍTULO 124 Pancreatite Sendo a lipase quase exclusivamente sintetizada pelo pâncreas, as respectivas sensibilidade e especificidade são superiores às da amilase. Está aumentada no início da pancreatite e permanece elevada durante mais tempo. Salienta-se, a propósito que a amilasémia pode estar aumentada na parotidite, anorexia nervosa, bulimia, litíase biliar, perfuração de úlcera péptica, e certas doenças sistémicas (acidose metabólica, insuficiência renal, queimadura, traumatismo craniano). Outras enzimas como a fosfolipase A2, a tripsina, a elastase, a proteína específica do pâncreas (PASP), e a proteína associada à pancreatite (PAP), estão elevadas na PA, mas não têm superioridade diagnóstica em relação à amilase ou à lipase. Observa-se frequentemente leucocitose, aumento das transaminases, hiperglicémia, hipocalcémia, hiperbilirrubinémia, elevação da fosfatase alcalina e da glutamil transpeptidase (GGT). A ecografia endocóspica e a tomografia computadorizada (TAC) abdominais são os exames mais usados para documentar a PA, determinar a gravidade e identificar complicações. Os achados ecográficos mais frequentes são o aumento de volume do pâncreas e a diminuição da ecogenicidade. A TAC é o exame radiológico de escolha para avaliar a gravidade e detectar complicações quando a doença se prolonga. De salientar que uma TAC com contraste realizada precocemente no início da doença pode diminuir o fluxo sanguíneo às áreas já isquémicas e, deste modo, aumentar as regiões de necrose. A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou a colangiopancreatogrfia por ressonância magnética (MRCP) devem ser realizadas apenas nos casos de episódios recorrentes de pancreatite, na suspeita de defeito estrutural, de distorção ou ruptura ductal e, nalguns casos, de pancreatite litiásica. Em 30% dos casos, a radiografia simples do abdómen evidencia o clássico sinal da “ansa sentinela”. Tratamento O tratamento da PA, essencialmente de suporte, depende da gravidade da doença. Os critérios de gravidade estabelecidos para os 593 adultos não são aplicáveis na idade pediátrica. Recentemente, o Midwest Multicenter Pancreatic Study Group, baseado nos critérios de Ranson e Glasgow, propôs um índice de gravidade para a criança atribuindo 1 ponto a cada um dos seguintes parâmetros: idade (< 7 anos), peso (< 23 Kg), leucocitose (> 18.500/mmc), lactato-desidrogenase (> 2.000 IU/L), sequestração de fluidos durante 48 horas (> 75ml/Kg/48h), ureia elevada durante 48 horas, PA associada a doença sistémica grave. Das crianças com 0 a 2 pontos, 8.6% têm PA grave com mortalidade de 1.4%. Com 2 a 4 pontos, 38.5% têm PA grave e mortalidade de 5.8%. Com 5 a 7 pontos 80% têm PA grave e mortalidade de 10%. As crianças com PA grave devem ser tratadas em unidades de cuidados intensivos. A terapêutica da PA ligeira a moderada inclui: analgesia (meperidina 1 a 2 mg/Kg por via intramuscular ou endovenosa), fluidos endovenosos e “descanso” da glândula. Até há relativamente pouco tempo a nutrição parentérica total era considerada a única opção. Contudo, estudos recentes revelam que a nutrição entérica por sonda jejunal é bem tolerada. As complicações implicam vigilância clínica rigorosa. Complicações e prognóstico Nos casos de PA não complicada verifica-se em geral recuperação em 4-5 dias. Durante a primeira semana as potenciais complicações são em geral as sistémicas: hiperglicémia, hipocalcémia, hiperlipidémia, hipercaliémia, acidose metabólica e coagulação intravascular disseminada. As complicações tardias ocorrem após a segunda semana de doença e incluem os pseudoquistos e os abcessos. O risco de se desenvolver quisto ou pseudoquisto é maior na PA causada por traumatismo abdominal (39%) do que naquelas com outras causas (5%). As manifestações clínicas dos pseudoquistos são dores abdominais com náuseas e vómitos e, mais raramente, icterícia. Uma massa epigástrica é muitas vezes palpável. A ecografia permite o diagnóstico. A remissão espontânea dos pseudoquistos é frequente, mas estão descritas complicações: 594 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA abcesso, hemorragia, fístulas e ruptura. A punção percutânea sob controle ecográfico pode permitir a evacuação definitiva do quisto; por vezes é necessário tratamento endoscópico ou cirúrgico. BIBLIOGRAFIA Benifla M,Weizman Z. Acute pancreatitis in childhood: analysis of literature data. J Clin Gastroenterol 2003; 37: 169-172 De Banto JR, Goday PS, Pedroso MRA, et al. Acute pancreatitis in children. Am J Gastroenterol 2002; 97: 1726-1731 Lopez M. The changing incidence of acute pancreatitis in children: a single-instituition perspective. J Pediatr 2002; 140: 622-624 Makola D, Krenitsky J, Parrish C, et al. Efficacy of enteral nutrition for the treatment of pancreatitis using standard enteral formula. Am J Gastroenteral 2006; 101: 2347-2355 Nathens AB, Curtis R, Beale RJ, et al. Management of the critically ill patient with severe acute pancreatitis. Crit Care Med 2004; 32: 2524-2536 Swaroop VS, Chari ST, Clain JE. Severe acute pancreatitis. JAMA 2004; 291: 2865-2868 Whitcomb DC. Genetic predispositions to acute and chronic pancreatitis. Med Clin North Am 2000; 84: 531-547 PARTE XVII Oncologia 596 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 125 INTRODUÇÃO À ONCOLOGIA PEDIÁTRICA Mário Chagas Importância do problema A Oncologia Pediátrica constitui uma subespecialidade em constante mudança. Durante os últimos 60 anos, doenças que eram incuráveis atingiram probabilidades de cura por vezes superiores a 80%. Outras, tratadas de início com graves mutilações impostas por uma cirurgia heróica, são hoje curáveis sem alterações estéticas ou de função apreciáveis. Estes resultados ficaram a dever-se, não só aos progressos no diagnóstico e tratamento, mas também à melhoria dos meios de suporte dos doentes. Os protocolos cooperativos internacionais permitiram juntar experiências obtendo-se cada vez melhores resultados. Recentemente, os conhecimentos adquiridos em ciências básicas como a Imunologia e a Genética, vieram abrir novas perspectivas no campo do diagnóstico e do tratamento, levando a supor que os próximos anos sejam ainda de maior sucesso. Sendo a Oncologia Pediátrica uma subespecialidade englobada na Pediatria, este capítulo limitar-se-á a uma apresentação genérica de tópicos que, pela sua importância, deverão ser do conhecimento de todos os médicos. Numa primeira parte os mesmos serão abordados dando especial ênfase aos conceitos fundamentais sobre oncogénese, semiologia, diagnóstico e tratamento; e, numa segunda parte, aos grupos mais representativos da Oncologia Pediátrica: hemopatias malignas (leucemias, linfomas) e tumores sólidos (neuroblastoma e tumor de Wilms). O retinoblastoma é abordado na parte referente à Oftalmologia, noutro volume do livro. Aspectos epidemiológicos Contrariamente ao que habitualmente se supõe, os tumores surgindo em idade pediátrica não são raros. No mundo ocidental, de acordo com as estatísticas existentes, uma em cada seiscentas crianças terá uma neoplasia nos primeiros quinze anos de vida. A incidência anual de novos casos é cerca de cento e cinquenta por cada milhão de crianças com menos de quinze anos. Em Portugal, onde, de acordo com o INE, há cerca de um milhão e seiscentas mil crianças e jovens com idade inferior a quinze anos, estima-se que será de cerca de duzentos e quarenta o número de novos casos por ano. Nos Quadros 1 e 2 são discriminadas respectivamente as neoplasias mais habituais na criança, segundo os dados estatísticos do National Cancer Institute (NCI) dos EUA, e do Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia de Lisboa (2005-2007). Em ambos se poderá verificar que as leucemias agudas, principalmente linfoblásticas, e os tumores do sistema nervoso central (SNC), representam metade da totalidade dos casos. Os linfomas (doença de Hodgkin e linfoma não Hodgkin) representam cerca de quinze por cento dos tumores. As restantes neoplasias, designadas por «tumores sólidos», constituem um leque vasto de tumores diferentes, destacando-se, por ordem decrescente de frequência, neuroblastoma, sarcoQUADRO 1 – Tumores (T) mais frequentes na criança (0 a 15 anos) segundo o NCI (National Cancer Institute) dos Estados Unidos CAPÍTULO 125 Introdução à Oncologia Pediátrica QUADRO 2 – Casuística do Serviço de Pediatria do IPOFG (Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil), Lisboa Patologia Leucemia Aguda T. SNC Linfoma Neuroblastoma S. Partes Moles T. Wilms S. Ósseo Retinoblastoma T. Cel Germinativas S. Ewing/PNET Hepatoblastoma Outros T Malignos Histiocitose Tumores Benignos TOTAL 2005 2006 2007 TOTAL % 33 23 16 9 7 7 2 5 3 3 2 11 5 14 29 24 18 12 10 11 4 2 3 3 2 11 2 11 46 24 15 12 14 5 5 4 2 1 0 4 4 17 108 71 49 33 31 23 11 11 8 7 4 26 11 42 24,9 16,3 11,2 7,5 7,1 5,2 2,6 2,6 1,8 1,7 0,9 5,9 2,6 9,7 140 142 153 435 100 T = Tumores; S = Sarcoma; Cel = Células; SNC = Sistema nervoso central ma das partes moles, tumor de Wilms, e tumores ósseos. De acordo com estatísticas internacionais os tumores sólidos representam menos 40% dos tumores da criança; e neuroblastoma, rabdomiossarcoma, outros sarcomas das partes moles e tumor de Wilms, representam mais de metade dos tumores sólidos. Apesar de se tratar duma patologia relativamente pouco frequente, ela tem um peso grande na sociedade contemporânea, já que representa, a partir do primeiro ano de vida, a segunda causa de morte, depois dos acidentes. Uma questão que se coloca actualmente é saber se a incidência das neoplasias na criança tem vindo a aumentar ao longo dos anos, à semelhança do que sucede com as neoplasias do adulto. Torna-se difícil, pela variação normal do número de novos casos/ano, fazer afirmações seguras. Os estudos estatísticos mais completos de que dispomos, do NCI, comparando a incidência de novos casos no quadriénio 1975-1979 com a do quadriénio 1995-1999, mostram um aumento de 597 11,5% em vinte anos, ou seja, um aumento anual ligeiramente inferior a 0,6%. Esta variação não se verificou, no entanto, de igual modo em todas as neoplasias. Registou-se sobretudo nas leucemias, tumores do SNC, osteossarcoma e hepatoblastoma que se terão tornado mais frequentes, enquanto parece ter havido uma redução no número de novos casos de doença de Hodgkin, e não ter havido variação significativa noutras neoplasias. Para ilustrar a dificuldade que existe na interpretação destes dados, refere-se um «surto epidémico» de tumores do SNC, registado nos EUA, no final da década de 70 e início da década de 80. A este “pico” seguiu-se um decréscimo de incidência nos anos seguintes, não se tendo nunca registado um aumento da mortalidade nesse período. Este aparente surto foi explicado posteriormente pelo aparecimento nessa época de novas e mais sofisticadas técnicas de imagem, primeiro a tomografia axial computadorizada (TAC) e, depois, a ressonância magnética nuclear (RMN), que teriam permitido o diagnóstico mais precoce destes tumores. A frequência dos vários tumores nos diferentes grupos etários é muito característica e serve para orientação diagnóstica. O neuroblastoma, o tumor de Wilms, a leucemia mieloblástica aguda, os tumores do SNC e os tumores das partes moles, principalmente o rabdomiossarcoma, são as neoplasias predominantes. Por outro lado, a doença de Hodgkin, o osteossarcoma e o sarcoma de Ewing, são mais frequentes na pré-adolescência e adolescência. Virá a propósito referir que se verifica uma continuidade (formas variáveis de transição) entre o sarcoma de Ewing (menos diferenciado) e os PNET (Peripheral Primitive Neuroectodermal Tumors). As leucemias linfoblásticas agudas têm, por seu lado, um “pico” de incidência entre os dois e os quatro anos de idade. Seguimento e resultados globais Actualmente a probabilidade de cura de uma criança com cancro é grande. Depende, como se verá nos capítulos seguintes, do tipo de tumor, seu estádio evolutivo e tratamento efectuado. Uma interrogação frequente é saber o que sucede às crianças consideradas curadas. 598 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Dois estudos recentes, referentes ao seguimento de 20 227 e 13 711 antigos doentes, tratados entre 1970 e 1986 num caso, e entre 1960 e 1989 noutro, são elucidativos. O primeiro estudo foi feito nos EUA e o segundo nos países nórdicos. Em ambos, as populações estudadas em que tinha sido suspenso o tratamento havia pelo menos 5 anos, estavam sem doença. Curiosamente os resultados são sobreponíveis nos dois grupos e mostram que 10% destes ex-doentes virão a falecer nos anos seguintes, a maior parte por recidiva tumoral (cerca de 67%), outros por segundas neoplasias (12%), outros por toxicidade do tratamento (8%) e os restantes por causas diversas não relacionadas com a doença ou o tratamento. Nestes estudos verificou-se que 90% dos antigos doentes estão vivos, sem doença, e com padrões de vida muito semelhantes a grupos testemunha. 126 TUMORES, AMBIENTE E GENÉTICA Mário Chagas Influência do ambiente É consensual que os factores ambientais têm um papel preponderante na génese dos tumores do adulto e do idoso. A importância das radiações ionizantes, das substâncias químicas e das infecções víricas na oncogénese é bem conhecida. São numerosos os exemplos de exposições repetidas ao longo de anos que acabam por originar a neoplasia. O tabaco é um paradigma dessa situação. Na criança, é no primeiro ano de vida que a incidência de neoplasias é maior, reduzindo-se progressivamente nos anos seguintes, para voltar a aumentar no início da adolescência. Assim sendo, se os factores ambientais têm alguma importância na génese dos tumores pediátricos, deduz-se que eles terão que actuar muito precocemente, por vezes ainda in utero ou até antes, a nível das gónadas dos progenitores. Sendo um tema ainda controverso, apresentamse seguidamente três exemplos que o ilustram. O primeiro diz respeito a pais que desempenharam profissões, antes ainda da concepção, em que houve exposição a determinados metais ou radiações, e em cujos filhos se tem descrito maior de incidência de neoplasias. O segundo exemplo é relativo a certas formas de leucemia mieloblástica da criança, diagnosticadas no primeiro ano de vida, as quais parecem ser devidas a uma exposição in utero a determinadas substâncias químicas do grupo dos inibidores da topoisomerase II. Estas leucemias caracterizam-se por rearranjos genéticos específicos no clone leucémico envolvendo o gene MLL, CAPÍTULO 126 Tumores, ambiente e Genética muitas vezes apenas detectado em genética molecular e não em genética convencional. Sucede que estes mesmos rearranjos genéticos são descritos como característicos de neoplasias secundárias da criança mais velha e do adulto, que foram tratados alguns anos antes para uma primeira neoplasia com citostáticos dos grupos das epipodofilotoxinas ou das antraciclinas. O que há de comum entre as epipodofilotoxinas e as antraciclinas é que são ambas inibidoras da topoisomerase II. Ora, algumas substâncias químicas entram ainda que em pequenas doses na indústria alimentar, e alguns antibióticos de uso corrente, do grupo dos inibidores da topoisomerase II, poderão fazer parte da dieta ou da prescrição medicamentosa da grávida. Naturalmente que nem todas as grávidas que se expõem a estas substâncias durante a gestação terão um filho com leucemia. Admite-se ter de haver uma predisposição genética na mulher grávida que a tornará particularmente sensível a estes fármacos. O terceiro exemplo diz respeito a substâncias químicas que, consumidas ou usadas durante a gravidez, são implicadas no aparecimento de neoplasias no filho, tais como a marijuana, o álcool, o benzeno e os pesticidas. À semelhança do adulto, também algumas infecções víricas estão na origem de certas formas de cancro na criança: são bem conhecidas as relações entre a infecção pelo vírus da hepatite B e o carcinoma hepatocelular, pelo vírus do papiloma (HPV) e o cancro do colo do útero, e as relações entre o vírus de Epstein Barr e o linfoma de Burkitt africano ou a doença de Hodgkin. Finalmente, a relação entre as radiações ionizantes e as neoplasias é conhecida desde o final do século dezanove (Marie Curie terá falecido com leucemia). Ficaram tristemente célebres as crianças que, após irradiação do crânio para tratamento de infestação por pedículos capitis, surgiram com tumores do SNC ou que, após irradiação dum timo hiperplásico, surgiram com tumores deste órgão. Actualmente o oncologista moderno conhece bem o risco de incidência de tumores das partes moles, do osso, ou do SNC, em crianças previamente irradiadas para tratamento de neoplasias anteriores. Se os factores ambientais acima referidos são 599 hoje associados à génese das neoplasias da criança, convém notar, contudo, que estes casos são excepcionais e que para a maioria dos tumores pediátricos a relação com supostos factores ambientais não se conseguiu ainda estabelecer. Genética Duas grandes classes de genes através de mecanismos complexos estão implicadas na transformação maligna duma célula e no desenvolvimento das neoplasias: os oncogenes, derivados da activação dos chamados proto-oncogenes. E o s genes supressores das referidas neoplasias. A acção dos genes supressores implica um mecanismo de inactivação dos mesmos. Há tumores de transmissão hereditária em que é possível encontrar história familiar: é o caso do retinoblastoma e de certos adenocarcinomas da tiroideia de tipo medular em que, (40%, e 50 a 80% dos casos, respectivamente), há antecedentes de igual doença num dos progenitores. Há famílias em que a incidência de determinadas neoplasias é muito superior à da população em geral. Cita-se a síndroma de Li- Fraumeni em que a frequência de leucemia, de tumores das partes moles, nomeadamente rabdomiossarcoma, e de carcinoma da mama é em várias gerações da mesma família muito superior à habitual. Há crianças com determinadas alterações genéticas em que há maior incidência de neoplasias. É o que sucede na síndroma de Down em que o risco de aparecimento de leucemia é vinte vezes superior ao das outras crianças. É também o caso da síndroma de WAGR, síndroma caracterizada por aniridia e atraso do desenvolvimento intelectual, em que é muito grande a probabilidade de tumor do rim (tumor de Wilms). É ainda o que sucede nas síndromas de instabilidade cromossómica como a síndroma de Bloom, a ataxiatelangiectasia ou a anemia de Fanconi, em que a ocorrência de linfomas é superior à da população pediátrica em geral. Em todos os casos acima referidos há alterações genéticas que predispõem para o aparecimento de neoplasias por mecanismos ainda mal conhecidos. Nas últimas décadas foram-se descrevendo alterações genéticas nas células tumorais, não ve- 600 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA rificadas nas células normais. Algumas dessas alterações são aleatórias, traduzindo apenas uma grande instabilidade genética e, portanto, sem significado particular. Outras são, no entanto, específicas e têm hoje importância no diagnóstico, prognóstico e compreensão da génese do tumor. A primeira alteração genética característica de uma neoplasia foi descrita na década de sessenta do século passado. Trata-se de uma translocação entre o cromossoma 9 e o cromossoma 22 no clone celular da leucemia mielóide crónica. Este cromossoma recebeu o nome de Philadelphia em homenagem à cidade onde foi inicialmente descrito. Muitas outras alterações cromossómicas estruturais (translocações, deleções) e quantitativas, ou seja com variação do número de cromossomas, se foram descrevendo posteriormente, com maior frequência na última década, em leucemias, linfomas e tumores sólidos. Com o novíssimo advento da genética molecular percebeu-se que estas alterações são responsáveis por rearranjos do material genético, típicos de cada tumor, e com importância na oncogénese. Os progressos obtidos nesta nova ciência tornaram-se tão importantes que actualmente muitos diagnósticos são feitos, não pelos métodos clássicos da morfologia e imunocitoquímica, mas por Genética. À medida que os conhecimentos em Genética vão progredindo, novas noções sobre oncogénese vão surgindo, ultrapassando o âmbito deste capítulo. Justifica-se, no entanto, fazer referência à teoria de Greaves, pela visão global que lança sobre as eventuais causas de uma forma “nova” de leucemia aguda da criança, que poderá ser considerada como paradigma da oncogénese. Nos países ocidentais regista-se um pico de incidência de leucemia aguda linfoblástica na criança entre os dois e os quatro anos de idade, não descrito noutras zonas do mundo. Trata-se de uma leucemia particularmente quimiossensível e, portanto, de melhor prognóstico. Curiosamente, esta forma particular de leucemia da criança, descrita pela primeira vez na Grã-Bretanha no final da década passada de 40, só foi encontrada nos EUA na década de 60, primeiro nas crianças de raça branca, e só depois nas crianças de raça negra, tendo atingido apenas nos anos 80 o Japão. A teoria de Greaves admite como possível uma relação entre o aparecimento deste tipo novo de leucemia e alterações registadas na vida das crianças destes países, a partir do final da segunda guerra mundial. Assim, o parto hospitalar em condições de assepsia em substituição do parto no domicílio, o curto período de aleitamento materno e sua substituição por leites dietéticos, a redução das fratrias e a substituição precoce do ambiente familiar pelo ambiente do infantário, condicionariam uma anormal estimulação dum sistema imunitário ainda imaturo que levaria à neoplasia. Mais recentemente verificou-se que muitas crianças com este tipo «novo» de leucemia apresentam no seu clone leucémico uma translocação envolvendo os cromossomas 12 e 21, a t (12;21), o que condiciona uma fusão dos genes TEL e AML1. Greaves demonstrou, através do exame do sangue destas crianças armazenado nos cartões de papel de filtro, (usados para o diagnóstico precoce de certas doenças no período neonatal e que contêm sangue capilar), que esta t (12;21) era já detectável à nascença, ou seja, 2 a 4 anos antes de as mesmas adoecerem. Verificou-se posteriormente que apenas cerca de 1% das crianças nas quais é detectada esta translocação no período neonatal adoecerá, de facto, com leucemia, admitindo-se, assim, ser necessário outro ou outros factores (infecciosos, na teoria de Greaves) para continuar o processo de oncogénese. A teoria multifactorial desenvolvida por este autor para explicar a génese deste tipo de leucemia já era aplicada a outras neoplasias como o retinoblastoma. Na verdade, segundo a teoria de Knudson, são necessárias duas deleções sucessivas no cromossoma 13 para que o retinoblastoma surja. Se ambas as mutações ocorrerem numa célula somática da retina, o tumor é esporádico, unilateral e mais tardio. Se a primeira mutação se der na célula progenitora, e a segunda na célula somática da retina, o tumor é hereditário, muitas vezes bilateral, e surge muito precocemente nos primeiros meses de vida. Reportando-nos ao papel dos genes, (oncogenes e genes supressores) cabe referir que o HPV 19 induz transformação maligna inactivando o gene supressor do tumor. O desenvolvimento do cancro pode ainda estar ligado ao imprinting do genoma que consiste CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico na inactivação selectiva de um de dois alelos de certo gene. Verifica-se, assim, haver uma relação entre Genética e ambiente, aspecto subjacente na oncogénese da generalidade dos tumores pediátricos, desconhecendo-se, no entanto, muitos dos mecanismos íntimos de tal relação. 601 127 ASPECTOS BÁSICOS DO DIAGNÓSTICO ONCOLÓGICO Mário Chagas Manifestações clínicas Os sinais e sintomas dos tumores da criança são em geral incaracterísticos, pelo que poderá haver um período de latência relativamente longo entre o início das manifestações e o diagnóstico, que pode ser de semanas ou, nalguns casos, de meses. Uma das características da maioria dos tumores da criança é a de serem embrionários, derivados da mesoderme ou da neuroectoderme sendo por isso, do ponto de vista histológico, sarcomas. Por este facto, a sua localização raramente se verifica num órgão específico, ao contrário do que acontece com os tumores do adulto que são predominantemente carcinomas de um determinado órgão. Há, naturalmente, excepções, como o retinoblastoma, quase sempre localizado no globo ocular, ou o osteossarcoma que é o tumor ósseo mais frequente, ou ainda o tumor de Wilms, localizado habitualmente num rim. Mas o rabdomiossarcoma e outros sarcomas das partes moles, o sarcoma de Ewing/PNET, o neuroblastoma, os teratomas e muitos outros tumores designados por “sólidos”, podem ter topografia diversa, sendo a sua sintomatologia variável consoante a sua localização. Nestes tumores sólidos a primeira manifestação resulta, em regra, de um efeito de massa que o tumor exerce sobre as estruturas adjacentes: assim, o crescimento do tumor provoca dor, quer por compressão das raízes nervosas vizinhas, quer por estiramento da cápsula do órgão que o contém; pode induzir alterações neurológicas focais, quer por lesão de raízes nervosas, quer por 602 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA compressão da medula espinal por crescimento intracanal através dos buracos de conjugação; pode originar estase venosa por compressão vascular; pode induzir dificuldade respiratória por compressão das vias aéreas. Todos estes sinais e sintomas dependem, assim, da topografia do tumor e não do seu tipo. Se o tumor for intracraniano, crescendo numa caixa pouco distensível, manifesta-se inicialmente por sinais de hipertensão intracraniana, de que as cefaleias matinais persistentes ou que acordam a criança de noite e que aliviam com o vómito são o paradigma. Outras vezes, convulsões não febris e sinais neurológicos focais que variam com a localização do tumor são as manifestações inaugurais. Qualquer destes sinais e sintomas deverá levar a um exame neurológico cuidadoso e urgente. Os tumores torácicos originam, em regra, sintomas e sinais mais precocemente que os tumores abdominais, devido à menor elasticidade da caixa torácica: dificuldade respiratória, (quer por compressão das vias aéreas, quer por derrame pleural, quer, ainda, por efeito mecânico sobre o diafragma), síndroma da veia cava superior por compressão venosa, síndroma de Claude Bernard Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia), são manifestações habituais nos tumores localizados no mediastino. Se a localização do tumor for o mediastino posterior, as manifestações inaugurais serão muito provavelmente neurológicas por compressão de raízes nervosas ou da espinal-medula, podendo também haver, se o tumor atingir grandes dimensões, outras manifestações acima referidas. Os tumores abdominais podem atingir grande volume antes de provocarem sintomas e a sua primeira manifestação pode ser apenas distensão abdominal, ou massa que se palpa mas que é assintomática, como sucede com frequência no tumor de Wilms, muitas vezes detectado pela mãe ao dar banho ao filho, ou pelo médico em observação de rotina. Outras vezes, a distensão abdominal é extrema e dolorosa, como acontece com o linfoma de Burkitt. Mais raramente são as manifestações a distância, devidas a focos metastáticos, que levam a procurar o tumor primitivo, como sucede com frequência no neuroblastoma abdominal que se pode revelar, por exemplo, por metastização óssea causadora de dor, ou cutânea, com o aparecimento de nódulos. Os tumores pélvicos manifestam-se, em regra, por perturbação da micção e/ou defecação por compressão directa da bexiga ou do recto, ou por perturbação do funcionamento dos esfíncteres por compressão de nervos. Outras vezes, são as parestesias dos membros inferiores por compressão radicular, as primeiras manifestações. Se o tumor se localizar no osso, uma dor persistente sem história de traumatismo, uma massa tumoral palpável, ou uma fractura patológica, são os sinais e sintomas habituais, quer nos tumores primitivos como o osteossarcoma ou o sarcoma de Ewing, quer nos metastáticos como o neuroblastoma. Nos restantes tumores (leucemias e os linfomas) as manifestações mais comuns são o aumento das dimensões dos gânglios linfáticos (adenomegálias), do fígado (hepatomegália), do baço (esplenomegália), febre, diátese hemorrágica e dor óssea. O que se torna difícil é valorizar correctamente estas manifestações. Na verdade, com excepção da diátese hemorrágica, que é menos habitual e mais preocupante devendo levar à realização de exames complementares de diagnóstico urgentes, (começando por um hemograma), as outras são manifestações de patologia infecciosa vírica ou bacteriana de fácil resolução. Assim, adenomegálias (gânglios linfáticos com diâmetro superior a 1 cm) na região cervical superior ou submandibular são geralmente secundárias a focos infecciosos bacterianos regionais, tão frequentes na criança, ou infecções víricas (Epstein Barr, citomegalovírus – CMV), ou outras, como a toxoplasmose. Caracterizam-se por regredirem facilmente com antibioticoterapia ou espontaneamente, podendo reaparecer perante novo foco infeccioso. Será a sua persistência ou um aumento progressivo, apesar dos tratamentos habituais, que deverá evocar uma causa neoplásica (linfoma, rabdomiossarcoma, carcinoma da nasofaringe, neuroblastoma), obrigando a um exame mais cuidadoso. As adenomegálias cervicais inferiores, supra claviculares ou axilares têm em regra, um significado mais ominoso, sendo mais frequentemente de origem neoplásica que infecciosa. São persistentes e têm consistência firme. Não têm sinais inflamatórios, não são dolorosas, e podem fundirse em conglomerados. Deverão evocar entre ou- CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico tros, o diagnóstico de neuroblastoma num lactente ou numa criança muito jovem, de linfoma não Hodgkin numa criança em idade pré-escolar ou escolar, ou de doença de Hodgkin em criança mais velha. Por outro lado, as adenomegálias generalizadas com ou sem febre, acompanhadas ou não de hepatosplenomegália, deverão evocar o diagnóstico de infecção, muito provavelmente vírica (Epstein Barr, CMV, etc.). Também aqui será a não confirmação do diagnóstico, a persistência das manifestações, e o eventual aparecimento de sinais e sintomas mais preocupantes, como diátese hemorrágica ou dor óssea, que levarão a admitir a hipótese diagnóstica de leucemia/linfoma. Há, contudo, alguns sinais/sintomas que são preocupantes ab initio, e devem orientar o médico para um diagnóstico urgente. Enumeram-se os principais (cuja identificação implica o encaminhamento atempado da criança para centro especializado): – O aparecimento de massa tumoral nas partes moles do tronco ou membros, num lactente ou criança jovem, sem história de traumatismo, deve levar a admitir rabdomiossarcoma, sarcoma de Ewing/PNET, ou neuroblastoma. – A instalação de estrabismo fixo num lactente, ou o achado de leucocória (opacificação esbranquiçada na pupila), também designada como “olho-de-gato”, obrigarão a uma observação urgente por oftalmologista, com fundoscopia, de preferência sob anestesia, com a forte suspeita de retinoblastoma. – Convulsões não febris, cefaleias persistentes que acordam a criança de madrugada e que aliviam com o vómito, sinais neurológicos focais, são manifestações que sugerem fortemente neoplasia do SNC, tornando fundamental uma observação cuidadosa por neurologista. – Manifestações de opsomioclonus (mioclonias associadas a movimentos erráticos dos globos oculares) devem evocar a possibilidade de neuroblastoma. – A instalação da síndroma de Claude Bernard Horner (ptose, palpebral miose, endoftalmia) poderá ser o primeiro sinal de um tumor cervical ou do tórax superior. – O diagnóstico de miastenia gravis, deve evo- 603 car a possibilidade de timoma ou neuroblastoma. – Diarreia crónica pode ser a primeira manifestação de neuroblastoma ou de histiocitose de células de Langerhans. – Diabetes insípida pode preceder o diagnóstico de histiocitose de células de Langerhans ou de tumor do SNC. – Diátese hemorrágica (equimoses/petéquias/ /epistaxes/gengivorragias, etc.) podem traduzir patologia da medula óssea. – Síndroma febril indeterminada e ou perda de peso, poderão ser as únicas manifestações de uma neoplasia oculta durante muito tempo, impondo esclarecimento. Caracterização do estádio evolutivo (estadiamento) Colocada a hipótese diagnóstica de neoplasia, duas providências se tornam urgentes: confirmar o diagnóstico e caracterizar o estádio evolutivo da doença, ou seja, determinar a grau de extensão da mesma. Todas as crianças com cancro têm, à partida, uma probabilidade de cura a qual varia, naturalmente, com o tipo de tumor e o respectivo estádio evolutivo; tal probalidade é superior à da generalidade dos adultos com cancro, já que os tumores da criança são mais químio-sensíveis e rádio-sensíveis que os do adulto. Actualmente a leucemia linfoblástica aguda, o linfoma não Hodgkin, a doença de Hodgkin nos estádios I, II, ou III A, o tumor de Wilms, o neuroblastoma nos estádios 1 e 2, o osteossarcoma ou o retinoblastoma não metastizados, têm probabilidades de cura superiores a 70%. Outras neoplasias como a leucemia mieloblástica aguda, neuroblastoma nos estádios 3 e 4, osteossarcoma metastizado, têm probabilidades de cura inferiores, por serem tumores menos químio-sensíveis, ou se apresentarem em estádios mais avançados. No entanto, para se atingir os bons resultados actuais é necessário diagnóstico e caracterização do estádio correctos que permitam optar pelo protocolo terapêutico mais adequado. Deste último dependerá finalmente o sucesso do tratamento. Constituindo uma patologia pouco frequente e 604 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA curável na globalidade dos casos, é de boa prática concentrar as crianças com cancro num número reduzido de centros oncológicos, detentores dos meios cada vez mais sofisticados de diagnóstico e tratamento. Na verdade, o diagnóstico das neoplasias da criança tem sofrido nos últimos anos uma grande evolução. Ao exame macroscópico, à microscopia óptica e à citoquímica tradicionais, juntaram-se os estudos de microscopia electrónica, de imunologia, de genética convencional e, mais recentemente, de genética molecular, hoje indispensáveis para estabelecer o diagnóstico e o prognóstico na generalidade dos tumores da criança; contudo, pela sua complexidade e custos não são exequíveis em centros sem diferenciação oncológica. Por isso, actualmente no nosso País existem apenas quatro centros oncológicos pediátricos, localizados dois no Porto, no Hospital de S. João e Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, um em Coimbra no Hospital Pediátrico, e um em Lisboa no Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, onde se concentram para diagnóstico, tratamento e seguimento as cerca de 240 crianças que surgem todos os anos com cancro. Nestes centros a marcha diagnóstica inicia-se com a história clínica (anamnese pessoal e familiar e observação cuidadosa da criança). As hipóteses diagnósticas são equacionadas de acordo com os dados colhidos e com a idade da criança: alguns tumores são mais frequentes na criança muito jovem, como o neuroblastoma e tumor de Wilms; outros no adolescente, como a doença de Hodgkin, o osteossarcoma, ou o sarcoma de Ewing. Os exames complementares são solicitados com base nas hipóteses diagnósticas mais pertinentes, partindo sempre dos mais simples, para os mais complicados, por exemplo do hemograma para o mielograma. Os estudos de imagem a realizar para diagnóstico e definição do estádio (discutidos com o imagiologista: as radiografias convencionais, a ecografia, o ecodoppler, a tomografia axial computadorizada, a ressonância magnética, os estudos isotópicos com gálio, tálio, tecnécio, metaiodobenzilguanidina, ou crómio, a tomografia com emissão de positrões), têm as suas indicações precisas que devem ser conhecidas e aplicadas criteriosamente. A colheita de material para diagnóstico é combinada com os especialistas que vão processar o material, o qual deverá ser conservado em meios apropriados tendo em conta a realização de estudos subsequentes. Esta colheita pode ser feita por punção do tumor por agulha fina (citologia aspirativa) com anestesia local, e realizada no próprio gabinete de consulta se o tumor tiver localização superficial. O número de células assim obtido é relativamente reduzido, mas os progressos operados ultimamente quanto ao processamento e ao estudo do material permitem, muitas vezes, um diagnóstico seguro. Nos tumores de localização profunda esta punção terá que ser feita com controlo imagiológico e o doente anestesiado. Nalguns casos a colheita de líquido ascítico ou pleural permite obter um número suficiente de células neoplásicas para se fazer o diagnóstico, como sucede frequentemente nos linfomas. Outras vezes o material obtido é insuficiente e torna-se necessário recorrer a biópsia. Por qualquer destes meios, o material colhido é estudado em microscopia óptica e caracterizado por técnicas de imunofenotipagem, de genética e biologia molecular e, por vezes, de microscopia electrónica; desta forma é possível obter informações conducentes a um diagnóstico seguro e identificar factores prognósticos que permitam optar pela terapêutica mais adequada. CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 128 605 conceitos básicos de quimioterapia e radioterapia e referindo os seus efeitos secundários mais frequentes com os quais o médico oncologista e o médico da criança têm frequentemente que lidar. Quimioterapia ASPECTOS BÁSICOS DO TRATAMENTO ONCOLÓGICO Mário Chagas e Ana Teixeira Generalidades As leucemias e linfomas não Hodgkin são tratados geralmente apenas com quimioterapia. Os tumores sólidos e a doença de Hodgkin tratam-se, em regra, com quimioterapia numa fase inicial e, posteriormente, com terapia local: cirurgia e/ou radioterapia. A quimioterapia inicial, com o seu efeito sistémico, tem a dupla vantagem de destruir precocemente focos de micrometástases normalmente existentes, (reduzindo assim o risco de recidiva) e de diminuir as dimensões do tumor primitivo, permitindo uma remoção cirúrgica mais fácil e com menos sequelas. Da mesma forma, a quimioterapia inicial permite que os campos a irradiar sejam menores, caso seja necessário recorrer à radioterapia. A cirurgia será realizada numa fase inicial apenas: quando o tumor, pelas suas dimensões ou localização, for facilmente extirpável; ou nas situações em que não haja necessidade de outras formas de tratamento. O tratamento de uma criança com doença oncológica e o necessário apoio à sua família devem envolver um enorme grupo de especialistas, para além dos técnicos de saúde habituais. Assim, assistentes sociais, educadores de infância, professores, técnicos de animação, voluntários, são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante do grupo de técnicos existente nos centros oncológicos. Pela sua importância, apresentamos alguns A quimioterapia consiste na administração de fármacos citotóxicos que interferem no ciclo de vida celular. Pode ser utilizada como única forma de terapêutica de doenças neoplásicas ou em combinação com radioterapia e/ou cirurgia. Em geral, quanto maior for o índice mitótico das células tumorais, maior é a sensibilidade e resposta à quimioterapia, verificando-se o contrário nos tumores que se apresentam com uma percentagem significativa de células em fase G0, ou seja, “inactivas”. Os fármacos utilizados em quimioterapia podem ser subdivididos em dois grandes grupos: 1. fármacos que actuam em determinadas fases específicas do ciclo celular (por exemplo, alcalóides da vinca, metotrexato, 6-mercaptopurina, citosina arabinosido e etoposido) 2. fármacos sem especificidade de fase (por exemplo, agentes alquilantes, 5-fluorouracilo e actinomicina). É comum o protocolo de quimioterapia incluir fármacos de diferentes grupos, de forma a potenciar os mecanismos de acção sobre as células tumorais. Faz-se referência aos mais utilizados. 1. Alcalóides da vinca (vincristina, vimblastina, vindesina, vinorelbina) Os alcalóides da vinca são derivados da planta Vinca rosea e a sua acção citotóxica resulta da capacidade de se ligarem à tubulina. Esta proteína é fundamental na formação do fuso mitótico, ao longo do qual os cromossomas migram durante a mitose. Os alcalóides da vinca interferem com a função do fuso mitótico, impedindo a conclusão da mitose. Os efeitos secundários mais comuns resultantes da sua administração são obstipação, podendo mesmo ocorrer situações de íleo paralítico, e neurotoxicidade periférica (com perda dos reflexos aquilianos e rotulianos, dificuldade na marcha e “pé pendente”). Regra geral, estes efeitos são reversíveis com a interrupção da terapêutica. A vimblastina é menos neurotóxica mas, 606 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA ao contrário da vincristina, causa mielossupressão. 2. Antimetabolitos (metotrexato, citosina-arabinosido, 6-mercaptopurina, 6-tioguanina) São fármacos estruturalmente semelhantes a determinados compostos essenciais às células tumorais e que competem com, ou inibem, esses mesmos compostos. 2.1. Metotrexato (MTX) É semelhante ao ácido fólico e inibe a di-hidrofolato redutase, a enzima responsável pela manutenção de níveis adequados de tetra-hidrofolatos intracelulares. A utilização de MTX causa uma acumulação de folatos na sua forma oxidada inactiva, conduzindo à morte celular. Após a administração de MTX em doses elevadas, os níveis séricos deste fármaco devem ser vigiados durante pelo menos 48 horas, sendo necessária a administração de ácido folínico de forma a permitir a sobrevivência das células não tumorais. O MTX é hepatotóxico e, em altas doses, nefrotóxico. Em dose baixa administra-se em regime ambulatório como parte integrante dos esquemas de manutenção. 2.2. Citosina-arabinosido (Ara C) É semelhante à desoxicitidina e inibe a polimerase do DNA, pelo que interfere com a replicação e transcrição do DNA. Utiliza-se, tal como o MTX, em doses muito variáveis que nos protocolos mais intensivos pode chegar a vários gramas por metro quadrado por dia, durante alguns dias. 2.3. 6-Mercaptopurina e 6-tioguanina São compostos semelhantes aos nucleótidos hipoxantina e guanina. Quando incorporados no DNA provocam alterações na sua estrutura comprometendo a transcrição. São administrados por via oral, fazendo parte dos esquemas de manutenção de quimioterapia. 3. Antibióticos (antraciclinas, bleomicina, actinomicina D) Estes fármacos têm uma origem bacteriana ou fúngica e possuem uma actividade simultaneamente antimicrobiana e antitumoral. 3.1. Antraciclinas (daunorrubicina; doxorrubicina; epirrubicina; idarrubicina) A acção citotóxica destes fármacos resulta de vários mecanismos, incluindo a inibição da actividade da topoisomerase II (e consequente interferência na leitura do DNA) e a formação de radicais livres de oxigénio, capazes de causar lesão tecidual directa. São potencialmente cardiotóxicas, sobretudo se utilizados em doses cumulativas superiores a 350400 mg/m2. Nos doentes submetidos a esquemas terapêuticos que incluam doses elevadas de antraciclinas deve realizar-se uma avaliação prévia da função cardíaca e manter posteriormente um esquema regular de vigilância com ecocardiograma. 3.2. Bleomicina Consiste numa mistura de glicopéptidos de origem fúngica capazes de degradar o DNA. Pode causar toxicidade pulmonar. 3.3. Actinomicina D Interfere com a síntese de DNA e RNA por ruptura e distorção da dupla hélice de DNA. Tal como as antraciclinas, pode potenciar a toxicidade das radiações ionizantes, pelo que estes fármacos não devem ser utilizados simultaneamente com a radioterapia. 4. Agentes alquilantes (ciclofosfamida, ifosfamida, clorambucil, melfalan, busulfan) Formam ligações covalentes com as bases no DNA, pelo que alteram a sua integridade estrutural impedindo a transcrição. A ifosfamida e a ciclofosfamida são especialmente tóxicas a nível renal e vesical, pelo que a sua administração deve incluir vigilância da função renal, de hiperhidratação e protecção da mucosa vesical. 5. Compostos de platina (cisplatina, carboplatina) Tal como os agentes alquilantes, alteram a estrutura do DNA e inibem a sua síntese. Os efeitos secundários mais frequentes são diminuição da taxa de filtração glomerular e surdez, sobretudo com a utilização da cisplatina. 6. Epipodofilotoxinas [etoposido – (VP 16), teniposido – VM 26)] Estes fármacos são derivados sintéticos da podofilotoxina, um composto da planta de mandrake. São inibidoras da topoisomerase II, interferindo com a transcrição do DNA. CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 7. Outros (Asparaginase, hidroxiureia, corticosteróides, anti corpos monoclonais) A asparaginase degrada a asparagina sérica em ácido aspártico e amónia. Tem uma actividade antitumoral específica atendendo a que, ao contrário das células normais, os linfoblastos não possuem a capacidade de sintetizar asparagina, pelo que dependem do seu fornecimento exógeno. É ainda hoje um dos citostáticos mais importantes no tratamento das LLA. Os seus efeitos secundários mais frequentes são pancreatite aguda, disfunção hepática, incluindo alterações nos factores de coagulação, dislipidémia, hipoalbuminémia, e reacção de sensibilização. A hidroxiureia, substância análoga da ureia, impede a síntese do DNA por inibição do sistema enzimático da redutase dos ribonucleótidos. Os corticoídes são frequentemente utilizados em neoplasias hematológicas, atendendo a mecanismos ainda não bem esclarecidos mas que parecem envolver a existência de receptores para estes fármacos nas células tumorais. Os corticosteróides são igualmente incluídos em diversos protocolos terapêuticos no alívio de determinados sintomas, como quadros de hipertensão intracraniana e dores ósseas. Os anticorpos monoclonais e os inibidores da tirosina-cinase estão a ser utilizados nalguns centros (por ex. imatimib, rituximab, nilotinib, cetuximab, etc.) constituindo exemplo de terapia molecular dirigida, evidenciando ausência da toxicidade nos tecidos normais. Efeitos secundários da quimioterapia Os efeitos secundários da quimioterapia são em geral proporcionais à intensidade do tratamento, ou seja, ao número de citostáticos usados, às doses administradas e ao intervalo com que as faixas da quimioterapia são prescritas. Tal significa que nos protocolos mais intensivos e que tão bons resultados permitem obter actualmente, estes efeitos secundários acarretam uma morbilidade muito importante e, por vezes, até mortalidade. As náuseas e os vómitos constituem os efeitos secundários mais frequentes, podendo ser de tal forma intensos com certos citostáticos que o doente recusa a continuação do tratamento. Por 607 outro lado, podem conduzir a desequilíbrio hidroelectrolítico grave e a má-nutrição. Há, todavia, antieméticos muito potentes que ultrapassam estas complicações com relativa facilidade. Preferencialmente, a terapêutica antiemética deve ser instituída antecipadamente, antes da quimioterapia, e não apenas após o início dos sintomas. Os antieméticos mais utilizados em oncologia pediátrica são os antagonistas da serotonina e a metoclopramida, podendo combinar-se com a dexametasona e uma benzodiazepina de forma a obter potenciação de efeitos. A duração da terapêutica antiemética deve prolongar-se pelo menos 24 horas após a administração de citostáticos muito emetizantes, como sejam a cisplatina, a ifosfamida e o melfalan. A mucosite, sobretudo a nível da orofaringe, esófago e mucosa intestinal, é um dos efeitos secundários mais vulgarmente observados manifestando-se por secura e palidez das mucosas, aparecimento de placas esbranquiçadas, ulcerações, disfagia, dores abdominais, diarreia e proctite. Os fármacos mais frequentemente implicados são as antraciclinas, a citosina-arabinosido, a actinomicina D e o metotrexato em alta dose. Nos doentes pancitopénicos a lesão da mucosa do tubo digestivo pode funcionar como “porta de entrada” para infecções oportunistas potencialmente graves, sobretudo fúngicas e bacterianas (E. coli, Klebsiella e Pseudomonas). É importante que as crianças que recebem quimioterapia mantenham hábitos regulares de higiene oral, com utilização de escovas suaves e dentífricos adequados. A terapêutica com nistatina tópica é eficaz nas situações de mucosite fúngica por Candida, podendo ser necessária, em casos mais graves, a utilização de antifúngicos sistémicos, antibióticos e antivíricos nas crianças neutropénicas febris. As queixas álgicas causadas pela mucosite não devem ser negligenciadas, uma vez que podem perturbar francamente o bem-estar da criança e o seu estado nutricional. Devem ser utilizados analgésicos de acordo com a gravidade da situação clínica que incluem, desde anestésicos tópicos, até perfusões sistémicas de opiáceos; deve igualmente ser instituída uma dieta de consistência e conteúdo adequados. (ver adiante) A depressão medular pode resultar da progressão da doença oncológica em si (como no caso 608 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA das leucemias) ou ser consequência da quimioterapia. A incidência de infecções aumenta de forma inversamente proporcional ao número de neutrófilos, considerando-se risco grave de infecção se se verificar número absoluto de neutrófilos inferior a 0,5 x 109/l. As infecções são a complicação mais grave e a principal causa de morte durante a quimioterapia, exigindo um elevado nível de suspeição clínica, atendendo a que os sinais e sintomas inflamatórios clássicos podem estar ausentes em doentes neutropénicos. Sempre que o nível de neutropénia o justifique, estes doentes devem ser isolados, evitando-se o contacto com fontes exógenas potencialmente infectantes. Como foi já referido anteriormente, a integridade da mucosa digestiva deve ser preservada através de uma correcta higiene oral e peri-rectal; é igualmente importante evitar a utilização de termómetros por via rectal, assim como a administração de supositórios e enemas em doentes neutropénicos. Nas crianças com cateteres venosos centrais os cuidados de assépsia devem ser rigorosos em todas as manipulações do cateter, aplicando-se o mesmo princípio em todos os procedimentos que impliquem lesão da barreira cutânea, como punções venosas, lombares ou biópsias ósseas. A imunossupressão a que estão sujeitas pela quimioterapia, impede que estas crianças sejam imunizadas, particularmente com vacinas vivas; e, se os seus irmãos tiverem que ser vacinados contra a poliomielite, deverão sê-lo usando uma estirpe morta. Na verdade, a vacina viva permitindo a eliminação do vírus pelas fezes, pode ter consequências neurológicas graves no doente. Problema idêntico se põe com a vacina contra a varicela, já que as lesões exantemáticas que podem surgir na criança vacinada são contagiosas. Quando as crianças frequentam escolas, (e devem ser incentivadas a fazê-lo fora dos períodos de neutropénia), os pais e médicos responsáveis devem ser imediatamente avisados sobre o contacto com crianças com varicela ou sarampo, doenças que podem ter um efeito devastador, a fim de serem tomadas medidas de suporte adequadas. Nas situações de trombocitopénia grave, sobretudo se o número de plaquetas for inferior a 10-15 x 109/l, o risco de hemorragia gastrintestinal e do sistema nervoso central é elevado. Estas crianças devem evitar actividades físicas que possam causar traumatismos, assim como fármacos que interfiram com o número e actividade das plaquetas, como o ácido acetilsalicílico e o ibuprofeno. Sempre que se julgue necessário, a trombocitopénia deve ser corrigida através da transfusão de concentrado plaquetário (geralmente, 1 Unidade / 10 kg de peso). A transfusão de plaquetas associa-se com frequência a reacções caracterizadas por febre e tremores, o que se obvia com a irradiação sistemática do material transfundido e com a utilização de terapêutica prévia com hidrocortisona e clemastina. (ver Parte Hematologia) A anemia é um problema comum nas crianças com doença neoplásica sob tratamento. A decisão de transfundir (geralmente, 10 ml de concentrado eritrocitário / kg peso) deve ter em conta, não só os critérios definidos por cada instituição, mas também os sinais e sintomas que a criança apresente tais como, hemorragia activa, cansaço extremo ou dispneia. Os mesmos cuidados de irradiação do produto a transfundir e de terapêutica prévia atrás indicados devem ser tomados. A alopécia é um dos efeitos secundários da quimioterapia mais frequentemente observados (sobretudo com as antraciclinas, a actinomicina, o etoposido e os agentes alquilantes). Habitualmente, é reversível com o fim da terapêutica citotóxica. Tem sido descrito o aparecimento de tumores secundários, principalmente após a administração de citostáticos alquilantes, epipodofilotoxinas e antraciclinas, diagnosticando-se alguns anos após a utilização destes fármacos. São habitualmente leucemias mieloblásticas agudas ou linfomas não Hodgkin, as primeiras por vezes precedidas por síndromas mielodisplásicas. O prognóstico é geralmente muito reservado. Radioterapia A radioterapia consiste na administração de radiações ionizantes com o objectivo de destruir as células tumorais, por lesão directa a nível do DNA, e por acção indirecta através da ionização da água intracelular, o que causa a formação de radicais livres tóxicos. Pode ser administrada: externamente (a forma mais habitual) sendo o feixe de radiações emitido a uma determinada distância do doente; ou inter- CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico namente (braquiterapia), a partir de uma fonte de radiações colocada no tumor. Um terceiro tipo de técnica consiste na administração sistémica de um radioisótopo que é captado preferencialmente pelas células tumorais, como é exemplo a 131I-metaiodobenzilguanidina (MIBG terapêutica) em certos estádios de neuroblastoma. Efeitos secundários da radioterapia As radiações ionizantes lesam todas as células, tumorais e não tumorais, dentro do território irradiado. Os efeitos secundários dependem do tipo de radiação, da dose, da duração do tratamento, da região anatómica do volume corporal exposto e da tolerância individual. A pele, o couro cabeludo, a medula óssea e o tracto gastrintestinal são especialmente sensíveis às radiações. No entanto, os efeitos adversos tendem a desaparecer após o término da radioterapia, pela capacidade de renovação/cicatrização destes tecidos. Pelo contrário, órgãos com limitada replicação celular, como o encéfalo, a medula espinal, o coração e os rins, podem sofrer lesões que tendem a aparecer mais tardiamente e a ser irreversíveis. A idade da criança é igualmente um factor importante, já que quando um órgão é irradiado durante a sua fase de crescimento, as sequelas são mais graves. São exemplos as assimetrias de crescimento dos ossos irradiados antes do encerramento das cartilagens de conjugação, ou a radioterapia do sistema nervoso central antes de completado o processo de mielinização (cerca dos 3 anos de idade), podendo provocar défice cognitivo e disfunção endócrina central. As complicações agudas mais frequentes, dependendo da área irradiada, são: mal-estar geral; anorexia; náuseas e vómitos; disfagia; diarreia; cólicas abdominais; cistite; e alopécia. A irradiação do sistema nervoso central pode causar edema cerebral e uma síndroma de sonolência, fadiga, meningismo e febre que pode ocorrer até 6 a 8 semanas depois do início daquela. A pele dos territórios irradiados torna-se especialmente sensível, exibindo lesões que podem ir desde um vulgar eritema difuso a queimaduras graves com descamação. Os doentes devem evitar o uso de roupas apertadas e utilizar, com regular- 609 idade, cremes hidratantes, protectores solares e, eventualmente, anti-inflamatórios tópicos. A irradiação da medula óssea (como acontece na radioterapia da coluna vertebral) pode provocar pancitopenia transitória. A longo prazo, e como já referido anteriormente, a radioterapia pode provocar alterações no crescimento e maturação de tecidos e órgãos, e induzir o aparecimento de segundas neoplasias. Cuidados paliativos Os cuidados paliativos a prestar aos doentes oncológicos são uma componente obrigatória do respectivo tratamento com o objectivo fundamental de aliviar a dor, mal-estar e sofrimento daqueles, assim como da família e dos próprios prestadores dos cuidados. Assim, assistentes sociais, psicólogos, educadores de infância, professores, técnicos de animação, voluntariado, são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante do grupo de profissionais existente nos centros oncológicos. É também importante uma boa articulação entre a unidade de Oncologia e outros Serviços de Saúde permintindo o apoio local possível, o que contribui para a racionalização dos meios. A dor nos doentes com cancro pode resultar da lesão do órgão afectado, de lesão óssea secundária a metástases, ou de compromisso neuropático; pode ser combatida com fármacos opióides e não opióides de acordo com protocolos que ultrapassam o âmbito do capítulo. Entre os não opióides são utilizados o paracetamol e AINE’s em geral. Noutro grupo etário e em contexto clínico diverso, o capítulo sobre “Dor no RN” permite informação complementar (Parte Neonatologia). No que respeita a medidas gerais de promoção do máximo (possível) conforto, torna-se fundamental a presença dos pais (por vezes com limitações havendo risco infeccioso) e a atitude de humanização de todos os profissionais da equipa assistencial. Devem ser utilizados analgésicos de acordo com a gravidade da situação clínica, que incluem desde anestésicos tópicos (com lidocaína, por exemplo) até perfusões sistémicas de opiáceos. Neste caso é frequente o uso de sulfato de morfina em perfusão contínua IV, começando por uma 610 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA dose de 0,6 mg/kg/dia. Podem administrar-se em SOS bolus de 10% da dose da morfina assim calculada nas horas seguintes, para obter uma analgesia adequada. O somatório dos bolus após 24 h é então adicionado à dose inicial nos dias seguintes. Também se podem usar adesivos de fentanil, de absorção transdérmica, que têm uma duração de cerca de três dias, que obviam à necessidade de haver uma veia canalizada. Existem tabelas que permitem converter as doses de morfina em fentanil. Deve igualmente ser instituída uma dieta de consistência e conteúdo adequados. A depressão medular pode resultar da progressão da doença oncológica em si (como no caso das leucemias) ou ser consequência da quimioterapia. A incidência de infecções aumenta de forma inversamente proporcional ao número de neutrófilos 129 LEUCEMIAS Mário Chagas e Ana Teixeira Definição e aspectos epidemiológicos As leucemias podem ser definidas como um grupo de doenças malignas provocadas por anomalias genéticas de células precursoras hematopoiéticas do que resulta proliferação clonal anárquica, com diferenciação e maturação anormais de células (clone leucémico). Poderá tratar-se de uma célula precursora hematopoiética, quer da linhagem linfóide, T ou B (leucemia linfoblástica aguda, LLA T ou LLA B), quer da linhagem mielóide (leucemia mieloblástica aguda, LMA). As células que constituem o clone leucémico têm uma taxa aumentada de proliferação e uma taxa diminuída de apoptose espontânea, o que leva a disfunção e falência da medula óssea. As leucemias agudas representam cerca de um terço das neoplasias da criança. Cerca de três quartos das leucemias das crianças são linfoblásticas agudas, sendo as restantes mieloblásticas agudas. As leucemias mielóides crónicas são muito raras na criança. As leucemias linfocíticas crónicas não se verificam. A incidência anual de novos casos de leucemia aguda nos países ocidentais é cerca de 40 por milhão de crianças com menos de quinze anos. No nosso País estima-se que haverá cerca de 60 a 70 casos novos por ano. Destes, aproximadamente 50 serão leucemias linfoblásticas agudas. O Quadro 2 do capítulo 125 mostra a casuística do Serviço de Pediatria do IPOFG de Lisboa referente a 3 anos. A LLA tem um pico de incidência máximo entre os 2 e os 4 anos, que corresponde a uma forma particular de leucemia com características CAPÍTULO 129 Leucemias fenotípicas (linhagem B, CALLA +) e de quimiossensibilidade particulares, que lhe conferem um bom prognóstico. São menos frequentes antes ou depois deste grupo etário: no adolescente a LLA de linhagem T é mais habitual; pelo contrário, no lactente predomina a LLA de linhagem B, muito indiferenciada e, em regra, de mau prognóstico. A LMA tem um pico de incidência ao longo dos dois primeiros anos de vida, altura em que é quase tão frequente como a LLA, tornando-se depois menos frequente (15 a 25% das LA), só voltando a aumentar de frequência na adolescência. Etiopatogénese O capítulo 126, dedicado ao Ambiente e Genética resume os conhecimentos actuais sobre a oncogénese em geral, referindo os aspectos particulares relacionados com as leucemias. Como foi aí referido, para a generalidade das neoplasias e também para a generalidade das leucemias não há uma causa identificada. Em situações muito pontuais, identificam-se certos agentes microbianos víricos, químicos, e radiações ionizantes, bem como alterações genéticas, que se encontrarão envolvidos na génese das leucemias. A proliferação incontrolada do clone leucémico num espaço fechado como é aquele em que está contida a medula óssea, a sua incapacidade de diferenciação e maturação em células hematopoiéticas normais, e a disseminação por via sanguínea com fixação noutros orgãos, traduzem-se nas manifestações típicas das leucemias agudas descritas a seguir. Manifestações clínicas e exames de imagem nas LA As manifestações clínicas das LA são fundamentalmente: • Dor: tipicamente nos ossos longos ou na região lombar, corresponde à localização da medula óssea. A criança tem alguma dificuldade em a localizar com precisão. Ela não está relacionada com os movimentos e as articulações não apresentam, em regra, sinais inflamatórios. Por vezes é incapacitante e pode ser a única * M3, M4, M5 (ver explicação adiante) 611 manifestação durante algum tempo, levando ao diagnóstico diferencial com doenças reumáticas. • Diátese hemorrágica: é a tradução clínica da trombocitopénia; valores plaquetários inferiores a 10.000/mm3 são responsáveis por hemorragias nas mucosas oral e/ou nasal (gengivorragia e/ou epistaxe); valores entre 10.000 e 50.000/mm3, por petéquias (pequenas hemorragias punctiformes de origem capilar), equimoses (hemorragias multipetéquiais) e hematomas (hemorragias volumosas) intramusculares ou subcutâneos. Por vezes outras causas se podem associar a este mecanismo de hemorragia, tornando a etiologia da diátese mais complexa, como a falência hepática por infiltração leucémica, ou a libertação pelas células neoplásicas de proteínas com actividade anticoagulante, como sucede nalgumas formas particulares de LMA, em especial a leucemia promielocítica (LMA M3).(*) Nestes casos o início da quimioterapia, com destruição maciça dos promieloblastos e libertação destas proteínas, pode originar uma diátese hemorrágica devastadora. • Anemia: traduz uma progressiva diminuição do número de glóbulos vermelhos e da hemoglobina por falência de produção; manifesta-se por palidez da pele e mucosas, taquicardia, tonturas, etc.. De referir que os valores de hemoglobina encontrados são por vezes muito baixos (3 ou 4 g/dl) mas relativamente bem tolerados, devido à lenta instalação da anemia. • Febre, em regra não muito elevada, está relacionada com os mecanismos fisiopatológicos da leucemia: libertação de pirogénios pelos blastos ou pelos macrófagos e linfócitos que procuram controlar o clone leucémico. Desaparece com o início do tratamento. No entanto, pode ser consequência de infecção, facilitada pela redução do número de leucócitos normofuncionantes. Na verdade, muitas crianças podem ter como uma das primeiras manifestações da doença, infecções recorrentes ou de evolução arrastada, mais habitualmente do foro ORL, que respondem mal à antibioticoterapia. • Organomegália que traduz a infiltração de vários órgãos pelos blastos circulantes: hepatomegália, esplenomegália e adenomegálias (gânglios linfáticos maiores que 1 cm) localizadas ou generalizadas, e de dimensões variáveis, são encontradas com frequência no exame objectivo da criança. 612 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Numa radiografia do tórax pode encontrar-se uma massa mediastínica, o que é muito sugestivo de LLA de fenotipo T, mais habitual no adolescente do sexo masculino; tal traduz infiltração do timo ou dos gânglios linfáticos dos hilos pulmonares. Nas LMA não é raro haver infiltração cutânea inicial pelas células neoplásicas (leucemia cutis). Esta infiltração também se pode encontrar nas LLA, mas em formas terminais. • Cloromas: são massas tumorais de tamanho variável que se encontram com relativa frequência nas LMA, principalmente de tipo M4 e M5(*). Localizando-se preferencialmente na região periorbitária ou ao longo da coluna vertebral, podem então originar manifestações neurológicas. Algumas vezes estes cloromas precedem o diagnóstico de leucemia, tendo sido descritos em crianças, ainda antes de haver envolvimento da medula óssea. Ainda nas LMA M4 ou M5(*) pode haver hiperplasia gengival por infiltração. • SNC: encontra-se igualmente atingido muitas vezes no início da doença pela migração dos blastos que, por via sanguínea, se vão fixar preferencialmente na pia-máter. O número de células neoplásicas é, no entanto, insuficiente para originar sintomas na generalidade dos casos. É a chamada doença subclínica do SNC. Mas se houver infiltração maciça, particularmente a partir dos plexos coroideus, especialmente ricos em vasos sanguíneos, podem surgir sinais de hipertensão intracraniana, tais como cefaleias e vómitos, ou sinais neurológicos focais. • Exames de imagem, como a ecografia ou a tomografia axial computadorizada mostram igualmente que outros órgãos como os rins ou os ovários estão frequentemente infiltrados no início da doença, apresentando-se de dimensões aumentadas. No sexo masculino, embora raramente, pode detectar-se no início da doença aumento do volume testicular que é indolor, sem sinais inflamatórios, sendo os testículos de consistência dura. Diagnóstico das LLA O hemograma revela alterações sugestivas: anemia normocítica e normocrómica, quase sempre trombocitopénia e leucopénia ou leucocitose. O exame do esfregaço do sangue periférico pode mostrar a existência de blastos circulantes. Por vezes não há alterações significativas no hemograma. O diagnóstico é feito a partir de colheita de medula óssea, em geral numa crista ilíaca. As células assim obtidas são sujeitas a exame morfológico e citoquímico usando os corantes clássicos, a tipagem imunológica através de painéis de anticorpos monoclonais, a estudos de genética convencional para determinação de alterações no número e estrutura dos cromossomas e, mais modernamente, a estudos de genética molecular, mais sensíveis e específicos que os anteriores. Assim, é possível diagnosticar uma leucemia se o número de blastos na medula óssea for superior a 25% da celularidade total, e classificá-la recorrendo aos estudos morfológicos e imunológicos, de acordo com a linhagem afectada (linfoblástica, de linhagem B ou T). As alterações genéticas encontradas, quer em cariótipo convencional, quer em genética molecular, confirmam o diagnóstico, já que muitas são específicas de um tipo de leucemia e estabelecem também o prognóstico. Por exemplo, um clone leucémico hiperdiplóide, em que o número de cromossomas é superior a 50, é particularmente sensível à quimioterapia com citostáticos do grupo dos antimetabolitos, sendo de bom prognóstico. Por outro lado, o achado da translocação (t) (9;22), o chamado cromossoma de Philadelphia, a que corresponde a fusão molecular BCR-ABL, indica só por si, a necessidade de recorrer a transplantação de medula óssea (TMO) uma vez obtida a remissão, já que os resultados obtidos com quimioterapia convencional são maus. Da mesma forma a t (4;11) com alterações envolvendo o gene MLL, frequentemente encontrada em lactentes com LLA, implica um prognóstico ominoso, que não parece sequer melhorar com TMO. Ao invés, a t (12;21) envolvendo os genes TEL-AML1 parece conferir à LLA, pelo menos com alguns protocolos de quimioterapia, um prognóstico mais favorável. Diagnosticada a leucemia, torna-se imprescindível detectar a existência de blastos no SNC, um dos factores prognósticos mais importantes, o que se consegue por exame morfológico, citoquímico e, se necessário, imunológico, das células encontradas no liquor após centrifugação. Em geral não há blastos detectáveis: é a chamada doença subclínica do SNC. Um número de blastos superior a cinco por campo implica pior prognóstico e obriga a uma tera- CAPÍTULO 129 Leucemias pêutica mais intensiva para obtenção de melhores resultados. Este achado é mais frequente em adolescentes do sexo masculino com LLA de fenotipo T, ou em lactentes com LLA hiperleucocitária de linhagem B muito indiferenciada. O achado de um número de blastos inferior a cinco por campo tem actualmente um significado não totalmente compreendido, dividindo-se os centros oncológicos sobre a necessidade de intensificar ou não o tratamento. Tratamento das LLA O tratamento das LLA é uma história de sucesso que se foi construindo ao longo dos últimos cinquenta anos. Actualmente é possível curar cerca de 75% a 85% das crianças com LLA. Os protocolos de quimioterapia, com algumas variações subtis, compreendem uma fase inicial de indução e de remissão que dura cerca de um mês. No final a criança deve estar assintomática, com observação normal, sem alterações no sangue periférico, e com percentagem de blastos inferior a 5% na medula óssea. Seguem-se uma fase de terapêutica da doença subclínica do SNC, uma fase de intensificação/consolidação, e um período final de manutenção. Globalmente a terapêutica dura cerca de dois anos. Muito esquematicamente, a evolução da terapêutica ao longo dos anos, até à obtenção dos excelentes resultados actuais foi a seguinte: – no final de década de 40 do século passado iniciaram-se as primeiras tentativas terapêuticas com citostáticos em monoterapia, tendo o pediatra Farber em Boston, obtido pela primeira vez uma remissão de curta duração usando um antimetabolito, a aminopterina; – na década de 50 foram induzidas associações de fármacos: antimetabolitos, vincristina, prednisolona e asparaginase; as remissões obtidas eram mais longas, mas a doença recidivava passados alguns meses, sendo metade das recidivas a nível do SNC; – iniciou-se então na década de 60 a terapêutica da doença subclínica do SNC com radioterapia crânio-encefálica e do neuro-eixo numa primeira fase e, posteriormente, apenas craniana, associada a quimioterapia intratecal, o que permitiu a redução do número de recidivas no SNC para cerca de 5%; 613 – na década de 70 utilizavam-se sistematicamente esquemas terapêuticos com indução, terapêutica da doença subclínica do SNC e manutenção. Surgiu a definição de grupos de risco, percebendo-se que a doença não tinha sempre a mesma gravidade; estes grupos baseavam-se principalmente em critérios clínicos, como a idade e a organomegália, e em critérios laboratoriais como o número de leucócitos iniciais, e a classificação imunológica, ainda que rudimentar, dos blastos; – na década de 80 aperfeiçoaram-se os critérios que definem estes grupos de risco, principalmente com os progressos na classificação imunológica do clone leucémico e, posteriormente, com o advento da biologia molecular; à definição destes grupos de risco, corresponde uma adaptação da intensidade da quimioterapia, de forma a obter os melhores resultados com a menor toxicidade; na década de 90 ensaiaram-se métodos imunológicos e genéticos para detecção da doença mínima residual em fases determinadas do tratamento, procurando determinar o seu significado prognóstico. Assim, actualmente, após o diagnóstico é imprescindível definir o grupo de risco do doente, o qual condicionará a escolha da terapêutica. Em linhas gerais, consideram-se de alto risco os grupos etários inferior a 1 ano ou superior a 10 anos, a LLA de linhagem T, a LLA de linhagem B com mais de 50.000 glóbulos brancos/mm3, e a LLA com invasão do SNC. Os doentes destes grupos são sujeitos a quimioterapia mais intensiva que permite no final obter resultados sensivelmente idênticos aos do grupo de risco médio ou baixo. Consideram-se de muito alto risco, a LLA com t (9;22), a LLA que não está em remissão no final da indução, e a LLA no lactente com t(4;11). Os dois primeiros são actualmente propostos para TMO, discutindo-se a melhor atitude terapêutica para o terceiro. Consideram-se de risco baixo/médio os outros casos, ou seja, as LLA de linhagem B com menos de 50.000 glóbulos brancos/mm3 no sangue periférico, em crianças com mais de um ano e menos de dez, e sem invasão inicial do SNC. Diagnóstico das LMA O diagnóstico das LMA é feito através da colheita de medula óssea, em regra efectuada por punção 614 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA da crista ilíaca. Ao contrário do que acontece com as LLA, convencionou-se ser necessário um número de blastos superior a 20% e não a 25%, para a sua confirmação. O procedimento para a caracterização dos blastos é semelhante em ambos os tipos de LA: estudos morfológicos, imunocitoquímicos, de fenotipagem e genéticos. A classificação das LMA é mais complexa que a das LLA, já que mais linhagens celulares podem ser afectadas, sendo a classificação morfológica FAB (FrancoAmericana-Britânica) a mais usada internacionalmente: M1 e M2 (mieloblástica), M3 (promielocítica), M4 (mielomonocítica), M5 (monocítica), M6 (eritroleucemia), M7 (megacariocítica) e M0 (indiferenciada). A designação M corresponde, pois, a tipos morfológicos. Embora os estudos de genética não tenham actualmente o impacte no diagnóstico e no prognóstico que têm nas LLA, algumas alterações são já devidamente valorizadas: t(8;21), inv.16 e t(15;17) implicam um prognóstico mais favorável, e são específicas de certos tipos de LMA. Tratamento das LMA Ao contrário das LLA, com o tratamento das LMA não são obtidos tão bons resultados. Globalmente, a probabilidade de cura ronda os 50%. Isto porque os blastos se revelam pouco quimiossensíveis e o aparecimento de resistências é frequente. O número de citostáticos realmente eficazes é pequeno, reduzindo-se aos grupos das antraciclinas (doxorrubicina, daunoblastina, idarrubicina, mitoxantrona), epipodofilotoxinas (VP16, VM26), alguns antimetabolitos (Ara C) e amsacrina. A terapêutica de manutenção, tão útil na generalidade das LLA, não parece ter tanto interesse nesta forma de leucemia, preferindo a maioria dos centros proceder antes a quimioterapia intensiva que se prolonga por seis a oito meses, com associações de citostáticos, alguns em altas doses, originando longos períodos de aplasia medular. Embora ainda em discussão, de acordo com a experiência dos maiores grupos cooperativos, podem ser considerados actualmente três grupos de risco: risco médio, que corresponderá aos tipos M1 e M2 com corpos de Auer, e M4 com eosinófilos, em que a probabilidade de cura é vizinha dos 65%; risco alto, que corresponderá aos restantes tipos FAB em que a probabilidade de cura não ultrapassará os 30%, e em que se propõe TMO em primeira remissão; risco muito alto, que corresponde às LMA em que a contagem inicial de leucócitos é superior a 100.000/mm3, de muito mau prognóstico; nestas, as terapêuticas são decepcionantes, mesmo com TMO. Duas formas particulares de LMA são, contudo, excepção neste panorama pessimista. A primeira diz respeito a crianças com síndroma de Down que adoecem com LMA que é, em regra, M7 (classificação FAB). Os megacarioblastos destas crianças são particularmente sensíveis ao Ara C por razões genéticas, tendo estes doentes uma muito boa probabilidade de cura com quimioterapia não muito intensiva. A segunda diz respeito à LMA M3 (promielocítica) que apresenta quase sempre t(15;17), e a que corresponde uma arranjo genético envolvendo os genes PML e RARA. É hoje possível induzir, no início do tratamento, a maturação dos promieloblastos típicos desta forma de LMA, com a administração de ácido transretinóico, o que permite reduzir o risco de coagulopatia característico da fase inicial da terapêutica, já que a destruição dos blastos induzida pelos citostáticos liberta grandes quantidades de proteínas anticoagulantes. O uso de ácido transretinóico ao longo da indução e, posteriormente, na manutenção, nesta forma particular de LMA, adquiriu grande importância permitindo uma probabilidade de cura vizinha dos 75%. A LMA M3 é, pois, um bom exemplo dos progressos registados no tratamento das neoplasias com a utilização de fármacos que actuam, não por destruição celular como é típico dos citostáticos, mas por indução da maturação do clone neoplásico. Esta forma de LA é também um bom exemplo da importância que a monitorização genética tem no prognóstico dos doentes, já que a fusão PMLRARA deverá deixar de ser detectada a partir de determinada fase do tratamento; a sua persistência, ou reaparecimento, prenuncia uma má evolução. CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin 130 LINFOMAS NÃO HODGKIN Mário Chagas e Ana Teixeira Definição e aspectos epidemiológicos Os linfomas não Hodgkin são neoplasias de linfócitos maduros ou de células precursoras dos linfócitos que, por mutação genética, perderam as capacidades de maturação e de apoptose, ou seja, de autodestruição. Ao contrário dos linfomas não Hodgkin do adulto, são de grande agressividade. Os linfomas não Hodgkin são muito menos frequentes na criança do que no adulto, aumentando a incidência de forma progressiva, com a idade. Podem encontrar-se, no entanto, em crianças muito jovens, por vezes lactentes. Depois das leucemias agudas e dos tumores do SNC, os linfomas (de Hodgkin e não Hodgkin) são as neoplasias mais frequentes, representando cerca de 15% da globalidade dos tumores da criança. 615 dem, na classificação da Organização Mundial de Saúde, uma das classificações antigas mais usadas, as categorias histológicas de linfoma de Burkitt, Burkitt like e linfoma B de grandes células. Aos linfomas T de células maduras, corresponde a categoria histológica de linfoma anaplásico de grandes células na mesma classificação. Aos linfomas pré T ou pré B, a categoria de linfoma linfoblástico. Como sucede com outras neoplasias, são descritas algumas situações predisponentes de linfomas, em geral relacionadas com imunodeficiência congénita ou adquirida. No entanto, para a maioria dos casos diagnosticados, não se consegue encontrar uma causa, como sucede para a generalidade das neoplasias da criança. 1. LINFOMAS B: Linfoma de Burkitt, Linfoma Burkitt like e linfoma B de grandes células Definição O linfoma de Burkitt é, como se referiu uma neoplasia de linfócitos B maduros que se apresenta morfologicamente como um linfoma de pequenas células redondas, não clivadas. É muito provavelmente o tumor pediátrico com multiplicação celular mais rápida e crescimento mais veloz. Classificação Formas clínicas A caracterização imunológica dos linfócitos patológicos veio originar uma classificação simples dos linfomas não Hodgkin da criança, o que tem vindo a permitir abandonar progressivamente as inúmeras classificações clássicas, baseadas na morfologia e nas características citoquímicas, pouco claras e em regra sem grande relação com a clínica. De forma resumida, os linfomas não Hodgkin pediátricos classificam-se hoje de acordo com a linhagem linfóide afectada em linfomas B de linfócitos maduros, linfomas T igualmente de linfócitos maduros, e linfomas pré T ou pré B que, como o nome indica, são linfomas de células precursoras não maduras de linhagem T ou B. Aos linfomas B de células maduras correspon- A sua forma endémica foi a primeira a ser descrita, na década de 50 do século passado na África equatorial pelo cirurgião irlandês Burkitt, de quem recebeu o nome. É o tumor mais frequente naquela região de África; caracteriza-se pela localização preferencial no maxilar superior, podendo atingir igualmente o abdómen e o SNC. Mais tarde relacionou-se este tumor com o vírus de Epstein-Barr, cujo genoma se encontra quase constantemente no núcleo do linfócito B neoplásico e, também, com a malária, já que a área endémica desta doença é também a área endémica do linfoma de Burkitt. Admite-se que a infecção pelo plasmódio facilite, pela imunossupressão que lhe é inerente, a proliferação incontrolada dos linfócitos B infectados pelo vírus de Epstein-Barr, causando a doença. 616 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Na União Europeia e nos EUA esta neoplasia é muito menos frequente, sendo a forma típica de apresentação clínica a de um tumor abdominal de crescimento muito rápido, localizado de início na fossa ilíaca direita e estendendo-se depois rapidamente a todo o abdómen, o qual se apresenta muito distendido e doloroso. À palpação encontram-se várias formações tumorais de consistência dura. A ecografia ou a TAC revelam várias massas tumorais intrabdominais, por vezes infiltração nodular do fígado, baço, ou rins, e adenomegalias mesentéricas e retroperitoneais. Pode haver ascite e derrame pleural. Mais raramente a massa linfóide tumoral, que se localiza de início preferencialmente na região terminal do íleo, pode originar um íleos mecânico precocemente, que é então a manifestação clínica inaugural. Neste caso, é a cirurgia para resolução do íleos que permite o diagnóstico. Em estádios avançados o linfoma pode atingir o SNC, com massas tumorais que se localizam principalmente no espaço epidural, e também na medula óssea (comportando-se então como LLA de linfócitos B maduros). Menos frequentemente, o linfoma de Burkitt pode surgir com outras localizações: mediastino, gânglios linfáticos cervicais, anel de Waldeyer. Diagnóstico O diagnóstico é feito por estudos morfológicos, citoquímicos, imunológicos e genéticos. Os dois primeiros revelam a existência de um tumor de pequenas células redondas, não clivadas; os métodos imunológicos permitem a detecção de marcadores de maturidade do linfócito B, e a genética revela as translocações típicas: t(8;14), t(2;8) e t(8;22). O material para estes estudos pode obterse por citologia do tumor por agulha fina, ou por estudo das células existentes em suspensão no líquido ascítico ou no derrame pleural. Tratamento O tratamento do linfoma de Burkitt/LLA B constitui um dos maiores sucessos da oncologia moderna. O elevadíssimo número de células neoplásicas em divisão acompanha-se de uma enorme capacidade de adquirir resistência à quimioterapia, por mutação. Os protocolos clássicos revelaram-se, assim, ineficazes e, excluindo as raras formas tumorais localizadas que era possível ressecar, nos restantes casos a única hipótese de cura era a relacionada com megaterapia seguida de transplante de medula ósea (TMO), o que só era viável se houvesse um dador compatível. Actualmente, com os modernos protocolos de quimioterapia intensiva, a probabilidade de cura é superior a 80%. É importante, para além do diagnóstico, caracterizar o estádio da doença, já que os protocolos de quimioterapia actuais possuem vários ramos de intensidade crescente. Os estádios intermédios tratam-se durante cerca de 4 meses, e as formas mais graves, em que há invasão da medula óssea ou do SNC, durante cerca de 8 meses. Os resultados finais acabam por ser semelhantes. O linfoma B de grandes células e o linfoma Burkitt like são variantes histológicas na classificação da Organização Mundial de Saúde; mas são igualmente neoplasias de linfócitos B maduros. Surgem em crianças de grupo etário superior e caracterizam-se pelo aparecimento, não de grandes massas tumorais como no linfoma de Burkitt, mas de gânglios linfáticos aumentados (adenomegálias) preferencialmente em territórios periféricos, ou profundos (intrabdominais e/ou torácicos). A localização mediastínica é mais frequente na forma de linfoma B de grandes células do que no linfoma de Burkitt; neste último é tipicamente abdominal, como foi dito. (Figura 1) Embora haja diferenças morfológicas entre estes linfomas B e o linfoma de Burkitt, o tratamento é semelhante e os resultados são igualmente bons. 2. LINFOMAS PRÉ T e PRÉ B: Linfoma linfoblástico O linfoma pré T, constituído por linfoblastos precursores de linhagem T, é tipicamente supra diafragmático, atingindo o mediastino numa grande percentagem de casos, e também os gânglios dos territórios cervicais, supra claviculares e axilares. Dor torácica, dispneia e disfagia por compressão das vias aéreas ou do esófago, edema e estase venosa do pescoço e parte superior do tórax por compressão da veia cava superior – síndroma da veia cava – são as manifestações mais frequentes. (Figura 1) CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin FIG. 1 Linfoma B difuso de grandes células; radiografia do tórax: adenomegalia mediastínica. Em estádios mais avançados pode haver invasão do SNC ou da medula óssea. Esta última põe problemas de diagnóstico diferencial entre linfoma e leucemia. Por convenção será linfoma se o número de linfoblastos na medula óssea for inferior a 25%. O linfoma pré B, constituído por linfoblastos precursores de linhagem B, atinge igualmente os territórios linfáticos periféricos, ou profundos, tóraco-abdominais, não havendo aqui, contudo, volumosas massas tumorais, como sucede no linfoma de Burkitt. Pode igualmente em fases avançadas atingir o SNC ou a medula óssea, pondo iguais problemas de diagnóstico diferencial com leucemia, utilizando-se o critério acima referido para fazer a destrinça. A distinção entre leucemia e linfoma acaba, na prática, por ser pouco importante, já que o tratamento destes linfomas faz-se com protocolos de quimioterapia semelhantes aos das leucemias, com resultados sobreponíveis. 3. LINFOMA T: Linfoma anaplásico de grandes células Trata-se de uma entidade nova, durante muito 617 tempo confundida com a doença de Hodgkin, hoje diferenciada pelas características imunológicas e genéticas da célula neoplásica. Manifesta-se por adenomegálias nos territórios periféricos ou toracoadominais sem, contudo, haver formação de grandes massas tumorais, ao contrário do que sucede com o linfoma de Burkitt, ou o linfoma linfoblástico (o primeiro no abdómen, o segundo no tórax). Pode infiltrar certos órgãos como a pele, o pulmão ou o osso, mas raramente atinge o SNC ou a medula óssea. É, sobretudo, a evolução lenta com períodos de regressão espontânea e a repercussão no estado geral, com febre e emagrecimento, que diferenciam este linfoma dos outros e o aproximam do linfoma de Hodgkin. Não há unanimidade na terapêutica ideal, sendo tratada por uns centros como uma leucemia aguda, por outros como uma doença de Hodgkin. Mais recentemente têm sido referidos bons resultados com quimioterapia semelhante à utilizada para o linfoma de Burkitt. 618 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 131 LINFOMA DE HODGKIN Mário Chagas e Ana Teixeira Definição e aspectos epidemiológicos O linfoma de Hodgkin, tradicionalmente designado como doença de Hodgkin, tem o nome do médico que primeiro o descreveu no início do século XIX. Trata-se dum processo maligno do sistema linforrecticular. Constituindo cerca de 5% dos casos de cancro em idade pediátrica, surge nos países industrializados com um primeiro pico de incidência por volta dos vinte anos, e outro a partir dos cinquenta anos. É, portanto, muito menos frequente na criança que no adulto. Na idade pediátrica surge principalmente na pré-adolescência ou adolescência, sendo raro antes dos 7 anos de idade ao contrário dos outros linfomas. As relações entre esta doença e o vírus de Epstein Barr são conhecidas, já que o genoma do vírus se encontra com grande frequência na célula neoplásica. A doença de Hodgkin é mais frequente em crianças com imunodeficiência e tem sido descrito o seu aparecimento em “epidemias” familiares, porventura relacionadas com infecções víricas. Manifestações clínicas Clinicamente caracteriza-se por ter um início insidioso, com aparecimento de adenomegálias principalmente cervicais, supraclaviculares ou mediastínicas. Mais raramente a localização é infradiafragmática. Os gânglios são elásticos, não dolorosos, sem sinais inflamatórios, de crescimento muito lento; por vezes apresentam regressão espontânea durante algum tempo, no que a doença de Hodgkin se distingue da generalidade dos outros linfomas. Em fases mais avançadas as ade- nomegálias podem confluir, formando conglomerados mais ou menos volumosos. As adenomegálias do mediastino são assintomáticas de início, podendo ser um achado ocasional em radiografia feita por intercorrência. Mais tarde os gânglios comprimem as estruturas vizinhas, podendo originar dispneia, disfagia e rouquidão. A progressão da doença faz-se em regra por via linfática, atingindo sucessivamente os territórios ganglionares vizinhos. Em fase avançada da doença surgem manifestações sistémicas: febre, emagrecimento, sudação e prurido. As três primeiras têm significado prognóstico importante e pressupõem uma terapêutica mais intensiva. (Figura 1) Diagnóstico O diagnóstico é feito por biópsia de um gânglio que revela as células de Reed-Sternberg e suas variantes, num fundo de células inflamatórias (linfócitos, plasmócitos, eosinófilos, histiócitos), com fibrose. As células de Reed-Sternberg, de origem desconhecida durante muito tempo, foram identificadas imunologicamente como células linfóides de linhagem B, englobando-se esta doença actualmente no grupo dos linfomas. As referidas células têm grande diâmetro (1545 µm) e são multinucleadas ou com núcleo multilobulado. Curiosamente, no linfoma de Hodgkin, ao contrário de outras neoplasias, as células neoplásicas não são mais de 1% das células que se encontram nos gânglios atingidos, sendo as restantes células inflamatórias, o que pode tornar difícil o diagnóstico. De acordo com as células predominantes no gânglio e o grau de fibrose, classifica-se a doença de Hodgkin em: com predomínio linfocitário, com esclerose nodular, com celularidade mista e com depleção linfocitária (classificação de Rye). A primeira tem um excelente prognóstico surgindo, em geral sob a forma localizada em adolescentes. A esclerose nodular corresponde ao tipo histológico mais habitual entre nós e nos países desenvolvidos. A celularidade mista surge em crianças mais jovens. A depleção linfocitária surge associada a formas generalizadas da doença, de prognóstico pior. Após o diagnóstico é indispensável a caracterização do estádio evolutivo para programar a te- CAPÍTULO 131 Linfoma de Hodgkin 619 tações sistémicas acima referidas (temperatura superior a 38 graus Celsius durante pelo menos três dias, emagrecimento superior a 10% do peso nos últimos seis meses, e sudação nocturna) está associada a pior prognóstico. Tratamento FIG. 1 Linfoma Hodgki: opacidade esferóide “gigante” com ponto de partida mediastínico ocupando o campo pulmonar direito (NIHDE). rapêutica. Usa-se habitualmente a classificação de Ann Arbor, com quatro estádios, consoante o número e localização dos territórios ganglionares afectados e a eventual infiltração de estruturas não linfóides, como o pulmão, o fígado, ou a medula óssea (estádio IV). Considerando os extremos desta classificação cabe referir: que o estádio I corresponde a compromisso de um único gânglio ou um só órgão ou local extralinfático; e que o estádio IV corresponde à forma disseminada com vários órgãos ou tecidos extralinfáticos afectados, com ou sem compromissos ganglionar; os estádios II e III correspondem ao compromisso ganglionar (2 ou mais gânglios), e/ou extraganglionar, respectivamente dum lado ou dos dois lados do diafragma, o qual serve como referência topográfica. O estádio é determinado usando várias técnicas imagiológicas como a ecografia, a tomografia axial computadorizada ou a ressonância magnética e através de estudos isotópicos como as cintigrafias com gálio e tecnésio; e, mais recentemente, com a tomografia com emissão de positrões. São técnicas complementares, que adicionam à informação anatómica outros dados sobre a actividade da doença. Estas técnicas sofisticadas permitem identificação do estádio relativamente rigorosa, sem necessidade de recurso a técnicas invasivas como a linfangiografia ou a laparotomia exploradora que pertencem ao passado. A presença de uma ou várias das manifes- A terapêutica é programada de acordo com o estádio do doente e a existência ou não, de manifestações associadas a pior prognóstico. Em pediatria usam-se esquemas combinados de quimioterapia e radioterapia com excelentes resultados. Estes esquemas têm vindo a adaptar-se progressivamente, de forma a reduzir a intensidade da quimioterapia e a dose e os campos da radioterapia, sem diminuir a probabilidade de cura. Hoje é possível curar doentes usando doses complementares de radioterapia que não ultrapassam os 20 a 25 Gy, por oposição aos 35-40 Gy usados anteriormente. Igualmente os estádios menos avançados (I, II, III A) são sujeitos a quimioterapia menos intensiva que os restantes estádios (III B e IV). A probabilidade de cura é grande (80 a 90%), mesmo para os estádios mais avançados, com as modalidades modernas de tratamento: duas a seis faixas de quimioterapia consoante a extensão da doença, seguidas de radioterapia. Os efeitos secundários da quimioterapia são os habituais, sendo os mais temíveis as neoplasias secundárias, principalmente leucemia aguda mieloblástica e linfoma não Hodgkin. A incidência comparativamente superior destas neoplasias secundárias nos doentes com linfoma de Hodgkin em relação a doentes com outras neoplasias, parece ser devida em grande parte à imunodeficiência celular que estes apresentam e que persiste, mesmo após a cura. A estes efeitos somam-se os efeitos secundários da radioterapia: atrofia das partes moles, perturbações do crescimento ósseo, disfunção da tiroideia, tumores secundários das partes moles, da mama, da tiroideia, e ósseos. Isto significa que estes doentes devem ser seguidos cuidadosamente durante muitos anos para diagnóstico atempado destas complicações, que serão tanto mais de recear quanto maior for a esperança de vida do doente. Nota: 1 unidade de radiação (1 GYY) = 100 rads 620 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA 132 NEUROBLASTOMA Mário Chagas e Ana Teixeira QUADRO 1 – Neuroblastoma Manifestações frequentes Dor óssea Marcha claudicante Hepatomegália Massa abdominal (a partir da supra-renal) Palidez Emagrecimento Manifestações raras Definição e aspectos epidemiológicos Trata-se duma neoplasia de origem embrionária cujo ponto de partida é o sistema nervoso simpático; constitui o tumor sólido mais frequente no lactente, e o segundo na primeira década da vida, logo depois dos tumores do SNC. Representa cerca de 10% dos tumores da criança. Manifestações clínicas O espectro clínico é muito variável existindo muitas interrogações pelo seu comportamento, por vezes enigmático. Na verdade, alguns neuroblastomas metastisados e com repercussão grave sobre o estado geral do doente podem regredir espontaneamente ou com quimioterapia de curta duração, enquanto neuroblastomas em estádios mais localizados e sem aparente repercussão geral podem progredir inexoravelmente, apesar dos tratamentos efectuados. O tumor primitivo localiza-se ao longo das estruturas nervosas simpáticas; mais frequentemente no abdómen, na glândula supra-renal ou ao longo da goteira para vertebral; outras vezes no tórax, no mediastino posterior; mais raramente na região cervical ou na pelve (Quadro 1). No abdómen o tumor pode atingir dimensões apreciáveis antes de originar sinais e sintomas: os mais frequentes são a dor e a distensão abdominal que se manifestam numa criança em regra emagrecida e com aspecto de doença grave, já que geralmente a doença se apresenta num estádio avançado. No tórax as manifestações são respiratórias, circulatórias ou neurológicas (síndroma de Claude Bernard Horner, por exemplo), devido à compressão das estruturas anatómicas pelo Nódulos cutâneos Proptose Equimoses periobitárias Adenomegálias Paraplegia tumor. Nalguns casos, porém, poderá ser um achado ocasional numa radiografia do tórax feita por uma intercorrência. Na região cervical, uma massa tumoral associada ou não a dor, é o sinal mais frequente. Como resultado da localização na pelve surgem alterações do trânsito intestinal ou queixas urinárias, resultantes da compressão do recto ou da bexiga. Mas, independentemente das localizações anatómicas anteriormente referidas, tratando-se de um tumor paravertebral, pode sempre manifestar-se inicialmente por sinais neurológicos de gravidade variável, quer por compressão das raízes nervosas, quer por invasão do canal medular. Neste último caso o tratamento torna-se verdadeiramente urgente a fim de evitar sequelas neurológicas graves. Para além destas manifestações relacionadas com o tumor primitivo, outras podem surgir resultantes da metastisação tumoral: dor óssea, por invasão óssea; anemia e trombopénia por invasão da medula óssea; nódulos cutâneos por invasão da pele; proptose e equimoses palpebrais por infiltração da órbita; e, em fases muito avançadas da doença, pode assistir-se a metastisação pulmonar ou no SNC. Uma forma peculiar de apresentação que merece referência é a síndroma de Pepper: surge no lactente e caracteriza-se por um tumor locali- CAPÍTULO 132 Neuroblastoma zado na supra-renal havendo, simultaneamente, infiltração maciça do fígado. A hepatomegália resultante é então a primeira manifestação da doença, observando-se um lactente com estado geral em regra bom, com abdómen volumoso em que se palpa o fígado aumentado de volume. Algumas vezes esta hepatomegalia é de tal forma exuberante que se instala um quadro de dificuldade respiratória, e/ou edema do escroto e membros inferiores, e/ou vómitos frequentes e mánutrição, devidos à compressão exercida pelo fígado aumentado sobre as estruturas vizinhas. Mais raramente poderão surgir outras manifestações já referidas anteriormente: opsomioclonus ou diarreia crónica. O Quadro 1 resume as manifestações clínicas mais frequentes e menos frequentes do neuroblastoma. A Figura 1 montra um lactente com distensão abdominal e hepatomegádia. 621 FIG. 2 Imagem opaca arredondada paravertebral torácica superior de neuroblastoma desviando o esófago visualizado com contraste. (NIHDE) Diagnóstico O estudo imagiológico do doente por TAC e ou ressonância magnética nuclear (RMN) revela um tumor de localização e dimensões variáveis, muitas vezes com calcificações, as quais são sugestivas do diagnóstico. As Figuras 2 e 3 exibem imagens de neuroblastoma de localização intratorácia. Na Figura 2 (radiografia de tórax) em incidência póstero-anterior observa-se opacidade para vertebral de contorno arredondado ao nível de D1D4 desviando o esófago contrastado. A Figura 3 mostra imagem de neuroblastoma de localização pré-vertebral superior intratorácia FIG. 1 Lactente com distensão abdominal por hepatomegália relacionada com neuroblastoma (NIHDE). FIG. 3 Imagem de TAC torácica de perfil evidenciando tumor esférico pré-vertebral (neuroblastoma) ocupando praticamente o terço superior da cavidade torácica. (NIHDE) (D2-D7) de contorno arredondado e grandes dimensões (TAC de perfil). O estudo isotópico com injecção de metaiodobenzilguanidina (MIBG), metabolito que é fixado electivamente pelas células do neuroblastoma, permite determinar com precisão a localização do tumor primitivo e suas metástases, tendo também importância no seguimento dos doentes. Tratando-se de um tumor produtor de catecolaminas, estas podem ser doseadas na urina, encontrando-se em geral aumentadas no início da doença, normalizando com o tratamento. Os ácidos vanilmandélico (VMA) e homovanílico (HVA) são assim importantes, não só no diagnóstico, mas também no estudo evolutivo. 622 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA [Nota: valores de referência: VMA (urina): 83±26µg/kg/dia (ou 2-12µg/mg de creatinina); HVA (urina): 3-16µg/mg de creatinina; catecolaminas totais (urina): 0,4-2µg/kg/dia] O mesmo se aplica à enolase sérica e LDH, marcadores que, não sendo específicos, se encontram elevados nas formas mais avançadas da doença. O diagnóstico é confirmado por exame citológico ou histológico do tumor, obtidos por citologia por agulha fina ou por biópsia, colhendo-se igualmente material para estudos genéticos, já que actualmente se identificaram marcadores genéticos com valor prognóstico: deleção do cromossoma 1 e amplificação do gene N MYC, entre outros. Tratamento O neuroblastoma é um tumor quimio e radiossensível. O tratamento é programado de acordo com os critérios que definem o prognóstico do doente no início. Entre estes destacam-se a idade (inferior ou superior a um ano), o estádio do tumor (localizado e ressecável, localizado e irressecável, disseminado), os marcadores genéticos (N MYC) e o tipo histológico (favorável, desfavorável). Assim, alguns doentes serão apenas sujeitos a cirurgia, outros serão submetidos a quimioterapia e cirurgia, outros ainda após quimioterapia e cirurgia serão sujeitos a megaterapia com auto transplantação com células estaminais, complementada posteriormente com radioterapia sobre o leito tumoral. Alguns protocolos prevêem ainda terapia sobre a doença residual eventualmente persistente após os tratamentos anteriormente referidos, a qual se ensaia com o uso de anticorpos monoclonais, ou com indutores da maturação do neuroblasto, ou ainda com terapia com radioisótopos. Prognóstico A probabilidade de cura depende dos vários factores prognósticos acima descritos, sendo muito elevada nos estádios localizados sem marcadores genéticos de mau prognóstico e, ao invés, reduzida nos estádios avançados ou com marcadores genéticos desfavoráveis, apesar das terapêuticas intensivas a que estes últimos doentes são actualmente sujeitos. 133 TUMOR DE WILMS Mário Chagas e Ana Teixeira Definição e aspectos epidemiológicos O tumor de Wilms, também designado nefroblastoma, é o tumor renal e o tumor abdominal maligno mais frequente na criança, representando cerca de 5% dos tumores pediátricos (Quadro 2 do capítulo 125). É um tumor de origem embrionária, histologicamente formado por três elementos (estroma, blastema e elementos epiteliais, em proporções variáveis), e com um grau de maior ou menor malignidade. Poder ser detectado no RN. Os restantes tumores malignos do rim – sarcoma de células claras, tumor rabdóide e carcinomas – são muito raros em idade pediátrica. Atinge o pico de incidência pelos dois a três anos de idade, embora se possa encontrar em qualquer outro grupo etário pediátrico. Etiopatogénese Em cerca de 1-2% dos casos existem antecedentes familiares desta patologia (hereditariedade autossómica dominante). Em cerca de 20% dos casos foram demonstradas mutações no gene WT1 localizado em 11p 13. Cabe referir, a propósito, entre outras, 3 situações associadas a tumor de Wilms, por sua vez acompanhadas de anomalias cromossómicas e génicas que se relacionam o mesmo tumor: 1) Síndroma de Beckwith – Wiedemann (macroglóssia, hemi-hipertrofia, onfalocele, visceromegália) em que existe risco (de 3-5%) de tumor de Wilms; uma das anomalias consiste em deleção 11p 15.5 (locus WT2); 2) Síndroma de Denys – Drash (insuficiência renal precoce associada a esclerose mesangial, pseudo-hermafroditismo masculino) associada a mutações CAPÍTULO 133 Tumor de Wilms no gene WT1; 3) Síndroma WAGR (atrasomental, aniridia, anomalias génito-urinárias) associada a deleção 11p 13 (loci WT1 w PAX6). Manifestações clínicas Muitas vezes o tumor é assintomático, sendo a mãe ao cuidar do filho, ou o médico em exame de rotina, que palpa o tumor localizado num dos flancos, de consistência dura e de limites precisos. Com localização inicial lombar, desenvolve-se rapidamente no sentido pósteroanterior, simulando por vezes hepatomegália ou esplenomegália. Em cerca de 5% dos casos desenvolve-se bilateralmente. O tumor, que está contido pela cápsula do rim, é friável, pelo que a palpação deve ser cuidadosa. Outras vezes o tumor é sintomático sendo a dor e a hematúria macroscópica as manifestações mais frequentes. A hipertensão arterial associa-se frequentemente ao tumor de Wilms pelas alterações vasculares renais por ele provocadas; contudo, raramente é manifestação responsável pelo diagnóstico. O tumor de Wilms pode aparecer associado a alterações morfológicas como criptorquídia, hipospádia, aniridia ou hemihipertrofia. Algumas crianças com síndromas raras têm uma maior incidência de tumor de Wilms, pelo que devem ser vigiadas cuidadosa e longamente. Encontram-se nesta situação as crianças com síndromas WAGR, Beckwith-Wiedemann, Denys-Drahs e Sotos. (ver Etiopatogénese) Diagnóstico Perante uma criança com dois ou três anos de idade com um tumor abdominal, o diagnóstico diferencial é feito, principalmente, entre tumor de Wilms e neuroblastoma. Os estudos de imagem são geralmente conclusivos, porque o tumor de Wilms é em regra um tumor intra-renal (mais lateral), e o neuroblastoma abdominal tem como ponto de partida a supra-renal ou os gânglios simpáticos para vertebrais (mais central com tendência para expansão centrífuga). No tumor de Wilms os estudos de imagem mais informativos são a ecografia com ecodoppler 623 e a tomografia axial computadorizada (TAC), abdominais, e a radiografia do tórax. A ecografia confirma a existência de um tumor renal, informa sobre a sua estrutura sólida ou quística, detecta a existência de adenomegálias regionais ou de metástases hepáticas, e verifica a permeabilidade dos grandes vasos determinando a eventual presença de trombo na veia renal e na veia cava inferior. A TAC com injecção de produto de contraste confirma a existência do tumor e permite uma mais precisa definição da sua localização e dos seus limites, bem como da capacidade funcional do rim atingido. Permite igualmente examinar o rim oposto, excluindo a existência de tumor bilateral. A radiografia do tórax detecta a existência de metástases nos pulmões que, com o fígado, constituem os locais mais frequentes de metastisação. Alguns centros oncológicos privilegiam a TAC torácica em detrimento da radiografia convencional para detecção de metastisação pulmonar, já que o seu poder de resolução é maior, embora o risco de falsos positivos seja significativo. (Figura 5 – Capítulo 8). Tratamento O tumor de Wilms é quimio e radiossensível. A terapêutica é, como na generalidade dos tumores sólidos, constituída por cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Na maioria dos centros oncológicos dos EUA a cirurgia é a primeira atitude terapêutica. Na UE em geral, a cirurgia só é inicial em lactentes com menos de 6 meses em que a probabilidade de se tratar de tumor renal benigno é grande, ou quando por qualquer razão há dúvida sobre o diagnóstico. Se assim não for, a terapêutica inicia-se com quimioterapia, sendo a cirurgia protelada (quimioterapia neoadjuvante). Esta estratégia, entre outras vantagens, permite reduzir o volume tumoral tornando a cirurgia mais fácil. A radioterapia é hoje reservada para os estádios mais avançados em que, após a cirurgia se verificou tumor residual, ou em que houve ruptura da cápsula do rim, ou ainda para os tumores cujo tipo histológico é desfavorável. Da mesma forma o grau de intensidade da quimioterapia depende da histologia do tumor. 624 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA Prognóstico A probabilidade de cura de uma criança com tumor de Wilms é actualmente de 90%, sendo preocupação dos protocolos actuais de tratamento a redução da toxicidade, sem prejudicar estes excelentes resultados. 134 TUMORES DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL Mário Chagas e Duarte Salgado Aspectos epidemiológicos Os tumores cerebrais primários no seu conjunto são a segunda neoplasia mais frequente em idade pediátrica, logo a seguir às leucemias. A sua incidência ronda 30 novos casos por 1 000 000 de crianças com menos de 15 anos. No seu todo, podemos encontrar neoplasias de baixo grau de malignidade, e outras de uma agressividade tal que se colocam entre as mais malignas em oncologia. O sistema nervoso central no referido período apresenta particularidades entre as quais se destaca o seu crescimento e maturação, decorrendo daqui uma diferença fundamental entre as patologias e terapêuticas nesta idade e na idade adulta. A radioterapia, por exemplo, terapêutica habitual nos adultos, pode não ter indicação formal nesta população, devido aos efeitos secundários que determina a nível cognitivo. A percepção de que os doentes terão por esta razão prognóstico mais reservado deve ser combatida. Na verdade, se alguns tumores não são actualmente curáveis, a maioria das crianças pode ser curada ou viver com a situação compensada com um mínimo de limitações. Manifestações clínicas A ideia de que o sintoma mais frequente numa criança com tumor cerebral é a cefaleia está correcta. No entanto, dada a frequência desta queixa na população em geral, torna-se muito importante reconhecer as suas características específicas que são as da hipertensão intracraniana: cefaleias em CAPÍTULO 134 Tumores do sistema nervoso central regra nocturnas ou matinais, por vezes associadas a irritabilidade e prostração, melhorando ao longo do dia e repetindo-se diariamente. Ao progredirem, são quase sempre acompanhadas de vómitos matinais, tipicamente pré-prandiais. É com este quadro que as crianças chegam ao médico, quase sempre com um período de sintomas inferior a seis semanas. O exame de imagem revela, em mais de metade dos casos, sinais de tumor localizado na fossa posterior, condicionando hidrocefalia aguda. A identificação de sinais de localização do tumor, tais como hemiparésia ou afasia, não é habitual nesta população, mas é importante saber que um dos tumores mais frequentes, o glioma da via óptica, manifesta-se somente por perda da acuidade visual unilateral; infelizmente a idade não permite que a criança colabore no diagnóstico, já que a maior incidência do referido tumor se verifca abaixo dos 3 anos. A crise epiléptica como forma de apresentação clínica não é frequente. São geralmente crises parciais, por vezes com uma semiologia atípica como sejam as crises uncinadas (sensação de cheiro desagradável) dos tumores da face interna do lobo temporal. O Quadro 1 resume os sinais típicos de hipertensão intracraniana (HIC). Tipos histológicos Meduloblastoma É o tumor mais frequente na criança, com localização na fossa posterior, no vermis do cerebelo. O seu nome tem origem na célula pluripotencial seu ponto de partida. Histologicamente faz parte dos tumores de células pequenas redondas e azuis, semelhando os tumores da família dos sarcomas de Ewing/PNET extracranianos. A abordagem terapêutica actual destes tumores, de elevada malignidade, passa por uma remoção cirúrgica, a mais alargada possível, seguida de radioterapia sobre o leito tumoral e todo o SNC (cérebro e medula espinal); e, finalmente, de quimioterapia. Com esta abordagem é possível uma sobrevivência aos cinco anos de cerca de 65%. As sequelas derivadas do tumor e da terapêutica não são, no entanto, negligenciáveis, desta- 625 QUADRO 1 – Sinais de HIC • Vómitos matinais • Edema da papila • Cefaleias nocturnas /matinais • Estrabismo (paralisia do VI par) • Nistagmo • Ataxia cando-se a toxicidade cognitiva e endócrina, tanto mais acentuada quanto mais novos forem os doentes. Astrocitoma pilocítico Trata-se de um tumor com múltiplas localizações no SNC. Se histologicamente é um tumor de baixo grau de malignidade, na clínica a sua malignidade advém do facto de se encontrar em certas localizações que o tornam irressecável. As duas localizações mais frequentes ilustram este aspecto: se, por um lado, a localização cerebelosa permite uma remoção total sem sequelas major e a cura, já a localização nas vias ópticas torna impossível uma cirurgia eficaz sob pena de défices inaceitáveis. É, no entanto, de salientar que nas melhores séries de doentes a sobrevivência média aos cinco anos ultrapassa 70%. Nos últimos anos têm-se desenvolvido protocolos de quimioterapia para estes tumores de crescimento lento, com os quais se obtêm respostas em regra parciais, mas que permitem “ganhar tempo” até à introdução de terapêuticas mais definitivas como a radioterapia, que tem toxicidade muito acentuada nesta população, quase sempre com idade inferior a cinco anos. Importa assinalar a associação muito frequente deste tipo histológico, na localização das vias ópticas, com a neurofibromatose de tipo I. Nestas circunstâncias, e ao contrário de outros doentes sem esta facomatose, admite-se iniciar o tratamento sem biópsia do tumor. Ependimoma Este tumor, cuja célula de base é a célula do revestimento do sistema ventricular, tem a sua localização mais frequente na fossa posterior (IV ventrículo). Por isso, confunde-se imagiologicamente com o meduloblastoma. Existem diversos graus 626 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA de malignidade, sendo mais frequentes os tumores menos anaplásicos, o que não invalida o facto de poderem metastisar, sobretudo pelas vias do líquor, tal como o meduloblastoma. A abordagem terapêutica actual assenta, em primeiro lugar, numa tentativa de remoção total, seguida de radioterapia sobre o leito tumoral, ou sobre todo o SNC se houver disseminação leptomeníngea. É difícil avaliar a sobrevivência média porque nas séries mais antigas a definição de remoção total era complicada pela ausência de métodos de imagem precisos, como é o caso da ressonância magnética na actualidade. A importância duma remoção total como principal factor prognóstico leva muitos neurocirurgiões a tentarem uma segunda abordagem cirúrgica quando a ressonância magnética revela tumor residual depois de uma primeira intervenção. Glioma maligno Este é, sem dúvida, o grupo de tumores com pior prognóstico. Com origem nas células da glia – astrócito e oligodendrócito – existem vários tipos histológicos; trata-se de um grupo com clara tendência para a indiferenciação pelo que, com a evolução no tempo, todos atingem o tipo histológico mais maligno de glioblastoma multiforme. Na data do diagnóstico pode encontrar-se um astrocitoma, um astrocitoma anaplásico, um glioblastoma multiforme, um oligodendroglioma, um oligodendroglioma anaplásico, ou tumores mistos com ou sem anaplasia, na grande maioria de localização supratentorial. A abordagem terapêutica com remoção completa, radioterapia focal e quimioterapia, resulta para os tumores mais anaplásicos em sobrevivências de 1 a 3 anos. Existem dúvidas quanto à terapêutica dos tumores de menor grau de malignidade; o risco de recidiva é grande dado que o carácter infiltrativo dificulta a remoção total. Uma breve referência aos gliomas do tronco cerebral de evolução rápida conduzindo a défices neurológicos graves evidentes já no momento do diagnóstico. Trata-se, em regra, de glioblastomas que, pela sua localização, não se biopsiam. Até ao momento, apesar das múltiplas terapêuticas experimentais, não se conseguiu alterar um dos prognósticos mais sombrios, em que a sobrevivência é, em regra, inferior a um ano. Tumores de células germinativas Têm como base células da linhagem germinativa que se podem encontrar no SNC em duas localizações típicas: hipotálamo/quiasma óptico e glândula pineal. Dividem-se em dois grupos: germinomas puros e tumores secretores – coriocarcinoma, carcinoma embrionário, tumor do saco endodérmico e teratoma. A designação secretora deve-se ao facto de estes tumores produzirem marcadores (alfa-fetoproteína e beta HCG) que se encontram no soro e liquor e que permitem o diagnóstico sem necessidade de biópsia. O germinoma é menos agressivo, curável, sendo também o mais frequente (2/3 dos casos). A terapêutica convencional do germinoma é a radioterapia do tumor e de todo o SNC, dada a facilidade de metastisação pelo liquor. Quanto aos tumores secretores tem-se tentado combinações de quimioterapia seguida de radioterapia com resultados menos animadores. 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